O tema não poderia começar melhor do que como Tiago3 formulou, e eu queria começar nessa perspectiva, ou seja, de que essa discussão e esse dia de hoje têm vocês também como foco, e não somente nós. Eu queria começar um pouco lembrando uma metáfora da escritora e artista Grada Kilomba, em sua exposição Desobediências poéticas (2019).
É uma metáfora muito interessante: Kilomba introduz sua obra compartilhando conosco a história de Eco e Narciso - uma história tão universal, e, simultaneamente, tão particularmente doída ao percebermos como a autora a articula com a sua própria vivência e experiência enquanto negra.
Assim como a ninfa Eco, fadada a uma vida sem voz e a apenas repetir as últimas palavras que escutava, e Narciso, destinado a uma vida apaixonado por si mesmo, por uma imagem refletida de si, que o levou à morte em um lago, Kilomba compara Eco e Narciso a “um cubo branco”. Ela compartilha com seu interlocutor como tudo ao seu redor é, na verdade, a imagem refletida da branquitude: “tanta brancura, que me queima” (ela cita Fanon). Kilomba diz:
eu vivo num espaço De intemporalidade.
Num espaço vazio.
Num espaço branco.
Numa infinidade branca. Num “cubo branco”
Num “cubo branco” que se apresenta
Ausente de cor
E de significado
Mas branco
Não é a ausência de cor,
Mas a acumulação De todas as cores.
É a acumulação
De todas as cores possíveis
De facto, negro É a ausência de cor.
Ela quer dizer que a negritude, que é sempre vista, é ausente nos espaços; e a branquitude quase nunca se vê, mas está sempre presente nos espaços de poder. Então, o que estamos tentando fazer aqui é quebrar com esse cubo branco que não permite à gente ver as relações de poder, a branquitude nos diferentes espaços; e muitas vezes não nos permite ver nossos próprios privilégios nos diferentes espaços.
É interessante que ela vai afirmar justamente que a ignorância é um certo privilégio, a dupla ignorância de não saber e não ter que saber. Hoje, nossa ideia é desconstruir essa ignorância e quebrar esse cubo branco onde muitas vezes nós habitamos.
Para falarmos um pouco sobre a questão racial, incumbiram-me de refletir sobre o que entendemos por racismo ou sobre diferentes acepções de racismo, para que possamos desenvolver um pouquinho mais conceitualmente o debate.
Eu acho que, em primeiro lugar, podemos tentar propor a discussão em pelo menos três frentes (e, obviamente, poderemos tornar isso mais complexo no debate), para que comecemos a pensar sobre a questão racial.
A primeira frente é a seguinte: o que em geral associamos com o racismo? É um racismo individualizado ou interpessoal, como aquele insulto racista que vemos uma pessoa fazer contra outra, ou aquela prática de racismo evidente e muito explícita entre duas pessoas ou duas ou mais pessoas? Estamos falando aqui de uma espécie de manifestação de uma discriminação racial - por exemplo, quando alguém é insultado de uma forma animalesca ou quando observamos uma discriminação muito evidente, como uma violência policial contra uma pessoa real e específica. Estamos falando, então, sobre uma esfera individual ou, no máximo, interpessoal do racismo. E em geral, nessa primeira esfera, qualificamos a questão racial como algo excepcional ou como algo que “quase nunca acontece esse insulto”, “quase nunca acontece esse tipo de racismo”, “eu não sou esse tipo de pessoa, então isso não tem a ver comigo”.
Em geral, esse deslocamento do agente em relação a sua conduta evidencia um mecanismo de defesa humano. Em uma sala cheia de psicanalistas, é evidente que uso esse termo com cautela. Mas a verdade é que, enquanto humanos, temos vários mecanismos de defesa para poder pensar - e, mais interessante e curioso ainda, para não pensar - sobre essa questão racial com base na perspectiva individual. Primeiro falamos: “não, eu não sou racista”. E, ao falar isso, em geral, pensamos em alusão a esses tipos de episódios que são episódios obviamente racistas de um insulto, por exemplo. Ou então pensamos: “ah não, ok, já entendi sobre o tema ou se eu alguma vez já expressei o racismo dessa forma eu nunca mais serei assim, vamos para o próximo tema”. Uma pressa, novamente, em se deslocar do objeto de análise. Falar de racismo, seja na esfera individual ou coletiva-social, é também falar sobre a existência de uma certa expiação da culpa coletiva com relação a isso.
