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versión impresa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dic. 2018
EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO
Um pacto de liberdade: Filêmon e Paulo
A pact of freedom: Philemon and Paul
Bruno Profeta Guimarães Figueira
Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
Tomando a "Carta a Filêmon" em consideração psicanalítica, reflete-se sobre a questão da liberdade a partir da noção de intersubjetividade, pacto edípico e sua relação com o pacto social.
Palavras-chave: Liberdade. Psicanálise. Filêmon. Hélio Pellegrino.
SUMMARY
Taking "The epistle of Paul to Philemon" into psychoanalytic account, the freedom issue is reflected on due to the notions of intersubjectivity, oedipal pact and its relations to social pact.
Keywords: Freedom. Psychoanalysis. Philemon. Hélio Pellegrino.
Assim como o psicanalista e intelectual brasileiro Hélio Pellegrino (1924-1988) falou sobre Édipo para articular a gramática do desejo à necessidade de mudar o modelo econômico e social brasileiro "por uma questão de vergonha" (Pellegrino, 1983, p. 11), proponho falarmos sobre um dos textos sagrados do cristianismo para pensar a experiência da liberdade articulada ao reconhecimento da alteridade - esta, talvez, por outra questão de vergonha nos tempos atuais.
Trata-se de um dos textos bíblicos mais curtos, a carta de Paulo de Tarso endereçada à Filêmon. Mas, antes de iniciar, um alerta: tomar a sagrada escritura dos cristãos em consideração psicanalítica de modo algum significa usá-la como exemplo ou como redução dessacralizadora.
Ao contrário, concordo com as ponderações sobre a multiplicidade de formas de relação entre psicanálise e religião do jesuíta Araújo (2014), que cogita se o destino dessa troca não seria o da sustentação de um questionamento mútuo, interminável, mantendo-se como questão aberta. Penso ser essa, também, a posição da psicanálise em relação à filosofia ou à medicina, numa espécie de experiência contínua de alteridade epistemológica diante do mistério do viver.
Comungo também com os psicanalistas Herrmann (2003) e Frayze-Pereira (2004), na medida em que, para o primeiro, a extensão da clínica não indica apenas o alcance a outros domínios nas diversas condições do homem no mundo, mas a recuperação da potência original da psicanálise em interpretar a psique do real com sua atenção sempre clínica; e, para o segundo, o chamado método psicanalítico é processual e implicado no real, um modo de pensar ou trabalho de reflexão que interroga a experiência imediata, abrindo para o psicanalista as mediações desconhecidas, na história pessoal e na cultura, que esclarecem o sentido da experiência interrogada.
Paulo a Filêmon
Breve carta inserida no cânone do "Novo testamento", "aclamada como pequena joia de Paulo" (Schökel, 2011, p. 2867) para o cristianismo de modo geral e para os católicos de forma particular, a "Carta a Filêmon" (Bíblia, 2018) tem seu centro de gravidade no pedido que Paulo faz a seu colaborador Filêmon, da igreja de Colossas, quanto à recepção do escravo afastado Onésimo: "[recebe-o] já não como escravo, mas acima de escravo: [como] irmão amado, especialmente para mim, mas quanto mais para ti, tanto na carne como no Senhor" (p. 432).
Reconhecido como texto redigido de punho próprio por especialistas da epistolografia de Paulo (Bíblia, 2018), provavelmente do cárcere em Roma entre os anos 61 e 63 (Schökel, 2011), a carta pede em favor de Onésimo, escravo de Filêmon, a quem Paulo é agradecido por seu tratamento recebido na prisão e a quem converteu e batizou na fé em Jesus Cristo.
Pela brevidade da carta, não se sabe se Onésimo teria fugido ou sido enviado de Filêmon, seu dono e senhor, ou ainda se havia cometido algum delito (Bíblia, 2018). De qualquer modo, a intenção de Paulo parece ser a de que Filêmon, também ele convertido anteriormente pelo apóstolo, recebesse de volta Onésimo numa nova identidade, passando de escravo a irmão, com todo o sentido da nova condição.
