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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dic. 2011
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Conferência Eu vi um balão no céu!1
I saw a balloon in the sky!
¡Vi un globo en el cielo!
Laertes Moura Ferrão2
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Associação Brasileira de Psicanálise
RESUMO
Trata-se de uma conferência que o autor pronunciou em inauguração oficial do Núcleo Psicanalítico de Recife. A partir da criação de uma fábula na qual dois meninos observam um pedaço do céu, um deles dizendo que viu um balão no céu, e outro enunciando que não viu o balão no céu e que passam a debater sobre suas observações. Um dos meninos, devido à operatividade de processos mentais inconscientes, está convicto e afirma a superioridade de suas observações sobre o outro. Procura ditatorialmente, através de argumentação errada, impedir e destruir a capacidade de pensar através da observação da experiência do outro menino. Este último luta e consegue não se deixar invadir. Segundo o autor, os meninos cresceram, e um deles poderia vir a ser Bacon e Descartes, o outro Karl Popper. Tece comentários sobre a epistemologia otimista de Bacon e Descartes e a epistemologia de Popper. No final da conferência expõe sua experiência analítica com pacientes que sofrem de transtornos do pensamento. Apresenta a hipótese de que cada uma das situações relatadas poderia ser usada para a compreensão das outras duas. Conclui dizendo que os problemas da experiência psicanalítica com analisandos que apresentam distúrbios de pensamento não podem ser compreendidos sem o entendimento dos problemas do filósofo da ciência, e viceversa; os problemas do filósofo da ciência não podem ser compreendidos sem a ajuda da experiência psicanalítica dos pacientes que sofrem de distúrbios do pensamento.
Palavras-chave: Epistemologia, Experiência psicanalítica, Distúrbios de pensamento.
ABSTRACT
This text is a conference the author gave at the official inauguration of the Psychoanalytic Study Group of Recife. The author created a tale in which two boys observe the sky, one of them states that he had seen a balloon in the sky, and the other one states that he hadn't seen it, so they begin to quarrel about their observations. One of the boys, due to operability of his unconscious mental processes, believes and affirms the superiority of his claims over the other. Arrogantly, he tries to prevent and destroy the other's boy thinking ability by observing and experiencing. The second boy fights back and doesn't allow himself to be invaded. According to the author, the boys grew up, and one of them could become Bacon or Descartes, the other could become Karl Popper. He comments on Bacon and Descartes optimistic epistemology and Popper's epistemology. At the end of the conference he exposes his analytic practice with patients suffering from thought disorders. The author concludes that the problems of psychoanalytic experience with patients suffer from thinking disorders, cannot be understood without understanding the problems of the philosopher of science, and vice versa; and the problems of the philosopher of science cannot be understood without recurring to the help of psychoanalytic experience with patients suffer from thinking disorders.
Keywords: Epistemology, Psychoanalytic experience, Thinking disorders.
RESUMEN
Se trata de una conferencia que el autor ministró en la inauguración oficial del Núcleo Psicoanalítico de Recife. A partir de la creación de una fábula en la cual dos niños observan un pedazo de cielo, uno de ellos diciéndole al otro haber vito un globo en el cielo, y el otro niño anunciándole que no vio tal globo y, de allí en más, debaten sobre lo observado. Uno de los chicos, debido a la operatividad de los procesos mentales inconscientes, está convencido y afirma la superioridad de sus observaciones en relación al otro. Intenta, dictatorialmente, a través de argumentación errónea, impedir y destruir la capacidad de pensar a través de la observación de la experiencia del otro niño. Este último lucha y consigue no se dejar invadir. Según el autor, los chicos crecieron y uno de ellos podría llegar a ser Bacon y Descartes, el otro Karl Popper. Se elaboran comentarios sobre la epistemología optimista de Bacon y Descartes y la epistemología de Popper. Al final de la conferencia el autor expone su experiencia analítica con pacientes que sufren de trastornos de pensamiento. Presenta la hipótesis de que cada una de las situaciones relatadas podría ser usada para la comprensión de las otras dos. Concluye diciendo que los problemas de la experiencia psicoanalítica con pacientes que presentan disturbios de pensamiento no pueden ser comprendidos sin el entendimiento de los problemas del filósofo de ciencia, y viceversa. Los problemas del filósofo de ciencia no pueden ser comprendidos sin la ayuda de la experiencia psicoanalítica de los pacientes que sufren disturbios de pensamiento.
