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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dic. 2018

 

RESENHAS

 

Freud, um liberal à moda antiga. Um ser humano demasiadamente humano

 

 

Tania Regina ZanettiI; Sandra SettiII

IPsicóloga clínica. Especialização em psicanálise e pós-graduação em psicologia hospitalar, com ênfase em cardiopatia
IIPsicóloga, psicoterapeuta, com especialização em geriatria e psicologia hospitalar e em psicossomática psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 

Roudinesco Elisabeth - Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. São Paulo: Editora Zahar, 2016. 528 páginas.

Com a sensibilidade e a erudição que a caracterizam como historiadora e psicanalista, Elisabeth Roudinesco nos apresenta um Freud humanizado, lutando batalhas dentro e fora de si, obstinadamente, numa linda história, quase um romance.

A autora elabora uma rica pesquisa a partir das obras de Freud em alemão, inglês e francês, fontes manuscritas e impressas, inúmeros artigos e textos psicanalíticos, coletâneas de cartas e uma ampla correspondência endereçada a muitos personagens que compõem sua vida, como Lou Andreas-Salomé, Anna Freud, Ernest Jones, Carl G. Jung e tantos outros.

Roudinesco se baseia também em autores de referência como Jean Laplanche e Jean Bertrand. Pontalis e na cronologia completa de Christfried Töguel.

Assim, desenvolve um texto repleto de erudição, muito refinado no tocante à linguagem com a qual descreve seu personagem e o mundo em que viveu.

Revela um Freud atencioso, conservador esclarecido que busca libertar o sexo. Um decifrador de enigmas, um observador da espécie animal, um amigo das mulheres, um fanático por antiguidades, um desilusionista do imaginário, um herdeiro do romantismo alemão, um dinamitador das certezas da consciência, um judeu desconstrutor do judaísmo, seduzido pela tradição dos trágicos gregos e dos gênios do Renascimento, Shakespeare e Leonardo da Vinci.

Freud constrói sua imortalidade não apenas pela descoberta do "inconsciente", cerne da psicanálise, mas também por intermédio de um legado literário magnífico que faz dele um grande escritor da língua alemã. São vinte obras e centenas de artigos, manuscritos e cartas.

Filho de Jacob e Amália, que o amava e o reconhecia como "meu Sim de ouro", mãe que o tinha como predileto e profetizava-lhe um futuro honrado e brilhante. Esses pais direcionaram sua formação para o mundo do saber, contrariando a saga de uma família de comerciantes.

Ao longo da vida, em contraposição aos sentimentos que nutria por um Jacob humilhado e fracassado, Freud listaria durante décadas seus sucessos intelectuais, tentando provar a si mesmo que viria a ser alguém na vida.

Em 1882, apesar de pesquisador apaixonado, segue o conselho de Brücke e decide se tornar médico. Por sua inteligência distinta, aproxima-se de médicos poderosos, construindo sua escalada. Começa estudando as neuroses observadas na sociedade ocidental. Passa por Charcot e ganha com essa relação a entrada para a linhagem dos cientistas de fama internacional. Herda de sua relação passional com Fliess o conceito de sexualidade, que desenvolve posteriormente.

Às histéricas deve a invenção de uma clínica da escuta, da interioridade, da subjetividade. Elas deram origem à psicanálise com o caso fundador "Ana O", conduzido por Breüer. Em 1895, Freud lhe atribui a criação de um novo método de exploração do inconsciente: a "psicoanálise", praticada já no divã. Estendeu a noção da sexualidade a uma disposição psíquica universal, essência da atividade humana representada pela pulsão, libido, processo relacional, bissexualidade, desejo, tendência, realização, busca infinita e ambiguidade com o outro.

Afirmava-se como o inventor da ciência do inconsciente, segundo a qual o homem é o ator, também inconsciente, de sua própria destruição.

Foi o "Caso Dora", o primeiro tratamento psicanalítico conduzido por Freud, que inaugurou a possibilidade da análise dos próprios sonhos e que revelou parte de sua autoanálise. Cria nessa sequência a Interpretação dos sonhos, obra magistral que lhe assegura reputação internacional. Em 1902, obteve a nomeação de Herr Professor, que significa o começo do tão desejado reconhecimento. Aos 44 anos, ganha real notoriedade no campo da psiquiatria e psicologiae se cerca de discípulos que contribuem para modelar e divulgar sua doutrina. Todos judeus, em torno dos 30 anos e pertencentes às esferas científicas, que participaram da formação da sociedade das quartas-feiras, cujas reuniões eram realizadas em sua casa. Todos o veneravam, e a última palavra era sempre a dele.

Alfred Adler e Otto Rank faziam parte desse grupo quando, em 1907, contando a sociedade com 21 membros, Freud proclama a sua dissolução. Em 1907 e 1910, funda a Weiner Psychianalytche Vereinigung (wpv), primeira instituição psicanalítica do freudismo. Estimula a entrada de vários discípulos estrangeiros, como Ferenczi, Abraham, Jung e Ernest Jones - e assim acontece a internacionalização da psicanálise.

