Introdução
Deixado à margem do escopo curatorial da Semana de Arte Moderna de 1922, o cinema enquanto forma de produção artística não foi tema de nenhuma conferência, discussão ou mostra naquele fevereiro que afetaria irremediavelmente a identidade paulista - e nacional - diante do progresso das novas estéticas visuais e literárias. Mesmo assim, a arte cinematográfica nunca deixou de ser tema de atenção para os modernistas que arquitetaram o evento no Theatro Municipal. Basta revisitarmos alguns apontamentos sobre isso para verificarmos a importância desse novo meio de comunicação para o ideário de qualquer grupo que pretendesse chamar-se “moderno”.
Por outro lado, o fato não chega a ser uma surpresa. O Brasil tem seu histórico errático no campo do cinema desde que as primeiras tomadas foram feitas por aqui. O mercado nacional foi loteado por distribuidores internacionais, norte-americanos e europeus, desde os primeiros anos do século 20. A produção local apoiava-se sobretudo nos esforços de amadores entusiastas e dos “cavadores”, cinegrafistas que perambulavam pelas propriedades dos barões do café e pelas mansões dos primeiros industriais instalados por aqui oferecendo às famílias abastadas seus serviços para a produção de “álbuns em movimento”, ou para o registro de ocasiões especiais, como festas de casamento ou de aniversários dos membros dessas famílias. Aqueles que se aventuravam em produções mais ambiciosas quase sempre se frustravam e frustravam o espectador, já que os resultados, via de regra, eram mambembes e esquecíveis.
Precisamos somar a esses dados o fato de que a produção nacional não contava com circulação em larga escala. Muitas vezes os filmes produzidos fora dos grandes centros, como o Rio de Janeiro ou São Paulo, nem sequer chegavam a ter uma carreira no circuito comercial. E mesmo nas capitais, onde o cinema estrangeiro já se tornava parte da cultura local, a produção nacional passava ao largo.
Mas a verdade é que, sim, os modernistas viam no cinema algo novo, revolucionário e instigante. Somente depois da Semana de 22, porém, é que esses modernistas de São Paulo apontaram sua atenção a ele, como bem observa a pesquisadora Márcia Camargos:
O cinema - que, no período, era ambulante como o circo - ganhou local fixo para exibir a produção nacional, quando o espanhol Francisco Serrador teve a ideia de abrir um estabelecimento na atual Avenida São João. … Não é de se estranhar, portanto, que, embora ausente da Semana de 22, o cinema ganharia coluna própria … na revista Klaxon. (Camargos, 2013, p. 121)
A visão modernista sobre a questão do cinema já aparece logo no manifesto que abre o primeiro número do mensário que o grupo modernista paulista publicou a partir de março, até outubro, de 1922.
KLAXON sabe que o cinema existe. Perola White é preferível a Sarah Bernhardt. Sarah é tragédia, romantismo sentimental e técnico. Perola é raciocínio, instrução, esporte, rapidez, alegria, vida. Sarah Bernhardt = século 19. Perola White = século 20. A cinematografia é a criação artística mais representativa da nossa época. É preciso observar-lhe a lição. (Anônimo, 1922, p. 2)
No entanto, há que se notar que a referência ao filme toma como parâmetro o contexto da produção norte-americana e europeia, ao citar Pearl White e Sarah Bernhardt. Ao longo nos números seguintes, os artigos sobre o cinema, redigidos por Mário de Andrade (sob diferentes pseudônimos), discutiriam o papel do filme enquanto obra de arte e enalteceriam, em mais de uma ocasião, a genialidade de Charles Chaplin, cujo personagem Carlitos, para Mário, sintetizaria o espírito do homem moderno, por ser um andarilho despreocupado que flanava ao bel-prazer em suas desventuras no meio de uma vertiginosa modernidade urbana. A não ser por uma crítica superficial ao filme Do Rio a São Paulo para casar, de José Medina (a quem retornarei adiante), Klaxon não parecia preocupada em reforçar a importância do cinema brasileiro, como fazia com a poesia, a prosa, a música e as artes plásticas. Mas por quê?
