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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo oct./dic. 2017
OUTRAS PALAVRAS
Wednesday morning
Miércoles en la mañana
Mercredi matin
Pedro Colli Badino de Souza Leite
Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
O autor deste artigo atuou por alguns anos como psiquiatra de adolescentes internados em diversas unidades da Fundação Casa. Invadido e pressionado por memórias daquele período, o trabalho da escrita se mostrou útil para elaborar suas experiências. A narrativa acompanha parte de sua rotina, sempre nas quartas-feiras de manhã, e expõe o ambiente físico e transferencial da instituição e do atendimento a um de seus pacientes. O texto que se segue é, ao mesmo tempo, um relato clínico, um tratamento pela escrita e uma confissão.
Palavras-chave: psicanálise, clínica extensa, psiquiatria, Fundação Casa
ABSTRACT
For some years, the author worked as a psychiatrist of adolescents who were institutionalized at several units of Fundação Casa. As the author has started feeling invaded and pressured by memories from that time, the work of writing has revealed itself to be useful to elaborate his experiences. The narrative follows part of his routine every Wednesday morning. It exposes the physical and transferential environment of both the institution and the psychiatric care of one of his patients. The following article is, at the same time, a clinical report, a treatment by writing, and a confession.
Keywords: psychoanalysis, extended practice, psychiatry, Fundação Casa
RESUMEN
El autor de este artículo trabajó durante algunos años como psiquiatra de adolescentes internados en diversas unidades de la Fundação Casa. Invadido y presionado por memorias de aquel periodo, escribir se mostró útil para elaborar sus experiencias. La narración sigue parte de su rutina, siempre los miércoles en la mañana, y expone el ambiente físico y transferencial de la institución y de la atención a uno de sus pacientes. Este texto es, al mismo tiempo, un relato clínico, un tratamiento por la escritura y una confesión.
Palabras clave: psicoanálisis, clínica extensa, psiquiatría, Fundação Casa
RÉSUMÉ
L'auteur a travaillé pendant quelques années comme psychiatre d'adolescents internes dans diverses unités de la Fundação Casa. Envahi et pressionné par des mémoires de cette période, le travail d'écriture s'est montré utile dans l'élaboration de ses expériences. Le récit suit une partie de sa routine, toujours le mercredi matin, et il expose l'ambiance physique et transférentiel de l'institution et de la cure de l'un de ses patients. L'article qui se suit, c'est, en même temps, un rapport clinique, un traitement par écrit et un aveu.
Mots-clés: psychanalyse, clinique extensive, psychiatrie, Fundação Casa
- Oi.
- Oi.
- Essa noite eu tive aquele sonho de novo.
Eu o conheço, já nos vimos algumas vezes, mas, apesar do meu esforço, não consigo me lembrar de sua história ou de seu sonho repetido.
- Você me conta o sonho de novo?
- Eu sonhei que estava preso, aqui mesmo, na Fundação, e eles tinham comprado espelhos pra pôr nos quartos. Mas, quando eu me olhava, eu não tinha um rosto. Fiquei assustado e acordei.
§§§
Estou no carro dirigindo por uma estrada que se afasta do centro em direção às margens da cidade. As construções vão gradualmente diminuindo de altura, e a vegetação passa a predominar na paisagem com o passar do tempo. A mínima parte da minha atenção se põe a guiar o carro de modo quase automático, enquanto a maior parte dela se concentra nas notícias que são transmitidas pelo jornal da manhã no rádio. Estou tentando pensar sobre o cenário político atual, as diversas denúncias de corrupção, as investigações criminais, o movimento apaixonado das massas para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, para todos os lados. Sinto que estou confuso, sem saber como alojar todo esse volume de informação. Estou cansado já nesse primeiro momento do dia, mas continuo a ouvir as notícias.
Quando o carro chega à Fundação Casa, percebo que estou surpreso, como se tivesse sido conduzido até ali - como se a minha própria rotina das quartas-feiras de manhã me fosse inédita. Eu não estava esperando (querendo?) chegar ali. Depois, fico surpreso em estar surpreso, pois noto que toda essa sequência de eventos já havia acontecido na semana anterior, e na anterior àquela e em muitas outras. Entendo toda a situação como uma repetição monótona, um provável sintoma. Sintoma de quê?
