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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versión On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.9 no.1 Rio de Janeiro enero/un. 2017
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2017v1p.125
RESENHA
Freud caleidoscópio
Macla Ribeiro Nunes
Psicóloga, Psicanalista, membro associado do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro - Escola de Psicanálise. Psicóloga na Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO. Tel. : (21) 988170437 / E-mail: macla.nunes@unirio.br
Resenha do livro de Elizabeth Roudinesco, Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, 528 pgs.
Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo chega em um momento oportuno. Rica e escrupulosamente documentada, a biografia de Elisabeth Roudinesco se inscreve na sequência de estudos histórico-biográficos iniciados pelo discípulo de Freud Fritz Wittles - cuja publicação se deu com Freud ainda vivo, em 1924 - e outras obras importantes como as de Henri F. Ellenberger, Ernest Jones, Carl Schorske, Peter Gay e Jacques Le Rider. Como afirma a autora,
"Após decádas polêmicas, hostilidades, trabalhos eruditos, interpretações inovadoras e declarações injustas, após os múltiplos retornos a seus textos que pontuaram a história da segunda metade do século XX, é grande a dificuldade de saber quem era realmente Freud, de tal forma o acúmulo de comentários, fantasias, lendas e rumores terminou por encobrir o que foi o destino paradoxal desse pensador na sua época e em nosso tempo" (p. 10,11).
Desta forma, o acesso ao essencial dos arquivos concernentes à obra e da vida de Freud no departamento de manuscritos da Biblioteca do Congresso de Washington (BCW) permitiu à historiadora estabelecer e esclarecer certos fatos. Não há, por exemplo, nestes documentos, qualquer vestígio da existência de uma relação amorosa de Freud com sua cunhada Minna Bernays. Da mesma forma, durante seu exílio em Londres, Freud não abandonou suas quatro irmãs mais velhas, em seguida deportadas e exterminadas, do que ele foi escandalosamente acusado. Segundo Roudinesco, eis por que, após um longo convívio com textos e cenários da memória freudiana, ela resolveu expor de maneira crítica a vida de Freud, a gênese de seus escritos, a revolução simbólica de que ele foi o inaugurador.
A obra está dividida em quatro partes: os primórdios da vida de Freud, amores, tormentas, ambições e a invenção da psicanálise; uma segunda que nos remete à sua época, discípulos e dissidentes, à descoberta da América e ao contexto da Primeira Guerra Mundial; depois podemos ler Freud em sua intimidade, sobre sua família, cães, objetos, sua arte no divã, e relações com Melanie Klein, M. Bonaparte, Lous Andreas-Salomé e, por fim, acompanhamos os últimos tempos de Freud entre medicina, fetiche e religião, o nazismo, sua doença e sua morte. Roudinesco ainda nos fornece um ensaio historiográfico, bem como indicações genealógicas e cronológicas que, dialogando com a maioria das biografias existentes, permitem compreender as controvérsias em torno dos arquivos de Freud.
Acompanhando a biógrafa, podemos observar as primeiras obras daquele homem ambicioso proveniente de uma longa linhagem de comerciantes judeus vindos da Galícia oriental, seus esboços, sua formação, os profícuos estudos no Sperlgymnasium de Viena. Na universidade, as pesquisas no laboratório de Ernest W. von Brüke sobre a sexualidade das enguias e os neurônios das lagostas, o doutorado em medicina, a presença na clínica psiquiátrica de Theodor Meynert, o encontro em Salpêtriere com o renomado especialista em histeria, Jean-Martin Charcot, bem como a colaboração com Joseph Breuer, que viria tratar o "caso Anna O.".
Conhecemos o contexto da elaboração de obras fundamentais da teoria psicanalítica como A interpretação dos Sonhos e os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, a abertura do consultório de psicanálise, os primeiros pacientes, entre os quais Ida Beuer, o "caso Dora", e outros. Roudinesco retrata, em detalhes, as influências, as filiações, as escolas. Emerge, de fato, todo um mundo onde "famílias de pensamento" se misturam, uma Viena no centro da Mitteleuropa - a "Europa Central". Alí, a efervecência cultural tem por arautos artistas e cientistas, psiquiatras, filósofos, físicos, músicos, psicanalistas que se influenciam uns aos outros, se aliam, se casam, casam entre seus filhos e suas filhas, se encontram sobre o mesmo divã.