Em sua mensagem, Paulo não chega a fazer uma crítica direta ao estatuto da escravatura de seu tempo, tema que a partir do século XVIII e especialmente no século xix fez com que seu texto fosse utilizado como fundamento tanto de escravagistas quanto de abolicionistas à época (Bíblia, 2018). Sutil e persuasivamente, porém, é possível perceber o deslocamento da questão entre Paulo e Filêmon desde sua legalidade não mais na fria seara jurídica, mas na proximidade calorosa das filiações, estendendo-a à comunidade que se reunia na casa de Filêmon, devidamente mediadas pela nova doutrina.
Redigida em tom absolutamente personalizado, Paulo vale-se de um crescendo afetivo que começa com a exaltação das notícias a respeito de Filêmon ("tive grande alegria e encorajamento em virtude do teu amor" - Bíblia, 2018, p. 431), passa pelo apelo daquele que, tendo autoridade, renuncia-a em nome da cumplicidade pessoal ("tendo eu abundante liberdade de expressão em Cristo para lhe ordenar o que convém, prefiro apelar com base no amor, sendo eu, como Paulo [que sou], agora velho", p. 431), até chegar ao argumento definitivo de exigência de gratidão por parte daquele que o iniciou no novo regime de relações ("Para que eu não te diga que te deves a mim", p. 432).
Onésimo, escravo, torna-se filho de Paulo agriolhado e nessa condição é que segue enviado a Filêmon, "Ele que enviei para junto de ti, ele que é o meu coração" (p. 432). Na tradução grega da carta, sabemos que a palavra coração está no lugar da palavra splánkhna, de capital importância no "Novo Testamento", podendo significar entranhas ou vísceras ("daí Jesus condoer-se 'visceralmente' em várias passagens dos Evangelhos sinópticos", p. 432, conforme nota do tradutor), com sentido metafórico indicando a sede dos afetos. Não há espaço para a indiferença, os laços criados no amor ("recebe-o como [se recebesses] a mim", p. 432), na proposição da fé, caducam as relações de senhor e escravo através da troca afetiva.
Filêmon diante de Onésimo
Se o destino de Onésimo residisse no sistema legal de sua época, Paulo seria considerado cúmplice e o escravo sofreria grave punição (Schökel, 2011). Desse modo, ainda que supuséssemos que Onésimo teria se apresentado voluntariamente ao antigo senhor, obedecendo à solicitação daquele por quem ganhou nova filiação, caberia a Filêmon determinar o uso ou abrir mão tanto das prerrogativas de sua posição na ordem estabelecida quanto das exigências éticas de sua nova crença assumida.
Nesse cenário, Filêmon deve enfrentar um desafio. Se a sua conversão religiosa corresponde a um segundo nascimento, ao tomarmos o batismo de Onésimo como o modelo do procedimento de Paulo para o estabelecimento de nova filiação, diríamos então que há dois movimentos necessários ao surgimento de sua nova identidade. O primeiro, receptivo, em que Filêmon é acolhido, nomeado e reconhecido por Paulo como irmão na fé; e o segundo, ativo, em que se vê ante a Onésimo e é convocado a nomeá-lo e reconhecê-lo como irmão, desafiado pela circunstância criada por Paulo a renunciar sua condição de senhor.
Como pode então Filêmon receber Onésimo? A justificativa, evidentemente, encontra-se na fé se tomarmos a perspectiva religiosa ou teológica. Psicanaliticamente, por outro lado, penso estar aí o espaço para se considerar a liberdade de ação (inseparável da liberdade de pensamento), que pressupõe o estabelecimento de uma relação intersubjetiva.
Ninguém se liberta sozinho
Na aclamada internacionalmente, ainda que fortemente atacada na recente arena política brasileira, obra do professor Paulo Freire (1921-1997), é forte a afirmação "ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão" (Freire, 1970/ 2000, p. 52).
A liberdade, nesse sentido, não é propriedade de um indivíduo, mas uma condição a ser conquistada por um sujeito em relação a outros sujeitos. Intersubjetiva, portanto, se considerarmos que, como irmãos filiados ao mesmo Senhor, Filêmon deixa de ser senhor de Onésimo. Ainda que não façamos considerações precisas sobre o que significava ser escravo à sua época, é inegável que a condição de senhor e dono toma o outro como objeto à sua disposição, reduzindo ou mesmo anulando o reconhecimento de seu estatuto enquanto sujeito. Ou seja, o irmão é um outro porque sou capaz de reconhecer nele uma humanidade que é a mesma que a minha, subordinada a uma mesma rede simbólica que nos sustenta.
Do mesmo modo como Paulo é o agente particular, concreto, que vincula afetivamente Filêmon ao Senhor, Filêmon é convocado por Paulo a fazer o mesmo em sua relação com Onésimo. Se for capaz, ambos se libertam, um da condição de escravo, o outro, da condição de senhor. Particularmente para Filêmon, há uma renúncia a ser feita, um gesto de liberdade capaz de alterar seu destino como senhor, possível apenas na sustenção de um pacto interpessoal referenciado na cultura, o que nos leva a acompanhar o pensamento de Hélio Pellegrino.
Pacto social e pacto edípico
Mais de 1900 anos depois de Filêmon receber a carta de Paulo, Hélio Pellegrino, ele mesmo "profundamente cristão" (Roudinesco & Plon, 1998), publica o artigo "Pacto edípico e pacto social" (Pellegrino, 1983). Nele, faz uma análise do surto de delinquência e comportamento antissocial das massas como consequência, ao nível inconsciente, da ruptura do pacto edípico, correlato do dilaceramento do pacto social: "uma patologia social também pode ameaçar - ou mesmo anular - o pacto com a Lei do Pai" (Pellegrino, 1983, p. 11).
Revisando Édipo, tanto o de Sófocles quanto o de Freud, Hélio Pellegrino sustenta que "o amor é condição necessária - e suficiente - da liberdade", e que "só o amor e a liberdade, subordinando e transfigurando o temor, vão permitir uma verdadeira, positiva - e produtiva - relação com a lei" (p. 10).
Para o psicanalista, "à Lei do desejo pode - e deve - corresponder um desejo de lei" (p. 10). Ou seja, embora a travessia do complexo de Édipo precise do temor despertado pela potência de interdição e de punição para superar a dependência e renunciar a onipotência infantil sob o princípio do prazer, é apenas com a experiência anterior do amor e respeito recebidos que a criança conseguirá se identificar com os valores da cultura à qual pertence e assim sustentar sua parte no pacto que precisou estabelecer para se adequar ao princípio de realidade.
Prosseguindo em sua argumentação, Hélio Pellegrino demonstra como o pacto social, estruturado sobre a questão do trabalho, acrescenta-se sobre o pacto edípico na mesma direção da renúncia pulsional, do desenvolvimento do princípio de realidade e da inserção na ordem simbólica.
Daí que, à medida que o pacto social inviabilize, avilte, destrua as condições e direitos do trabalho, o desprezo e a agressão de coloração pré-edípica se voltam contra a própria sociedade que desprezou e agrediu a condição humana de seus componentes, não honrando sua parte no pacto, mantendo-os apenas sob o temor sem fim, sem amor. Ultrapassando os limites da possibilidade de contenção, a ruptura do pacto social desencadeia a espiral da violência que mina mais e mais a capacidade de estabelecimento de laços amorosos.
Cultura e liberdade
Escrito quase 20 anos após o Golpe de 1964, Hélio Pellegrino finaliza seu artigo numa reflexão sobre como a opção a favor do grande capital realizada pela sociedade brasileira desde então se fez como modelo de vida social e econômica crescentemente excludente e desigual. Não é difícil se espantar com a atualidade de sua análise, 36 anos depois.
Caberia questionarmos a centralidade do trabalho no fundamento do pacto social na atualidade. Deixando esse grande tema de lado, que demandaria um novo trabalho, dada a sua relevância, e tomando, com alguma resignação, que a falência do modelo econômico e político de bem-estar social pesa sobre a sociedade atual tal como a pax romana do primeiro século depois de Cristo, resta-nos pensarmos mais uma vez: como pode então Filêmon, senhor, receber Onésimo, escravo, como irmão? Se Paulo não pretendia iniciar uma revolução social, como é possível esvaziar o estatuto da escravatura em Filêmon?