Nessa perspectiva de diálogo pessoal ou interpessoal sobre racismo, é possível identificar ainda uma outra forma de lidar com a discussão: enquanto pessoa branca, buscar centralizar em si o debate racial, voltando a questão sobre si mesmo. Vejam: o cubo branco, num espaço branco, numa infinidade branca - relembrando aqui as palavras de Grada Kilomba. Uma anedota pessoal: eu já vi, por exemplo, em debates sobre a questão racial, uma pessoa na plateia que levantou e começou a falar sobre como era difícil ser uma pessoa branca nessas discussões. Essa pessoa, até mesmo, chorou, exaustivamente, e tomou para si o palco que, possivelmente, nunca questionou que talvez não fosse de sua posse - sobretudo na discussão de um assunto de que não tinha vivência. Robin DiAngelo, por exemplo, fala sobre o choro de mulheres brancas quando são confrontadas com o racismo. Então, há vários mecanismos de defesa para não lidarmos com esses episódios, e um deles, o principal, é pensar que eles são excepcionais, episódicos, e não, de fato, corriqueiros; e outro mecanismo é recentralizar o debate em si mesmo, na figura de quem perpetua o racismo.
Sabemos que a maior parte das pessoas negras no dia a dia sente e sofre com esse racismo cotidiano - Grada Kilomba chama a atenção para isso em seu livro -, essas são “memórias da plantação”, que ocorrem corriqueiramente na vida de uma pessoa negra. E essas memórias cotidianas são frequentes. Por exemplo, ontem mesmo Nina da Hora, que é uma das principais cientistas de computação e tem várias notícias sobre isso, foi a uma livraria e estava simplesmente folheando alguns livros, mas um guarda ficou em cima dela perguntando: “onde você mora?”. E ela estava ali simplesmente num espaço público lendo um livro.
Então, temos essa esfera individual, que é o exercício desse poder interpessoal e aqui temos várias questões importantes, como a questão da microagressão, a questão sobre psicologia do preconceito e várias questões que são importantes para podermos ter consciência delas. E diversificar espaços como esse, da psicanálise, é importante justamente para que fiquemos atentos sobre essas nuances que importam muito para uma parcela considerável da população, que não é minoria, aliás.
Outro ponto importante, que é a segunda esfera que podemos articular nessa conversa sobre racismo, é pensar o racismo não somente no nível do indivíduo, mas também o racismo institucional. E aqui chegamos a uma outra esfera, que é aquela das regras e práticas institucionais que são excludentes e que muitas vezes normalizamos. Por exemplo, o quanto custa para ser um psicanalista; se seu curso tem a ver mais com mérito ou recursos para pagar esse ensino; quais são as leituras que estamos acostumado a fazer, será que lemos Lélia Gonzalez com base na perspectiva da psicanálise, sabendo que ela era versada em psicanálise, ou não? Será que lemos psicologia social do preconceito, e tantas outras formas de pensar sobre a questão racial? E aqui chegamos a um outro ponto, diferente do primeiro ponto que eu falei, do racismo interpessoal e individualizado. Nesse segundo ponto, que é o racismo institucional, percebemos que diferentemente desse racismo individual, interpessoal, que pusemos naquela categoria de excepcional, que pusemos na capa do jornal, o racismo institucional é algo que é normalizado; a gente normaliza, vivemos nesses cubos brancos e seguimos normalizando as práticas excludentes e precisamos descortinar quais são as regras e práticas - que nos levam a ter, por exemplo, 99% desta sala de pessoas brancas. O que podemos pensar sobre isso? Como chegamos a isso, e não chegamos como um fato da natureza? Isso é resultado de processos institucionais e regras institucionais formais ou informais que precisamos repensar e sermos conscientes em relação a isso.
É fácil? Não é fácil, mas, por outro lado, pensar em diversificar espaços não é benéfico só para quem aproveita diretamente essas diversificações, mas também é benéfico para todos nós, é vantajoso para pensarmos com base em outros olhares a questão racial.