Especulo que, por um lado - como já mencionei -, o pobre cinema nacional estava longe de se manter conectado com a vanguarda modernista, como era comum no cinema francês ou alemão, sempre em pé de igualdade cronológica com as escolas transgressoras do expressionismo e do dadaísmo, por exemplo. Em segundo lugar, o corpus da produção nacional não devia parecer convidativo à crônica modernista pelas mesmas razões que faziam o mercado distribuidor ignorar tal produção: a qualidade extremamente problemática. Por fim, a esparsa produção de obras dignas de atenção só tomaria corpo algum tempo depois dos eventos de fevereiro de 1922, e, aí sim, veríamos a reação, sobretudo do poeta Guilherme de Almeida, uma das mentes mais ativas na concepção da Semana, aos esforços nacionais. Olhando em perspectiva, porém, enquanto à época esses modernistas viam a exaltação da São Paulo moderna e pulsante em algumas dessas obras, hoje é possível discutirmos o olhar ufanista, sobretudo se analisamos como tais obras já anteviam o problema do empastelamento da verve individual diante dos dilemas e das demandas de uma cidade como São Paulo, que caminhava para se tornar, já em 1929, uma metrópole com cerca de 1 milhão de habitantes, em que as contradições e as melancolias do futuro começavam a refutar o espírito jocoso, miscigenado e antropofágico perseguido pelos artistas que subiram ao palco do Municipal para saudarem o progresso.
Vejamos, com um pouco mais de detalhe, esse fenômeno paradoxal.
1.
Muitas são as teorias e especulações que tentam explicar as razões pelas quais o paulistano é um ser peculiar, frio, de alma acinzentada, avesso aos contatos e aos laços afetivos, que se move entre milhões de outros cidadãos sem, no entanto, se importar com a vida em comunidade. Trata-se de um ser que, ao longo de décadas, se acostumou a viver num lugar essencialmente orientado pelo trabalho, pelo acúmulo de capital e pelo hedonismo recreativo. Até há bem pouco tempo, São Paulo não era uma cidade com estrutura para o turismo. Os estrangeiros vinham para ela exclusivamente a trabalho. O caos urbano de São Paulo fez seu habitante se acostumar com uma vida cronometrada, despersonalizada e vivida em trânsito, sempre. O espírito paulistano é um espírito blasé, que não se comove com absurdos que permeiam seu cotidiano. Na verdade, o cotidiano do paulistano médio é o Absurdo. E o cinema brasileiro, consciente ou não, capturou esse espírito desde cedo.
Se há alguém nos primórdios do cinema brasileiro a quem possamos chamar realmente de “cineasta”, num período em que a maioria dos profissionais do meio eram pouco mais que “cavadores”, este alguém é José Medina (1894-1980). O menino que nasceu em Sorocaba e cresceu assistindo a Griffith e a Chaplin mudou-se ainda jovem para São Paulo e, junto com o fotógrafo italiano Gilberto Rossi (1882-1971), fundou uma pequena produtora de cinejornais, estimulado pela crescente febre do cinema, que já se espalhara por muitas partes do país. Os dois passaram a produzir os “Rossi Atualidades”, série de informativos que eram projetados antes das sessões principais e davam ao público uma amostra das ações do governo do estado de São Paulo em seus feitos para o bem da urbanização, industrialização e infraestrutura da que fora uma crescente vila que, no início dos anos 1920, já dava sinais de sua expansão exponencial.