Palabras clave: Epistemología, Experiencia psicoanalítica, Disturbios de pensamiento.
Eu vi um balão no céu ou eu não vi um balão no céu também poderia ser o tema desta conferência – simples pretexto para se pensar ou para se conversar sobre psicanálise.
Pictoricamente poderia imaginar um menino trocando observações com outro menino ou com uma menina; dois homens, um marido e sua mulher, dois cientistas, um religioso com outro religioso, dois artistas, dois psiquiatras, um psiquiatra com seu paciente, dois psicanalistas, um psicanalista e seu analisando, e assim por diante, conforme o voo de minha imaginação.
Um menino corre pelo campo, brincando com o companheiro, e já cansados deitam sobre a relva no alto de uma encosta. Um deles com a cabeça apoiada sobre as mãos cruzadas, a modo de travesseiro, perscruta o céu e, de repente, fixa-se numa nesga do mesmo e, como que surpreso, comunica ao amigo a observação que acabara de fazer: "eu vi um balão no céu!"
– Onde, onde?
Logo se entenderam sobre o pedaço de céu, sobre o qual o companheiro fizera a observação e que o levou ao enunciado – "eu vi um balão no céu!"
Agora, um deles percorre com os olhos, de cima para baixo, de baixo para cima, o local apontado, e meio desapontado, dirige-se ao outro: eu não enxergo, parece-me uma pequena nuvem, e enuncia – "eu não vi o balão no céu".
Trocam informações entre si. O menino que não viu o balão afirma que sempre foi conhecido como tendo uma melhor acuidade visual que o outro. Não chegam a acordo algum. Resultado para eles é um ponto de vista observacional único. Surgiu o impasse e os ânimos estão exaltados. E agora? Qual o caminho? Qual a solução salvadora e tranquilizadora? Oh, como a Providência é pronta e age no momento exato!
Ao longe desponta outro menino e aproxima-se, e aproxima-se mais. Um dos litigantes, esfregando as mãos, como que antecipando o sabor da vitória, grita:
– Ei! Você aí, venha cá.
Surpreso, o menino-caminhante chega à encosta, local da disputa.
– O que vocês querem?
Tudo é explicado com pormenores; o campo de observação lhe foi bem delimitado pelos litigantes. Um deles, aquele que não viu o balão, investiu o recém-chegado da autoridade de juiz.
Aceitou a investidura que lhe cabia tão bem, pois era a pessoa talhada para a função. O juiz olha, olha, olha…
– Então, o que você observa?
– Eu não vejo nada.
– Você não viu um balão lá no céu?
– Não, não vi balão nenhum.
– Está vendo, falou o menino que não viu o balão ao outro, não há balão no céu.
– Eu que observei certo e estou com razão. Aliás, eu sempre enxerguei muito melhor que você.
O outro menino retrucou:
– Vamos continuar observando, isto poderá nos ajudar para uma melhor conclusão.
– A verdade é que não há nenhum balão no céu. Você deve estar maluco, com um parafuso a menos, arrematou o primeiro.
O outro sofreu um impacto, como se tivesse recebido uma bordoada na cabeça, um colapso mental momentâneo. Como Fênix que renascia das cinzas, sua mente voltou a pensar sobre as ocorrências que se sucederam tão rapidamente e voltou a encontrar um ponto de luz dentro da escuridão. Assim pensou:
"Como pude ser invadido pela maneira de agir, a atuação e a linguagem persuasiva e prepotente do meu amigo? Uma verdadeira jamanta que achatou a minha cabeça. Ainda bem que pude me libertar desta pressão ditatorial de uma mente sobre outra. Agora estou em condições de observar e pensar sobre a experiência da qual nós três participamos."
– Você chamou este terceiro, deu-lhe a função de juiz, que sentenciou: não há balão no céu. Fizeram uma aliança e comemoraram a vitória. Este menino é por acaso Deus ou tem o dom da verdade? Pois você tornou a observação dele como certa e verídica. Sabemos que não é e fui vítima de um engano. Penso que deveríamos chamar mais outros caminhantes e saber o resultado de suas observações e assim chegar a um consenso geral sobre as observações realizadas. Mas, mesmo assim, só a continuidade do processo de indagação nos levaria a escolher uma entre elas, que se aproximaria mais dos dados observáveis e que, portanto, seria a mais operativa para se lidar com o tipo de problema que estamos observando. E a escolhida não necessitaria certamente ser a numericamente mais frequente, mas aquela que melhor ordenou os dados esparsos recolhidos pela observação – foi o que com suas palavras disse ao companheiro.
