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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo abr./jun. 2016

 

EM PAUTA

 

Sexualidades em cena e/ou sexualidades encenadas: o sexual

 

Sexualities on the scene and/or performed sexualities: the sexual matter

 

Sexualidades en escena y/o sexualidades escenificadas: lo sexual

 

 

Miriam Chnaiderman

Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir da experiência de dirigir o documentário De gravata e unha vermelha, fui levada à ideia de uma sexualidade cenografada e ao questionamento de alguns conceitos psicanalíticos. A roupa como segunda pele me fez repensar os conceitos de máscara e véu, a partir da obra de Joan Riviere. O pensamento lacaniano nos instrumenta ao afirmar que existem apenas semblantes, sejam do homem, sejam da mulher. Qualquer encontro amoroso produz semblantes - isto é, há infinitas possibilidades de encontros.

Palavras-chave: teatro; véu; semblante; máscara; transexual; travesti; roupa; sexualidade; corpo; feminilidade; falo; homem; mulher.


ABSTRACT

The experience of directing the documentary Tie and red nails has led me to the idea of performed sexuality, and has made me question some psychoanalytic concepts. Clothing as a second skin has made me rethink the concepts of mask and veil, based on Joan Riviere's work. By assuring there are only countenances either male or female, the Lacanian thinking has enabled us to debate. Every love encounter produces countenances. In other words, there are countless possibilities of encounters.

Keywords: theater; veil; countenance; mask; transsexual; transvestite; clothing; sexuality; body; femininity; phallus; man; woman.


RESUMEN

A partir de la experiencia de dirigir el documental Con corbata y uñas rojas, fui conducida a la idea de la escenografía de la sexualidad y al cuestionamiento de algunos conceptos psicoanalíticos. La ropa como una segunda piel me llevó a replantear los conceptos de máscara y velo, a partir de un texto de Joan Riviere. El pensamiento lacaniano nos instrumentaliza al afirmar que solo hay semblantes, del hombre o de la mujer. Cualquier cita amorosa produce semblantes. Es decir, hay un sinfín de posibilidades de encuentros.

Palabras clave: teatro; velo; semblante; disfraz; transexual; travesti; prendas de vestir; sexualidad; cuerpo; feminidad; falo; hombre; mujer.


 

 

Prólogo

E m 2010 Laerte apareceu, já aos 60 anos, vestido de mulher. E surpreendeu o mundo. Laerte sempre foi conhecido[a] como cartunista. Publica diariamente suas tirinhas no jornal Folha de S. Paulo. É do grupo de Glauco e Angeli. Fez parte de todo um movimento que nos anos 70 manifestava-se politicamente através das histórias em quadrinhos. Não há quem não lembre da publicação Chiclete com banana ou não sinta saudades da Rebordosa, figura criada por Angeli. Nas mãos desse grupo de cartunistas a contracultura aparecia como oposição à ditadura e forma política de contestar o institucionalizado.

Laerte, mais uma vez, escandaliza o mundo. Revigora sua rebeldia. Aparece na revista Bravo vestido[a] de mulher. E, naquele momento, define-se como um cross-dresser, termo que depois viria a criticar, afirmando ser classista: o travesti teria a ver com classes menos privilegiadas e o cross-dresser seria um nome chique para o travesti classe média.

Em entrevista a Ivan Finotti, na Folha Ilustrada, afirma Laerte [2010]: "O travestimento é uma questão de gênero, não de sexo. São coisas independentes, autônomas, que nem o executivo e o legislativo. É um erro fazer essa mistura... Ah, está vestido de mulher, então é veado. Jogou bola, é macho. E eu, que gostava de costurar e de jogar bola? O que tenho feito é investigar essa parte de gênero. O que tenho descoberto é que isso é muito arraigado, essa cultura binária, essa divisão do mundo entre mulheres

e homens é um dogma muito forte. Não se rompe isso facilmente. Desafiar esses códigos perturba todo o ambiente ao redor de você." (Chnaiderman, 2014b)

Na figura da Laerte, algo se explicita de como Judith Butler (2008) pensou o gênero - ou seja, como ato performativo. A cada aparição pública de Laerte, uma verdadeira performance acontece. Há um ato disruptor escancarando o gênero como sendo performativo, encarnando Judith Butler no seu radical questionamento. Baseada em Derrida e em J. L. Austin, Butler "considera performativa a prática discursiva que torna realidade ou produz aquilo que nomeia" (Porchat, 2014, p. 86).

O gênero é um efeito performativo de atos repetidos, sem um original ou uma essência; não expressa nem revela uma identidade preexistente.

Laerte revolta-se contra a ditadura dos gêneros:

É você sentir que sua liberdade está sendo tolhida, que as possibilidades infinitas que você tem de expressão na vida, ao sair, ao se vestir, ao se manifestar, ao tratar as pessoas, seu modo, seu gestual, sua fala, tudo isso é cerceado e limitado por códigos muito fortes e muito restritos. (2010)

Se não há uma identidade preexistente, que defina o gênero, surgem então infinitas possibilidades de cada um vivenciar e construir sua sexualidade.

 

Cenografar um documentário?

Já quando propus meu documentário no concurso do Ministério da Cultura para conseguir recursos, eu o chamei De gravata e unha vermelha. Era um nome inspirado na Laerte e no que eu havia buscado na Internet sobre cross-dressers; era um título para documentário que pressupunha a montagem de um corpo. Montar é a palavra escolhida pelos transexuais e travestis quando se arrumam e se maquiam. Ou pelas drag queens. Há um ritual em que a/o personagem é encarnado. Uma sexualidade construída, encenada. Mas existiria uma sexualidade que não fosse encenada?

Quando consegui os recursos e comecei a pré-produção do documentário, soube que Laerte não se dispunha a me acompanhar. Havia acabado de filmar Vestido de Laerte, curta dirigido por Cláudia Priscilla e Pedro Marques, e sentia-se cansada, não querendo acordar cedo ou entrar no ritmo que o fazer cinema demanda. Tinha disponibilidade apenas para uma entrevista.

Eu conhecera, de vista, o estilista Dudu Bertholini na padaria ao lado do consultório. Seus turbantes e cafetãs, seus enormes brincos, os olhos pintados chamavam a atenção. A tranquilidade no seu jeito de ser fazia com que fosse aceito pelos portugueses conservadores donos da padaria. Uma pessoa querida. Observávamo-nos em nossos coloridos. A partir de meu convite, ele se entusiasmou e uma parceria se iluminou.

Acompanhada por Dudu Bertholini, "construtor de imagens de moda" (Chnaiderman, 2014b), fui mergulhando no espetáculo desses corpos que cenografam seu cotidiano minuto a minuto. Mas fiquei perplexa quando, ao agendar nossa primeira filmagem, Dudu afirmou a necessidade de cenografar o ambiente onde a entrevista - que era com ele - deveria acontecer. Como assim? Cenografar um documentário? Sempre pensei no documentário como um retrato das pessoas, de como vivem e como falam de sua vida. Não que acredite num limite claro entre ficção e realidade... Acho que construímos todo e qualquer documentário - seja na escolha do diretor de fotografia, seja na montagem, seja na escolha de como uma entrevista acontece. Mas radicalizar tudo isso criando cenários. Fui entendendo que a linguagem do documentário deveria respeitar a linguagem desses corpos - todos eles cenografados, todos eles escancarando que a identidade de gênero é uma construção que fala de um poder invisível determinando as sexualidades.

No primeiro dia de filmagem, Dudu Bertholini chegou atrasado à sua casa. Havia saído para comprar maquiagem. Já estávamos lá. Aliás, o questionamento do binarismo de gênero leva a posturas inusitadas, em que nosso mundo capitalista selvagem fica suspenso: Dudu não tranca sua casa. Muitas vezes entrei lá para deixar alguma roupa ou algo que ele tivesse me pedido. Dudu tem um gato que desce a escada e passeia pela rua. E depois volta ou é recolhido por alguém. Tranquilamente. Esse gato veio de Nova Iorque - um amigo pediu que Dudu o adotasse. Quando chegou para ser entrevistado e filmado, escolheu um dos lindos cafetãs que desenhava, bem colorido, e foi se vestindo enquanto era entrevistado. Depois, montou um cenário hollywoodiano na sala.

Dudu não participou de todas as entrevistas; no entanto, daquelas que participou, ele cenografou - até mesmo na casa da Rogéria escolheu o canto onde deveríamos filmar. Com Ney Matogrosso foi mais tímido, mas cenografou-se: vestiu um cafetã pink e pôs brincos enormes.

O fato é que, na sua forma final, é impossível saber qual entrevista foi cenografada. Todas parecem cenografadas, mesmo quando não o foram. Foi uma escolha da diretora de fotografia, Fernanda Riscali, e minha.

Sempre pensei que o conceito de montagem acaba introduzindo uma luz interessante no pensamento freudiano. Já em meu texto "Memória: ideograma e montagem" (1989) eu fazia uma leitura do ensaio "Lembranças encobridoras" (Freud, 1899/1986) propondo uma "memória-montagem", uma "memória-ideograma".

Se tomarmos como base para reflexão o texto de Freud de 1905 (1978) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e radicalizarmos o conceito de pulsão, poderemos entender toda sexualidade como uma montagem em que a história se presentifica.

 

O teatro: uma nova reflexão

Depois de o documentário ficar pronto, fui procurada pela Cia. Livre de Teatro a fim de escrever um texto para um volume sobre a encenação da peça Maria que virou Jonas, ou A força da imaginação. A Cia. Livre de Teatro toma um trecho dos Ensaios de Montaigne (1580/1972) para ludicamente questionar a noção de gênero:

De passagem por Vitry-le-François, foi-me dado ver um rapaz a quem o bispo de Soissons dera o nome de Germain na confirmação, e que todos os habitantes do lugar haviam tratado por Maria, como mulher, até a idade de vinte e dois anos. Quando o conheci era já velho, muito barbudo e não se casara. Explicou-me que, em consequência de esforço feito para saltar, ocorrera o aparecimento de seus órgãos viris. É ainda de uso na região cantarem as moças uma canção em que se recomenda não fazerem grandes exercícios para não lhes acontecer tornarem-se rapazes como Maria-Germano. (p. 56)

Na peça, depois que seu companheiro relata essa história contada por um professor, Ela pula uma poça de água e começa a virar homem. E passa a ser Ela,Ele.

A força da imaginação vai levando a mudanças concretas no corpo - em Marie que virou Germain e nos personagens da peça; Marie ganha um pênis.

João W. Nery, primeiro trans homem no Brasil, afirma no documentário De gravata e unha vermelha (Chnaiderman, 2014a):

Eu não fiz essa cirurgia [para ter o pênis], eu não tenho pênis, eu não acho que é o pênis que faz um homem, assim como não é a vagina que faz a mulher, assim como não é o corpo que determina o gênero.

Eis aqui minha reflexão a propósito da demanda da Cia. Livre (Chnaiderman, 2015):

A situação proposta por Montaigne e pela Cia. Livre de Teatro é a da força da imaginação. Não está aí colocado o paradigma do que vai constituir o teatro?

Octave Mannoni, no seu texto "A ilusão cômica ou o teatro do ponto de vista do imaginário" (1969), nos mostra como o palco sempre se dá como um outro lugar, diferente daquele que é realmente, ou seja, sempre cria uma perspectiva do imaginário. Mannoni nos fala da importância da ilusão para que o teatro possa existir.

