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Revista Psicopedagogia

versión impresa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.39 no.120 São Paulo sept./dic. 2022

https://doi.org/10.51207/2179-4057.20220036 

ARTIGO ORIGINAL

 

Isolamento social, pandemia e a atividade docente: Significações sobre o ensino remoto

 

Social isolation, pandemic and teaching activity: Meanings about remote teaching

 

 

Samantha Amanda BrancoI; Vera Lucia Trevisan de SouzaII; Guilherme Siqueira ArinelliIII

IGraduanda em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil
IIGraduação em Psicologia, Mestrado e Doutorado (2004) em Educação (Psicologia da Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia e do curso de graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil
IIIDoutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Bolsista CNPq), com estágio doutoral (Bolsista CAPES) no Departamento de Psicologia, Graduate Center, da City University of New York (CUNY, EUA). Graduação, Mestrado e Doutorado em Psicologia (2017), pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; Membro do grupo de pesquisa Processos de Constituição do Sujeito em Práticas Educativas (PROSPED), da PUC-Campinas, Campinas, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o isolamento social adotado como medida sanitária durante a pandemia de COVID-19, foi instituído o ensino remoto como medida alternativa à educação em todo o território nacional. Frente a tal dinâmica, novos desafios e (im)possibilidades foram postas, trazendo a necessidade de se repensar as relações escolares, o papel do professor e suas condições de trabalho. Utilizando a Psicologia Histórico-Cultural, buscou-se compreender as significações dos professores da rede pública frente às experiências pedagógicas durante o ensino remoto através de entrevistas semiestruturadas. Os resultados indicam que as experiências docentes estiveram associadas a sentimentos de angústia e impotência frente ao ensino remoto e a incertezas do futuro. Concluímos que o período de pandemia gerou impacto nos processos de ensino-aprendizagem, em sua dinâmica pedagógica e relacional, intensificando sentimentos de ansiedade e medo dos professores em relação às suas condições de trabalho.

Unitermos: Pandemia. Psicologia Histórico-Cultural. Docentes. Significado. Vivência.


ABSTRACT

With social isolation adopted as a health measure during the COVID-19 pandemic, remote teaching was instituted as an alternative measure to education throughout the national territory. Faced with such dynamics, new challenges and (im)possibilities were posed, bringing the need to rethink school relationships, the role of the teacher and their working conditions. Using Historical-Cultural Psychology, we sought to understand the meanings of public school teachers regarding pedagogical experiences during remote teaching through semi-structured interviews. The results indicate that the teaching experiences were associated with feelings of anguish and impotence in the face of remote teaching and the uncertainties of the future. We conclude that the pandemic period had an impact on the teaching-learning process in its pedagogical and relational dynamics, intensifying feelings of anxiety and fear in the perception of teachers regarding working conditions.

Keywords: Pandemic. Historical-Cultural Psychology. Teachers. Meaning. Experience.


 

 

Introdução

A escola e a docência na pandemia

A escola e o contexto escolar abrangem complexas relações, que são, historicamente, marcadas por encontros, desencontros e conflitos que atingem todos os grupos e atores que vivenciam seu espaço. A partir da teoria histórico-cultural, compreendemos a escola como espaço social detentor dos conhecimentos científicos sistematizados e validados social e culturalmente. Considerado espaço promotor do desenvolvimento humano, tem como função principal proporcionar a apropriação dos conceitos científicos pelos alunos, visto estes serem de fundamental importância para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores e da apreensão da cultura, o que contribui para a compreensão e transformação da realidade em sua forma objetiva (Facci et al., 2021).

Nessa perspectiva, a figura do docente ocupa papel fundamental na concretização de seus objetivos. Mediador primeiro do saber, tem como função primordial a socialização direta dos conhecimentos produzidos pela sociedade e estabelecidos no projeto pedagógico e currículo da escola. Sendo assim, esse profissional é ator fundamental, tanto no processo de ensino-aprendizagem quanto no curso de desenvolvimento do aluno. Tais características tornam o trabalho do docente e sua figura imprescindíveis no processo de socialização dos saberes constituídos historicamente (Souza et al., 2019; Ramos & Souza, 2021; Facci et al., 2021; Aguiar et al., 2021).

Frente à pandemia de COVID-19, instalou-se como medida de segurança, tendo como objetivo a diminuição da taxa de contágio do vírus, o isolamento social. Foram necessárias modificações nas formas de se relacionar, se comunicar, trabalhar e estudar, visto o fechamento temporário e provisório de espaços de socialização, como parques, empresas, faculdades e escolas. Assim, o ensino remoto foi posto como alternativa frente ao isolamento social imposto. Sob tal circunstância, foi necessária a ampliação do uso de ferramentas tecnológicas para a realização de atividades remotas, como plataformas digitais, videoconferências, aplicativos de comunicação, celulares, computadores etc. (Conselho Regional de Psicologia de Alagoas [CRP-15], 2020; Facci et al., 2021).

Frente às demandas exigidas perante o isolamento social e o formato remoto de ensino, a escola e seus atores enfrentaram novas dificuldades, principalmente relacionadas à efetivação do processo ensino-aprendizagem, e, consequentemente, no enfrentamento da desigualdade social, o que gerou tensões que contribuíram para o adoecimento mental de alunos, gestores e docentes (CRP-15, 2020; Facci et al., 2021). Diante da pandemia, as desigualdades sociais tornam-se evidentes, e se apresentam de formas impiedosas, principalmente em relação à realidade da escola pública, sob a forma de desemprego nas famílias dos estudantes, falta de acesso aos recursos para o acesso ao ensino remoto, insegurança alimentar e falta de apoio familiar (Silva Jr. et al., 2021).