Os meninos da minha estória cresceram, tornaram-se cientistas, outros psicanalistas, e já não brincam de ver balões no céu. Usam métodos e instrumental apropriados que foram aperfeiçoados no decorrer da história das ciências. Tantos problemas emergiram na simples visualização ou não visualização de um balão no céu, imaginem agora a complexidade da observação do comportamento humano.
Um dos meninos, para mim aquele que não viu o balão, provavelmente seguiu na trajetória científica os caminhos traçados por Bacon e Descartes.
O grande movimento de libertação que teve início com o Renascimento inspirou-se num otimismo epistemológico, baseado na concepção do poder do homem para descobrir a verdade e alcançar o conhecimento. É a doutrina de que a verdade é manifesta. Ela revela-se, por si mesma, ou pode ser revelada por nós, embora afastar a penumbra que a esconde possa não ser fácil empreendimento. Uma vez que seja colocada nua entre nós, temos o poder de vê-la, distingui-la da falsidade e de saber que ela é a verdade.
O nascimento da ciência e tecnologia modernas teve origem neste otimismo epistemológico, cujos principais representantes foram Bacon e Descartes. Afirmavam que todo homem leva em si mesmo as fontes do conhecimento, seja na sua faculdade perceptiva, que pode usar para realizar uma cuidadosa observação da natureza, seja na sua faculdade intelectual, que lhe permite distinguir a verdade da falsidade, negando-se a acolher toda ideia que não seja clara e distintamente percebida pelo intelecto. Ninguém, portanto, necessitava apelar à autoridade no que se refere à verdade. Temos olhos para ver a verdade e a luz natural da razão para iluminá-la.
Descartes baseava sua epistemologia otimista na importante teoria da veracitas dei. O que é visto claro como verdadeiro deve realmente sê-lo, pois se assim não fosse, Deus nos enganaria. Por conseguinte a veracidade de Deus faz manifesta a verdade.
Encontramos em Bacon uma doutrina semelhante, que poderia ser chamada de veracitas naturae, a veracidade da natureza, que é um livro aberto. O que lê com a mente pura não pode se equivocar. Bacon põe em sua epistemologia a Natureza em lugar de Deus. Esta é a razão pela qual temos de purificar nossas mentes, com a finalidade de manterem-se puras as fontes de conhecimento, porque a impureza de nossas mentes converte-se em fonte de ignorância. A ignorância, por sua vez, é obra de poderes que conspiram para nos manter nela: a negativa a ver a verdade manifesta, os prejuízos inculcados pela educação e tradição, a antecipação, as crenças, a conjectura e outras mais. É a teoria conspiracional da ignorância.
A epistemologia de Bacon e Descartes, embora falsa, foi contudo a principal fonte inspiradora de uma revolução intelectual e moral sem paralelos na história. Estimulou os homens a pensarem e devolveu-lhes a esperança de que, através do conhecimento, poderiam livrar-se, e a outros, da servidão e miséria. Tornou também possível a ciência moderna. É o caso de uma má ideia que tem inspirado muitas ideias boas.
Ainda que suas ideias tenham sido ampliadas, aperfeiçoadas e tornadas mais sofisticadas, alguma coisa de tradição que Bacon inaugurou foi aceita pela quase totalidade das pessoas de índole científica do século XVII ao século XX. Em traços gerais, a situação é a seguinte: o cientista inicia realizando experimentos, cujo objetivo é o de permitir observações cuidadosamente controladas e medidas. Registra sistematicamente seus achados, divulga-os e, com o passar do tempo, ele e outros pesquisadores, que trabalham na mesma área, chegam a acumular uma quantidade de dados comuns e dignos de crédito. Crescendo o número de dados, traços de ordem geral principiam a emergir, e os cientistas começam a formular hipóteses gerais – enunciados que se ajustam aos fatos conhecidos e que explicam de que modo se ordenam casualmente entre si. Procura o pesquisador confirmar sua hipótese, encontrando evidência que lhe dê apoio.