Em Maria que virou Jonas o jogo está nisso: ao pular a poça, Maria ganha um pênis ou, influenciada pela história que ouvira, sua imaginação faz com que se sinta tendo um pênis? É a própria linguagem teatral que fica em questão. A linguagem teatral e a sexualidade, pois não é possível viver plenamente o desejo sem a fantasia e sem a transgressão do que é anatomicamente dado. Há um imbricamento que brinca e grita entre sexualidade e teatro.

Em Montaigne, o bispo rebatiza Marie e lhe dá o nome de Germain. O binarismo de gênero triunfa. O hermafroditismo, que explicita a multiplicidade de possíveis, é assustador. Negação da diferença, concretização da fantasia da não falta.

Na peça, a indefinição marca o jogo. Ela,Ele e Ele,Ela. Redescobrir permanente que torna o sexo um lindo jogo em que mil combinações são possíveis. (pp. 45-46)

Alguma luz surge na compreensão das novas sexualidades, que são sempre as nossas sexualidades.

O que há de teatral na construção das novas sexualidades?

 

A roupa

Quando convidei Leticia Lanz para ser entrevistada para o documentário, a primeira pergunta que me fez foi de como deveria estar vestida. Eu respondi que se sentisse à vontade, que isso era o mais importante. Leticia deveria vir de Curitiba. Eu sabia que era muito ligada a Laerte e que juntos encabeçavam a Associação Brasileira de Transgêneros. Vivi, na noite anterior à filmagem, uma enorme tensão, pois havia emitido a passagem de avião para Letícia Lanz, e não Geraldo Eustáquio de Souza, como está na sua carteira de identidade. Letícia me ligou e, durante a madrugada, conseguimos comprar outra passagem com o nome que está nos documentos. Na entrevista, Letícia afirma não querer mudar o nome nem os genitais. E indaga-se: "Então, eu sou uma mulher de pênis?" (Chnaiderman, 2014a). E assim vai Leticia Lanz mundo afora, fazendo intervenções a cada minuto de sua vida.

Havíamos reservado um lindo bar, com cenografia adequada ao documentário. Letícia Lanz havia trazido três mudas de roupa. Demorou mais de uma hora se arrumando e fazendo sua maquiagem. Gosta de se vestir de Barbie, afirma no documentário.

A cada entrevista, quando Dudu Bertholini ia, levava vários modelos possíveis para que suas convidadas e convidados usassem. A roupa foi um elemento importante em cada uma das entrevistas.

Marcel Czermak, no seu livro Paixões do objeto: estudo psicanalítico das psicoses (1986/1991), faz uma importante reflexão sobre o papel da roupa nos transexuais. Afirma que, na sua clínica, observou que a demanda de castração muitas vezes fica em segundo plano diante da demanda de ter a aparência de uma bela mulher.

Czermak, a partir da noção de véu desenvolvida por Lacan no Seminário 4 (1995[1956-57]), em que o autor reflete sobre o fetichismo, tece considerações a respeito do transexualismo. Chega, porém, a conclusões redutoras e próximas às de Lacan: o transexualismo seria uma das formas da psicose. Rafael Kalaf Cossi, no seu estimulante livro Corpo em obra (2011), que aqui me serve de roteiro, chega a conclusões próximas às minhas. Foi através desse livro que cheguei à obra de Czermak e pude recortar os trechos de Lacan relevantes para pensar todas essas questões.

Sobre o véu, reflete Lacan, tal como é lido por Cossi:

em toda relação sujeito-objeto há um mais além - que não é nada, mas que está ali simbolicamente - e que é amado no objeto de amor. Entre o sujeito e o objeto há a cortina e o véu, e é a partir desta presença que aquilo que está mais além, como ausência, tende a se realizar como imagem. [...] É justamente a presença da cortina que denota que o objeto está mais além, assim tomado por ilusório e por isso mesmo valorizado. (2011, p. 132)

Czermack mostra como a vestimenta pode ter a função de véu. Na perversão, é sobre o véu que o fetiche figura precisamente aquilo que falta para além do objeto. Contudo, ao mesmo tempo que esconde a ausência, a revela.

