SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 número66Liberdade e destino na obra fotográfica de Francesca Woodman: um exercício de leitura críticaAurora índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Compartir


Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dic. 2018

 

LITERÁRIAS

 

Libertas quae sera tamen

 

 

Vera Lamanno-Adamo

Membro efetivo e analista didata do Grupo de Estudos Psicanalíticos (GEP) Campinas e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Endereço para correspondência

 

 

Tive uma adolescência precoce. Aos 12 anos, percebi que o meu pênis era maior do que o de meus amigos. Fiquei muito orgulhoso disso. Mas a questão é que o tamanho do meu pênis era diretamente proporcional ao tamanho da minha ingenuidade, o que me trouxe um enorme sofrimento.

Todas as tardes o Vitor e eu andávamos de bicicleta num parque perto de casa. Lá também iam umas meninas, nossas vizinhas. Elas tinham mais ou menos a nossa idade. Elas não andavam de bicicleta, ficavam brincando de pega-pega, de amarelinha, de esconde-esconde. Uma delas era a mais bonita, loira e de olhos azuis, tinha um cabelo liso, escorrido e bastante tentador - eu me imaginava, às vezes, alisando seus cabelos, sentindo aquela maciez escorrendo pelo vão dos meus dedos. Nem me lembro do nome dela, acho que a situação entre nós ficou tão assustadora e dramática que não pude reter seu nome na minha memória.

Aconteceu o seguinte, e o que vou relatar não foi ideia minha, juro, foi ideia do Vitor. Um dia ele disse: "você tem um bilau tão grande, acho que as meninas vão gostar de vê-lo, porque você não mostra um dia para uma delas? Quando uma delas estiver meio sozinha, se escondendo por detrás da árvore, você chega perto, abaixa a calça e mostra. Só isso, bem rapidinho, só pra gente ver a cara dela, a reação dela".

Num primeiro momento, achei essa ideia do Vitor um enorme absurdo, mas ele falava disso quase todos os dias, e eu fui me acostumando, até que num belo dia achei que poderia ser mesmo divertido. Tanto ele propôs que eu aceitei. Por alguns dias, ficamos tramando como tudo deveria acontecer.

Aconteceu.

Foi um desastre, uma tragédia, ela viu meu pênis e saiu correndo, chorando, correndo direto pra casa e imediatamente contou tudo para a mãe dela, que mais do que depressa contou tudo para a minha mãe.

Apanhei muito naquela noite, fui dormir com o corpo cheio de vergões, mas o pior foi a vergonha que passei, as coisas terríveis que o meu pai me disse, o rosto decepcionado da minha mãe - eu me senti muito humilhado perante minhas irmãs e, naquele dia, tive muita vontade de cortar meu bilau, queria ficar livre dele, para sempre.

Fiquei um mês sem poder andar de bicicleta, meus pais e todos da família mal conversavam comigo e me olhavam sempre com aquele olhar de reprovação, até minha irmã caçula que tinha 5 anos e não entendia nada do que havia acontecido, até ela, quando se aproximava de mim para brincar, minha mãe dizia: "Vem pra cá, menina, deixe seu irmão sozinho, ele não merece sua companhia". Foram meses de chumbo, sentia que não valia mais a pena viver, eu só queria morrer, não queria mais sentir o que estava sentindo.

Um dia chegou Laura.

Eu devia estar com uns 40 e poucos anos, estava recém-separado de minha segunda mulher e fui visitar a minha família. A Laura era um pouco mais velha do que eu, era amiga de uma das minhas irmãs. Eu era o único homem no meio de cinco irmãs. Meu deus! Como eu ficava perdido no meio de tanta mulher. Acho que era por isso, por perceber o meu desassossego, que meu pai me resgatava. Com frequência ele me levava para o lugar onde trabalhava. Algumas vezes ele dizia: "Venha comigo, traga o seu caderno, vem fazer a lição de casa lá no meu escritório". Esses eram os meus brevíssimos momentos de tranquilidade, as tardes que passava com o meu pai. Eu ficava muito confuso no meio das minhas cinco irmãs e com a minha mãe sempre muito alvoroçada tentando pôr ordem na casa. Eu ficava confuso, mas também fascinado.

Lembro-me de quando brigava com a minha irmã mais velha, meu pai me obrigava a lhe dar um beijo no rosto para fazermos as pazes. Num primeiro momento, ficava com muito ódio de ter que fazer isso, ia meio empurrado meu pai dizendo: "Vai menino, deixa de bobagem, vai dar um beijo na sua irmã e peça desculpas". Eu ia pisando duro, mas quando encostava meus lábios no rosto dela, ah! que pele macia, que cheiro tão diferente de qualquer outro que já havia sentido no meu próprio corpo.

Nesses momentos, meus pés pareciam se levantar lentamente do chão, impulsionado por aquele cheiro tão doce e por aquela pele tão macia encostada nos meus lábios. Até hoje ela é a minha irmã predileta. Teve um período que brigamos muito, quando eu tinha uns 10, 12 anos, mas, pensando bem, acho até que era para estimular meu pai a me fazer pedir desculpas, era para eu poder sentir uma vez mais aquela pele macia e o cheiro inconfundível.