Mas Medina não queria apenas ser um “cavador” de luxo. Sua intenção era criar uma estrutura que lhe permitisse produzir filmes de ficção em que pudesse explorar a comédia e o drama locais com base nas lições empíricas do cinema estadunidense. Assim, em 1919, no decurso de três dias apenas e contando com Rossi para a direção de fotografia e mais alguns conhecidos recrutados para o elenco, produziu um curta-metragem singelo, porém revelador: O exemplo regenerador. A fita com pouco mais de 5 minutos de duração é uma comédia de costumes mostrando um tipo muito particular de paulistano. Trata-se de alguém que vem de uma classe ascendente, à época começando a surgir entre os grandes e tradicionais donos das terras do café e os proletários da roça e das novas indústrias. Um tipo pequeno-burguês, que preza sua individualidade conquistada pelo trabalho e seu status de “novo rico”.
Na história de O exemplo regenerador, vemos um casal em que o marido é um jovem orgulhoso e individualista e a esposa, uma moça inocente e sensível. Trata-se de um casal bem estabelecido, por sinal, já que contam até com um mordomo na residência. Quando os conhecemos, a moça se mostra bastante contrariada, porque seu esposo está se preparando para sair à noite para uma “conferência”, eufemismo para uma boa noitada com amigos. Ela gostaria que seu esposo ficasse em casa porque naquele dia os dois completam um ano de seu matrimônio, mas o marido não poderia estar menos interessado nos anseios de sua mulher. Quando o homem sai de casa, o mordomo toma a liberdade de aconselhar sua patroa a agir de forma mais incisiva para “atrair seu marido, que ainda não foi conquistado”, segundo seu entendimento. Ambos armam uma farsa para reverter a situação. Mandam um recado anônimo ao bar onde o homem está reunido em sua “conferência” com os dizeres “Sua esposa imita-o neste momento em sua casa. Olho por olho, dente por dente. Um amigo”. Irado, o homem parte imediatamente para sua residência onde encontra sua esposa repousada languidamente num divã, com um cigarro entre os dedos. Medina nos mostra uma garrafa de espumante e copos vazios sobre uma mesa na beira da qual o mordomo dorme debruçado. O marido saca sua pistola e exige que lhes expliquem o que está havendo, ao que o mordomo se levanta e revela a trama: “Isto é o que vai acontecer se não cessarem as ‘conferências’”. Este exemplo realmente regenera o homem, que no plano seguinte surge carinhoso e atencioso com sua esposa, sob o olhar do mordomo a espreitá-los, satisfeito com o sucesso de seu plano. Fim.
A pequena obra de Medina é marcante por vários aspectos. Em primeiro lugar, embora produzido há mais de 100 anos, a cópia existente é incrivelmente bem preservada. Sua preservação pôde nos dar um leve gosto de uma vida privada dessa classe emergente na capital, sobretudo por meio da perícia de seu diretor, que - diferentemente da maioria dos filmes brasileiros da época - evolui a partir de uma interpretação muito naturalista, uma decupagem sofisticada e afinada com o cinema profissional estrangeiro e de algumas ousadias, como, por exemplo, o plano em que nos mostra a esposa atirada e absorta de satisfação no divã. Um plano de mulher que, aparentemente, acaba de obter prazer sexual com seu mordomo, enquanto o marido a trai fora de casa.
Ao longo da década de 1920, Medina investiu no exame dos costumes da pequena burguesia paulistana em filmes como A culpa dos outros e Do Rio a São Paulo para casar, ambos de 1922, e Gigi, de 1925. Todos estes foram perdidos para sempre num incêndio que destruiu os arquivos da Rossi Filmes no início da década de 1930. Restaram apenas O exemplo regenerador e a obra-prima do diretor, que mergulha na alma da cidade de São Paulo, agora de forma trágica, direta e avessa às exaltações modernistas: Fragmentos da vida (1929).