Cossi coloca com muita clareza a distinção quanto à função do véu no travestismo e no transexualismo: "Enquanto o travesti propõe um jogo com a discordância entre as roupas femininas que usa e aquilo que existe por trás delas, no transexualismo o sujeito desejaria que seu corpo fosse conforme às roupas femininas" (2011, p. 133). No transexual, "o sujeito não se sustenta atrás de algo, mas na própria vestimenta e em seu efeito cutâneo: o de colocar à pele, diríamos" (Czermack, 1986/1991, p. 86, citado por Cossi, 2011, p. 133).

Para Lacan, "no travestismo, o sujeito se identifica com aquilo que está por trás do véu, com aquele objeto a que falta alguma coisa" (1995[1956-57], p. 168). Cossi analisa que, segundo Lacan, "no travesti, a roupa se faz de imagem fálica como forma de esconder e ao mesmo denunciar a falta de objeto" (2011, p. 132). Lacan vai falar em uma identificação com a mãe fálica. Mas, penso eu, uma identificação concretizada no "ter" um pênis e "ter" os seios. Como pensar em identificação com o "objeto a que falta alguma coisa"? No travesti, a falta não seria fálica e aí está algo para ser pensado. Em termos de uma lógica fálica, no travesti nada faltaria.

Ainda na esteira de Lacan e Czermak, Cossi afirma: "No fetichismo, o fetiche projeta sobre o véu aquilo que falta além do objeto (no caso, o falo)" (2011, p. 133). No transexual, a roupa é um objeto que se projeta adiante do véu. No transexualismo, a vestimenta pretende "conter, neutralizar, eliminar de cena o objeto" (Czermak, 1986/1991, p. 87, citado por Cossi, 2011, p. 133). É na vestimenta que o sujeito procura se realizar; a partir desse ponto, brotaria sua própria consistência, suprimindo o que estivesse por trás dela.

Assim se refere Czermak à questão da vestimenta no trans feminino:

É, a seus olhos, dotada de qualidades próprias, táteis: mais doce, mesmo se é da mesma natureza que a vestimenta masculina, pois tem qualidades específicas. [...] Para alguns transexuais não se trata apenas de uma dobra da pele, produzindo o prazer cutâneo, o prazer de envelope, como no travesti, [...] mas há algo de essencial, em que o centro não é o que está atrás, mas a veste mesma e seu efeito cutâneo: a vestimenta tende a colar na sua pele. (1986, p. 114)1

O transexual quer se livrar do que se encontra atrás das vestes.

Cossi destaca a conclusão de Czermak: "frente a isso, o sujeito tenta se sustentar a partir da dimensão imaginária do envolvente, na falta sobre a qual ele tende seriamente a se desestabilizar, o que pode produzir angústias de despedaçamento ou até graves estados de pânico" (1986/1991, p. 87, citado por Cossi, 2011, p. 133).

Assim, o véu deixa de desempenhar sua função, já que o nada (o mais além ou o falo) não é projetado imaginariamente. O transexual, tal como pensado por Czermak, seria um psicótico, pois não teria acesso ao falo simbólico.

 

Uma cultura feminilizada?

É assim que Diana Corso vem refletindo sobre as novas sexualidades. Tive a oportunidade de ouvi-la no Congresso da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, em 2015, Corpo: ficção, saber, verdade, quando participamos juntas de uma mesa-redonda.