A Laura era amiga dessa minha irmã e, como eu estava sozinho novamente, ela e minha mãe acharam por bem me aproximar dela. A Laura nunca tinha se casado, havia morado com a mãe e cuidado dela até morrer, o que aconteceu pouco tempo antes de nos conhecermos. Ela era um bom partido, diziam que cozinhava bem, que tinha uma boa renda proveniente de sua aposentadoria e que tinha pernas muito bonitas. Minha irmã insistia: "Ela não é jovem, mas ainda está com pernas firmes, bem torneadas, nem celulite tem". Fiquei curioso, afinal eu era um homem, ou, mais especificamente, um homem com quase 50 anos. Um homem nessa idade está sempre querendo ver se ainda tem capacidade de dar prazer a uma mulher.

Era domingo e Laura havia me convidado para almoçar. Tínhamos nos visto algumas vezes na companhia da minha irmã. Havíamos trocado algumas palavras e alguns olhares. Quando cheguei à casa da Laura, fui invadido por um cheiro muito agradável, a mesa da sala de jantar estava arrumada de forma impecável. A toalha branca de linho estava absolutamente bem passada, a louçaria, com certeza, havia sido tirada do armário para a ocasião. A macarronada, a salada, o vinho, a sobremesa, tudo deliciosamente preparado. Almocei bem naquele dia e depois ela me disse: "Quer descansar? Pode ir ao meu quarto, arrumei a cama para você, eu sei que na sua família vocês têm o hábito de descansar depois do almoço". Eu fui. Claro que aquele era o jeito da Laura, mulher solteira de quase 60 anos, me convidar para uma maior intimidade. Claro também que dificilmente iria dar certo - no fundo, no fundo eu sabia que não iria dar certo. Mas eu fui. Tirei minha roupa e me deitei sob o lençol limpíssimo e muito perfumado. E depois ela veio. Não tirou a roupa toda, só a blusa e se deitou ao meu lado, debaixo do lençol. Nós ficamos ali, eu meio sem jeito, sem saber o que fazer. Confesso que nunca fui um homem muito desinibido, sempre tive muito medo da rejeição de uma mulher. Então aproximei meus dedos na mão dela. Ela reagiu levemente, sua respiração se fez notar naquele momento. Eu recuei um pouco. Em seguida encostei meus pés nos pés dela. Então eu arrisquei tocar levemente os seus seios. Daí em diante ela ficou petrificada, completamente imóvel. Tentei novamente, só por tentar, para não ser indelicado, já não dava para recuar de todo, sei lá. E por um momento fiquei muito, muito triste, então eu me levantei dizendo que estava com muito calor e que necessitava de um banho.

Nunca mais vi a Laura. Às vezes eu penso nela, no carinho com que preparou tudo, da macarronada à roupa de cama, tudo de forma impecável. Essa lembrança me deixa inquieto, tão contrastante a sua comida deliciosa e a dureza com que recebeu o toque nos seios, que contraste marcante entre o caloroso momento à mesa e a frieza da cama.

E então chegou a Maria.

Só agora estou me dando conta de que o parque da minha infância, o parque do meu dramático episódio de exibicionismo, é o mesmo onde me encontrava com Maria.

Maria foi uma verdadeira bênção, percebo isso agora. Quando ela dizia: "Vem meu amor, entra bem dentro de mim", esse seu pedido promovia uma total reconciliação com o meu pênis, aquele que havia causado a grande tragédia da minha puberdade, que havia sido amaldiçoado e que eu queria cortar fora. Ali com Maria, ela dizendo "entra meu amor", ali com Maria, aquele que eu queria cortar ofertava prazer em abundância pra mim e pra ela. Ela dizia que ele era lindo. "Ele é tão lindo", ela dizia.

Num fim de tarde, combinamos de nos encontrar no parque. Maria chegou saltitante, ansiosa para me contar uma história que havia acabado de ouvir.

Numa aldeia do sul da França, disse esbaforida, encontraram nos arquivos da inquisição diferentes termos latinos para definir o Querer Bem. Quando alguém apenas gostava de outro, utilizava a palavra amare. Quando gostava muito, a palavra era diligere. Pra quem se amava realmente, a palavra era adamare.

Dali em diante, Maria só me chamava de adamare. Adamare, quando vamos nos encontrar de novo? Adamare, veja só o que me aconteceu hoje... Adamare, será que vou conseguir viver sem você? Adamare, senti tanta falta dele, do "meu lindo".

Quanto tempo se passou até aquele momento? Quantas aventuras e perdas haviam passado juntos, separados? Quanto tempo para pedir e aceitar as tantas coisas que não tive tempo de pedir e de aceitar. Às vezes ela chorava e ele queria saber por quê. Ela não sabia dizer. Não saberiam dizer.

 

 

Endereço para correspondência:
VERA LAMANNO-ADAMO
Avenida João Mendes Jr., 180/17
13024-141 – Campinas-SP
tel.: 19 3254-0824
vlamannoadamo@gmail.com

Recebido 08.05.2018
Aceito 08.06.2018

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons