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Revista Brasileira de Psicanálise
versión impresa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo ene./mar. 2020
OUTRAS PALAVRAS
A falta que Bion faz: considerações sobre as relações de objeto e a intersubjetividade nas teorias psicanalíticas1
The missing Bion: considerations on object relations and intersubjectivity in psychoanalytic theories
La falta que hace Bion: consideraciones sobre las relaciones de objeto y la intersubjetividad en las teorías psicoanalíticas
Bion nous manque vraiment: considérations sur les relations d'objets et l'intersubjectivité dans les théories psychanalytiques
Luís Claudio Figueiredo
Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
RESUMO
A leitura do recente livro de Decio Gurfinkel Relações de objeto é a ocasião para uma nova apreciação das obras de Melanie Klein e, principalmente, de Wilfred R. Bion no que diz respeito às figuras da intersubjetividade na psicanálise contemporânea. Assim, a questão que se descortina com a apreciação dessa obra é muito mais ampla e profunda do que apenas um diálogo crítico com o autor. Aspectos relevantes e atuais do pensamento psicanalítico estarão no centro do nosso interesse. Nesse contexto histórico e teórico assinala-se uma forte presença desses dois autores - em especial de Bion -, estranhamente ausentes no livro de Gurfinkel.
Palavras-chave: relações de objeto, intersubjetividade, Melanie Klein, Bion
ABSTRACT
The reading of the recent book by Decio Gurfinkel Object Relations (2017) is the occasion for a new appreciation of the works of Melanie Klein and especially Wilfred R. Bion with regard to the question of the figures of intersubjectivity. A strong presence of these authors is claimed, especially Bion, in this historical and theoretical context.
Keywords: object relations, intersubjectivity, Melanie Klein, Bion
RESUMEN
La lectura del reciente libro de Decio Gurfinkel (2017) Relaciones de Objeto, es la ocasión para apreciar las obras de Melanie Klein y especialmente Wilfred, R. Bion con respecto a la cuestión de las figuras de la intersubjetividad. Se reivindica una fuerte presencia de estos autores, especialmente Bion, en este contexto histórico y teórico.
Palabras clave: relaciones de objeto, intersubjetividad, Melanie Klein, Bion
RÉSUMÉ
La lecture du livre récent de Decio Gurfinkel (2017) Les relations d'objet est l'occasion d'une nouvelle appréciation des œuvres de Mélanie Klein et, surtout, Wilfred R. Bion en ce qui concerne la question des figures de l'intersubjectivité. Une forte présence de ces auteurs est revendiquée, en particulier Bion, dans ce contexte historique et théorique.
Mots-clés : relations d'objets, intersubjectivité, Mélanie Klein, Bion
Introdução
Escrito de maneira muito agradável, elegante, clara e rigorosa, e cobrindo uma faixa extensa da melhor literatura psicanalítica - que começa em Freud, passa por Karl Abraham e Sándor Ferenczi, e chega a Balint e Winnicott -, o livro Relações de objeto (2017) de Decio Gurfinkel se tornou imediatamente uma fonte indispensável para os estudos psicanalíticos no Brasil. Essa impressão se estende ao longo de toda a leitura, mas é mais forte na terceira parte do livro, em que o autor nos conduz por um campo de debates muito oportunos na área das chamadas teorias das relações de objeto e da psicanálise dita contemporânea. Nesse contexto, sobressaem alguns dos autores mais relevantes e "clássicos", como Fairbairn, e também alguns dos contemporâneos de maior interesse para Gurfinkel, como Bollas.
Sua utilidade para o ensino é inegável. Contudo, nosso interesse no diálogo com essa obra não se reduz ao que poderia ser entendido como uma resenha crítica do livro. A partir desta apreciação, o que se abre é o horizonte muito mais amplo, variado e complexo da psicanálise atual e, nele, o das questões relativas à intersubjetividade. Pretendemos, assim, avaliar a presença de Melanie Klein e, mais ainda, de Wilfred R. Bion nesse contexto histórico, teórico e clínico. Para tal, seremos levados a retomar algumas ideias já expostas em outros trabalhos (Coelho Junior & Figueiredo, 2003; Figueiredo, 2009; Figueiredo, Coelho Júnior, Ribeiro & Fontes, 2018) acerca das figuras da intersubjetividade na filosofia e na psicanálise.
Como não somos muito simpáticos a livros grossos demais, e o de Decio Gurfinkel já não é, em termos físicos, dos mais finos,2 ficamos até um pouco constrangidos em apontar alguma omissão. Mas não seria honesto da nossa parte não assinalar ao menos uma omissão totalmente não justificada, para não dizer injustificável. Que falta Bion nos faz!
Uma exclusão discutível, mas parcialmente justificada: Melanie Klein
Em diversos momentos, Decio Gurfinkel nos adverte que não incluirá Melanie Klein e a linhagem kleiniana em sua apresentação (pp. 37-38 e 49). A alegação é que ela não pertence à perspectiva intersubjetivista, que, segundo o autor, é o âmbito do que compreende como relações de objeto. Ela ainda seria uma autora do paradigma pulsional freudiano, mais interessada na dimensão intrapsíquica do que na intersubjetiva. No máximo, ela seria uma espécie de ponte para a construção do pensamento das relações de objeto. Nisso, como em muitas das suas hipóteses básicas, nosso autor segue um livro antigo e de juventude, de Greenberg e Mitchell, sobre relações objetais nas teorias psicanalíticas; esses autores apresentam Klein como "uma 'figura transicional chave' entre o modelo estrutural-pulsional3 e o modelo estrutural-relacional" (1994, p. 88).4
Decio Gurfinkel acompanha Greenberg e Mitchell nessa avaliação, que faz qualquer conhecedor de Melanie Klein ficar um pouco ressabiado. Mas não nos deixemos paralisar por essa discordância tanto com Decio Gurfinkel quanto com seus mentores, discordância cujas razões serão elucidadas a seguir.
