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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo ene./abr. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: MUTAÇÕES E PERPLEXIDADE

 

Comentários sobre a questão da Perplexidade no contexto das Mutações

 

Comments on the matter of Perplexity in the context of Mutations

 

Comentarios sobre el tema de la Perplejidad en el contexto de las Mutaciones

 

 

Rogério N. Coelho de Souza

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Em uma conversa entre dois colegas psicanalistas, compartilha-se uma experiência clínica na qual um deles é tomado de perplexidade causando-lhe verdadeira mutação em sua postura analítica. A partir disso, percorre-se a trajetória de uma discussão sobre o contexto das mutações no qual a perplexidade pode ocorrer, destaca-se a possibilidade do conhecimento derivado da surpresa e da dúvida, bem como leva-se em conta que, para a Psicanálise, a noção de Eu, e do seu saber, está em conjunção com a tensão inerente à dualidade pulsional.

Palavras-chave: mutações; perplexidade; dúvida/conhecimento; dualidade pulsional; saber do eu.


ABSTRACT

In a conversation between two fellow psychoanalysts, a clinical experience is shared whereby one of them is taken by perplexity, causing a true mutation in the psychoanalyst's attitude in the clinic. From this, there is a discussion on the context of the mutations in which perplexity may occur. The possibility of knowledge derived from surprise and doubt is highlighted, and it is also taken into account that, in Psychoanalysis, the apprehension of 'I', and of its knowledge, is in conjunction with the tension inherent to the drive duality.

Keywords: mutations, perplexity, doubt/knowledge, drive duality, apprehension of the 'I'.


RESUMEN

En una conversación entre dos colegas psicoanalistas se intercambia una experiencia clínica en la cual uno de ellos se queda perplejo, lo que le causa una verdadera mutación en su postura clínica. A partir de eso se recorre el camino de una discusión sobre el contexto de las mutaciones en el cual puede aparecer la perplejidad, se destaca la posibilidad del conocimiento derivado de la sorpresa y de la duda, así como se tiene en cuenta que para el Psicoanálisis, la noción del Yo y de su saber está en conjunción con la tensión inherente de la dualidad pulsional.

Palabras clave: mutaciones; perplejidad; duda/conocimiento; dualidad pulsional; saber del YO.


 

 

Introdução

Tempos atrás, em uma conversa informal, uma colega psicanalista, muito amiga, compartilhou comigo uma situação clínica que a surpreendera bastante e que, segundo suas próprias palavras, promovera "verdadeira mutação" em sua compreensão acerca de uma paciente que vinha atendendo há vários anos. Pelo que me lembro, tratava-se de uma mulher ao redor dos quarenta e cinco anos, executiva do mercado financeiro, bem-sucedida na profissão, com situação financeira invejável. Optara por dedicar-se ao trabalho não se casando nem tendo filhos. Viera à análise porque não conseguia envolver-se em nenhum relacionamento amoroso que lhe fizesse sentido. Em uma determinada sessão, ao adentrar a sala de atendimento, observa um pequeno vaso de flores, e com grande convicção diz: "Que lindo vaso de flores seu marido te deu. Puxa! Como ele gosta de você!"

Durante a referida sessão, passou a maior parte do tempo lamentando não ter ninguém que a amasse e, principalmente, lamentando não conseguir amar ninguém. Ao mesmo tempo, aparentemente, admirava a analista, que tem um marido que a amava, e que ela, a analista, devia amar também, afirmando que podia entender que isso acontecia porque percebia a atenção e dedicação com que a analista vinha atendendo-a naqueles últimos anos. A colega me conta que não conseguiu dizer nada naquela sessão. Ficara atônita, confusa, com a fala da paciente, só vindo poder pensar a respeito horas depois que a sessão terminara. Naturalmente, eu sabia que a colega não tinha marido, pois havia se separado há dez anos pelo menos. Não tinha certeza se naquele momento tinha namorado que pudesse tê-la presenteado. De qualquer modo, como eu não estava entendendo por que ela tinha se sentido desse jeito, explica-me que um vaso de flores semelhante sempre estivera lá, no mesmo lugar, em todas as sessões desde que a análise começara. Era seu hábito comprar um vaso de flores novo, semanalmente, para decorar sua sala de atendimento. O vaso daquela semana não tinha nada de especial ou de muito diferente dos anteriores. A referida sessão era a terceira da semana, e obviamente o vaso já estava lá desde o início da mesma. Ou seja, toda a fala da paciente era completamente non sense. A convicção com que falara do vaso de flores como uma demonstração de amor do marido da analista não passava de imaginação da paciente.

Contudo, o que a surpreendera fora a convicção que a paciente tinha sobre o que dizia. Aquela paciente racional, tão apegada ao seu raciocínio analítico-dedutivo, tão matemática em seu modo de ser, pronunciava uma afirmação baseada em uma falsa interpretação a respeito de um vaso que, até então, nunca percebera, ainda que sempre estivesse lá. Inveja, digo eu, à colega. Responde-me que sim, claro, mas que muito mais pudera pensar sobre essa sessão. Percebia o ataque à sua receptividade e acolhimento. Compreendia o ódio mal encoberto na superficial admiração. Explica-me que veio a entender o acontecimento como uma manifestação de transformação em alucinose promovida pela paciente. No entanto, muito mais que a compreensão do que ocorrera foi sua perplexidade que lhe chamara a atenção. Havia anos que pensava entender a paciente de determinada maneira, provavelmente alguém com uma organização psíquica histérica, dominada por uma fixação fálica que a tornava competitiva, rivalizando com tudo e todos, incapacitando-a para uma aproximação que levasse a vínculo amoroso. Sabia tratar-se de alguém que usava da capacidade de raciocínio para se defender de toda sensação de fraqueza, vulnerabilidade, de qualquer necessidade de amparo e proteção, mas nunca presenciara, até aquele momento, tamanha falha em seu talento para interpretar logicamente o que tão sagazmente perscrutava em suas observações. Naquela sessão, tudo isso ruíra de uma vez e ela, a analista, nunca suspeitara que a paciente funcionasse em um registro tão fora da realidade. Isso, isto é, a perplexidade da analista, fizera com que a análise a partir de então fosse outra completamente diferente.

Lembro-me de que conversamos bastante sobre a questão das mudanças em uma análise. O tema da mudança psíquica, quer a pretendida mudança no paciente, quer a eventual mudança no analista, era muito bem sabido pela colega. Conhecedora da obra de Bion, seu entendimento sobre transformações em análise não deveria ter-lhe passado despercebido naquele atendimento. Por que tamanha mutação em função de sua perplexidade? Havia me chamado a atenção seu uso da palavra mutação, pouco usual em seu modo de falar. Quis entender melhor o que se passara com ela. Comecei concordando com a ideia de uma transformação em alucinose. Pudemos relembrar uma pontuação de Bion, a esse respeito, ao falar sobre rivalidade:

Em minha experiência, esta dificuldade surge porque a chave foi detectada nos elementos de um segundo, terceiro (ou subsequentes) ciclo de transformações psicanalíticas (isto é, do analista), quando seria necessário procurar tal chave na natureza das transformações efetuadas pelo analisando. O que importa no presente contexto não é tanto rivalidade, mas rivalidade em transformações em alucinose ... O quadro geral que o paciente apresenta é o de uma pessoa ansiosa por demonstrar sua independência de qualquer coisa que não sejam suas próprias criações. Estas criações são resultado de sua suposta capacidade de usar seus sentidos como órgãos de evacuação capazes de rodeá-lo de um universo que ele mesmo gerou: a função dos sentidos e de suas contrapartes mentais é criar seu mundo perfeito. Evidência de imperfeição é evidência ipso facto para intervenção de forças invejosas hostis. Graças à capacidade do paciente de satisfazer todas as suas necessidades a partir de suas próprias criações, ele fica inteiramente independente de qualquer coisa ou pessoa que não seus produtos; consequentemente, fica além da rivalidade, inveja, avidez, mesquinharia, amor ou ódio; mas a evidência de seus sentidos desmente suas predeterminações; ele não fica satisfeito (Bion, 1965/2004, pp. 150-151, itálico nosso).

Não responderia essa pontuação de Bion por todo o caso que ela me contava? Parecia à analista que poderia responder pela paciente, mas não completamente por ela mesma. Passamos, recordo-me bem, a conversar sobre mutação, uma vez que esse termo havia me interessado.

 

O contexto das Mutações

Para mim, a palavra mutação tem significado próximo, mas diferente, de transformação e mudança. Parece-me que, ao menos na língua portuguesa, o termo mutação tem sentido mais forte do que suas assemelhadas. Mutação teria algo de imprevisto, inesperado, surpreendente. Transformações poderiam ser previstas e esperadas, ao menos às vezes, mudanças também, mas uma mutação não. Pode-se considerar a possibilidade de haver uma mutação, mas não sabemos qual, quando, onde e por quê. Ela exige investigação a posteriori. Evidentemente que esse sentido me ocorre por conta da associação com mutação genética. Certamente, influência de minha formação médica. É imediata, a mim, a recordação do livro, da década de 1970, de Jacques Monod: O acaso e a necessidade. Ele nos apresenta de forma espantosamente simplificada o complexo mundo das mutações genéticas a partir do intrincado jogo das inteirações proteicas que teriam a capacidade de alterar o que estava predeterminado para ocorrer em uma meiose ou mitose. A obra não é para especialistas, quase um livro de divulgação de alto nível que nos explica com clareza científica do que se trata quando o assunto é mutações. Descrevendo-as, diz:

Dizemos que essas alterações são acidentais, que ocorrem ao acaso. E, porque elas constituem a única fonte possível de modificações do texto genético, único depositário, por sua vez, das estruturas hereditárias do organismo, segue-se necessariamente que apenas o acaso está na fonte de toda novidade, de toda criação na biosfera. O acaso puro, o só acaso, liberdade absoluta, mas cega, na raiz mesma do prodigioso edifício da evolução: hoje, essa noção central da biologia moderna não é mais uma hipótese entre outras possíveis, mais ou menos concebíveis. É a única hipótese concebível, como também a única compatível com os fatos de observação e de experiência (Monod, 1970/2006, pp. 115-116).

Trabalhando na herança do conhecimento deixado por Darwin, cientistas como Monod aprofundaram nosso entendimento dos fenômenos biológicos e de sua evolução. Muitas coisas foram acrescidas ao conhecimento científico, genético, desde então, de tal forma que hoje algumas daquelas ideias não podem mais serem defendidas em sua totalidade. Certos fenômenos vêm apontando para o fato de que para além de Darwin - ou melhor, talvez, ao seu lado - algumas das, até então, antigas e obsoletas ideias de Lamarck, a rigor modificações das ideias deste, devam ser recuperadas ao menos no sentido de apontar que determinadas alterações genotípicas poderiam se dar a partir de "pressões" ambientais (o que daria nova força para a ideia expressa na palavra filogênese), e não exclusivamente de casuais mutações. Não se trata aqui de aprofundar a discussão. Basta destacar o significado que o termo mutação promove, a fim de que não fique restrito à ideia de mudança ou transformação, mas ganhe status especial no qual o inesperado, imprevisto, tenha lugar. A humanidade muito brigou contra a ideia de que a evolução se deu ao acaso e que somos fruto disso e não de uma ordem divina previamente determinada, não será banal nos convencermos agora de que podemos realmente vir a controlar, pela vontade ou pela necessidade, o movimento da natureza. O termo mutação nos coloca frente à nossa impotência e desamparo, põe diante de nós o que não esperávamos, não conhecíamos, provocando-nos perplexidade.

Recordo-me que minhas breves considerações sobre o contexto das mutações promoveu acalorada discussão com a colega que me contara sobre sua perplexidade naquela sessão. Entramos em uma longa conversa sobre posturas científicas e suas bases filosóficas. Alongamo-nos nas controvérsias a respeito do lugar que a psicanálise ocupa acerca do conhecimento. Tentávamos concordar sobre nossas opiniões das influências iluministas, científico-positivistas, românticas (para não citar as advindas de Nietzsche e Schopenhauer), que teriam sido as bases da formação intelectual de Freud. Não tínhamos qualquer dúvida do caráter revolucionário e radical que as ideias de Freud traziam ao conhecimento humano, do choque que a noção de inconsciente, por exemplo, significava para a visão científica que se podia ter sobre o ser humano. Sabíamos que Freud e vários dos grandes nomes que lhe seguiram na história da psicanálise (Klein, Bion, Winnicott, Lacan e outros) vieram com concepções que questionavam a forma como o conhecimento científico era, e ainda é, usualmente produzido. Mesmo assim, não duvidávamos que sempre alguma coisa sobrava na teoria e na prática psicanalíticas que fosse resto da muito assimilada atitude científica padrão. Pessoalmente, gostava de acreditar que isso seria apenas um problema, ou defeito, meu por não conseguir alcançar com pleno êxito a dimensão do pensamento psicanalítico, mas percebia que se a psicanálise pudesse ser considerada uma espécie de mutação nem por isso deixava de transmitir sua novidade de modo a estar inserida na tradição evolutiva do pensamento humano. A colega apontava-me minhas excessivas divagações e devolvia-me sempre sua perplexidade.

Discorria sobre sua sensação de perplexidade e surpresa, tentava alongar-se sobre as decorrências psíquicas que as experiências dominadas por tais emoções poderiam nos causar. Cabia-me rebater que achava discutível chamar a perplexidade, talvez até mesmo a surpresa, de emoção. Quem sabe não fosse melhor dizer que são termos a designar fenômenos psíquicos carregados de emoções, como espanto, medo e assim por diante. No entanto, obviamente, reconhecia no fenômeno da perplexidade algo fundamental, desde sempre, para o homem. Em parceria com a dúvida, sempre fora base da filosofia e depois da ciência, além de ser a origem das atitudes religiosas. A perplexidade revelando nossa ignorância nos instiga a preencher o desconhecido, não sabido, assustador, amedrontador, pela solução mágica das religiões ou pelo consistente trabalho de Sísifo, que é o conhecer por meio do entendimento e da compreensão. Não pretendia ser cínico, uma vez que achava consistente o trabalho do conhecimento, embora inevitavelmente como o de Sísifo. Era um paradoxo aceitável. Não deveria ser também a atitude básica do analista aquela mesma do filósofo e do cientista, que ao lado de sua tão acalentada neutralidade se postasse permanentemente acompanhado da perplexidade para que toda situação do encontro analítico lhe parecesse nova e desconhecida? Essa postura, sabidamente tão desgastante do ponto de vista emocional, muito mais que do intelectual, seria destinada não só ao paciente, mas também a si mesmo, ou ainda melhor ao método psicanalítico e aos fenômenos "observados" por este.

A amiga psicanalista concordava, porém considerava idealização de minha parte achar possível que se abrisse mão completamente da razão e da lógica, afinal estas, além de serem pilares permanentes da filosofia e da ciência, nos compunham como seres inteligentes capazes de vir a saber algo. Infelizmente, ela acreditava, havia sido exatamente isso que a levara a se enganar e ser pega de surpresa pela paciente, pois a crença de que já conhecia sua paciente havia produzido sua cegueira frente à experiência emocional nova que estaria sendo trazida na sessão. Retruquei que pensava diferente. Não mais ter razão e lógica certamente seria impossível, para não dizer leviano, mas sua inevitável cegueira, fruto da pretensão de um conhecimento tranquilizador, todavia insuficiente, fora a condição que permitira sua experiência de perplexidade, tanto quanto na convicção delirante de sua paciente se mostrara a ruína de suas defesas neuróticas. Só o rompimento do que se pensava saber poderia propor o novo surpreendente. Parafraseando Feyerabend: "A conclusão é, naturalmente, a de que, em Ciência, diversamente do que se dá na Política, o grito de batalha deve ser - revolução permanente!" (1967, p. 258).

Essa era, em minha opinião, a condição para a evolução do conhecer também na psicanálise. Não se partiria do zero, do nada, recomeçar-se-ia mais uma vez pelo rompimento do estabelecido. Estar cego não é problema determinante se houver condições psíquicas para poder correr o risco de vir a enxergar. Assim, parecia-me, havia sido na história do conhecimento humano.

 

Algo sobre as Ciências

A conversa adentrara um campo muito vasto e minha colega, que tinha conhecimentos científicos bem estabelecidos, aliados a uma formação psicanalítica profunda, continuava a se debater com a fronteira que esses aspectos determinam. Embora aceitasse a condição do erro e do equívoco como ponto de partida habitual para o conhecimento novo, insistia em percorrer o campo em que se organiza a atitude científica tradicional. Lembro-me de que antigas leituras me vinham à cabeça, as quais dias depois ainda me via instigado a procurar e reler. Reencontrei-me, então, com antigos "companheiros". No livro Explanation and understanding, von Wright menciona que a investigação científica, vista de modo amplo, poderia se apresentar de duas maneiras, ou pela averiguação e descrição de fatos ou pela construção de hipóteses e teorias, as chamadas ciências descritiva e teórica. Diz esse autor que a construção da teoria científica poderia servir a dois propósitos: prever a ocorrência dos fatos que estão por vir e o resultado dos experimentos, ou explicar fazendo com que os fatos registrados sejam inteligíveis. Avisa que essa classificação é utilizável para o propósito de uma primeira aproximação ao assunto, mas que isso não poderia ser tomado de modo rígido. Afirma: "A descoberta e a descrição dos fatos não podem sempre estar conceitualmente separadas da teoria sobre eles a qual é frequentemente um importante passo na direção do entendimento da natureza dos fatos" (von Wright, 1971/1993, p. 1, tradução nossa).

A predição olharia adiante, para o que viria, a explicação usualmente para o que passou, para o que já foi. No entanto, tais termos, fatos científicos e leis científicas, são muito similares, sendo muito estreita a relação entre eles. O desafio está em verificar qual o papel das leis gerais na explicação científica e levantar o problema se a construção de uma teoria científica pode ser da mesma natureza nas ciências naturais e nas ciências humanas e sociais. Cassirer afirmara que profundas mudanças estavam ocorrendo no movimento científico, verdadeiras revoluções, fazendo tremer as fundações nas quais as ciências haviam se estruturado. Escreve:

Nas ciências naturais, a concepção de um mundo envolvido pelas leis físicas clássicas tornou-se mais e mais passível de dúvida, a visão mecanicista do universo foi abalada pela teoria quân-tica e pela teoria da relatividade. Mas mudanças não menos profundas vieram de pesquisas em outros domínios. É nesse período que a biologia parece ter adquirido maturidade científica. Não somente conquistou uma incalculável quantidade de novos e independentes conhecimentos que passaram de longe todo o conhecimento dos séculos precedentes, mas parece ter encontrado na teoria de Darwin a primeira resposta teoricamente adequada que promete resolver conclusivamente o enigma da vida (Cassirer, 1978, pp. 17-18, tradução nossa).

Essas minhas leituras, se as tivesse em mente quando da conversa com minha amiga, certamente teriam ajudado a que ela se despreocupasse um tanto de suas raízes científico-psicanalíticas.

Ela mesma poderia ter se recordado de seus estudos da obra de Bion e se sentido reconfortada pela noção de transformação que esse autor nos ofereceu. Ela, inclusive, havia compreendido sua paciente pela ideia de transformação em alucinose, mas esquecera-se do contexto em que isso é proposto. Afirma Bion:

Em psicanálise, não mais do que em outras investigações científicas, não se pode enunciar eventos de modo direto, indubitável ou incorrigível. Vou usar o símbolo O para denotar aquilo que é a realidade última, representada por termos como realidade última, verdade absoluta, a divindade, o infinito, a coisa-em-si. O não incide no âmbito do conhecimento ou aprendizado, a não ser incidentalmente. Pode "tornar-se", mas não pode ser "conhecido". O é escuridão e ausência de forma, mas entra no âmbito de K (conhecimento) quando evolui a ponto de ser conhecido, por intermédio de um conhecimento obtido por experiência, e formulado em termos derivados da experiência sensorial; sua existência é conjecturada fenomenologicamente. (1970/2006, p. 41, negritos do autor).

Sabemos, desde Bion, que os acontecimentos psicanalíticos são transformados e formulados, o valor dessas formulações depende das condições em que são feitas as transformações, sendo seu efeito terapêutico maior quando conduzem a transformações em O, e menor se levam apenas a transformações em K. É bastante interessante essa posição de Bion. Sustentado pela filosofia de Kant, pai do iluminismo, ainda que não de modo restrito, utiliza-se da noção de coisa-em-si, cuja origem de fato remonta à filosofia grega, em particular a Aristóteles se investigarmos as relações de sua Metafísica com a renomada Ética a Nicômaco. De qualquer modo, mesmo na raiz do que se desenvolveu como ciência, podemos nos deparar com o recurso ao inatingível pelo conhecimento. A dúvida e a perplexidade continuarão lá. Podem ser vividas, experimentadas humanamente, mas não resolvidas de modo absoluto cientificamente.

Não seria essa uma alternativa criativa, que possibilitasse assimilação e enriquecimento da vivência de perplexidade de minha colega, a ponto de passar à condição de equilíbrio dinâmico com a dúvida e a perplexidade? Gosto da proposição de Bohm, falando sobre o processo científico criativo, a partir da analogia com a criança que vai formulando seus novos conhecimentos frente a cada nova crise que a realidade lhe impõe. Afirma:

... em um ato de percepção criativo, o indivíduo torna-se, primeiro, consciente (normalmente de forma não verbal) de uma nova série de diferenças relevantes e começa a examinar ou a observar uma nova série de semelhanças, as quais não vêm simplesmente de conhecimento prévio, tanto do mesmo campo como de um novo. Isso leva a uma nova ordem que favorece o surgimento de uma nova hierarquia de ordens que constituem uma série de novos tipos de estrutura. O processo tende a formalizar totalidades harmoniosas e unificadas, com a sensação de beleza, e é capaz de mover aqueles que a entendem de uma forma profundamente inspiradora (Bohm, 1996/2011, pp. 18-19).

A contribuição de Bohm joga luz sobre a condição do trabalho criativo, inclusive na psicanálise, ao afirmar que devemos ir contra o estado de espírito conformista, imitador e mecânico, que fugiria do perigo perturbador de causar o caos, o que só seria possível naquele cujo interesse no que está fazendo ou investigando é total e sincero como o de uma criança aberta ao novo. O caos necessário está na perplexidade e na dúvida.

 

A questão da Perplexidade

Quem sabe, o paciente leitor desse texto se sentisse satisfeito se eu pudesse apresentar a reflexão de um grande pensador que sucintamente sintetizasse todo esse longo e complexo movimento que minha conversa teve que percorrer a partir de tantos autores. Deste modo, acredito que as palavras de Montaigne possam colocar as ideias, até agora recolhidas, em uma simples e definitiva formulação. Diz:

... mas a razão ensinou-me que condenar assim resolutamente uma coisa como falsa e impossível é atribuir a si mesmo o privilégio de saber as fronteiras e os limites da vontade de Deus e do poder de nossa mãe natureza; e que não há no mundo loucura mais imensa do que reduzi-los à medida de nossa capacidade e inteligência . A novidade das coisas, mais do que sua grandeza, incitamos a procurar-lhe as causas. É preciso avaliar com mais respeito esse infinito poder da natureza, e com maior reconhecimento de nossa ignorância e fraqueza. Quantas coisas pouco verossímeis há, testemunhadas por pessoas dignas de fé, e das quais, se não podemos ser persuadidos, pelo menos é preciso deixá-las em suspenso; pois condená-las como impossível é, por uma temerária presunção, pretender saber até onde vai a possibilidade. Se entendéssemos bem a diferença que há entre o impossível e o inusitado, e entre o que é contra a ordem do curso da natureza e contra a opinião comum dos homens, não acreditando levianamente tampouco descrendo facilmente, observaríamos a regra de "Nada em excesso", recomendada por Quílon (um dos sete sábios da Grécia, éforo de Esparta por volta de 555 a.C.) (Montaigne, 1580/2002, pp. 268-269).

Bohm, como foi dito acima, destaca a atitude livre que a criança pode ter ao se deparar com o desconhecido. Creio que podemos ir ainda mais longe. No precioso livro de Matthews, El niño y la filosofía, logo em seu primeiro capítulo encontramos o tema da perplexidade. Ao falar de um menino (Tim) de seis anos de idade, reproduz sua arguta pergunta: "Papai, como podemos ter certeza de que nem tudo é um sonho?" (Matthews, 1980/1983, p. 11, tradução nossa).

O questionamento deve não apenas ser levado a sério, deve também ser motivo para reflexão. Continua: "Falei como se a pergunta de Tim fosse: 'Como posso saber se estou sonhando?' Mas, desde logo, não é assim; melhor seria insistir que a pergunta é: 'Como podemos estar seguros de que nem tudo é um sonho?'" (Matthews, 1980/1983, p. 11, tradução nossa).

Um pouco mais adiante afirma:

A perplexidade de Tim é depuradamente filosófica. Tim formulou uma pergunta que põe em dúvida uma ideia muito comum (estar acordado) de tal maneira que nos faz perguntar se realmente sabemos algo que a maioria supõe saber inquestionavelmente. O que nos perguntamos é se sabemos que às vezes estamos despertos e que, por conseguinte, nem toda a vida é um sonho. A perplexidade e a admiração estão relacionadas intimamente (Matthews, 1980/1983, p. 12, tradução nossa).

Ao propor esta discussão, tendo levado em consideração o assunto do menino, Matthews se vê obrigado a citar Santo Agostinho, Aristóteles, Bertrand Russell e Wittgenstein. Logo se entende que a pergunta está longe de ser tola, e nos obriga a destacar que o livro tem a peculiaridade de pôr em relevo algo tão básico e simples como são os questionamentos filosóficos que as crianças são capazes de fazer e que nós, adultos, somos capazes de esquecer. Por isso, o tema da perplexidade me parece ser inerente à psicanálise, ou pelo menos, à atitude do psicanalista que poderia se surpreender diante do que é mais ordinário e habitual, o que dizer então do que é inusitado e inesperado.

A perplexidade nos estanca frente à vida e, por que não dizer, frente à morte. Esse estado nos "atualiza" na medida em que torna "instante" o momento paralisado do tempo. Pensar - e necessariamente dele dizer - sobre o que aí sentimos põe em marcha novamente a vida instantaneamente estancada, como que morta, pela perplexidade. Recupera-a, revitaliza-a, volta a por em jogo a tensão de vida e morte que nos compõe. Sem a perplexidade viveriamos como que mortos, pois não renovaríamos a dimensão do viver, sempre dependente da dimensão do instante (aquele que havia estado paralisado, como se estivesse morto), deixado para trás no que chamamos de tempo. De perplexidade em perplexidade, vou me chocando com as mutações do percurso de minha vida, que se fazem na oscilação tensionada das interrupções da própria vida, nos instantes paralisados do tempo, com sua continuidade inexorável para a morte. Cada vez que uma mutação me põe perplexo, atualizo-me, e nesse instante vida e morte se encontram, embora eu não consiga reconhecê-las como tais. Reconheço, com muito esforço, apenas a mim mesmo, em minha contínua morte a que chamo de "minha vida".

Lembro-me muito bem que já ao final de nossa conversa, ainda que minha amiga reclamasse que minhas considerações tinham ido longe demais, esforçava-me para resgatar o entrecruzamento da perplexidade com o contexto das mutações. Considerava que, se não estivesse completamente equivocado, a imensa maioria das mutações, genéticas, não dão em nada, ou seja, não vingam, morrem. Por outro lado, seria muito por conta das mutações que a vida pode se perpetuar (ao acaso, é verdade, mas pode). Seriam as mutações, ditas bem-sucedidas, que seriam vitoriosas no processo evolutivo mostrando-se mais capazes de sobreviver frente às novas e presentes condições ambientais. Isto quer dizer que, se por um lado, graças às mutações, a vida tem se perpetuado, no entanto, por outro e ao mesmo tempo, as mutações correspondem a uma espécie de laboratório de vida e morte - ao menos vida e morte de possibilidades para a continuidade da vida -, em que ao se morrer orienta-se o caminho da vida. É uma espécie de paradoxo. Creio que a palavra mutação, agora em um sentido mais metafórico, coloca em destaque a tensão existente entre vida e morte. Muitos escreveram sobre isso. Em filosofia, vários. Pessoalmente, gosto da abordagem de Nietzsche, para quem a vida no seu sentido cósmico é inteiramente tributária da morte e para quem a morte é uma espécie de necessidade de realização da "vontade de poder" inerente à vida. Com isso, refiro-me, apenas como exemplo, na filosofia, àquele paradoxo de que falava há pouco.

 

Dualidade Pulsional e seu efeito de Perplexidade

A proposta freudiana de que a dualidade pulsional funcione como motor de vida e morte, seja no plano individual seja no social, e que isso se dê por uma espécie de "tensão" e interação entre ambas, parece-me - espero não estar indo longe demais - ser compatível com o acontecimento de mutação, que teria propiciado o surgimento do homem, no sentido de um animal com o psiquismo humano. Caso precisemos lembrar, há uma longa lista de passagens de Freud, nas quais trata do assunto. Cito algumas:

Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive, morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que "o objetivo de toda vida é a morte", e voltando o olhar para trás, que "as coisas inanimadas existiram antes das vivas". Os atributos da vida foram, em determinada ocasião, evocados na matéria inanimada pela ação de uma força de cuja natureza não podemos formar concepção. Pode ter sido um processo semelhante ao que posteriormente provocou o desenvolvimento da consciência num estrato particular da matéria viva. A tensão que então surgiu no que até aí fora uma substância inanimada, se esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira, surgiu o primeiro impulso: o de retornar ao estado inanimado (Freud, 1920/1990, p. 56, itálico nosso).

Não muito tempo depois, outra passagem:

Os impulsos eróticos e os impulsos de morte estariam presentes nos seres vivos em misturas ou fusões regulares, mas "desfusões" também estariam sujeitas a ocorrer. A vida consistiria nas manifestações do conflito ou na interação entre as duas classes de impulsos; a morte significaria para o indivíduo a vitória dos impulsos destrutivos, mas a reprodução representaria para ele a vitória de Eros (Freud, 1923a/1990, p. 312).

Caso isso nos pareça estranho, lembremos:

A hipótese não lança qualquer luz sobre a maneira pela qual as duas classes de impulsos se fundem, misturam e ligam uma com a outra, mas que isso se realiza de modo regular e de modo extensivo constitui pressuposição indispensável à nossa concepção (Freud, 1923b/1990, p. 56).

A isso acrescenta, na esfera clínica:

É nossa opinião, portanto, que no sadismo e no masoquismo temos diante de nós dois excelentes exemplos e uma mistura das duas classes de impulso, de Eros e de agressividade; e formulamos a hipótese de que essa relação é uma relação-modelo - que toda moção pulsional que pudermos examinar, consiste em fusões ou ligas parecidas das duas categorias de impulsos. Naturalmente, essas fusões far-se-iam nas mais variadas proporções. Assim, os impulsos eróticos introduziriam a multiplicidade de seus fins sexuais na fusão, enquanto os outros apenas admitiriam atenuações ou graduações em sua tendência uniforme. Essa hipótese abre-nos a perspectiva de investigações que um dia poderão ser de grande importância para a compreensão de processos patológicos (Freud, 1932-1933/1990, p. 107).

Finalmente podemos concluir com Freud:

Nas funções biológicas, os dois impulsos básicos operam um contra o outro ou combinam-se mutuamente. Assim, o ato de comer é uma destruição do objeto com o objetivo final de incorporá-lo, e o ato sexual é um ato de agressão com o intuito da mais íntima união. Esta ação concorrente e mutuamente oposta dos dois impulsos fundamentais dá origem a toda a variedade dos fenômenos da vida. A analogia de nossos dois impulsos básicos estende-se da esfera das coisas vivas até o par de forças opostas - atração e repulsão - que governa o mundo inorgânico (Freud, 1938-1940/1990, p. 174).

Talvez isso tudo seja excessivo, e minha colega tenha razão ao dizer que vou longe demais em meus argumentos, mas o que desejo salientar é que a ideia de mutação pode ser uma bela condensação para o grande jogo das pulsões e de suas decorrências. Seria possível pensar que "novas patologias" seriam mutações, palavra aqui usada em sentido metafórico, provenientes do interjogo pulsional diante das atuais condições da vida cultural, que pressionam o Eu a "loucamente" tentar encontrar um arranjo que permita a sobrevivência?

 

O saber do Eu

A conversa sobre a perplexidade de minha colega, que gerara uma mutação em sua compreensão da referida paciente, avançava para seu término. Havia muito tempo que conversávamos. Antes, porém, de nos despedirmos, recordo-me de que me questionara a respeito de um dos assuntos que mais nos agradava. Afinal, dizia ela, o que mais lhe tocara não fora o acontecimento clínico em si, mas sim sua reação. Seu Eu, como ela gostava de dizer, é que exigira sua atenção. Ele, seu Eu, é que precisara equilibrar-se frente à perplexidade a fim de assumir nova postura clínica diante da paciente. Agradava-me sua terminologia, seu Eu. Obviamente, era uma tentação para uma conversa de psicanalistas interessados em filosofia. Bem... talvez ela dissesse que tal interesse era meu, e que o dela fosse por ciência, mas não precisamos discutir essa pequena diferença. Voltemos à conversa. Minha amiga insistia em seu amor ao conhecimento, sua vinculação com o saber. Lembrei-lhe, contudo, da explicação de Sócrates, intermediada por Diotima, que Platão nos conta no diálogo do Banquete. Diz o texto:

Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia -, penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se a seu lado e pronto concebe o Amor. Eis porque ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalicio, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou (Platão, 1970, pp. 156-157).

Disse-lhe para tomar cuidado com seu amor, ainda que pelo saber, pois se levarmos em conta o que disse Sócrates, sua origem denota conflito.

Quanto ao Eu e seu saber, também com este é preciso cuidado. Senão vejamos o que nos conta Merleau-Ponty:

Quando, porém, digo, no curso de uma frase: "que sei eu?", já nasce outra sorte de questão, pois ela extravasa além da ideia do próprio saber, invoca não sei que lugar inteligível onde deveriam encontrar-se os fatos, exemplos, ideias, que me faltam, insinua que o interrogativo não é um modo derivado por inversão ou troca do indicativo e do positivo, nem afirmação nem negação veladas ou esperadas, mas maneira original de visar alguma coisa, por assim dizer, uma questão-saber, que, por princípio, não pode ser ultrapassada por qualquer enunciado ou "resposta", talvez, por conseguinte, o modo próprio de nossa relação com o Ser, como se fosse o interlocutor mudo ou reticente de nossas questões. "Que sei eu?" não é apenas "o que é saber?", nem apenas "o que é o há?" - e essas perguntas não pedem a exibição de alguma coisa dita que lhes poria fim, mas o desvendamento de um Ser que não é posto, porque não carece sê-lo, porque está silenciosamente atrás de todas as questões formuladas, não que se trate de esquecê-las em seu silêncio, não que se trate de aprisioná-lo na nossa falação, mas porque a filosofia é a reconversão do silêncio e da palavra um no outro (1964/2007, p. 126).

Certamente esse tipo de formulação filosófica, sobre o Eu e seu saber, pode parecer complexa, talvez confusa em uma primeira aproximação, mas, quem sabe, a formulação de Heidegger, por mais que hermética em sua terminologia, possa nos dar a dimensão ampla do que se trata ao querermos dizer sobre o Eu. Ele escreve:

O comportamento do homem é perpassado pela disposição de humor que se origina da revelação do ente em sua totalidade. Esta "em sua totalidade" aparece, entretanto, à preocupação e ao cálculo cotidianos como o imprevisível e o inconcebível ... Aquilo que assim nos dispõe, de maneira alguma é nada, mas uma dissimulação do ente em sua totalidade. Justamente, na medida em que o deixar-ser sempre deixa o ente, a que se refere, ser, em cada comportamento individual, e com isto o desoculta, dissimula ele o ente em sua totalidade. O deixar-ser é, em si mesmo, simultaneamente, uma dissimulação. Na liberdade ek-sistente do ser-aí acontece a dissimulação do ente em sua totalidade, é o velamento (Heidegger, 1943/1970, p. 38).

Não parece ser tão simples falarmos sobre o saber do Eu. A epistemologia do Eu invade a dimensão do Ser. Não parece haver escapatória segundo a fenomenologia, seja esta de vertente existencial ou transcendental. Seja como for, não há melhor momento de "desvelamento" ou de "reconversão da palavra e do silêncio um no outro" que o instante da perplexidade que dispõe à dúvida. Pode até configurar ironia, mas virá de um filósofo leitor de Freud a enunciação mais conclusiva para a conversa com minha amiga. Nesse encontro, ela conservava em suas mãos um novo livro de Oswaldo Giacoia Junior que ainda não lera. Eu já tinha tido a oportunidade de lê-lo. Mostrei-lhe a seguinte passagem:

Essa tarefa comporta um inegável paradoxo: como órgão diretor, a consciência é uma espécie de sentido mais aguçado. Desse ponto de vista, limitar-se a seus testemunhos não é um bom caminho para a compreensão da espécie de nossa subjetividade, pensada como unidade de organização. Por isso, temos de questionar o corpo, investigar a atividade dos "subordinados", a fim de saber se e até onde eles podem entrar em contato conosco. É verdade que a autoinspeção da consciência é insuficiente, mas nada se pode sem a consciência e sua lucidez. Anos mais tarde, Sigmund Freud retomaria esse aspecto, já abordado por Nietzsche. A esse alargamento possível da consciência, mediante o contato entre ela e seus "subordinados inevitáveis", tal como notamos no texto de Nietzsche, o programa psicanalítico freudiano responderá com a diretriz segundo a qual "onde era isso, deverá tornar-se eu", ou ainda com a noção de análise interminável, que favorece o fortalecimento do eu (Giacoia Jr., 2012, pp. 214-215).

 

Encerramento

Finda a conversa, não havia voltado a nela pensar até que outra conversa com outros colegas e amigos psicanalistas, a respeito dessas mesmas questões sobre perplexidade e mutações, fez-me retornar à reflexão, instigando-me a escrever sobre o ocorrido. De qualquer modo, eram essas minhas considerações a partir das recordações que tive da conversa com minha amiga psicanalista sobre esse tema tão complexo. Achei por bem, antes de enviar o texto para publicação, apresentá-lo à minha colega para ver sua opinião. Talvez por me conhecer bem, querendo me agradar, achou graça. Disse-me que minha memória não diferia muito da dela, mas que eu era hábil em não demonstrar minhas preferências, pois a todo o tempo usara seu linguajar, suas referências no modo de pensar, no uso de autores citados. Ela acha que sou muito sintonizado com a obra de Winnicott. Mera crença de sua parte, ainda que seja, de fato, meu gosto. Recrimina-me por não citá-lo nenhuma vez, limitando-me a usar seu autor psicanalítico preferido, Bion. Não me faço de rogado. Digo-lhe que o texto é em sua homenagem, mesmo que me peça sigilo e que não cite seu nome. Contesto que Bion, ou Freud, ou qualquer outro que tenha citado, e citei muitos, também são meus e que Winnicott estivera presente em cada paradoxo que encontrei pelo caminho. Ela se contenta quando digo que aquela nossa conversa me deixara perplexo e que provavelmente este trabalho que escrevo seja sinal do contexto de mutação existente em nossas vidas. Fico, então, por ela autorizado a fazê-lo público.

 

Referências

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Rogério N. Coelho de Souza
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Recebido em 4.3.2014
Aceito em 21.3.2014

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