Joan Riviere, em seu texto "A feminilidade como máscara" (1966), parte do estudo de mulheres extremamente femininas: "Tratarei de demonstrar que as mulheres que aspiram a uma certa masculinidade podem adotar a máscara da feminilidade para afastar a angústia e evitar a vingança que temem por parte dos homens" (p. 8). A seguir, indaga-se:

O leitor pode perguntar-se como distingo a feminilidade verdadeira e o disfarce. De fato, não defendo que tal diferença exista. A feminilidade, seja fundamental, seja superficial, é sempre a mesma. Mas há vezes em que a feminilidade é utilizada como um meio para evitar a angústia mais que como modo primário de gozo sexual. (p. 13)

Haveria uma autonomização do jogo de máscaras que caracteriza a feminilidade como uma espécie de retórica do desmascaramento sem rosto, na leitura de Christian Dunker (2008). "A concepção da feminilidade como máscara atrás da qual o homem suspeita a existência de algum perigo dissimulado esclarece esse enigma" (Riviere, 1966, p. 22), ou seja, "a máscara recobre aquilo que está para além do gozo fálico - o nada, vazio de nomeação" (Cossi, 2011, p. 134). Cossi faz uma importante crítica, pois a máscara "acaba situando o feminino no campo da significação fálica" (p. 134), mas recupera o pensamento lacaniano ao dizer que "o que realmente importa é que a máscara constitui-se como suporte da vacuidade - da causa do desejo, o objeto a" (p. 135) - como se o pensamento lacaniano, ao colocar a mulher do lado do inomeável, tivesse libertado o feminino da lógica fálica.

Num texto de 2005, em que analiso o filme Clube da Luta, cito o ensaio de Marie-Claire Boons "Da sedução entre os homens e as mulheres: uma abordagem lacaniana" (1987), no qual a autora mostra como nossa cultura vem colocando a mulher fora da possibilidade do simbólico. Boons afirma:

pois numa sociedade que se funda sobre a rejeição para fora do simbólico do feminino não há significante de A mulher. Há apenas o significante fálico e sua função para significar a diferença, dividindo a humanidade falante em metade masculina e metade feminina, segundo a maneira como cada sujeito se inscreveu em relação à castração que esta função designa. (1987, pp. 91-92)

A metade masculina tem o acesso ao simbólico bem garantido. Na outra metade, nomeada como feminina, haveria um gozo que escaparia à castração, sendo então portadora de um segredo sempre inviolado. Nessa metade, o acesso ao simbólico permanece problemático.

Marie-Claire Boons, como feminista empedernida, mostra como essa estrutura se dá a partir do falo, sendo o feminino verdadeiramente rejeitado para a esfera do enigma - um enigma detentor de um gozo ao qual os ditos masculinos não têm acesso.

Será que, quando Diana Corso reflete sobre uma feminilização da cultura, está pensando em uma falência do simbólico? Ou está propondo que se pense em um simbólico não regido pela lógica fálica? Ou, nesse exacerbar infinito do consumismo, todos nós adeririamos à mascarada que conduz a feminilidade? O transexual escancararia algo de todos nós. "O transexual não rejeita nenhum de seus atributos nesta mascarada, pois é a esta que ele tende a reduzir-se: é a própria mascarada, ou seja, o envoltório e a exigência de transformação corporal" (Czermak, 1986/1991, p. 88, citado por Cossi, 2011, p. 135). Dunker fala em um domínio da aparência que "poderia ser decomposto na aparência imaginária da mascarada, na aparência simbólica criada pelo véu e na curiosa e paradoxal aparência Real" (2008, p. 9). Talvez aqui tenhamos importantes chaves de análise para refletir sobre uma feminilização da cultura contemporânea.