Bem-sucedido nesta tentativa de verificação, descobre uma lei científica – lei que lhe permitirá desvendar mais alguns segredos da natureza. A descoberta é aplicada em todos os casos que, segundo se imagina, permitam colheita de informações adicionais. O conhecimento científico, portanto, amplia-se, e a fronteira da nossa ignorância é levada adiante. O processo repete-se numa nova fronteira. A ciência é o corpo desses conhecimentos seguros e certos, e o desenvolvimento da ciência consiste no interminável processo de acrescentarem- se certezas novas ao conjunto de certezas existentes.
A indução é o método que permite estabelecer enunciados gerais a partir de observações acumuladas de casos específicos e é considerada, para esses cientistas, como critério de demarcação entre ciência e não ciência. Todavia, essa epistemologia também tem contribuído para desastrosas consequências. Os ataques de Bacon e Descartes contra os prejuízos e as crenças tradicionais, que conservamos inadvertidamente, são, sem dúvida alguma, antiautoritárias e antitradicionalistas. Formam parte da guerra contra a autoridade, que estava em moda na época, a guerra à autoridade de Aristóteles e à tradição das escolas. Foram, contudo, incapazes de renunciar a pensar em termos de autoridade, por muito que quisessem fazê-lo. Cada um deles apelava a uma nova autoridade: um, à autoridade dos sentidos (a observação), outro, à autoridade do intelecto (a razão).
A verdade presumivelmente manifesta, de outro lado, necessitaria, constantemente, não só de interpretação e afirmação, senão de reinterpretação e reafirmação, e se requereria assim de uma autoridade que proclamasse e estabelecesse qual seria a verdade manifesta e que poderia chegar a fazê-lo de um modo arbitrário e cínico. Isto, entretanto, pode constituir a base de quase toda a sorte de fanatismo.
Apesar de suas tendências individualistas, Bacon e Descartes não ousaram apelar ao nosso juízo crítico, ao seu ou ao meu, provavelmente devido ao temor que isto levasse ao subjetivismo ou à arbitrariedade.
Segundo minha versão, o outro menino poderia ter se tornado Karl Popper. Considerado, por muitos, como o mais notável filósofo da ciência em nossa época, Karl Popper compreendeu por que se havia enraizado fortemente, desde Bacon, uma errônea teoria da Ciência – a de que as Ciências Naturais eram ciências indutivas e que a indução era um método de estabelecimento ou justificação de teorias, mediante observações ou experimentos repetidos. O motivo que levava essa concepção a dominar residia no fato de que os cientistas procuravam demarcar suas atividades, separando-as da pseudociência, bem como da Teologia e da Metafísica, e usando para isso, como critério de demarcação, o método indutivo proposto por Bacon. Ansiavam, de outro lado, por justificar suas teorias valendo-se de fontes de conhecimento comparáveis, quanto à sua fidedignidade, às fontes religiosas. Popper usou como critério de demarcação o da testabilidade ou falseamento, e foi para ele possível deixar de lado a indução, sem com isso envolver-se em dificuldades relacionadas com a demarcação. Além disso, aplicou os resultados do método da tentativa e erro, o método crítico, de modo que toda a metodologia indutiva fosse substituída por metodologia dedutiva.
A refutação ou falseamento das teorias através da refutação ou falseamento de suas consequências dedutivas era obviamente uma inferência dedutiva. Em consequência a essa concepção, as teorias científicas que não forem refutadas devem continuar com o caráter de hipóteses ou conjecturas. Durante muitos anos as pessoas tinham grande dificuldade em admitir que, logicamente consideradas, teorias eram o mesmo que hipóteses.
Prevalecia a concepção de que as hipóteses seriam teorias ainda não comprovadas e que teorias seriam hipóteses estabelecidas ou comprovadas. Mesmo os que admitiam o caráter hipotético de todas as teorias acreditavam que estas necessitavam de alguma justificação, que, se não fosse possível demonstrar-lhes a verdade, seria preciso estabelecer pelo menos sua elevada probabilidade. O dedutivismo foi defendido por K. Popper, a concepção de que as teorias são sistemas hipotético-dedutivos e que o método da Ciência não é o indutivo.
Sob o prisma dessa metodologia, iniciamos as investigações partindo de situações-problemas, que escolhemos e esperamos poder solucionar. A solução, que sempre tem o caráter de tentativa, consiste numa teoria, numa hipótese, numa conjectura. As várias teorias rivais são comparadas e discutidas criticamente, com a finalidade de identificar suas deficiências, e os resultados permanentemente cambiantes dessa discussão crítica formam o que poderia ser denominado "ciência do momento".