Max Eitingon inaugura o primeiro instituto de formação, que servirá de modelo para todos os outros que seriam fundados. Freud, nessa época, vê em Jung um herdeiro útil, por não ser judeu nem vienense e com isso poder expurgar a psicanálise da qualificação "ciência judaica". Mas as diferenças e semelhanças entre ambos foram fatais e os levaram a um rompimento abismal. Freud acusaria Jung de ceder à "lama do ocultismo". Ernest Jones aparece com importância nesse cenário e passa a proporcionar a Freud os meios políticos à transmissão de sua obra. Tenta também vincular a psicanálise à medicina e não ao ocultismo.

Herr Professor será sempre e até o fim resistente a conhecer um Estados Unidos que não só o descobrirá como o festejará. Em 1913, cede aos insistentes convites e viaja para os EUA. É nessa viagem que rompe irremediavelmente com Jung. Lá participa de inúmeros eventos e homenagens, mas nunca deixou de ver os norte-americanos como operadores de uma "máquina louca", que o tratavam como uma criança que se diverte com uma nova boneca e que logo será substituída por outra. Freud pareceu ter compreendido profundamente a orientação e a qualidade da busca norte-americana.

A Primeira Guerra Mundial freou o avanço do movimento psicanalítico. Freud não acreditava mais na vitória da França e da Inglaterra nem no apoio dos EUA menos ainda acreditava na queda dos Impérios Centrais. A guerra o atingiria em todos os flancos. Perdeu pessoas e, angustiado, sonhava com a morte de seus filhos, discípulos e com a dispersão de seu movimento. Enfim, vivia obcecado pela ideia de que a potência mortífera das pulsões inconscientes ameaçava a forma mais elevada da civilização humana e suscitava um desejo de morte próprio da espécie. Como se houvesse em todo homem um bárbaro adormecido, sempre pronto para despertar das camadas mais profundas do psiquismo. A clientela e a comida escasseavam, a família empobrecia.

Foi nessa época que se entregou ao tabagismo e à solidão criativa. A partir de 1915, elaborou grandiosas e definitivas produções psicanalíticas. Em 1920, vivia uma ambivalência: por um lado a morte operando à sua volta e por outro sua doutrina renascendo como a expressão de uma nova civilizada.

Célebre no mundo todo, assistia ao triunfo de seu movimento. Por volta de 1926, começa a viver seus anos dourados, sua belle époque, o período mais feliz da sua vida. Conquista o Ocidente e viaja freneticamente, sempre buscando uma cartografia do inconsciente. Atua intensamente com seus discípulos divulgando sua doutrina. A psicanálise acontece como o símbolo de uma assombrosa revolução do espírito, e Freud afirma que todo material da esfera da linguagem revela uma verdade que escapa ao sujeito e se constitui à sua revelia um saber organizado, uma formação inconsciente. Passa a ser visto como um homem que sabia decifrar enigmas, ao que respondia: "Sou médico e desejo ajudar o máximo que puder pessoas que interiormente vivem num inferno. Não é em um além qualquer que está o inferno, mas aqui mesmo na Terra. Meus conhecimentos, teoria e método devem conscientizá-las disto".

Triunfava o homem que desde muito jovem atribuiu-se a missão de fazer existir o que o discurso da razão procurava mascarar. O homem que queria descobrir o encoberto, denunciar o recalcado, conhecer o desconhecido, clarear o escuro da humanidade transformou-se num luminoso ponto de partida e referência para estudiosos do mundo inteiro. Pensador iluminista, tributário de Kant, adorava a máxima "pensa por ti mesmo" e acreditava na possível submissão do instinto ao autocontrole. Se por um lado pertencia ao iluminismo sombrio porque se deixava enfeitiçar pelo demoníaco, pelo oculto, pelo Pharmacon, por outro, distanciava-se de tudo isso ao invocar um ideal de ciência. Fascinado pela morte, pelo sexo e pelo desejo, preocupa-se em explicar os aspectos mais cruéis e ambíguos da alma humana. Pensa que a morte é companheira do amor e que juntos governam o mundo. E que o psiquismo é um campo de batalha, um palco noturno, em que se enfrentam duas forças elementares fadadas a se amar e a se odiar por toda a eternidade (Eros e Tânatos). Freud compreendia-se mais como um "psicólogo do isso" do que como um "terapeuta do Eu".

Nessa perspectiva, pensava Freud, "a família é uma grande felicidade, mas também o início de preocupações sem fim". Quer dizer, para ele, a família era o modelo de toda a forma de organização social e, com ela, protegia-se das violências de seu tempo, cercando-se da rotina do lar, dos animais, dos objetos de coleção e da exploração da alma humana. Casara-se por amor com a mulher da sua escolha. Tiveram seis filhos, oito netos; suas quatro irmãs lhes deram 14 sobrinhos. Perde sua adorada filha Sophie para a gripe, fato que o abalou profundamente, logo após a descoberta de um câncer (epitelioma), que o levou a sofrer mais de 25 cirurgias ao longo da vida. Amava profundamente e protegia incondicionalmente sua família. Era um patriarca à moda antiga. Tornou-se até em favor da abstinência sexual e um neurótico da sublimação. Dizia: "Não é vocação da psicanálise solucionar o problema da sexualidade, ela se contenta em desvelar os mecanismos psíquicos que levam à decisão na escolha de objeto".