Roudinesco rastreia assim a gênese de um pensamento inovador e radical, do qual Freud jamais quis fazer nem um sistema e nem uma doutrina, mas o qual ele sempre concebeu como um movimento. É, sem dúvida, sobre este ponto que ela parece se mostrar mais crítica. Herr professor foi, por vezes, uma nominação equivocada, já que ele demonstrou uma "desastrosa atitude de neutralidade" política. Desconstruindo a imagem do gênio solitário e incompreendido, ela recorda o quanto sua excelente capacidade de intuição foi também nutrida no contato com o menos lembrado, em geral, da aventura freudiana: pacientes pouco conhecidos como Bertha Pappenheim, Sabine Spielrein, e discípulos audaciosos como Georg Groddeck e Otto Gross, dos quais a biografia nos conta a história em contraponto.
Reinstalando o homem em seu tempo da história, em seu consultório cheio de relíquias do passado, à escuta de seus pacientes a partir, como ele, da burguesia judaica assimilada, em uma Viena amada e odiada, assombrada pelo antissemitismo, pelo declínio do patriarcado e pela irrupção do desejo feminino, o teórico da sexualidade aparece nos escritos da historiadora sob uma luz específica. A autora faz emergir um sujeito paradoxal, judeu sem Deus, homem das luzes atraído por forças obscuras, atento às exigências imperiosas das pulsões sexuais tanto quanto praticante da abstinência, conservador esclarecido que buscava libertar o sexo para melhor controlá-lo, dividido entre um ideal de cientificidade e a fascinação pelos poderes da imaginação criadora. Um Freud que, se era mestre, era mestre sem mando, e mestre da conjugação de dualidades.
Poderíamos considerar épocas específicas e tantos outros aspectos da vida de Freud ou de sua atividade, falar da babá que lhe acariciava, das operações que suportou na mandíbula, das relações turbulentas com Sándor Ferenczi ou Carl Gustav Jung, do dinheiro em todas as moedas que lhe traziam as consultas e das contas que ele controlava diariamente em uma "agenda especial", de falhas que ele cometeu na condução dos tratamentos que realizou ou da análise a qual ele submeteu sua filha Anna. Se poderia falar de tudo e a mesma questão retornaria: Quem foi Sigmund Freud? Sem dúvida alguma, o especialista, o historiador, não é aqui confrontado, como frequentemente, com a escassez dos documentos, mas com um excesso e, em consequência, com uma pluralidade infinita de interpretações. Assim, o fundador da psicanálise pode se apresentar mais precisamente como um personagem de ficção, um Don Quixote ou um Hamlet, um Fausto, cuja particularidade é estar sujeito a todas as leituras e, no entanto, escapar a qualquer "captura" definitiva.
Nas últimas linhas de seu livro, a autora conta que alguns dias antes de sua partida para Washington vai a Londres, ao crematório de Golders Green - local de inumação laico situado defronte do cemitério judaico homônimo que acolhe crentes, não crentes, escritores, comunistas, atores e livre-pensadores -, onde se demora diante dos mausoléus, estátuas e inscrições. Sabendo que um pouco antes, na noite de Ano Novo de 31 de dezembo de 2014, certamente procurando furtar objetos de valor, vândalos haviam quebrado o painel diante do qual ficava o vaso grego contendo as cinzas de S. Freud e Martha Bernays, ela contempla o triste espetáculo que era o monumento decapitado e o local devastado, e observa que não poderia deixar de pensar que
"aquela profanação - ou melhor, 'decapitação' - significava claramente que Freud, setenta e cinco anos após sua morte, continuava a incomodar a consciência ocidental, com seus mitos, suas dinastias reais, sua travessia dos sonhos, suas histórias de hordas selvagens, de Gradiva caminhando, de abutre detectado em Leonardo da Vinci, de assassinato do pai e de Moisés perdendo as Tábuas da Lei". (p. 487)
Ali a historiadora imagina Freud "brandindo sua bengala contra os antissemitas", "vestindo sua camisa mais bonita para visitar a Acrópole", ou mesmo "esperando Hitler de pé, implacável, sem conseguir pronunciar seu nome". Como diz Roudinesco, cada passo da vida de Freud foi comentado dezenas de vezes e cada linha de sua obra interpretada de múltiplas maneiras. Cada escola psicanalítica tem seu Freud - freudianos, pós-freudianos, kleinianos, lacanianos, culturalistas, independentes -. "Freud caleidoscópico", como diz o psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge ao apresentar o livro. Fica então o convite ao enigma Freud.
Recebido em: 12/10/2016
Aprovado em: 20/12/2016