Não há pois indução, e nunca argumentamos passando dos fatos às teorias, a não ser com o objetivo de refutar ou falsear as teorias. Esclareceu-se, dessa maneira, toda a questão do método científico e, com ela, a questão do progresso científico. O progresso consistia num movimento em direção a teorias que nos dizem sempre mais – teorias de conteúdo sempre maior. Contudo, quanto mais uma teoria afirma, tanto mais ela exclui ou proíbe, e assim sendo crescem as oportunidades para seu falseamento. A teoria de maior conteúdo é que admite as provas mais severas.
As considerações acima levaram a conceber o progresso científico não como uma acumulação de observações, mas em superação de teorias menos satisfatórias e sua substituição por teorias melhores, ou seja, por teorias de maior conteúdo. Há portanto competição entre teorias – uma espécie de luta seletiva ou darwiniana pela sobrevivência de teorias. Em oposição, teorias que se apoiam na indução, ou seja, que enfatizam a verificação, em vez de falseamento, são tipicamente lamarckianas – elas realçam a instrução, proveniente do ambiente, em vez de realçar a seleção feita pelo ambiente.
Por outro lado, nossas teorias, em vez de se apresentarem como resultado de impressão que a realidade exerceria sobre nós, são ativamente produzidas pelas nossas mentes, transcendem nossa experiência, ou como afirma Einstein: "uma teoria não pode ser fabricada com os dados da observação; ela só pode ser inventada".
Como a psicanálise pode contribuir para a pequena estória que contei ou para compreender o problema do filósofo da ciência?
Freud, muitas vezes, ao referir-se às teorias diferentes de psicanalistas sobre o mesmo objeto de observação da psicanálise, enfatizava que a nossa ciência era ainda muito nova, e chamava-nos a atenção para a qualidade especial do observado em psicanálise – a personalidade e comportamento humano –, deixando claro que as resistências individuais, mesmo em pessoas analisadas, para se aproximar de determinadas situações humanas poderiam deformar os achados ou impedir a profundidade de investigação psicanalítica. Alimentava, às vezes, a esperança de que com o correr do tempo e o desenvolvimento da psicanálise chegaríamos a atingir a verdade humana. Falava-nos da maior ou menor capacidade para percepção da realidade interna e externa e interessava-se pelo problema da verificação e justificação das interpretações e teorias psicanalíticas, seguindo no referente a esses problemas uma direção científica originada da tradição baconiana. Contudo, pela história de suas descobertas e da sua postura de investigador, quase sempre, penso, caracterizou-se por uma abertura propícia à revisão de suas teorias à luz de novas experiências. Dava-me a impressão de tornar suas teorias não como teorias estabelecidas ou hipóteses em busca de comprovação, mas como pré-concepções abertas para novos enriquecimentos teóricos, e assim por diante, como enunciados permanentemente não saturados.
Já em 1932, em uma carta a Einstein, em resposta a uma carta deste, na qual convidava Freud a expressar sua autorizada opinião sobre "O porquê da guerra", numa passagem, assim afirma:
Talvez você tenha a impressão de que nossas teorias formam parte de uma espécie de mitologia, e se assim fosse, nem sequer seria uma mitologia grata. Mas acaso não se orientam todas as ciências da Natureza por uma mesma espécie de mitologia? Acaso encontra-se você hoje na física em situação diferente? (Freud, 1933/1973)
Aos 82 anos de idade, após extensa e enriquecedora experiência, num trecho do "Compêndio de Psicanálise", trabalho escrito em 1938 e publicado em 1940, assim se manifesta:
A realidade sempre continuará sendo "incognoscível". A elaboração intelectual de nossas percepções sensoriais primárias nos permite reconhecer no mundo exterior relações e dependências que podem ser reproduzidas ou refletidas fielmente no mundo interior do nosso pensamento, pondo-nos seu conhecimento em situação de "compreender" alguma coisa no mundo exterior, de prevê-la e, possivelmente, modificá-la. Assim também procedemos em psicanálise. (Freud, 1940/1973)
Aponta, portanto, a realidade como "incognoscível", a teoria como conjectura e o conhecimento objetivo em substituição à percepção realística, em uma linha próxima da epistemologia popperiana.
