Há livros que se lê de uma só vez, sem interrupções. E, com naturalidade, enquanto lê, pensa de imediato em sua vida, na da sua mãe e de suas irmãs. Durante o movimento de associação livre, considera semelhanças e diferenças, confronta o que é narrado com o que viveu, ao passar os olhos pelas frases e ideias expostas. Surpreende-se ao lembrar de acontecimentos perdidos nas estantes da memória, lembranças da infância e da juventude, talvez encobridoras - como dizia Freud (1899/1976) -, mas, com certeza, reveladoras da proximidade entre a personagem central, a autora e você.
O ensaio de Maíra Firer Tanis, que tem como personagem central a figura da artista Berthe Morisot, marcado por um clima onírico, criativo, provoca uma “viagem” interior e muitos momentos de inconformismo, ao expor a condição subalterna e injusta das mulheres no passado e no presente.
Escrito de forma pessoal, o ensaio tem a potência da voz e da visão singular da autora e, por isso, pode-se dizer que está de total acordo com a tradição do gênero. Além dessas qualidades, é interessante, culto, escrito em linguagem oral, acessível para aqueles que não conhecem ou não dominam os códigos da arte e da psicanálise. Tanis tece uma trama complexa de conexões com Berthe Morisot e dialoga, em tom de interrogação, com diversos escritos sobre a vida e a obra da artista, pintora e escultora, além de fundadora do movimento artístico impressionista que, por ser mulher, não desfrutou do reconhecimento artístico nem mereceu a mesma distinção obtida pelos homens do movimento. O livro é resultado de densa e longa elaboração.
Em completa consonância com o gênero ensaio, somos levados ao conhecimento de sua “viagem” com Berthe Morisot. Pois é disso que se trata: uma espécie de loucura benigna que, por vezes, acomete curiosos investigadores do mundo e de si mesmos. Viagem que passa por diferentes registros e etapas. Que envolve o viajante de tal maneira que vida e obra pouco se distinguem. Viagem no tempo, na história da arte e dos impressionistas, na história das mulheres e na própria história de Maíra. Acompanhamos o movimento mental da autora, ir e vir com Berthe e consigo mesma e com ensaístas e escritores importantes que “participam da viagem” em diferentes momentos da investigação. Na longa e interessante jornada, dois companheiros de percurso se destacam: Dante, na posição de abre-alas; e Virginia Woolf, que a conduz, pelas mãos, com segurança, por caminho doloroso e questionador.
A abertura da “viagem” - afinal, quem sabe dizer exatamente quando um interesse se torna curiosidade ou obsessão? - tem Dante como guia. Já na epígrafe, se anuncia certo perigo, não exatamente por adentrar ao reino do inferno e, sim, no reino da curiosidade. A partida, mas, talvez, não o início da produtiva obsessão por Morisot, ocorre no momento em que a autora observa a tela O berço, de 1872, no museu d’Orsay, em Paris. Maíra relata: “A obra captura um momento de ternura da mulher que envolve o berço onde repousa um bebê dormindo”. Nesse primeiro encontro, “amor à primeira vista”, o destaque é a assinatura do artista desconhecido B. Morisot. E imagina quão sensível seria o homem que captou e eternizou momento de tanta intimidade entre mãe e bebê. Estranha que não conhecesse o impressionista chamado Morisot. Percebe que, no encanto imediato com o quadro, a cena pintada, as delicadas emoções que emanavam da pintura correspondiam à própria experiência como mãe. Cansaço e ternura. Nesse instante de comunhão imediata entre obra e ensaísta, nasce o processo de investigação que arrastará Tanis e o leitor para diversos caminhos narrativos pessoais associados a percursos históricos, inclusive daqueles que tratam do lugar da mulher na sociedade. Variados registros temporais se misturam. Passado, presente e futuro contorcidos como nós de marinheiro prendem o leitor, que vive o estimulante mistério da imaginação associada ao conhecimento.
Posteriormente, a partir da curiosidade com a obra, Tanis descobrirá que o B. de Morisot é Berthe, mulher, artista pioneira, impressionista. Anterior aos próprios impressionistas, pintava com eles, mas a quem a musa 322 da história destinou o segundo plano.
Investigações viscerais são, sobretudo, empresas arriscadas. Permeadas por afetos, trazem a possibilidade de descontrole e loucura. A imagem do “cientista” apaixonado pelo objeto investigado, rumo aos desvãos, é frequente. Escolher a companhia do maior poeta italiano, “à meia idade”, para se perder na “selva escura”, é bastante representativo do risco.