O guarda abre os portões da rua para que eu entre, e o carro perambula preguiçoso por um caminho que vai chegar ao portão principal. Ali, desligo o rádio e desço do veículo. O segurança que me recebe parece gentil (desconfiado), faz a revista em meu corpo e me acompanha até o porta-malas. Preciso abri-lo para provar que não estou transportando nada de modo clandestino para dentro da unidade. A situação me produz tranquilização (ansiedade). Eles não sabem que todos os dias trago e levo impressões daquele local dentro de outro bagageiro. Sinto que este texto que estou escrevendo é clandestino. Por diversas vezes, tenciono não escrevê-lo, ou esquecê-lo no fundo de uma pasta no computador.
Depois, o carro segue por uma região de mata e a temperatura vai caindo. Os jardins são malcuidados, assim como a estrada esburacada e as casas em erosão. A imagem de uma das paredes captura meu olhar. Nela há um rasgo desde a superfície até o interior, expondo todas as suas camadas viscerais. A obra é espessa: pintura externa, argamassa, reboco, tijolos e o vazio do buraco. Sinto um frio na barriga. Horror? Fascínio? No limite do desconforto, desvio meu olhar. Sigo para o estacionamento e depois caminho até a entrada do centro de atendimento aos adolescentes.
Chego à minha sala. Existe uma poça ressecada de vômito no chão, coberta por papéis-toalha sujos. Aquela cena está ali há vários dias. Fui eu quem colocou os papéis sobre o vômito ainda úmido há uma semana. Tinha a esperança de que aquela ação fosse apenas paliativa, até que a equipe de limpeza pudesse chegar. Não há equipe de limpeza. Há uma funcionária, que está de licença por motivo de saúde. Existem outras pessoas circulando por ali, mas bizarramente elas não parecem se importar com o vômito. Olho de novo e chego a outra conclusão: acho que aquelas pessoas não estão mais enxergando o vômito ( Freud, 1927/2014). Peço para conversar com um dos funcionários da administração. Ele estranha o meu estranhamento com aquela cena - estou criando um problema. Não há equipe de limpeza, não há outro consultório que eu possa usar. Sinto náusea, não só pelo vômito, mas pela precariedade da situação como um todo. Retiro os papéis sujos do chão e jogo-os no lixo. Molho novos papéis na pia e esfrego o chão, tornando a mancha um pouco menor (quase nada, na verdade).
Em seguida, dirijo-me até a mesa de trabalho. Ela está completamente bagunçada. Por toda a sua extensão há folhas jogadas: receituários, folhas de prescrição, guias de encaminhamento, folhas de prontuário, papéis-carbono, sulfites etc. Muitas estão rasgadas em um ou em vários pedaços, e outras foram amassadas até se tornar uma bola de papel. Olho para o chão e não encontro um lixo. A mesa é o lixo. A sala é o lixo. Saio da sala e vou novamente falar com o funcionário da administração, que, ao me ver mais uma vez, mostra-se disponível (irritado). Ele me aconselha a deixar tudo ali num canto mesmo, depois alguém da limpeza vai passar e recolher o lixo. Fico em dúvida quanto à percepção que ele tem sobre a situação da funcionária da limpeza. Ele não sabe que ela está afastada? Ele sabe e está mentindo para mim? Ele sabe e está mentindo para si? Ele sabe e não sabe ao mesmo tempo? Não sei. Volto para a sala, recolho os papéis que se tornaram lixo e guardo dentro da minha mochila. Organizo os demais em cima da mesa, preparando o consultório para dar início aos atendimentos. Enquanto me encarrego desses cuidados com o ambiente, leio o que está escrito em algumas das folhas. Elas são o resto de um ambulatório de clínica geral que se passou naquela sala durante o dia anterior. Quem deixou a sala naquele estado foi um colega de trabalho, o que me faz ficar irritado. A respeito dele, coloco-me perguntas sobre o porquê de ter deixado a sala naquela condição. Observo que quase todas as perguntas que me ocorrem não têm resposta, e faço força contra mim mesmo para não jogá-las no lixo.