Neste sentido, em concordância com Moreira e Rodrigues (2018 apud Pereira et al., 2020), consideramos que os novos formatos de demandas do mundo do trabalho acabam por demarcar e impulsionar doenças e transtornos dos profissionais. Logo, a relação entre o meio do trabalho e os impactos na saúde mental dos atores relaciona-se com o contexto cultural e social em que o indivíduo encontra-se inserido, sendo este atrelado às precariedades das condições de trabalho, o que gera preocupações acerca da saúde desses profissionais (Pereira et al., 2020).

Nesta situação, o docente, especificamente, enfrenta dificuldades voltadas às condições de trabalho que lhe são tanto tiradas quanto impostas, sendo estas geradoras de tensões e angústias relacionadas tanto à vida pessoal quanto profissional, podendo resultar em adoecimento físico, emocional e mental (CRP-15, 2020; Facci et al., 2021). Estudos apontam as precárias condições de trabalho do profissional da educação em seu formato remoto, sendo relacionadas a dificuldades voltadas à falta de um ambiente adequado para o exercício profissional, convenientemente denominado home office, à falta de equipamentos necessários, como computadores, celulares e rede de Internet de boa qualidade, e dificuldades relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem por meio de plataformas e equipamentos digitais, sem a relação e interação face a face (Pereira et al., 2020).

Tais dificuldades acarretam sofrimento, adoecimento e afastamento dos profissionais dos objetivos de sua atividade profissional (Aguiar et al., 2021). Suas rotinas tornaram-se confusas, visto estarem disponíveis aos alunos a todo momento, por meio das plataformas de comunicação utilizadas para as aulas e atividades ofertadas. Além disso, essa sobrecarga se ampliou, ao demandar maior tempo e trabalho para a confecção de atividades, videoaulas, plantões de dúvidas e correção dos trabalhos dos estudantes (Pereira et al., 2020; Facci et al., 2021).

Esse quadro de tensão e angústia é afirmado pela pesquisa realizada pelo Instituto Península (2020), intitulada "Sentimentos e percepções dos professores brasileiros nos diferentes estágios do Coronavírus no Brasil", que apresenta algumas percepções de docentes a respeito das dificuldades enfrentadas. Na primeira etapa da pesquisa, mais de 70% dos docentes participantes indicaram que tiveram que mudar de forma extrema sua rotina, além de grande parte dos profissionais relatarem estar preocupados com a própria saúde, sendo notados efeitos em sua saúde mental ainda nos primeiros meses de isolamento social.

As dificuldades enfrentadas geraram aumento nos níveis de estresse, ansiedade e cansaço mental e físico, além de acarretarem incertezas a respeito dos objetivos da educação e dúvidas sobre a própria capacidade funcional, impossibilitando se percebessem como agentes ativos na construção e transformação da história e da cultura (Souza et al., 2019; Ball, 2014 apud Pereira et al., 2020; Instituto Península, 2020). Esse contexto de dificuldades no campo educacional é ampliado por aspectos que permeiam a prática docente no país há anos, como a desigualdade de renda, condições precárias de trabalho, falta de recursos teórico-metodológicos e a falta de apoio de políticas públicas voltadas à educação (Ramos & Souza, 2021; Oxfam, 2021).

Assim, visto a relevância do espaço escolar e da figura do professor na mediação dos conteúdos científicos e culturais, sendo este um agente promotor da aprendizagem e do desenvolvimento, ressalta-se a importância de se focar suas demandas e necessidades no período da pandemia e ensino remoto, sendo o profissional da Psicologia Escolar importante à compreensão das questões que têm caracterizado as vivências afetivas dos professores, com vista à proposição de ações de enfrentamento do sofrimento e dificuldades desses atores.

Teoria histórico-cultural, docência e pandemia

Adotamos como pressuposto teórico-metodológico a teoria histórico-cultural, principalmente os conceitos propostos por Vigotski e seus seguidores. A partir do autor, compreendemos que, o ser humano passa, desde seu nascimento, pelo processo de hominização, que significa dizer que, ao nascer, o ser humano não possui todos os recursos necessários ao seu desenvolvimento, ainda que apresente potencial para tanto, sendo este potencial desenvolvido e trabalhado por meio das aprendizagens, que, por sua vez, são fruto das relações e experiências sociais (Oliveira & Girotto, 2020). Sem a aprendizagem, não teria como o indivíduo desenvolver as funções psíquicas superiores como modo mais elevado de funcionamento do psiquismo, que lhe permite ampliar a compreensão sobre si e o mundo (Vigotski, 1935/2010).

Assim, partimos da noção de historicidade para a compreensão do indivíduo, visto que este se constitui por meio de um movimento dialético de interação sujeito-meio, caracterizando-se como um sujeito situado histórico, social e culturalmente (Vigotski, 1935/2010). Isto significa dizer que o homem produz e é produzido, de maneira contínua, a partir das relações com o meio em que está inserido e das trocas sociais que realiza com os indivíduos ao seu redor. O meio social apresenta-se como portador da cultura e história da sociedade, sendo esta, portanto, parte constituinte de sua consciência e desenvolvimento, de modo a proporcionar experiências promotoras de aprendizagens (Facci et al., 2021; Souza et al., 2016; Moura, 2014).

Ao entrar em contato com as relações e experiências proporcionadas pelo meio, o indivíduo apropria-se dessa realidade, de modo a tornar as vivências interpsíquicas em intrapsíquicas, ao passo que atribui sentidos e significados próprios às experiências vivenciadas, sendo este um ato fundamental para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, características fundamentais do processo de humanização (Oliveira & Girotto, 2020; Vigotski, 1935/2010).

Estas situações sociais que permitem a promoção de aprendizagens e, consequentemente, de desenvolvimento, são denominadas por Vigotski (1935/2010) de Situação Social de Desenvolvimento (SSD). O meio, portanto, pode vir a se caracterizar como SSD, constituindo-se como unidade articuladora do externo e interno do sujeito, presente no movimento permanente de sua constituição (Souza et al., 2016).

Nesta perspectiva, ao apreender as experiências e atribuir-lhes sentidos e significados, o sujeito se desenvolve. Esta apreensão da experiência se dá de forma única e subjetiva, por meio das mediações sociais. O caráter subjetivo dessas situações deve-se ao fato destas estarem atreladas à história de vida e ao histórico de mediações apresentadas ao indivíduo em cada experiência, o que, por sua vez, irá caracterizá-la ou não como uma vivência promotora de desenvolvimento (Facci et al., 2021; Souza & Andrada, 2013; Vigotski, 1935/2010). Sendo assim, as SSD se apresentam como promotoras de vivências, que, por sua vez, podem vir a se constituir como tal para uns e não para outros, visto sua relação com as experiências, interações e sentidos atribuídos pelo indivíduo (Souza et al., 2016).

Na vivência são representadas especificidades da personalidade do sujeito e do meio ao qual se encontra inserido e se relaciona, visto esta ser uma unidade da consciência e da personalidade, o que torna possível a compreensão do meio como constituinte do sujeito e do sujeito como constituinte do meio (Vigotski, 1935/2010). Sendo assim, tendo em vista a relação entre vivência, personalidade e consciência, essa primeira, por mais subjetiva e singular, apresenta em si um componente partilhado socialmente. Isto pois, sendo a consciência desenvolvida socialmente e, posto que nossa personalidade não tem como se desenvolver se não em processos sociais, a vivência perpassa os processos sociais de significação, guardando em si, ao mesmo tempo, componente partilhado socialmente e componente subjetivo, singular, próprio da vivência e da história de relações do indivíduo (Delari Jr., 2009).

A vivência, portanto, se caracteriza como uma unidade cognitivoafetiva de interpretação e sentimento do real no qual a consciência se realiza. Neste sentido, as emoções ganham destaque como fortes motivadores do processo de significação dos modos de ser, pensar e agir dos sujeitos (Delari Jr., 2009). Estas são constituídas por meio das experiências promotoras de aprendizagem e desenvolvimento, possuindo, portanto, papel fundamental no desenvolvimento do psiquismo humano, importante no processo de ensino-aprendizagem (Vigotski, 1935/2010; Souza et al., 2019; Aguiar et al., 2021).

Ante o exposto, concordamos com Souza et al. (2019) a respeito do papel das emoções na constituição da práxis docente, visto ser uma das finalidades do profissional da educação a mobilização das emoções por meio dos encontros que se engendram no meio escolar. Assim, ao nos propormos a compreender a vivência e seus significados para os docentes no período de ensino remoto durante o isolamento social na pandemia do Coronavírus, nos propomos, em consequência, a refletir sobre as emoções de cada sujeito.

O que se quer demonstrar, como contribuição da análise com enfoque na psicologia, é que a crise social gerada pela pandemia do Coronavírus, ainda que se apresente como uma experiência da realidade objetiva que afeta a população de uma forma geral, não é vivida da mesma forma por todos. Neste sentido, as experiências e atividades também não são vividas de forma igualitária, podendo se manifestar diferentes sentidos e significados às experiências deste período (CRP-15, 2020; Aguiar et al., 2021; Vigotski, 1935/2010).

 

Método

Assume-se como princípios metodológicos, em concordância com Vigotski (1978/2011), a análise do processo na explicação do fenômeno investigado. Deste modo, buscou-se compreender as significações atribuídas às experiências pedagógicas durante o ensino remoto por professores de uma escola da rede pública durante o período de pandemia do Coronavírus.

Participaram da pesquisa três docentes de uma escola pública estadual localizada no interior do estado de São Paulo. A escolha dos participantes foi realizada por conveniência, utilizando como critério de inclusão: ser docente na escola e ter realizado atividade docente no período da pandemia durante o isolamento social. As participantes foram três mulheres, docentes da escola atualmente, moradoras de bairros próximos, que lecionam Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Tecnologia, Matemática e Ciências.

Inicialmente, buscou-se uma aproximação com a escola e os docentes, por meio da participação em atividades realizadas pelo grupo de pesquisa com alunos e em acolhimentos de demandas apresentadas por parte dos docentes. A cada visita e participação, foram realizados diários de campo, construídos a partir das vivências e experiências da pesquisadora na escola.

Os dados apresentados e discutidos neste artigo derivam de entrevistas semiestruturadas realizadas com as docentes de forma individual, durante o mês de maio de 2022. Todas as entrevistas foram realizadas nas dependências da escola, com a participação de pesquisador do grupo de pesquisa Processos de Constituição do Sujeito em Práticas Educativas (PROSPED), tendo em média 30 minutos de duração cada, a partir de questões previamente formuladas. Com a anuência das participantes, as entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas. A organização dos dados foi realizada a partir de leituras sistemáticas das transcrições, buscando identificar os temas abordados pelas professoras, de modo a propor eixos de análise que pudessem caracterizar a vivência de professores na pandemia.