Em Fragmentos da vida, baseado num conto do norte-americano O. Henry, conhecemos um rapaz que vive nas ruas. No passado, ele assistiu à morte trágica do pai, um pedreiro que caiu do andaime de uma construção e, antes de morrer, pediu ao filho, ainda um menino, que trabalhasse e andasse sempre pelo caminho da honradez. O menino, pelo que vemos, não seguiu o conselho do pai e se tornou uma espécie de Carlitos sem charme, numa metrópole com menos charme ainda. Quando o reencontramos perambulando pelos parques e ruas da cidade, sabemos que sua única preocupação é encontrar uma forma de ser preso, porque o inverno está chegando, e ele prefere passar uma temporada na cadeia, onde poderá comer três vezes ao dia e dormir numa cama quente e confortável. Ironias do tempo…
Ao rapaz junta-se um outro elemento, mais sagaz, um ladrão com mais talento para o ócio e para o golpe. Este age como uma espécie de mentor do ingênuo vagabundo, tramando formas para que ele seja pego em flagrante delito e detido. Mas, para azar do rapaz, todos os golpes falham - em cenas de um humor refinado e ambíguo, que oscila entre o drama e a comédia quase pastelão. Finalmente, quando o rapaz se lembra do que lhe aconselhou o pai, e se arrepende da vida torta que leva, prometendo a si mesmo uma mudança é envolvido num roubo articulado pelo seu mentor e, agora sim, acaba preso. O final da fita é súbito e chocante, sobretudo se considerarmos a construção narrativa que vimos até ali. O rapaz se suicida na cadeia, provavelmente movido pelo remorso e pela vergonha.
Essa “obra-prima de Medina e o melhor filme paulista de então” (Gomes, 1996, p. 66), embora se valha da tragédia de seu personagem, é um filme sobre a metrópole, em que seus habitantes são apenas satélites que orbitam a temerosa urbe em seu momento de explosão demográfica e otimização do trabalho. Na abertura de Fragmentos da vida, Medina já nos informa nos intertítulos:
Não vai muito longe, data apenas de uns quinze anos, S. Paulo, que armazenava energias, estava longe de ser a cidade-encanto que é e vivia ainda como vivera outrora na serenata dos estudantes e nos vultos embuçados dos notívagos. Como se despertasse de um grande sono, a cidade de S. Paulo, de um momento para o outro, transformava-se radicalmente.
E, mais adiante, completa: “Hoje, a grande cidade absorve energias e mais energias. S. Paulo é um pequeno mundo de realizações, de progressos, de promessas. Mas, enlevados por esta vertigem, poucos poderão compreender o seu ‘lado de lá’”. Este “lado de lá” a que se refere o diretor é justamente o lado dos que escolheram viver à margem das exigências da metrópole e, por isso, são desvalidos que não devem se dar bem no final. O cinema moralizante de Medina reforça a virtude do trabalho e da honra e pune os que escolheram viver alijados de tais valores morais. Os vagabundos e desocupados não têm uma segunda chance. São Paulo não é complacente nem solidária com os que preferem uma vida diversa daquela imposta pela máquina da sociedade. Quanto mais industrializada, iluminada, moderna e organizada, maior o ufanismo do paulistano. É como dizer que a prosperidade está atrelada a apenas uma chance na vida de qualquer cidadão que não tenha nascido em berço de ouro. Não há margem para o erro.
O elogio da vida dentro de um sistema produtivo e útil é também tema de outro filme realizado em 1929, São Paulo, sinfonia da metrópole, dos imigrantes húngaros Adalberto Kemeny (1901-1969) e Rudolf Rex Lustig (1901-1970). Filme de raro experimentalismo para um cinema ainda em desenvolvimento, foi fruto da experiência que seus diretores tiveram na Alemanha antes de chegarem ao Brasil. Embora nunca tenham reconhecido, o filme é quase uma cópia plano a plano de Berlim, a sinfonia da grande cidade (1927), de Walter Ruttmann, obra que tinha por finalidade maior exaltar a breve recuperação econômica, social e moral de uma Alemanha que havia caído em desgraça após a Primeira Guerra Mundial.