A psicanálise prática, segundo minha experiência, é investigação-experiência da relação analista-analisando. É a observação do conteúdo manifesto dessa relação – o aspecto fenomenológico dela, mas principalmente sua investigação e estudo psicanalíticos, para se formularem teorias (conjecturas) das relações objetais inconscientes e sobre os fatores (elementos da psicanálise) que se relacionam entre si, segundo uma ordenação específica, em cada momento, para se constituir a subestrutura que faz emergir a fenomenologia da relação, em cada momento.
Os que praticam psicanálise estão familiarizados com experiências como estas: o analista formula sua teoria (conjectura) ao analisando; o analisando responde: "não foi isso que eu disse…"; "eu não estava pensando nisso", "não é nada disso, é isso…"; "de onde o Sr. tirou isso?"; "eu não pensei nada disso que o senhor está falando"; e se põe a relatar outras experiências para objetivar a concreticidade do que afirma, em detrimento da falsidade da formulação do analista; "O Sr. deve estar 'lelé da cuca', inventado tudo isso…", "me prove aí na experiência o que o Sr. está falando…" e algumas outras variações do mesmo tema. Tudo isto acompanhado de convicção, disputa calorosa e sentimentos de superioridade e triunfo. Às vezes, nestes momentos o analisando queixa-se do analista e reage com violência, acusando-o de autoritário, castrador e de querer impor seu ponto de vista, outras vezes, de que o analista está "enrolando- o", confundindo-o, e diz que não quer mais conversa, impedindo qualquer tentativa, por parte do analista, de interpretar ou dialogar.
O que pode ocorrer na relação analista-analisando?
Do ponto de vista do analista: em "atenção flutuante" diante da experiência que está vivendo com o analisando, observa, faz uma conjectura sobre o que observou e formula ao analisando.
Do ponto de vista do analisando: vive o momento da relação com o analista concretamente, como se tivesse um contato direto com a verdade da experiência. Está incapacitado para ter uma teoria ou conjectura. Coloca seu enunciado em disputa ao enunciado do analista. Outorga autoridade a sua percepção e razão e desempenha a função de juiz, juiz em causa própria, e sentencia "que o analista está errado, porque ele está certo". Quanto está afirmando "que não disse nada disso", que o analista formulou, está certo que os dados de observação, que o analista usou para formular sua teoria, são aqueles que fixa na sua mente. Não é capaz de "realizar" que o analista trabalhou outros dados. Não elabora hipóteses, nem é capaz de imaginar ou fantasiar, naquele momento, age como se constatasse fatos verdadeiros. Acredita que sua função de observar capta e o que registra é verdade. Não há diálogo – o analista comunica sua conjectura ao analisando, para ser examinada à luz do processo indagatório, mas esta é uma autoridade que peremptoriamente afirma a verdade. Está em contato direto com a verdade, como se fosse Deus. É comum observar, com este tipo de paciente, uma experiência como esta: ouve com atenção e interesse a interpretação do analista, procurando verificar se sente ou está de acordo com a conjectura do analista. Quase sempre está em desacordo, pois penso que ocorre o seguinte: o analista faz sua interpretação sobre um momento imediatamente anterior à relação analítica, momento A. Num momento imediatamente posterior, momento B, está comunicando sua interpretação ao analisando, que tenta verificar se neste momento B está presente o que o analista conjecturou sobre o momento A. Não pode estar. É um fenômeno dinâmico e que relaciono a um sutil processo de dissociação – dissociando o analisando, sem ter consciência, a formulação do analista da experiência a qual está vinculada (A) e vinculando- -a à experiência B. É aconselhável que o analista "realize" o que ocorre nessas experiências – que estou tentando descrever –, formule ao analisando, e que este também esteja em condições de realizá-la, ganhe consciência e admita que a sua comunicação é apenas uma teoria, uma conjectura, como o é a do analista. Haverá então trabalho a dois – aliança analítica –, e as duas conjecturas serão confrontadas na continuidade do processo indagatório.