 

Resultados e Discussão

Nas entrevistas com as docentes, foram reveladas experiências e sentidos que se encontram na base de suas vivências no período da pandemia e do isolamento social. É possível observar a natureza singular de suas vivências, visto as idiossincrasias da história de vida e do histórico de mediações de cada docente. Tais condicionantes resultam em diferentes modos de pensar e agir frente à própria atuação profissional durante a pandemia do Coronavírus e o isolamento social.

Porém, em concordância com Delari Jr. (2009), cabe aqui apontarmos de caráter geral e partilhado da vivência. Segundo o autor, como unidade dialética singular-particular-universal, por mais específica que seja a vivência, ela contém características que são partilhadas, visto sua relação com a personalidade, que, por sua vez, não tem como se realizar e desenvolver "senão em relação com outras pessoas, senão mediante processos sociais de significação, senão no fluxo de uma gênese histórica" (Delari Jr., 2009, p. 2). Portanto, ainda que subjetivas, algumas características marcantes das experiências vividas apresentam aspectos coletivos e partilhados entre as docentes. Sendo assim, os aspectos mais frequentes das vivências compartilhadas pelos docentes foram agrupados em eixos de análise, que anunciam a temática abordada pelas professoras.

Dificuldades, medos e angústias ao exercer a docência durante a pandemia

Um movimento comum das participantes, observado no decorrer das análises das entrevistas, foi a explicitação das dificuldades relacionadas à nova forma de atuação profissional e dos sentimentos de medo e angústia frente às experiências vivenciadas no período da pandemia e, sobretudo, do isolamento social. Sentimentos estes esperados, visto as mudanças drásticas necessárias para reorganização da rotina, dificuldades de manter relacionamentos mediados por plataformas e recursos de tecnologia, além das limitações físicas impostas frente ao isolamento social, ocasionando o aumento dos índices de evasão escolar, desemprego, ansiedade e estresse na população de forma geral (Bezerra et al., 2020; Costa, 2020; UNICEF, 2021).

Foram observadas nas entrevistas com as docentes falas que demarcavam como principais dificuldades o uso e acesso às Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), preocupações relacionadas aos alunos, de caráter social, como o desemprego e a fome, sentimentos de angústia e falta de identificação com o papel e atividade docente, na organização e adaptação à nova rotina de trabalho, a sobrecarga de trabalho, dúvidas e desânimo frente à própria capacidade profissional e aos objetivos da educação.

As dificuldades com o uso e manejo das plataformas e meios de comunicação digitais atingiu não somente os docentes, mas também os gestores, os alunos e seus familiares. Segundo as entrevistadas, grande parte da angústia que sentiam se relacionava com a falta de acesso e permanência dos alunos nas aulas on-line e também com relação às atividades assíncronas propostas, sendo apontados pelas mesmas três justificativas aparentes: 1) falta de recursos materiais; 2) não familiaridade e falta de habilidade com as ferramentas e recursos utilizados; e 3) desinteresse por parte do aluno e da família.

Nos relatos, ficou evidente a importância da relação professor-aluno para as docentes e a efetivação de seu papel social como tal, assim, ao passo que os alunos não acessavam as aulas ou o professor, e/ou não demonstravam interesse na educação, as professoras entrevistadas sentiam seus papéis sociais e parte de sua identidade profissional se esvaziarem. Frente a tais condições, surgiram, inicialmente, sentimentos de angústia, caracterizados como impossibilidade de compreensão do que estavam vivendo e do que estaria por vir. Essa vivência resultou em desânimo e dúvidas sobre os objetivos e efetividade da educação que a escola oferecia, e o papel social do professor no processo educacional. As falas abaixo revelam algumas dessas questões:

A gente fala o tempo inteiro "Os jovens sabem tecnologia!". Não! Os jovens sabem jogar! ... Teve aluno que a gente precisava ensinar a como que eles iam fazer o e-mail deles ... Tivemos que ensinar coisas que a princípio você acha que eles já sabem, que é o básico! (P1).

O celular para eles é o WhatsApp, o resto eles não sabiam nada. E, por exemplo, era um celular pra cinco/seis em uma família só! ... Não tinham nem suporte. Não tinham nem chip! O governo até deu alguns, mas não tinham Internet. ... o problema social aqui é bem [grande]. O econômico, principalmente, então é complicadíssimo se pedir e exigir aulas pelo celular. Tem gente que não tinha nem o almoço (P3).

Nas falas são apresentados aspectos que atravessam a vida em sociedade tanto dos alunos quanto das docentes, relacionados ao meio social e cultural ao que se encontram inseridos, demarcados pela vulnerabilidade social e o acesso limitado a recursos tecnológicos. A consciência das docentes da perspectiva social a qual se encontram inseridas influencia na forma em como exercem sua atividade profissional, assim como em seu modo de ser, agir e pensar e na maneira de compreender suas vivências nesse período, visto a relação desta última com a personalidade e o meio (Delari Jr., 2009). Assim, a pandemia demanda mudanças em sua forma de exercer o papel social docente, o que por sua vez ocasiona uma crise de identificação das profissionais frente às dificuldades que perpassam suas ações.