Chegamos ao terceiro aspecto que trazemos aqui, falei do racismo interpessoal e individual, do racismo institucional, e chegamos a um outro, o mais comentado ultimamente, que é o racismo estrutural. Essas três formas de racismo foram apresentadas por Silvio Almeida no livro Racismo estrutural (2019). E aqui entramos no terreno máximo dessa normalização, ou seja, no terreno máximo dessa ideia de reiteração do racismo como se fosse algo normal. A Dora estava falando sobre viver entre a grandeza e a barbárie. Como nós podemos, enquanto sociedade, qual a culpa coletiva que precisamos processar para conseguir dormir num país que mata pela polícia três vezes mais do que os Estados Unidos inteiros, que já matam muita gente? Ou seja, como conseguimos processar essa barbárie coletiva, e processamos muitas vezes normalizando tudo isso, como nós normalizamos essa barbárie?
Começamos a falar do racismo estrutural nesse terceiro aspecto como uma pilastra numa coluna estrutural de um prédio. Eu sempre faço essa analogia. Quando falamos de racismo estrutural, falamos que existem várias colunas que sustentam esse prédio do racismo, permitindo que haja o racismo interpessoal; que haja um racismo institucional e que essas expressões de racismo sejam normalizadas.
Várias são as colunas estruturais que sustentam esse prédio, sem as quais ele não existiria, desde a ausência de pessoas negras em situação de poder político, econômico, até a ausência de diversidade nos espaços em que estamos, a ausência de pessoas negras nos espaços de comunicação, a sua quase ausência nas universidades. Então, essas desigualdades econômicas, jurídicas, políticas, comunicacionais, culturais, educacionais, todas históricas, todas elas são colunas que sustentam esse racismo.
O racismo é estrutural, na medida em que ele é dificilmente modificado, porque está fincado nessas desigualdades; e ele é estrutural também, porque é normalizado, é dado como se fosse um fato da natureza, e não o é. Temos 99% de pessoas brancas neste espaço, e vejamos: isso não é um fato da natureza, num país que tem 56% de pessoas negras, segundo o último censo do ibge. Como podemos, então, normalizar espaços brancos? Para isso, precisamos começar a quebrar a lógica de que muitas vezes nós nos acostumamos a ocupar espaços como se aquilo fosse nossa propriedade. E aí eu explico: há uma literatura sobre branquitude como propriedade e a ideia, que normalizamos, de que esses espaços de poder são espaços nossos; nossos, digo, estou assumindo aqui a persona pessoa branca que eu não sou; mas nossos, então, nesse sentido de que, eu lembro muito, numa entrevista há um tempo, quando se discutiam ações afirmativas, eu lembro que uma pessoa, uma entrevistada, disse o seguinte, perguntaram para ela na rua, uma senhora na rua, perguntaram para ela assim: “o que você acha das ações afirmativas nas universidades?”. E a resposta dela foi: “vão roubar…”.
Eu nunca esqueci isso, “vão roubar o lugar do meu filho na universidade”. Aí eu pensei: “espera aí, ou o seu filho já está na universidade ou ele está tentando entrar na universidade. Se ele já está, ninguém vai roubar esse lugar; se ele não está, por que você pressupõe que é dele?”. E aí começamos a perceber que muitas vezes falar sobre diversidade incomoda, mesmo porque se pressupõe que os lugares onde nós estamos são nossos e que nós merecemos estar ali. Assimilamos e tomamos aquilo como uma propriedade (“esse lugar é meu”), e, na verdade, precisamos entender quais são os critérios de exclusão e de inclusão que fizeram com que as pessoas pudessem estar nos diferentes lugares e como podemos mudar esses critérios.
Gostaria que questionássemos um pouco quem é universal e quem é o específico - ou seja, no ambiente em que nós estamos, qual é a norma e quem não está ali como norma? Então, muitas vezes nesse debate, muitos de vocês chegaram aqui pensando: “tudo bem, nós vamos falar sobre pessoas negras, pessoas indígenas, e também vamos falar sobre nós”, e por quê? Porque assumimos que somos a norma e os outros são específicos, são exceção. Precisamos desconstruir isso. Precisamos pensar a respeito de por que estamos nos espaços em que nos puseram como norma e como conseguiremos desconstruir isso.
A segunda questão é, quando trabalhamos com a diferença, quando falamos de racismo, estamos falando sobre construções de diferença, mas não é qualquer diferença, não é alguém mais alto, mais baixo ou alguma outra diferença que seja socialmente irrelevante. Na verdade, estamos falando de diferenças que são historicamente importantes, porque elas foram postas para discriminar, para inferiorizar, para diminuir. Então, precisamos pensar em como essas diferenças, muitas vezes, pressupõem poder.