Se Filêmon foi capaz de se constituir subjetivamente, referenciando-se tanto na cultura de sua origem quanto na de seu contexto, pensamos que algum grau de autonomia lhe foi alcançado, especialmente na "segunda chance" configurada em sua relação com Paulo, que poderíamos considerar análoga àquela descrita pela psicanalista Favilli quanto à relação analítica, que
é viva e acontece cotidianamente na nossa clínica. Criamos um espaço [...] e vivemos dentro dele um espaço transferencial único, capaz de criar uma história nova, capaz de criar o que chamamos a segunda chance (2013, p. 32).
Em suma, a experiência de Filêmon com Paulo teria sido capaz de fazer com que o primeiro refletisse sobre sua origem, sobre sua condição dada, fosse capaz de fazer pensamento crítico sobre si mesmo - e, nesse sentido, diríamos, foi capaz de fazer análise.
Frayze-Pereira, resgatando a noção de liberdade no trabalho da psicanalista Sonia Curvo de Azambuja (1935-2011), aponta que, para ela, "a autonomia de uma pessoa só pode ser elaborada no contato com a cultura, isto é, com todas as formas de alteridade, concebida a autonomia no sentido da liberdade de pensar e de ser" (2013, p. 118). E, rastreando as bases filosóficas do pensamento dessa psicanalista, num passeio que visita Sartre, Merleau-Ponty e Espinosa, constata que, perante a indeterminação existencial do homem, cumpre-se realizar o trabalho de reflexão sobre o seu estar no mundo. Nesse sentido, estamos de acordo com a professora Chauí:
não somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em que vamos agir [...]. A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhes outra direção ou outro sentido. (2014, pp. 417-418)
Ainda que as condições para a organização coletiva e estrutural pareçam precárias o bastante, com o encolhimento do espaço público e das possibilidades de investimento afetivo, de identificação necessária para a comunhão de valores capazes de conter as diferenças, podemos, talvez analogamente a Filêmon, encontrar uma possibilidade de modificar os destinos já traçados.
Para tanto, há que se ter uma chance, uma segunda chance, de legitimar a alteridade do outro. E isso num "pacto social", mesmo em pequena escala, que se dê sobre bases afetivas em uma cultura experimentada com sabor de verdade - tal como o processo que ocorre num consultório de análise - capaz de estabelecer o diálogo na concretude da terra, e não na troca de mensagens nas nuvens.
REFERÊNCIAS
Araújo, R. T. de (2014, maio). Cinco modos de usar. Cult, 190,33-35. [ Links ]
Bíblia. (2018). Vol. 2: Novo testamento: apóstolos, epístolas, apocalipse. (F. Lourenço, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Chauí, M. (2014). Convite à filosofia. (14a ed.). São Paulo: Ática. [ Links ]
Favilli, M. P. (2013). Os desafios da clínica: um analista construindo seu itinerário. Jornal de Psicanálise, 46(84),27-37. [ Links ]
Frayze-Pereira, J. A. (2013). A questão da liberdade, entre o público e o privado. A formação do psicanalista a partir da perspectiva de Sonia Azambuja. Jornal de Psicanálise, 46(84),117-125. [ Links ]
______. (2004). O paciente como obra de arte: uma questão teórico-clínica. In F. Herrmann & T. Lowenkron (Orgs.). Pesquisando com o método psicanalítico (pp. 33-41). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Freire, P. (2000). Pedagogia do oprimido (28a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1970). [ Links ]
Herrmann, F. (2003). Clínica extensa. In L. M. C. Barone (Coord.). A psicanálise e a clínica extensa (pp. 17-31). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Pellegrino, H. (1983, 11 de setembro). Pacto edípico e pacto social. Folha de S.Paulo, São Paulo, Folhetim, pp. 9-11. [ Links ]
Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. (V. Ribeiro e L. Magalhães, trads.). Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Schökel, L. A. (2011). Bíblia do peregrino. (P. Bazaglia, coord., 3a ed.). São Paulo: Paulus. [ Links ]
Endereço para correspondência:
BRUNO PROFETA GUIMARÃES FIGUEIRA
Rua Gonçalo Fernandes, 153/24
09041-410 – Santo André-SP
tel.: 11 97542-5124
bruno.figueira@icloud.com
Recebido 31.05.2018
Aceito 29.06.2018