Ainda com relação às dificuldades com o uso e manejo das plataformas de comunicação digitais, as docentes, em seus relatos, apresentaram sentimentos singulares e partilhados, perpassando a angústia e o senso de empatia e solidariedade para com outros docentes. As entrevistadas em questão não parecem ter tido vivências negativas com relação à adaptação ao uso das TICs, explicitando que, ainda que inicialmente não tivessem familiaridade com as tecnologias e sentissem algumas dificuldades em seu manejo, consideram que se adaptaram bem às novas ferramentas utilizadas. Entretanto, essa vivência não repercute o conjunto de docentes da escola: "era angustiante ter que ver colegas meus chorando porque não entendiam a tecnologia e tendo que usar a tecnologia pra dar aula" (P1).

Assim, por mais que a dificuldade expressa não estivesse relacionada à atuação direta das docentes entrevistadas, elas se sentiam impactadas frente ao que expressavam os colegas em relação ao ensino remoto. Da perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, é possível considerar que o fato de o ser humano ser um ser social, que incorpora a cultura e a história do contexto em que vive, ao relacionar-se com a angústia e dificuldade expressa por outros colegas, as entrevistadas partilham dessa vivência.

Com relação às mudanças demandadas pelo isolamento social e a forma de se exercer a atividade docente, outra dificuldade expressa pelas participantes relaciona-se às mudanças significativas em sua rotina e organização profissional e pessoal. Além da adaptação às TICs e ao formato de aulas remotas, as docentes tiveram de repensar suas formas de ensinar, tendo de se adaptar aos meios acessíveis e utilizados tanto pelos alunos quanto pela escola.

Nesse processo, nos foi apresentado em seus discursos diferentes estratégias de adaptação, sendo uma dificuldade presente na maioria das técnicas utilizadas a dificuldade em lidar com a sobrecarga de trabalho e a imposição de limite de hora para realização do mesmo, como ilustrado nas falas a seguir: "... o meu maior desafio foi não bater o horário do meu trabalho com o que o aluno queria ser atendido, que era a madrugada, né?" (P2); "eu não tinha horário estipulado ... Eu ficava, sei lá, 24 horas trabalhando!" (P3); "eu acho que foi essa a pior fase desse tempo, de eu ficar 100% disponível" (P3); "era bem trabalhoso, embora as pessoas falem assim 'Nossa, você não trabalhou, ficou só em casa!' Não! Eu fiquei muito mais! Eu trabalhei muito mais em casa do que se fosse presencial!" (P3).

Com base nas falas anteriores, pontuamos e reiteramos a importância dos espaços físicos e da infraestrutura da escola, que, por sua vez, delimitavam o espaço temporal de atuação das docentes. Na medida em que o ambiente de trabalho foi substituído pelo ambiente de convívio familiar, a rotina dos professores tornou-se mais confusa e exaustiva. As relações com a atividade profissional, com o ambiente escolar e com os atores de ambos os cenários, familiar e profissional, tornam-se um só, visto se darem no mesmo ambiente e a todo momento, convencionalmente denominado de home office. Tais afirmações corroboram estudos realizados durante a pandemia, que informam o aumento do número de casos de burnout, devido ao estresse e sobrecarga de trabalho e ao medo e insegurança ocasionados pela COVID-19 (Araújo et al., 2021).

Além de dificuldades relacionadas à saúde física e emocional das docentes que a sobrecarga e falta de limite de horário para atuação parecem propor, as mesmas ainda discorreram sobre as formas de atuar e de se perceber como ser social ativo. Frente ao cansaço e às dificuldades enfrentadas para a efetivação de sua atividade profissional, as docentes teceram dúvidas a respeito de sua própria capacidade profissional e sobre os objetivos da educação. Ao não se observarem exercendo sua atividade da maneira com a qual se reconheciam, as participantes passaram a duvidar de sua real capacidade para ensinar, o que resultou em sentimentos de desânimo e angústia, fortalecidos frente à somatória de dificuldades anteriormente citadas.

A situação vivida pelas docentes permite afirmar que o medo e a angústia, apresentados sob forma de desafios e dificuldades vivenciados neste período de isolamento social e exercício da docência de forma remota, permearam a maior parte das experiências descritas pelas docentes. O conteúdo das falas trazido pelas docentes nas entrevistas abordaram tanto elementos de suas experiências singulares durante a pandemia quanto aspectos mais abrangentes, relacionados à sua atuação profissional e participação social, ou seja, dinâmicas das esferas particulares e universais da existência. No item a seguir, abordaremos as estratégias utilizadas como forma de superação das dificuldades encontradas pelas docentes, em relação ao exercício de sua atividade profissional no período de fechamento das escolas.

Estratégias de superação das dificuldades e aprendizagens durante a pandemia

Frente ao conjunto de dificuldades e mudanças enfrentadas no período da pandemia para efetivação da atividade docente, foram necessárias estratégias de superação e desenvolvimento. Em seus discursos, as docentes explicitam alguns dos métodos utilizados para o enfrentamento das dificuldades e limitações do isolamento social. Do mesmo modo que a vivência apresenta componente singular e subjetivo, relacionado ao histórico de mediações do indivíduo, sua forma de agir e, neste caso, enfrentar as dificuldades impostas, também apresenta componente partilhado, característico da formação da consciência (Delari Jr., 2009).