 

O teatro, a performance e os mil sexos

Impressionou-me uma afirmação de José-Miguel Marinas na entrevista que deu à revista Percurso (2015): "Eu me acostumei a dizer que a psicanálise não é tanto uma hermenêutica textual, e sim uma compreensão cênica, das cenas que uma pessoa atravessou na vida e que são as que compõem o inconsciente" (p. 96). Se a psicanálise é uma compreensão cênica, o teatro tem muito a contribuir. Isso vai ao encontro do ensaio de Jacó Guinsburg, "A ideia de teatro" (2001), em que o autor afirma:

Como tudo no teatro, é fora de dúvida que, mais uma vez, ele se projeta através de um duplo. Desenvolvido basicamente pela duplicação do ser humano pelo ator, do espaço físico pela cena, da trama da vida pela trama do drama [...]. Mas ela [a exteriorização desse movimento do teatro] só pode existir pela sua própria natureza projetiva, por uma relação orgânica e, no entanto, não poucas vezes opositiva, com sua "outra face": a interioridade. (p. 7)

A seguir, Guinsburg diz que é no âmbito da imaginação que ocorre o ato representacional, "que nasce do poder inerente do eu de objetivar-se dentro de si para algo mais, um sujeito ou objeto que está além ou aquém" (p. 8).

Fica assim colocado todo o problema da representação em geral, não só a relativa ao teatro. Conclui Guinsburg: "perguntar pela origem do teatro é o mesmo que perguntar pela origem do pensamento, da linguagem e da cultura" (p. 8).

Faz todo sentido, então, pensar a psicanálise em termos de uma compreensão cênica, tal como afirma José-Miguel Marinas.

Mas, tanto em Guinsburg quanto em Marinas, o teatro passa a ser presença, evento. Derrida (1971), no seu trabalho sobre Artaud, detém-se na análise do conceito de representação. Acerca do Teatro da Crueldade, o filósofo comenta: "A representação cruel deve investir-me. E a não representação significa também desdobramento de um volume, de um meio em várias dimensões, experiência produtora do seu próprio espaço" (p. 157). Em outro ensaio, na análise que faz de Mallarmé, ao refletir sobre a mímica, Derrida (1972) afirma: "não ilustrando nada fora de si mesma, fala ou ato, não ilustra nada" (p. 236). Para Derrida, a partir de Mallarmé, passa a haver uma equivalência entre o teatro e a ideia, o que quer dizer que o que aí se efetua é a visibilidade do visível.

A noção de performance na arte contemporânea parece vir dar concretude a essa concepção do teatro e da representação. O momento de criação passa a ser valorizado, há um deslocamento da obra para o criador (Matuck, 2013). O corpo passa a ser o suporte artístico, tudo isso radicalizado na body art.

Renato Cohen (2013) liga a performance à living art: "a live art é a arte ao vivo e também a arte viva" (p. 38). A arte deixa de ser mera questão estética, passando a ser vivida.

Há algo nessas novas sexualidades que passa pela performance, embora não se reduza a ela. Em alguns personagens do documentário De gravata e unha vermelha, isso fica evidente. Exemplos disso são Dudu Bertholini, Laerte e Johnny Luxo. O ritual do vestir-se, a unha pintada, a maquiagem, o tênis com ossinhos de borracha. Mas as novas sexualidades escancaram um corpo que é encenado, teatralizado e construído. É sempre preciso encarnar um personagem. Montar-se, enfeitar-se e sair para a rua, para a "balada", para a busca de um parceiro. Como um ator que se monta.

Na importância das roupas, algo do encarnar um personagem acontece. Encarnar, e não representar. Stanislavski diferenciava a arte representacional da verdadeira arte. A roupa deixa de ser véu, aparência. No véu há sempre um mais além, que para Lacan é fundamental na relação simbólica: "A cortina assume seu valor, seu ser e sua consistência justamente por ser aquilo sobre o que se projeta e se imagina a ausência" (Lacan, 1995[1956-57], citado por Cossi, 2011, p. 131).

E, sabemos, para Lacan e para muitos de seus seguidores, se não é possível o véu ou se algo se antepõe ao véu, temos a perversão ou a psicose.

Talvez o teatro aqui nos dê uma chave não reducionista para refletir sobre tudo isso. Fica proposta uma inversão figura/ fundo, em que a presença e a montagem passam a ocupar o primeiro plano.