Kemeny e Lustig pretendiam montar um filme que, ao mesmo tempo, enaltecesse o viço moderno da São Paulo que chegava ao seu primeiro milhão de habitantes e mostrasse a capacidade técnica do laboratório que ambos montaram, visando à produção de peças publicitárias para o Estado, a exemplo da cavação de Medina e Rossi. A colagem documental sobre São Paulo cria um mosaico que mistura fatos e anseios. Por um lado, a cidade aparece como símbolo do grande crescimento tecnológico, com emissoras de rádio, bonde elétricos, carros e mais carros por avenidas recém-abertas. Por outro, mostra uma cidade que ainda não se modernizou completamente. Em vários planos abertos, notamos que São Paulo não está tão verticalizada, até aquele momento. O Edifício Martinelli aparece ainda em construção, e o centro da cidade nem é tão agitado como se tornaria nos anos seguintes. Mesmo assim, o mote do filme serviu para desbragados elogios por parte de Guilherme de Almeida, à época crítico de cinema do jornal O Estado de S. Paulo:
AFINAL!
…afinal, acreditei no cinema nacional! (Isto rima e é verdade).
Que foi? Algum dramalhão crioulo com bugres, pretos e galegos insuportáveis? Algum horror patriótico, com figurões nacionais fazendo cócegas na história e no resto da humanidade? Algum caipirismo grotesco, com tatús sorrateiros, enlambuzados de terra vermelha, escorregando ou trepando por literaturas lamentáveis? Algum histerismo melindroso e almofadado, com toalhinhas de crochê, cadeiras austríacas e “cachepots” degradantes nos interiores teatrais e costeletas ou “accroche-coeurs”, olheiras ou “ratazanas” nas caras também teatrais? … Que foi?
Apenas uma coisa linda, chamada “São Paulo: A Sinfonia da Metrópole”, que foi executada aqui, em surdina, sem qualquer auxílio estranho, sem qualquer “cavação” comodista, sem qualquer cabotinismo, e sem reclames, e sem espalhafatos, e sem escândalos, e sem espetaculosidades, e sem ridículos…; apenas a obra paciente, constante, espontânea, sincera, simples, sadia e comovedora de dois amigos - Rodolpho Lustig e Adalberto Kemeny - trabalhando, juntos, harmoniosamente, com o sacrifício de tudo - tempo e dinheiro - e apesar de tudo, e apesar de todos… Trabalhando durante quatorze meses, ali, na… na “garçonnière” da rua Jaceguai, 99, onde tudo é pequeno, mas bom e completo: os laboratórios, o aparelhamento geral, a sala de projeção…
“S. Paulo: A Sinfonia da Metrópole” é toda a vida desta cidade que tem que ser o nosso amor - porque ela é todo o nosso desejo, todo o nosso pensamento, todo o nosso orgulho, toda a nossa alegria e também, às vezes, toda a nossa tristeza…, a vida de S. Paulo, contada de uma maneira bonita e rápida, clara e convincente. Toda a nossa vida de todos os dias, na nossa cidade de sempre. Não: não é um filme natural: é um poema. Não são apenas flagrantes casuais, sem nexo nem finalidade, são instantâneos felizes de momentos significativos, inteligentemente observados e analisados, tratados com carinho e ligados uns aos outros por um fio delicado, uma sequência fina, que ora entusiasma, ora alegra, ora comove, mas sempre agrada. Uma inspiração de poeta humanizou o olhar sensível daquela objetiva: e a “câmera” tornou-se um habitante de S. Paulo, bem bairrista, bem conhecedor da sua cidade, das suas belezas e dos seus valores… Caminha por aí, essa “câmera” madrugadora e esperta, desde as primeiras claridades pelas ruas ainda húmidas do sereno e vazias de vida, até o suado entardecer cidadino, quando as sombras se alongam, em espreguiçamentos de cansaço, por estes asfaltos cosmopolitas e laboriosos. Tudo o que é a historia anônima, o romance coletivo quotidiano, e o obscuro de uma grande cidade moderna, essa “câmera” soube ver, estudar e contar. Inteligente e sensitiva, tudo ela conseguiu. Tudo… Até mesmo convencer da possibilidade de um cinema nacional certo sujeito cético, bastante pessimista e bastante antipático, que costuma assignar simplesmente. (Almeida, 2016, pp. 221-223)
Para além do cartão-postal pintado pelo poeta modernista, São Paulo, sinfonia da metrópole acaba se tornando também um registro da sociedade paulistana em seu momento de consolidação de classes e de busca pelo capital. São recorrentes as sequências que exaltam a pesquisa científica, a educação infantil e universitária, o comércio pujante e, o mais marcante, o sistema penitenciário. A longa sequência passada na Penitenciária Municipal (dizem os letreiros: “Aqui se regeneram os enfermos morais”) mostra os condenados aprendendo a costurar, plantar, construir, agindo sempre em prol do bem comum. Em suas tarefas, praticam esportes e fazem ginástica. Mas ainda são “enfermos morais”, e não posso deixar de notar - observando, evidentemente, as devidas proporções - a semelhança do aviso com a tenebrosa inscrição “Arbeit macht frei”.2
Tendo os tais enfermos isolados por trás dos muros do presídio, o filme continua a elogiar a honra da vida cidadã do lado de fora. A São Paulo de Lustig e Kemeny já aparece como cenário despersonalizador, que era uma vila interiorana menos de trinta anos antes, mas, ali, já não depende do contato personalista para se fazer viva e grande. É emblemático o close num cartão de visitas que, já naquela época, reflete bem a visão das elites paulistanas. Vejamos:
Como em todas as metrópoles altamente desenvolvidas, São Paulo já não se importa com a identidade de seus cidadãos e valoriza qualquer “Fulano de Tal”, desde que ele seja um “Doutor”.
Outro traço interessante que põe a cidade num patamar moralizante e reto, quase obrigando os “cidadãos de bem” a se portarem segundo os ditames da impessoalidade funcional, aparece, ou melhor, não aparece, ao final da fita. Diferentemente de seu irmão quase gêmeo, Berlim, a sinfonia da grande cidade, em que, ao cair da noite, assistimos à diversão pós-labuta do berlinense em bares, cinemas e outros pontos de distrações, São Paulo, sinfonia da metrópole termina ao fim da tarde, quando todos vão para suas casas, depois de um dia intenso de trabalho, trabalho e mais trabalho. É possível aceitar a hipótese de que seus realizadores não contavam com equipamentos técnicos capazes de possibilitar filmagens noturnas, mas, inconscientemente, o que fica é a imagem de uma cidade que não permite a diversão, já que, no dia seguinte, o cidadão “Fulano de Tal”, que é doutor, ou o vendedor, ou o motorista de praça ou… todos precisam estar de pé muito cedo para recomeçar tudo outra vez, e sempre. Há, porém, uma terceira via para essa situação. Talvez o filme não queira ou não deva mostrar a diversão noturna, que está acessível somente a alguns desses “doutores”, não a todo cidadão, que, a despeito de seus esforços, está num patamar que não o admita em “conferências” e diversões afins. É na noite, longe dos holofotes e das câmeras, que São Paulo, a terrível, deixa-se tomar por seu lado mais sombrio e mesquinho, um lado assiduamente frequentado até mesmo por nomes vinculados à primeira geração modernista, que bem conheciam a sombra por trás do ufanismo. Esse lado figurava em obras denominadas “filmes somente para senhores”, que se passavam em ambientes de bordéis e salões de festa da alta sociedade. É o caso de Morphina (1928), um filme perdido para sempre.
2.
A trama farsesca de Fragmentos da vida é apenas o alívio superficial de uma constatação cruel. A vida naquela São Paulo não pode ser fruída, ainda que em níveis modestos, caso não se disponha de modos aos quais seus cidadãos terão de se adaptar e caso queiram existir minimamente num espaço em que a subjetividade já entrou em concordata. A vida na metrópole difere da vida em pequenas comunidades - como era a São Paulo de 1900 - porque em organizações menores, segundo o sociólogo Georg Simmel, a economia está centrada na relação direta entre o produtor e o consumidor. Um pequeno agricultor conhece seu cliente, e este, por sua vez, conhece e confia no homem que lhe presta o serviço, ao passo que na metrópole a organização se dá em torno na estrutura do capital num mercado muito maior, industrializado, otimizado e altamente técnico. Nesse cenário, o produtor visa ao mercado e não ao consumidor direto de sua mercadoria. É para o mercado que a metrópole produz bens e serviços. O consumidor é a consequência providencial na outra ponta da equação, e o produtor nem sequer o conhece enquanto indivíduo. Uma não relação mútua, por sinal.
Assim, a técnica da vida metropolitana é inimaginável sem a mais pontual integração de todas as atividades e relações mútuas em um calendário estável e impessoal. … Pontualidade, calculabilidade, exatidão são introduzidas à força na vida pela complexidade e extensão da existência metropolitana… (Simmel, 1973, p. 15)
Por sua vez, São Paulo, sinfonia da metrópole, destituída de uma narrativa dramática e essencialmente uma vitrina de novidades maravilhosas, atende a um discurso subtextual que marca a dinâmica da cidade até os dias de hoje: “Os relacionamentos e afazeres do metropolitano típico são habitualmente tão variados e complexos, que, sem a mais estrita pontualidade nos compromissos e serviços, toda a estrutura se romperia e cairia num caos inextrincável” (Simmel, 1973, p. 14)
Mesmo assim, vistos em perspectiva, tanto Medina quanto a dupla Lustig e Kemeny criaram visões românticas de um espaço urbano que deixaria de existir gradativamente, dando lugar a um estado de coisas ainda visto como uma novidade própria das cidades dignas de nota. Não à toa, no documentário de Lustig e Kemeny, a certa altura, a São Paulo de 1929 é posta num mosaico ao lado de outras metrópoles, como Nova York, Londres e a própria Berlim. Logo, as contradições de uma cidade monstruosa e mal planejada se tornariam a alma do cinema paulistano, não como elogio ou advertência, mas como uma cruel e árida crítica.
Quanto aos nossos caros amigos modernistas, cheios de boa-fé e crentes no progresso, que caminharia de mãos dadas com uma brasilidade idealizada, estes logo perderiam suas inocências, quando uma cisão de grupo ficaria clara no integralismo de Plínio Salgado, na poesia existencialista de Drummond e Manuel Bandeira, na pintura sombria de Ismael Nery e na morte precoce de Mário de Andrade, que, em seus últimos dias, ressentia-se de quão entreguistas alguns ex-colegas haviam se tornado em favor do Estado Novo e como se esqueciam com facilidade do ideal imaginado para um país como o Brasil, a partir daquela Semana de 1922, que se provaria muito mais complexa com o passar dos cem anos seguintes.
3.
Cerca de três décadas separam os eventos que desencadearam as ondas modernistas no país de seus efeitos diretos no âmbito da produção cinematográfica. O que não significa que já ao final da década de 1920 não houvesse alguns esforços em outras regiões do país, notados e exaltados com maior vigor somente depois.
Em Minas Gerais, na cidade de Cataguazes, em 1925, surgia um jovem com aspirações à fotografia e ao cinema, que serviria como um “padrinho” às gerações vindouras. Seu nome era Humberto Mauro, e suas obras, tais como Tesouro perdido (1927), Sangue mineiro (1929) e Ganga bruta (1933), assim como os filmes de Medina e da dupla Kemeny e Lustig, revelavam um olhar crítico e profissional diante da tecnologia do cinema. Mauro destacou-se logo como um brilhante artífice da imagem e de suas narrativas, na medida em que as elaborou com vistas a produzir efeitos de sentido com base no cuidado com a luz, com a interpretação naturalista de seus elencos, as metáforas imagéticas e a intenção de criar histórias que fossem genuinamente brasileiras, e não apenas “filmadas no Brasil”, como muitos críticos se referiam a obras amadoras do período. O cineasta, com efeito, pode ser considerado dos poucos que vislumbraram uma indústria cinematográfica nacional consistente. Não à toa, Mauro foi logo contratado pela Cinédia, no Rio de Janeiro, primeiro estúdio construído no país e pioneiro das produções populares musicais, que se não primavam pela profundidade narrativa de seus filmes, ao menos buscavam construir uma cultura fílmica brasileira.