Fisgada, Maíra tem sua curiosidade dirigida à obra e vida da artista Berthe Morisot, desdobrada para momento histórico, história da arte e dos artistas impressionistas, situação social e cultural das mulheres burguesas que iniciavam o movimento de emancipação. Curiosidade que se expande para os domínios da própria infância, maternidade e vida adulta. Nessa jornada, segue acompanhada por Virginia Woolf que, no célebre ensaio Um teto todo seu (1928/s.d.), faz fundamental reflexão sobre a relação entre autoria e mulher. Woolf coloca a questão de haver, ainda no início do século 20, tão poucas escritoras. Responde dizendo que sem teto e sem tostão não há como escrever. E, Tanis acrescenta, pintar. Mulheres não tinham um lugar, “um teto todo seu”, para si - viviam entre a cozinha e o quarto das crianças -, não havia sala ou refúgio para onde pudessem se recolher e muito menos verba ou renda anual que lhes permitisse viver e escrever ao mesmo tempo. Suas vidas não eram como a dos homens que tinham renda e gabinete para onde se retiravam do barulho cotidiano a fim de produzir literatura ou ciências. Ao final do ensaio, Virginia celebra as primeiras escritoras mulheres, recém-saídas dos séculos 18 e 19, mas observa que seus temas prediletos giram em torno dos homens. Propõe, então, em tom de desafio, que a literatura do futuro se torne mais interessante e que possa se deter na relação das mulheres com as mulheres. Acreditava que daí decorreria a verdadeira emancipação. Não é difícil imaginar quão produtiva pode ser a companhia de Woolf, visionária, na medida exata do próprio ensaio de Tanis, que tem como fonte principal o interesse primário pela artista mulher, Berthe Morisot.
Maíra registra a história de uma mulher e, por extensão, de tantas outras contemporâneas de Berthe. Conta também sua própria história e de suas contemporâneas. Fala das relações entre as mulheres da época de Morisot e das relações entre mulheres de seu próprio tempo. Fala, sobretudo, de opressão, depressão e impossibilidade de existir fora do âmbito da cozinha e do quarto de criança. E, ainda, esclarece os mecanismos de defesa intra e extrapsíquicos adotados por tantas mulheres para sobreviver, produzir e existir em meio a dificuldades e restrições extremas.
As abordagens e relações construídas por Tanis levam o leitor ao interior da lógica de concepção de A mulher em segundo lugar ou um ensaio sobre a artista Berthe Morisot, ou seja, o método interpretativo da psicanálise. O livro transpira psicanálise, mas evita impô-la como teoria ou teorias. Prefere optar pelo uso de interpretantes, para manter vivo o processo de criação de sentidos. As teias entrelaçadas de significação se adensam com a justaposição de novas camadas de linguagem e realçam o método da psicanálise, na medida em que o apresentam como essência viva do fazer analítico. A psicanálise é tão natural, leve e integrada ao pensamento e texto de Maíra que esquecemos que a autora é psicanalista com formação em Artes. Também não se percebe a intensidade e o volume do trabalho de elaboração psíquica necessários para que anos e anos de vida fossem dedicados a pesquisar Morisot e seus desdobramentos.
Estamos diante de duplo acontecimento estético. De um lado, o texto traz a marca da bailarina que jamais mostraria os pés ensanguentados e deformados pelas repetições, aulas e ensaios exaustivos, além do uso torturante das sapatilhas de ponta. Do outro lado, é Morisot, na tela O berço, como duplo de Maíra Firer Tanis. Na pintura, vemos a mãe apaixonada pela filha no berço. O olhar de admiração e amor traz também o semblante característico da exaustão e dedicação de mães de recém-nascidos. Berthe Morisot e sua obra pictórica são o bebê de Tanis, encantada pela artista e obcecada por desvendar os mistérios apaixonantes de quadros e história, ainda que possa sentir, eventualmente, alguma fadiga. Como se fosse o duplo de Maíra, gêmea imaginária, vinda do passado para iluminar o presente.
Por último, pequena nota de protesto. A editora Artes & Ecos poderia ter feito apresentação mais cuidadosa do livro. Há poucas imagens para ilustrar as descrições preciosas da autora relativas às obras impressionistas, que também não foram impressas em papel e tamanho que as valorizasse.