Falar sobre a questão racial num espaço em que há pouca diversidade é mexer com essas estruturas, porque começamos a falar de diferenças que importam, começamos a falar sobre diferenças que historicamente importam e que nesse espaço muitas vezes estão ausentes; e importam porque a ausência dessas diferenças é resultado de regras e práticas institucionais que precisamos rever. E aí para revermos isso, eu concordo totalmente com a Dora quando ela já conta que coisas estão sendo feitas, porque é preciso continuar fazendo e acelerar esses processos justamente para questionarmos não só as ausências porque não há pessoas aqui, mas também pensar: quais são os critérios de exclusão? E reverter, como revertemos esses critérios de exclusão? É a renda? Ou só a renda? Ou é a literatura que lemos? Ou a forma com que pensamos o mundo? Ou são os espaços onde nós estamos? Ou é a sociabilidade dos lugares em que nós estamos?
Fizemos uma pesquisa com importantes escritórios de advocacia em que perguntamos aos funcionários como eles chegaram até ali; os funcionários brancos, uma parte considerável deles, quase 40%, disseram que já conheciam parentes ou amigos que ou trabalhavam ou trabalharam naquele local, enquanto os funcionários negros disseram, na mesma proporção, que souberam da vaga por meio da Internet. Então, precisamos questionar também as bolhas em que estamos em termos de sociabilidade, num país profundamente segregado, como o Brasil. Então, para começarmos a descortinar essas estruturas, precisamos entender pelo menos duas coisas: uma delas é que o racismo não é só aquele explícito, interpessoal, que vemos naquela agressão, naquele insulto; ele também está escondido nas regras e práticas institucionais; e também que ele está escondido nessas colunas que estruturam nossa sociedade. Tem uma metáfora da Sueli Carneiro em que ela diz que o racismo é como um animal noturno, que só percebemos que passou pela casa no dia seguinte, quando podemos ver os vestígios dele; um urso, que só percebemos no dia seguinte, depois de ver que o lixo está todo revirado. Então, precisamos descortinar esses vestígios para verificar onde está o nosso racismo.
Eu falei desse aspecto do racismo e outro desejo que eu gostaria de deixar aqui para termos em mente, além dessa percepção sobre o racismo se esconder na estrutura e nas instituições, é que acho que a segunda lição que eu queria que a gente compartilhasse e discutisse criticamente é justamente esse aspecto dos critérios de exclusão, ou seja, uma vez que os vestígios do racismo foram expostos, desse animal noturno, como vamos conseguir revertê-lo e, aí, quais são os critérios que precisamos desnormalizar. As ausências não são fatos da natureza, são resultados de processos históricos, institucionais, estruturais, e precisamos repensar esses processos e os critérios de exclusão e inclusão, e como podemos trabalhar com eles. É possível?
A boa notícia é que é possível, sim. É possível porque, se foi possível a gente excluir, e a exclusão é um fato humano, é possível a gente incluir também como um fato humano, porque não é um fato da natureza, então conseguimos reverter isso.
Comecei com a Grada Kilomba e gostaria de terminar com ela, porque além de Desobediências poéticas, ela também escreveu o livro Memórias da plantação (2008), em que aborda alguns mitos importantes, como o de Narciso, e os recontextualiza de forma muito interessante, para falar da questão racial com base em uma perspectiva da psicologia e da psicanálise, que é superinteressante. Ela começa a discussão sobre Narciso falando o seguinte - e eu termino com isso: “fui convidada para vir aqui, mas sinto que não há nada de novo que eu possa dizer. Muitas vezes sinto que tudo já foi dito, sinto que já sabemos tudo, mas tendemos a esquecer o que sabemos”.
Para dizer o seguinte: tudo o que falei nós já sabemos e, provavelmente, tudo o que a Lia aqui vai falar (outras questões importantes), mas, se pensarmos criticamente sobre as nossas posições, nós já sabíamos. Nós já sabemos dos critérios de exclusão, das ausências, já sabemos sobre o racismo institucional, estrutural, individual. A questão é que vivemos numa sociedade e num cubo branco que faz com que tenhamos a tendência de constantemente esquecer, esquecer para normalizar as ausências em que vivemos. E o evento de hoje, a discussão de hoje, é justamente sobre revertermos esses esquecimentos, muitas vezes conscientes.