Quanto à sua arte no divã e à prática clínica, Freud não respeitava nenhuma das regras técnicas estabelecidas pelas sociedades psicanalíticas, o que era compreensível.

Quem haveria de obrigá-lo a se submeter a elas? Torna-se o analista dos analistas e é através do olhar deles que podemos avaliar melhor o seu trabalho clínico. Afirmava que nenhuma análise é possível sem a adesão do paciente e que quando bem conduzida objetivava convencê-lo a aceitar a verdade de uma construção elaborada, que permitisse compreender a causa profunda de seus tormentos e superá-los para realizar seus desejos. Mas recebia também pacientes para simples consultas, para receitas e para psicoterapia. Participava ativamente das sessões e se envolvia nelas acreditando que venceria as resistências mais tenazes. Premido por necessidades financeiras e sempre desejando encarar desafios, aceitava em análise pessoas consideradas "inanalisáveis" na esperança de, se não as curar, atenuar seus sofrimentos e gerar mudanças em suas vidas.

A partir de 1920, as mulheres se tornaram presentes no movimento psicanalítico, envolvendo-se no debate sobre feminilidade, maternidade e sexualidade, sobretudo feminina.

E, em 1927, no Congresso de Innsbruck, assiste à explosão de uma guerra sem misericórdia entre Melaine Klein e Anna Freud. As teses kleineanas eram mais democráticas, mais feministas e igualitárias que as de Freud, muito mais patriarcais. Herr Professor apreciava mulheres fiéis, inteligentes, não bonitas demais, instruídas a respeito das coisas da vida, devotadas aos filhos, e Freud as apoiava na luta pela conquista dos direitos civis. Lou Andreas - Salomé e Marie Bonaparte, ambas não judias, alemã e francesa, foram suas grandes amigas durante toda a vida e integraram seu círculo mais próximo tanto psicanalítico quanto familiar.

Em contraposição, um entreguerras se anuncia surdamente e Hitler se tornará o pior inimigo do desilusionista de Viena.

Freud, retomando Hobbes, dizia que "o homem é o lobo do homem", "não há como romper com a pulsão de autodestruição do homem se não aceitar conviver com os seus semelhantes". Falava ainda que o "primeiro homem a atirar um insulto na cara do seu inimigo e não uma lança, este homem seria o verdadeiro fundador da civilização". Nessa época, Freud demonstrava total cegueira quanto à natureza do antissemitismo nazista e à sobrevivência da psicanálise na Europa; considerava-se ainda protegido pela República e, enquanto os nazistas destruíam a psicanálise em Berlim, atendia em Viena.

Homem inquieto, Freud buscava a glória e a adversidade. Queria, o tempo todo, tudo e o oposto. Nessa época transita por todas as fissuras que pudessem liberar verdades. Reduzia a religião a uma ilusão que mantinha os indivíduos na coerção; pensava a civilização como uma muralha às pulsões humanas. Nunca desistiu da ideia de transformar a romântica psicanálise numa ciência pura como o cálculo infinitesimal.

Embora fosse o homem da dúvida, da antiguidade, das hipóteses ousadas, custou a perceber o que acontecia no seu mundo e no mundo à sua volta. Enfim, compreendia-se como Moisés, um judeu da diáspora, e não via senão a Inglaterra como seu porto seguro. Foi uma longa caminhada quando, já em Londres, viveu a grandeza de dificuldades da sua judeidade, da sua doutrina e da sua doença. Ainda mais sofrida seria a sua morte em ação...

Freud confronta-se com as dores de um corpo decomposto pela doença e pela inanição.

O homem que ensinou aos homens a que ponto eles são habitados pelo desejo de sua própria destruição/pulsão e que só a civilização é capaz de contê-la, que pensava que tudo aquilo que nos acontece já está inscrito em nosso inconsciente e que o complexo de Édipo é o nome dessa inscrição, não obstante, em seu último momento, não foi com o complexo que ele se confrontou, mas com a sua própria pele e com o limite de sua liberdade, o ser demasiadamente humano que o habitou em toda a sua existência.

 

 

Endereço para correspondência:
TANIA REGINA ZANETTI
Avenida Moema, 170/126
04077-020 – São Paulo-SP
tel.: 11 5051-0729
tania.zanetti@terra.com.br

SANDRA SETTI
Alameda dos Anapurus, 883/32b
04087002 – São Paulo-SP
tel.: 11 99905-0051
sandra.setti@hotmail.com

Recebido 31.03.2018
Aceito 06.04.2018

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