Passamos a entender o comentário de Taís Souza no filme De gravata e unha vermelha: "Há mil sexos nesse corpo que o Estado diz que é dono". Pois há mil personagens dentro de cada um de nós e mil possibilidades de jeitos de encontro.

 

Semblante e presença

Cito Lacan, nas primeiras páginas do Seminário 18: de um discurso que não fosse semblante:

Aqui o semblante não é semblante de outra coisa, mas deve ser tomado no sentido do genitivo objetivo. Trata-se do semblante como objeto próprio com que se regula a economia do discurso. (p. 18)

De um discurso que não fosse semblante afirma que o discurso, tal como acabo de enunciá-lo, é semblante. (p. 19)

A verdade não é o contrário do semblante.

A verdade é a dimensão, ou diz-mansão - se vocês me permitirem criar uma nova palavra para designar esses godês - estritamente correlata àquela do semblante. (pp. 25-26)

Surpreendentemente, Marinas, na mesma entrevista já citada (2015), é contra traduzir o termo francês semblant por semblante. Lembra, juntamente com os entrevistadores, que em francês faire semblant é fingir. Prefere usar o termo simulacro. Apresenta então "uma definição muito simples e didática do simulacro que é, primeiro, o que imita a realidade; segundo, o que melhora a realidade; e terceiro, o que substitui a realidade" (p. 99). No entanto, o simulacro pressupõe uma outra realidade da qual seria exatamente o simulacro, o que não me parece ser o que Lacan propõe com a noção de semblante. Lacan afirma que o semblante é "o contrário do artefato" (2009, p. 26).

Dunker vai pensar o semblante como "a aparência tomada em seu valor de aparência, sem nada por trás dela e sem nada em nome da qual ela funcione". Diz ainda: "o semblante é no fundo semblante de gozo. A imagem impossível da satisfação que nos escapa, realizada no outro" (2008, p. 10). Em um encontro amoroso,

cada qual esforça-se por executar um personagem (supostamente adequado para o outro) infiltrando neste teatro o valor real do desejo e do amor (supostamente adequado para si). O semblante é o reconhecimento ou o saber da forma postiça destas duas estratégias. (p. 10)

O jogo sexual se dá sempre a partir do semblante.

Cossi afirma: "O discurso não tem sexo, mas a verdade sexualiza-se a partir do semblante" (2011, p. 136). Existem apenas semblantes de "homem" e "mulher" (p. 137).

O teatro passa a permear os encontros, e ser isso ou aquilo em uma relação implica encarnar personagens. E não é sobre isso que as novas sexualidades nos ensinam?

 

Corpo movendo mundos

Encerro citando Foucault (2013):

O corpo é também um grande ator utópico, quando se trata de máscaras, de maquiagem e da tatuagem. Mascarar-se, maquiar-se, tatuar-se não é, exatamente, como se poderia imaginar, adquirir um outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível: tatuar-se, maquiar-se, mascarar-se é sem dúvida algo muito diferente, é fazer com que o corpo entre em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. Máscara, signo tatuado, pintura depositam no corpo toda uma linguagem cifrada, secreta, sagrada, que evoca para este mesmo corpo a violência do deus, a potência surda do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, a pintura instalam o corpo em outro espaço, fazem-no entrar em um lugar diretamente no mundo, fazem deste corpo um fragmento de espaço imaginário que se comunicará com o universo das divindades ou com o universo do outro. Por ele, seremos tomados pelos deuses ou seremos tomados pela pessoa que acabamos de seduzir. De todo modo, a máscara, a tatuagem, a pintura são operações pelas quais o corpo é arrancado de seu espaço próprio e projetado em um espaço outro. (p. 12)

Por isso, "o corpo humano é o ator principal de todas as utopias" (p. 12).

 

Nota

1 Fragmento traduzido por mim a partir do original francês.

 

Referências

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Correspondência:
Miriam Chnaiderman
Rua Maranhão, 620, conj. 62
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Recebido em 05.04.2016
Aceito em 19.04.2016

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