Termino de organizar a mesa e agora sinto que posso chamar os adolescentes para iniciar a atividade clínica. De repente, a mancha de vômito salta novamente aos meus olhos. Assustado, noto que eu também havia deixado de vê-la nesse meio-tempo - acho que confiei demais no meu poder de esfregá-la. A irritação que sentia pelos dois colegas citados vai se transformando em tristeza, pois vejo que eu também estou submetido a uma tendência em deixar de perceber aquilo que é intolerável. Arrogante, acho que eu estava pensando comigo mesmo: "Eu não sou esse tipo de pessoa que faz vista grossa. Faço análise, supervisão, seminários. Não vou fazer como aqueles que ignoram a sujeira e a bagunça. Não vou sentir descaso, não vou fechar os olhos para a situação dessa instituição e desses adolescentes".
Ledo engano: não estou em posição de fazer tais escolhas. Resignado, ambiciono conviver com minhas limitações. Planejo usar aquela mancha como uma espécie de instrumento de navegação. A (im)possibilidade de enxergá-la será minha medida pessoal do grau de recusa em jogo. Talvez não seja possível trabalhar nesse local sem estar submetido a esse tipo de experiência. Vejo que os adolescentes ainda não chegaram. Vou até a mesa, pego uma folha em branco e começo a tomar notas sobre tudo o que estou vendo e pensando. Isso me parece fundamental, pois sinto que preciso escrever para poder olhar minha cegueira de frente. A atividade age para dar representação ao buraco negro do esquecimento, da inexistência. O buraco produziu minha angústia, a angústia se transformou em anotações, e as anotações se reuniram neste texto.
Saio para chamar os pacientes, mas eles não estão ali. Vou até a sala de enfermagem e sou informado de que parte deles não virá à consulta de hoje. Houve uma pequena rebelião durante a madrugada e muitos se feriram num confronto físico com os seguranças. Já foram encaminhados para o hospital e depois seguirão para a delegacia, para o registro do boletim de ocorrência. A outra parte do grupo está a caminho, mas chegará atrasada. A notícia é grave e ao mesmo tempo repetida, habitual. Percebo que não consigo me espantar com o acontecido, ouço tudo com certa naturalidade. Vejo que o sentimento de naturalidade vai me provocando um incômodo, e então chegam o cansaço e a dor de cabeça. Torno a escrever - vou me tratando.
Volto para a sala e pego o prontuário do primeiro paciente agendado. Leio seu nome na capa, mas ele não me diz nada. Não consigo evocar a imagem de seu rosto, sua queixa ou sua história. Sobre esse fato, penso que o número de pacientes sob meus cuidados é enorme e que o trabalho se dá no limite das condições que considero aceitáveis. Já trabalhei em condições semelhantes em muitos outros lugares, mas nunca tive esse tipo de dificuldade, nunca esse tipo de esquecimento. Sinto aqui o poder gravitacional do buraco negro. Abro o prontuário e o folheio em busca das minhas anotações - talvez elas possam me apaziguar. O prontuário está surrado, é evidente o descaso cotidiano com o qual ele é manuseado: muitas folhas estão manchadas, semirrasgadas, embaralhadas, ou uma mistura disso tudo. Percorro sua extensão por duas vezes e não consigo achar meus registros. A cada nova tentativa, cresce um sentimento de desespero, mas na terceira vez enfim os encontro, ufa! Apesar da brevidade, leio minha própria caligrafia e consigo reconstruir alguma imagem daquela pessoa, e de mim mesmo atendendo aquela pessoa. Olho novamente para a minha bússola: o resto ressacado do vômito existe, está ali.