Por maiores e desafiadoras que tenham sido as suas experiências durante o período de pandemia de COVID-19 e isolamento social, as docentes parecem identificar aspectos positivos, considerados como aprendizagens, nas experiências vivenciadas neste período. De acordo com o apontado por Delari Jr. (2009), ao discutir sobre ações próprias do ser humano valorizadas pela teoria histórico-cultural, o ser humano é apto a ir além de seus limites, só se realizando quando os supera, assim as afirmações expressas pelas participantes em questão, ao apontarem meios de superação da crise vivida e das dificuldades experienciadas, coincidem com o movimento de superação e realização. Representando o caráter positivo e da aprendizagem proporcionada pelo período de pandemia, segue-se a frase a seguir, na qual a participante considera que as dificuldades acabaram por obrigar mudanças para o desenvolvimento da escola e da educação nacional.

Eu acho que ampliou os contatos! Se a gente for pensar como era a escola antes e como é a escola de hoje, a gente ampliou os contatos com os alunos. A gente entendeu que existem outros mecanismos de comunicação, o que é bem legal se a gente continuar usando ... E valeu porque o governo acordou! A escola tem que ser tecnológica! (P1).

O comentário da docente em questão relaciona-se ainda à falta de domínio das TICs pelos profissionais e alunos, o que fora apontado como uma das grandes dificuldades enfrentadas neste período. A escola da rede pública, especificamente, apresenta-se, em comparação com a rede de ensino privada, ultrapassada no que tange ao acesso e ensino por meio do uso da tecnologia, visto o uso de métodos de ensino digitais serem utilizados na rede privada anteriormente ao período de pandemia (CRP-15, 2020; Aguiar et al., 2021). Tal fato ainda se relaciona às características sociais previamente apresentadas da região na qual a escola em questão localiza-se e as dificuldades de políticas públicas enfrentadas em todos os níveis de ensino no Brasil.

No que tange às dificuldades de acesso, uso e manejo da tecnologia por parte dos docentes, foi observado nas entrevistas um movimento de cooperação entre os profissionais da educação que buscaram fornecer apoio e ajuda aos colegas de profissão. Outra dimensão que aparece nas falas das participantes é a solidariedade com os colegas, como apresentada abaixo.

Quando começou o Centro de Mídias, eu às vezes assistia aulas com turma que não era a minha, porque eu sabia que o meu colega não ia conseguir acessar, porque ele não entendia de tecnologia. Então eu assistia com os alunos dele, e ia pelo chat tirando dúvidas (P1).

A prática de se apresentar disponível e oferecer ajuda esteve presente nas estratégias de superação utilizadas, demarcadas pela cooperação, ato fundamental para o desenvolvimento e realização do ser humano (Delari Jr., 2009). Tal prática se fez efetiva também no que tange ao acesso ao aluno e aos familiares, que, quando motivados e empenhados com o trabalho educativo, demandavam e se utilizavam do acesso às docentes, visto a afetividade posta na forma de trabalho. O caráter emocional e afetivo parece ter permeado as atividades docentes.

Com relação à ampliação dos contatos apontada nas falas, tem-se que, por mais que o acesso aos alunos fora considerado cansativo e dificultoso, foi de caráter positivo, sendo considerada a comunicação com os mesmos facilitada, quando em sua ocorrência, visto a formação de relação mais afetuosa e intimista entre professor e aluno. Ao passo que no ambiente escolar observava-se uma relação hierarquizada, agora a mesma passa a ser menos formal, visto o contato por meios de comunicação, fotos e vídeos, além do contato possível com o meio familiar de alguns alunos. Além disto, a ampliação da comunicação apontada também perpassa pela cooperação entre as pessoas, sendo este método apontado nas falas a seguir: "... eu tive pessoas muito pontuais. ... Teve atividade que eu mandei pelo correio pro pessoal aqui da comunidade, e aí, sei lá como eles foram fazendo as passadas do texto pra chegar no menino" (P1); "escolhi alguns alunos, porque eu confiei neles, e eu sabia que eles seriam bons pra avaliar que colegas precisavam [de ajuda]" (P1).

Nas falas é possível observar a importância e relevância do aspecto social e da cooperação entre indivíduos para a superação das dificuldades. Ainda que em isolamento social, com os contatos físicos limitados, quando não completamente excluídos, as relações sociais estabelecidas e o senso de comunidade se apresentam como características importantes para a formação dos sentidos atribuídos às experiências vividas e aos modos de pensar e exercer a atividade docente.

Levando em consideração a importância do histórico de mediações do indivíduo na forma como atribui sentido e age frente a novas situações, parece-nos relevante destacar algumas falas que demarcam esse movimento, no qual é possível observar um processo de reestruturação na forma e sentido atribuídos ao exercício da docência: "a vida tá tão difícil que às vezes é melhor você buscar ... aprender com a situação. ... Fazia tempo que eu pensava no Paulo Freire, por exemplo" (P1);

... quando eu li o Comunicação e Extensão que eu me toquei! E se eu for pro lado da comunicação? Inclusive, fazendo vídeos, que a gente trabalhou muito com vídeo e fotografia, que é aí que você acessa [os alunos]! Quando eu fui pra Naruto, eu fui pro vídeo, que fui pro desenho, que eles gostam! (P1).

Essas novas formas de pensar a atividade profissional relacionam-se com a identidade profissional das docentes que, ao enfrentarem um período de crise identitária, buscam alternativas para se reafirmarem e se adaptarem às novas necessidades sociais demandadas do papel social que desempenham. Além disso, relacionam-se à cultura na qual encontram-se inseridas, visto que, ao partilhar seu método de ensino utilizando-se do mangá/desenho citado, a docente parte em direção aos interesses e motivos que mobilizam seus alunos, ou seja, ela parte do abstrato para o real, realizando a mediação necessária para o desenvolvimento e aprendizagem dos conteúdos escolares por parte dos alunos.