Como mencionei, Humberto Mauro tornou-se uma espécie de exemplo a ser seguido pela geração do Cinema Novo, movimento localizado primordialmente no eixo Rio-Bahia, e dos novos cineastas que surgiram pelo país a partir dos anos 1950 e 1960. O movimento cinemanovista, liderado por figuras como Glauber Rocha, Carlos Diegues e Nelson Pereira dos Santos, preocupava-se com representações sociais e culturais do Brasil, pondo em evidência a figura do sertanejo, do retirante e dos moradores de comunidades humildes nos morros cariocas. Por seu turno, aqueles diretores não admitidos no movimento - seja por bairrismo ou por não aderência aos ditames do grupo -, em sua grande maioria concentrados em São Paulo, caso de Walter Hugo Khouri, Luiz Sérgio Person, Anselmo Duarte e outros, também se inspiraram nos esforços pioneiros do passado. Khouri, por exemplo, continuou a investigação sobre a alma paulistana em obras como Noite vazia (1964); Person, preocupado com o crescimento da metrópole e seus efeitos naquela mesma classe média apontada por Medina no início dos anos 1920, fez de seu São Paulo, sociedade anônima (1965) um manifesto amargo de uma modernidade desordenada. Anselmo Duarte, após o êxito em Cannes de O pagador de promessas (1962), dedicou-se a examinar o choque de gerações numa pequena comunidade rural no interior de São Paulo, com Vereda da salvação (1965), em que misticismo, tradição e hierarquia são sobrepostos pelas novidades da vida moderna, a chegada do progresso e o questionamento dos valores ancestrais.
A aparente desconexão dos novos movimentos cinematográficos brasileiros de então com os eventos de 1922 e seus desdobramentos se dá sobretudo pelo lapso temporal e pela agenda voltada à afirmação de uma elite intelectual. No entanto, basta olharmos para algumas representações cinematográficas, dos anos 1960 em diante, de temas já presentes nas correntes do modernismo brasileiro para compreendermos a filogenia de um projeto estético. Cito três casos. O primeiro, a adaptação de Macunaíma para o cinema, em que o cineasta Joaquim Pedro de Andrade preocupou-se não somente com a atualização narrativa dos temas presentes no livro de Mário de Andrade, mas também buscou na poética da pintura modernista a paleta de cores para sua obra, resultando num trabalho com aspectos fortes que norteariam o tropicalismo, movimento herdeiro do modernismo de 1922 e além. Também, em 1982, José Celso Martinez Corrêa finalmente revelou ao público o resultado de sua adaptação de O rei da vela, peça de Oswald de Andrade que havia sido encenada em 1967, muitos anos após sua conclusão, e, embora filmada por volta de 1971, somente mais de dez anos depois ganharia uma versão para cinema, primando pela mesma experimentação já prevista em seu texto original.
Por fim, ainda em 1982, Joaquim Pedro voltou à herança da Semana de Arte em seu filme O homem do pau-brasil, interpretação muito pessoal sobre os eventos de 1922 em que seu Oswald de Andrade se transmuta em duas personas distintas, uma masculina e outra feminina, animus e anima de um processo intelectual e espiritual que, se ainda não se encontrava maduro quando da realização dos eventos, sessenta anos depois já podia ser lido sobre aspectos mais profundos, mais bem conectados com heranças arquetípicas de um povo que transita entre o ser primitivo e o homem esmagado pela máquina do progresso.