Logo depois, o meu primeiro paciente chega escoltado por um dos seguranças da unidade. Ele vem cabisbaixo, em silêncio, algemado. É conduzido até a sala de espera e se senta no chão. O segurança desliza uma pesada barra de ferro e o tranca com um estrondo de metal. Em seguida, dirige-se a mim, também cabisbaixo, em silêncio e com respeito (medo) - ele teme a autoridade que me confere. Seu temor se relaciona ao modo com que usa sua autoridade com os adolescentes. Em geral, quanto mais violento é um segurança, com mais docilidade ele me trata. Percebo a pressão da identificação projetiva (Klein, 1946/1984) com mais nitidez quando também sinto a tendência em agir de forma dura e autoritária com eles. Lembro que muitos dos funcionários da segurança um dia foram adolescentes internados na própria Fundação, que depois tiveram a oportunidade de retornar nessa outra posição. As roupas mudam, a fantasia permanece. Autorizo a entrada do paciente e ele vai buscá-lo. Ele volta com ele, e ele entra. Vejo que ele está com algemas nas mãos. Peço que ele volte para retirar suas algemas. Recebo um olhar que me diz: "Tem certeza?". Eu confirmo e ele tira suas algemas, a porta se fecha e agora estamos só nós dois ali. Eu estendo a mão para cumprimentá-lo. Ele atravessa meu gesto, me abraça, e eu o abraço de volta. A máscara sisuda se estilhaça num sorriso, e ele se senta.
- Oi.
- Oi.
- Essa noite eu tive aquele sonho de novo.
Eu o conheço, já nos vimos algumas vezes, mas, apesar do meu esforço, não consigo me lembrar de sua história ou de seu sonho repetido.
- Você me conta o sonho de novo?
- Eu sonhei que estava preso, aqui mesmo, na Fundação, e eles tinham comprado espelhos pra pôr nos quartos. Mas, quando eu me olhava, eu não tinha um rosto. Fiquei assustado e acordei.
Qual a prioridade desse rapaz ao me ver novamente depois de um mês? Falar sobre o seu sintoma? Sobre a medicação? Sobre as terríveis condições de sua internação? Sobre sua realidade socioeconómica, um pesadelo desperto? Sobre seus crimes, seu envolvimento com facções criminosas? Nada disso. Sua prioridade é me abraçar e me contar um sonho. O efeito da narração é imediato: a imagem que tenho dele se torna um tanto mais consistente e uma série de memórias sobre sua história passa a emergir dentro de mim. Respondo a partir do local onde fui colocado:
- Agora eu me lembrei do seu sonho. Por que você acha que ele se repete tantas vezes?
- Sei lá. Talvez ele esteja me mandando alguma mensagem.
- Qual mensagem?
- Não sei... [Fica algum tempo em silêncio.] Essa semana eu estava vendo de novo uns episódios daquele seriado que eu gosto, aquele dos tronos, sabe? Então, tem uma parte que eu gosto bastante: é sobre uma menina que perde os pais e tem que se virar sozinha. Esqueci o nome dela. Ela encontra um grupo de assassinos, que dão casa e comida pra ela e que começam a treinar ela pra ser uma assassina também. Eles acreditam no Deus de Muitas Faces, que é um deus da morte. No treinamento, ela tem que esquecer que ela é ela, que ela tem um nome, que ela tinha pais, que ela tinha irmãos e amigos. Ela tem que se tornar Ninguém pra depois poder se disfarçar com qualquer identidade que ela queira. Esse é o melhor jeito pra poder se aproximar dos outros e matar quem precisa ser morto. Nesse treinamento, o mestre dela fica perguntando: "Qual é seu nome?", e ela responde: "Eu não tenho nome". Daí, se ele acha que ela não acredita no que está dizendo, ele a espanca e diz que ela ainda acredita que é Alguém. E daí. Doutor, posso tirar minha blusa? Tô com calor.
- Sim, claro.
Nos outros ambientes da Fundação, ele não pode tirar a blusa: deve ficar uniformizado com o moletom azul comum a todos os adolescentes. Do meu ponto de vista, tal uniformização contribui bastante com o Deus de Muitas Faces. Ele tira a blusa. Por baixo, veste uma camiseta de mangas curtas. Tem braços fortes e os apoia sobre a mesa, na minha direção. Suas tatuagens se fazem presentes ao meu olhar.
- Você tem muitas tatuagens.
- Ah, é verdade. Quer saber o que elas significam?
- Sim.