Outra estratégia utilizada para lidar com a dificuldade de acesso e desinteresse do aluno também esteve direcionada aos interesses e motivos que mobilizam os mesmos. No discurso das docentes fica explícita a não familiaridade dos alunos com as plataformas oficiais utilizadas, o que acarretou angústia e desânimo. Frente a isso, a estratégia de superação eleita por elas foi a escolha de uma nova plataforma de comunicação. As docentes em questão afirmaram terem se utilizado da plataforma WhatsApp para comunicação direta com os alunos inicialmente, sendo esta, posteriormente, menos utilizada devido à incompatibilidade de horários de oferta e demanda, e à diminuição do uso da plataforma considerada como uma estratégia de limitação da carga horária de trabalho. Em sua maioria, as docentes optaram por seguir os meios de comunicação utilizados pela escola, como apontado nas falas a seguir: "eu acompanhei o que a escola fazia. Publicava as atividades [no Facebook]" (P2); "O meio de comunicação com a maioria deles [alunos e familiares] é o Facebook. A diretora fez lives com os pais. Então ela colocava sempre publicações" (P2).

Assim, fica explícito que o caráter da aprendizagem evidenciado nos discursos das docentes torna-se efetivo devido às estratégias utilizadas para a superação das dificuldades que lhes foram apresentadas durante o exercício da atividade docente no período de pandemia e isolamento social. O caráter social, a cooperação, a realização e o desenvolvimento pessoal e profissional das mesmas tornou-se peça central neste movimento.

O retorno presencial: impactos da pandemia na forma de exercer a docência e nas relações em sala de aula

Tendo em vista o movimento do retorno às aulas presenciais iniciado no segundo semestre de 2021 e diante das entrevistas realizadas, as docentes apresentaram informações relativas a esta vivência, tomando este período como parte constituinte e importante de suas experiências relacionadas ao ensino remoto e ao isolamento social. Em seus relatos aparecem tanto aspectos que permeiam o processo educacional quanto o social e político de uma forma geral, o que por sua vez corrobora a noção de um ser formado e imerso em uma realidade social, cultural e histórica.

Quando perguntadas sobre o retorno presencial, o que nos parece sobressair nos discursos das entrevistadas permeia entre a sensação de alívio de poder resgatar as relações presenciais com os alunos, preocupações com os mesmos e o enfrentamento às novas dificuldades postas após o período de pandemia. As falas a seguir explicitam e enfatizam os sentimentos negativos relacionados ao ensino em seu formato remoto, e à motivação tecida sobre o retorno presencial: "ai, eu prefiro! Bem melhor no presencial que você tá vendo o aluno. Você tá vendo o que ele tá aprendendo, e dá pra ensinar melhor" (P2); "foi uma sensação de recomeço!" (P3); "não tava com vontade de vir! E olha que eu gosto de dar aula. ... Só que aí foi engraçado, porque quando eu voltei, eu olhava pra carinha deles... A afetividade é outra!" (P1).

Na fala das docentes é possível observar o caráter afetivo das relações estabelecidas para com o espaço da escola e com as pessoas que frequentam e habitam este ambiente. O caráter afetivo-volitivo, tal como apresentado por Vigotski (1935/2010), apresenta suas marcas na experiência das docentes, visto a motivação para uma nova reorganização, necessária para o retorno presencial após dois anos de isolamento social. A desmotivação inicial apontada evidencia este aspecto, apresentando-se envolta pelo comodismo possibilitado pelo home office, e pela adaptação realizada pelas profissionais a esta modalidade de trabalho. Porém, o aspecto afetivo relacionado à escola, ao ato de educar e às relações estabelecidas no ambiente escolar parecem se sobressair, ao passo que as entrevistadas afirmam sentir-se aliviadas e satisfeitas com o retorno, demarcando seus aspectos positivos.

Com relação às observações em sala de aula das consequências da pandemia e do ensino remoto, estas são relativas aos comportamentos dos alunos e a defasagem da aprendizagem de uma forma geral. Tais indícios já haviam sido mencionados quando com relação às dificuldades de ensino no período da pandemia, devido ao desinteresse dos alunos e às dificuldades de acesso às aulas.

Porém, as consequências dos anos anteriores são observadas pelas docentes no retorno às salas de aula, sendo marcadas por grandes diferenças de aprendizagem entre os alunos, principalmente no que tange à alfabetização, como apontado nas falas a seguir: "os alunos que não estavam plenamente alfabetizados foram os que mais sofreram. Agora eu vejo as consequências ..." (P1); "eu já estava acostumada a trabalhar com essas diferenças, mas ficou muito gritante ... Eu tenho alunos que estão alfabetizados com alunos que não estão" (P1).

A defasagem na aprendizagem observada pelas docentes e apontada em seus discursos relaciona-se ao movimento de evasão escolar intensificado, ocorrido no período de pandemia (UNICEF, 2021). Tal movimento foi observado pelas docentes, sendo vivenciado como parte do desinteresse dos alunos e familiares, a dificuldade de acessar os alunos e a não participação de grande parte dos mesmos nas atividades propostas em formato remoto. Ainda com relação aos comportamentos em sala de aula, aparece relacionado pelas docentes ao uso desenfreado do celular, dificuldades sociais e relação com ambientes marcados pela violência.