É justamente a possibilidade dessa experiência comum que dá coerência entre as associações do paciente e as interpretações do analista. Ambos podem então chegar a uma visão convergente, que, quando objetiva, pode tornar-se bastante operativa para lidar com os conflitos da relação analista-analisando e com os conflitos pessoais do paciente. Ainda nestes momentos, pode dizer: "O senhor tem razão…" ou "a verdade está com o senhor…". O analista deve estar alerta para não participar do conluio. A "visão" é apenas convergente, comum aos dois, e a continuidade do processo indagatório poderá logo indagar ser incompleta ou falsa.
Os analisandos que estou descrevendo sofrem de um distúrbio do pensamento, devido à operatividade da parte psicótica da sua personalidade.
Poderia abstrair alguns fatores (elementos de psicanálise): inveja, afirmação de superioridade, arrogância, violência, ao lado da intolerância ao desconhecido, a conter situação de desvantagem e intolerância à consciência da inveja e arrogância – que se relacionam entre si, para fazer emergir os comportamentos psíquicos acima descritos.
Transtornos do pensamento que impedem a experiência de observar-se a dois, trabalhar e dialogar em cooperação, e que podem emergir tanto no menino, no filósofo da ciência, no cientista, no analisando, no analista e na vida diária de todos nós.
Poderia usar as três experiências relatadas: a estória dos meninos, a dos filósofos da ciência e de meus analisandos, cada uma como modelo para se tentar alcançar a compreensão das outras.
As dificuldades do analisando, que sofre de um distúrbio do pensamento, são semelhantes às que acompanham os cientistas e todos aqueles que estão interessados no estabelecimento, verificação e justificação de teorias através de fatos, para que desse modo sejam conseguidas predições certas e seguras. Acredito que sejam adeptos do método indutivo em ciência, uma vez que por essa via se chegaria a predições e aplicações científicas certas e, portanto, tranquilizadoras e isentas de qualquer risco. Desejo que só poderia ser alcançado pelo entretenimento de uma fantasia de onipotência. Faltar-lhes-ia a capacidade para o negativo – nossas limitações e deficiências, que nos põem comumente diante de situações de temor e risco.
Parece-me que problemas desta natureza se constituem numa outra ofensa ao narcisismo e arrogância humanos.
O fracasso do analisando que sofre de transtorno de pensamento, diante desses problemas, está em forma observável dentro da personalidade.
A psicanálise deste fracasso é impossível, sem compreender o problema do filósofo da ciência, e inversamente seu problema está enunciado em forma incompleta sem a ajuda da experiência psicanalítica dos transtornos do pensamento. (Bion, 1962)
O analista certamente, algumas vezes, pode sofrer desse transtorno de pensamento, embora seja aconselhável que não funcione assim com frequência. Daí a importância de submeter-se à análise pessoal, ao currículo apropriado a sua formação, desde que analisar pessoas é muito complexo e difícil e continuamente se está sob a influência dos fatores inconscientes de sua personalidade.
Por conseguinte, de parabéns: a cidade de Recife e sua população; os profissionais interessados em submeter-se a uma formação psicanalítica, segundo padrões da Associação Psicanalítica Internacional; a Dra. Lenice de Oliveira Salles e o Dr. José Lins de Almeida, analistas em função didática; a Dra. Inaura Carneiro Leão, Coordenadora do Subcomitê do Comitê Didático da ABP, e demais membros deste subcomitê e as Sociedades patrocinadoras – Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
Referências
Bion, W. R. (1962). Learning from experience. Londres: William Heinemann Medical Books. [ Links ]
Freud, S. (1973). El Porque de la Guerra. In S. Freud, Obras completas (L. López-Ballesteros y de Torres, trad., Vol. 3). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1933) [ Links ]
Freud, S. (1973). Compendio del Psicoanálisis. In S. Freud, Obras completas (L. López-Ballesteros y de Torres, trad., Vol. 3). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1940) [ Links ]
Magee, E. B. (1974). As idéias de Popper. São Paulo: Edusp. [ Links ]
Popper, K. R. (1967). El desarrollo del conocimiento científico. Buenos Aires: Paidós. [ Links ]
Popper, K. R. (1977). Autobiografia intelectual. São Paulo: Edusp. [ Links ]
© Gentilmente cedido pela Revista Brasileira de Psicanálise
1 Reedição da Conferência proferida em 12 de novembro de 1977, na solenidade de instalação do Núcleo Psicanalítico de Recife. Publicada originalmente na Revista Brasileira de Psicanálise 12, 581-593, 1978.
2 Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Presidente da Associação Brasileira de Psicanálise, In memoriam.