Ele começa a descrever o significado das tatuagens, uma a uma, e penso que elas poderiam ser reunidas em dois grupos diferentes. O primeiro representa o processo de despersonalização: tornar-se Ninguém, ser eficiente dentro de um grupo criminoso, adorar o deus da morte. Ele fala, um tanto desafetado:
- Essa aqui significa que sou membro do grupo P. Essa aqui significa que um policial está cercado por quatro bandidos e que ele vai morrer. Essa aqui significa paciência, para que o crime possa ser premeditado com frieza. Essa aqui significa que a vida é só um jogo, como um jogo de cartas ou de dados - então, tanto faz viver ou morrer. Essa aqui significa o tráfico de drogas. Essa aqui... Não. Essa aqui deixa pra lá. Essa outra aqui significa...
- Espera, por que você pulou essa aí?
- Ah, é porque essa é triste, essa é pra lembrar de um amigo meu de infância que morreu no crime. A gente era muito parça.
Ele se entristece, seus olhos ficam marejados. Ele tenta engolir o choro e continua a falar sobre o primeiro grupo de tatuagens. Tenta fazer a raiva triunfar sobre a tristeza, mas já não consegue. Começa a chorar bastante. A tatuagem do luto de seu parça é representante do segundo grupo. São tatuagens que erguem um espelho diante dele e lhe mostram que ainda acredita ser Alguém. Também nesse grupo estão tatuados: o nome da filha, o nome da mãe, o nome da avó, o nome das irmãs e dos irmãos (não há o nome do pai, e também nunca houve um pai), uma estrela, que representa a mulher que ele ama (ele não sabe que ainda a ama: ficou revoltado com o afastamento dela depois de seu terceiro crime, mas fala dela quase o tempo todo quando conversamos), o time do coração (aquele que sabe ser o mesmo time do avô materno) e uma lágrima tatuada logo abaixo do olho, que significa a tristeza provocada em quem está lá fora.
O tempo da consulta já se esgotou há muito tempo - ouço vozes do lado de fora interrogando sobre meu atraso. Apesar da pressão, sustento o espaço para que meu paciente possa elaborar um pouco mais em silêncio. Enquanto isso, reflito sobre o longo caminho que percorremos até aqui. De início, meses e meses diante de graves sintomas psiquiátricos e repetidas atuações autodestrutivas, até que um sonho pudesse ser constituído. Dali, mais uma travessia até hoje, quando o sonho repetido ganha significados que podem ser falados e escutados. E daí em diante não sei, veremos. Mas, quando se sonha ser Ninguém, já não se é Ninguém. Nesse momento, ele é Alguém que sonha ser Ninguém, e aqui se apresenta uma das potencialidades fundamentais do trabalho psicanalítico: a possibilidade da Fundação de uma Casa psíquica.
O encontro se dirige para um final:
- Alguém, eu preciso encerrar a consulta, estamos no tempo...
- Tudo bem. Posso continuar tomando o remédio que você me deu?
- Sim. Você acha que está ajudando?
- Ele ajuda bastante com o sono, e com a solidão também. Eu tomo ele e me lembro de você, das nossas conversas. Eu acho que ele me faz sonhar. Esse remédio faz as pessoas sonhar? 1
- Pelo visto, sim.
- Tá, então vou continuar. Só mais um minuto: eu preciso te mostrar mais uma coisa.
Ele dobra a cintura da calça para expor a costura interna do tecido. Em seguida, manuseia o buraco pelo qual passa o cordão e retira de lá um papel enrolado. Quando ele o desenrola, o papel se transforma na foto de uma criança. Ele a entrega nas minhas mãos e observa minha reação. Enquanto olho para aquela menina, ele diz:
- Eu te falo tanto da minha filha que eu queria que você visse ela também, com os seus próprios olhos, sabe? Eu continuo pensando bastante nela, e minha família só consegue trazer ela de vez em quando pra me visitar aqui dentro. Como eu fico com muitas saudades, minha mãe me mandou essa foto e eu colei na parede do meu quarto há uns meses atrás. A Fundação deixa a gente manter algumas fotos - eles acham que ajuda a passar o tempo aqui na internação. Eu gosto muito dessa foto. Tem dias que eu fico um tempão só olhando pra ela, todo o meu tempo livre. Mas daí tem um problema: eu não podia ter trazido a foto aqui, é proibido, ela só pode ficar no quarto. Quando eu voltar lá pra dentro, os seguranças vão me revistar e vão achar a foto. Daí eu vou apanhar e eles vão rasgar a foto da minha filha. Doutor, eu queria pedir pra você não contar pra ninguém que eu trouxe essa foto e queria pedir pra você guardar ela com você. Daí, quando você sair, você pode jogar ela fora e ninguém vai ficar sabendo. Pode ser?