Após a intensificação do uso de aparelhos digitais, como celulares, computadores e tablets na pandemia, tanto como ferramentas de trabalho e estudo quanto em sua forma recreativa, as docentes afirmam enfrentar hoje, em sala de aula, dificuldades relacionadas ao descontrole dos alunos para com o uso do aparelho, que utilizado na sala de aula interrompe a continuidade das atividades: "... eles estão assim, muito ligados no celular. Virou um vício deles! Tem que olhar, tem que escutar música! Não sei o que é, mas eles não desligam dele!" (P2).

Para as entrevistadas, o descontrole do uso do celular se classifica como a maior das dificuldades enfrentadas desde o retorno das aulas presenciais. Esta ferramenta, ainda, segundo os relatos e experiências das mesmas, parece se relacionar com um desafio evidente na vivência no ambiente escolar, a presença das drogas.

Segundo as entrevistadas, antes da pandemia era observada a presença de drogas no ambiente escolar, porém de uma forma velada, com frequência e exposição quase imperceptíveis. Porém, após a pandemia, as mesmas explicitam observar a presença de drogas na escola como uma prática usual, demarcada pelo uso, repasse e até especulações sobre a venda da substância nas dependências da escola. A esse respeito, as docentes explicitam tecer preocupações, atribuindo sentidos negativos à prática, demonstrando-se impressionadas com a normalidade da presença de drogas na vida dos jovens e até mesmo angustiadas frente à sensação de impossibilidade de mudança da vida social dos mesmos.

Uma característica marcante observada em sala de aula, que parece relacionar-se com as demais dificuldades apresentadas e enfrentadas, refere-se à relação e vivência dos alunos com ambientes marcados pela violência. As docentes afirmam em seus discursos preocupações sobre os ambientes nos quais seus alunos aparentemente frequentam e vivem. Em suas falas, parecem angustiadas com relação à provável violência vivenciada pelos jovens, principalmente de cunho afetivo e social, que acaba por se expressar em sala de aula por meio de comportamentos e falas ofensivas: "o meu ponto de vista é que as pessoas estão cada vez mais agressivas, entendeu. E ficam achando normal, tudo é normal. Você gritar com aluno é normal. Você humilhar os outros é normal. Traficar é normal". (P3).

As emoções exercem papel fundamental no processo ensino-aprendizagem, tanto no que diz respeito ao educador quanto ao educando. Estas guardam relações com a produção da vivência, e, portanto, com a formação do indivíduo, visto que ao passo que vivencio uma emoção, vivencio ainda o sentido próprio dela para mim naquela situação (Delari Jr, 2009), o que se pauta no caráter afetivo-volitivo da experiência. Sendo assim, a partir do discurso das docentes, compreende-se que o ambiente no qual os jovens ficaram isolados durante a pandemia e desenvolveram-se neste período se apresentava com características próprias da violência, o que baliza suas vivências e concepções de mundo, o que é expresso e observado em sala de aula.

É possível observar que as vivências relativas ao retorno das aulas em sua forma presencial apresentam sentidos e afetos marcados por contradições. Ao passo que as docentes sentem-se aliviadas e satisfeitas com o retorno devido à volta das relações face a face, e o estreitamento dos laços possibilitado pelas relações diárias, também se mostram receosas e angustiadas no enfrentamento às novas dificuldades encontradas nesse momento da escola pós-pandemia, porém, demonstram componente volitivo que as impulsiona buscar novas formas de adaptações e soluções.

 

Considerações

Com base no relato das participantes, houve um primeiro momento de angústia, medo e incerteza em relação ao próprio trabalho e ao futuro. A dificuldade de acesso e manuseio das TICs configurou-se como um desafio às docentes, que partilhavam suas preocupações com outros colegas de trabalho. A superação das dificuldades apresentadas durante o período de ensino remoto se deu pela via da coletividade por meio de espaços de compartilhamento e apoio entre os professores e a gestão, foi possível (re)pensar novas práticas pedagógicas nos processos de ensino-aprendizagem.

O retorno às aulas presenciais parece compor uma contradição na percepção das professoras entrevistadas. Por um lado, o retorno presencial gera afetos positivos referente aos alunos e à prática docente, por outro, evidenciam-se novos desafios com a defasagem na aprendizagem e o comportamento dos estudantes.

A partir das entrevistas realizadas e de sua análise é possível perceber a importância de se abrir espaços de diálogo com os professores onde possam compartilhar as vivências durante o período de ensino remoto ocasionado pela COVID-19. Os sentimentos de medo, angústia e insegurança vivenciados pelos docentes abrangeram não apenas a sua dinâmica profissional, mas também pessoal e familiar. Ao terem a possibilidade de compartilhar suas vivências coletivamente, criam-se as condições para promover a ressignificação do modo como sentem e percebem os impactos da pandemia nas suas vidas. Por fim, compreendemos que o(a) psicólogo(a) inserido na escola tem o compromisso de contribuir com a configuração de tais espaços, uma vez que assume a posição de profissional das relações dentro da instituição.

 

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Endereço para correspondência:
Samantha Amanda Branco
Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Av. John Boyd Dunlop - Jardim Ipaussurama - Campinas, SP, Brasil - CEP 13034-685
E-mail: samantha.ab@puccampinas.edu.br

Artigo recebido: 1/9/2022
Aprovado: 4/10/2022

 

 

Trabalho realizado na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil.
Conflito de interesses: Aos autores declaram não haver.

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