- Mas eu tenho que jogar ela fora?
- Sei lá. Você quer ficar com ela pra você?
- Eu posso?
[Suas pupilas se dilatam e seus olhos se iluminam antes de ficar marejados.]
- Então, tá: a foto é sua. Até a próxima!
Ele se levanta, me abraça novamente e depois entra em seu moletom. Vamos até a porta do consultório. Ele torna a vestir sua máscara sisuda e abaixa a cabeça. O segurança o algema e o conduz de volta até o quarto.
§§§
No momento em que escrevo este pedaço do texto, uma lembrança surge de repente. Eu havia me esquecido, mas aquela foto ainda está comigo. Faço um intervalo e vou até a minha mochila buscar a foto da filha de Alguém. Ela esteve guardada na minha carteira desde então, entre as fotos que tenho de meus familiares. As bordas foram recortadas de forma irregular, para se adequar ao tamanho permitido nos quartos. O papel está amassado por ter sido levado dentro da costura, clandestinamente, até a consulta. A filha é uma menina de cerca de 2 anos, que na foto está chupando a metade de uma laranja. O semblante é sério, e ela está atenta à câmera. Os olhos têm o mesmo desenho dos do pai. Olho a foto, me lembro dele e volto a escrever o texto.
Eu me lembro também das recomendações de Freud a Pfister, sobre o fazer e o escrever psicanalítico:
Acho, portanto, que a análise sofre do mal hereditário da - virtude. Ela é obra de um homem decente demais, que também se sabe comprometido com a discrição. Acontece que essas questões psicanalíticas somente são compreensíveis numa certa totalidade e minuciosidade, assim como a própria análise só anda quando o paciente desce das abstrações substitutivas para os pequenos detalhes. A discrição é, portanto, incompatível com uma boa configuração de uma análise. A gente precisa tornar-se um mau sujeito, jogar-se fora, abandonar, trair, comportar-se como um artista que compra tintas com o dinheiro do orçamento doméstico da esposa, ou aquece o ambiente para a modelo queimando os móveis da casa. Sem tal dose de criminalidade, não há produção correta. (1998, pp. 52-53)
Pelas regras daquela instituição, eu não poderia ter ficado com essa foto. Mas eu aceitei a proposta de meu paciente. Escondi a foto comigo, e o segurança que me revistou no portão de saída não a encontrou. Este texto também é uma confissão. Meu paciente ficou com os seus sonhos, e eu saí com o meu crime (Ferenczi, 1909/2011).
Referências
Ferenczi, S. (2011). Transferência e introjeção. In S. Ferenczi, Obras completas (A. Cabral, Trad., Vol. 1, pp. 87-123). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1909) [ Links ]
Freud, S. (1998). Carta 19. In S. Freud, Cartas entre Freud & Pfister: um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã (1909-1939) (K. H. K. Wondracek & D. Junge, Trads., pp. 52-54). Viçosa: Ultimato. [ Links ]
Freud, S. (2014). O fetichismo. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) [ Links ]
Klein, M. (1984). Notes on some schizoid mechanisms. In M. Klein, Envy and gratitude and other works (1946-1963) (pp. 1-24). New York: The Free Press. (Trabalho original publicado em 1946) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade (J. O. de A. Abreu & V. Nobre, Trads., pp. 13-44). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1953) [ Links ]
Correspondência:
Pedro Colli Badino de Souza Leite
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Recebido em 09.06.2017
Aceito em 27.09.2017