Por exemplo, o que dizer da hipótese kleiniana de que desde o começo da vida operam introjeção e projeção, isto é, uma troca permanente entre dentro e fora? Vale lembrar, aliás, que uma das discordâncias de Winnicott com as ideias de Klein acerca dos começos da vida é justamente o fato de que para ele ainda não há, no início, fronteiras entre dentro e fora, ou seja, não há um self minimamente delimitado enquanto o bebê vive em condição de indi-ferenciação em relação ao ambiente e em dependência absoluta. No entanto, para Klein - e para Bion - algo dessa delimitação opera desde o início da vida, mesmo que de modo precário. Alguns dados das neurociências e a observação das interações precoces do bebê com seu entorno dariam razão a Klein, não a Winnicott. Segundo alguns autores, já na vida intrauterina o feto responde a estímulos de fora. Nessa medida, poderiamos supor que já aí comecem a operar introjeções e projeções.
Certamente, são dados inconclusivos e meras especulações, mas o que importa no momento é assinalar que, ao focalizar a própria constituição mais primitiva do psiquismo - o dentro do campo intrapsíquico -, Melanie Klein pressupõe um fora, ou seja, o ambiente e os objetos externos de onde virão os introjetos e para onde irão as projeções. Aliás, ela chega a propor a hipótese de que o bebê humano já nasça com uma "innate unconscious awareness of the existence of the mother" (1959/1984c, p. 248), o que foi traduzido como "um conhecimento inconsciente inato da existência da mãe", vale dizer, de um objeto externo absolutamente necessário. A tradução funciona, mas atenua o paradoxo de uma consciência inconsciente. Não se trata de um conhecimento propriamente dito, mas de algo anterior a ele: o bebê dá-se conta sem saber - isto é, inconscientemente - de uma mãe real no mundo externo porque a pressupõe, também sem disso ter uma clara consciência. Tudo começa assim e daí. Maior afirmação da alteridade do mundo externo e de seus objetos, impossível. Mas o que é notável é justamente que essa pressuposição e esse "reconhecimento" inconsciente da mãe real - ainda não encontrada nem conhecida - são algo já inscrito na mente primordial,5 o que abre o horizonte para um processo interativo continuado entre o externo e o interno, entre o intersubjetivo e o intrapsíquico.
A questão da mãe real ou mãe externa, termos que Klein usa de forma intercambiável, começa assim e nesse momento recuado da pré-história de cada um_ e não termina nunca. É ela a que recebe projeções negativas e positivas, uma vez que é ela a que frustra e ameaça (gerando projeções e intro-jeções negativas) e a que gratifica, acolhe e compreende (gerando introjeções e projeções positivas). É também a mãe real a que reassegura o bebê na passagem pela posição depressiva, quando ela efetivamente sobrevive no mundo externo, contrariando e reduzindo as fantasias raivosas e destrutivas do bebê. Uma mãe que não sobreviva e se afaste ou retalie, caso em que não sobrevive como mãe boa, precipita o bebê na maior das culpas e angústias.
Em todas essas interações, Klein imagina que os eventos produzidos nas relações com a mãe real ocasionem mobilizações pulsionais e modulações da ansiedade, ou seja, o mundo interno estará sempre sendo modulado e transformado pela experiência com os objetos do mundo externo com que o bebê interage efetivamente. Em contraposição, todos os objetos externos são coloridos e interpretados a partir do mundo interno e de seus objetos subjetivos projetados sobre os objetos de fora. É por isso que para Melanie Klein não é possível separar as angústias neuróticas das angústias realistas, como ela afirma claramente no texto "On the theory of anxiety and guilt": "Não é somente o bebê que não pode fazer a distinção: de algum modo, a interação [itálico nosso] entre situações de perigo externas e internas prossegue ao longo de toda a vida" (1948/1984b, p. 39). A fronteira entre dentro e fora se esfuma à medida que a interação entre mundo externo e mundo interno se adensa nessa visão complexa, necessária para tratar da extrema complexidade dos processos psíquicos.
Para concluir, vale a pena reconhecer que o uso da observação das relações precoces do bebê com a mãe e os demais cuidadores - defendido e utilizado no texto "On observing the behavior of young infants" (Klein, 1952/1984a), escrito logo após a publicação de outro texto do mesmo ano, um dos mais completos e sistemáticos da autora, "Some theoretical conclusions regarding the emotional life of infants" (Klein, 1952/1984d) - sugere a importância do ambiente externo e de seus objetos, já que nenhuma observação daria acesso ao intrapsíquico. Klein reconhece as limitações desse trabalho de observação, mas não o ignora nem o desvaloriza; continuamente faz a ponte entre o que vê nas relações observáveis do bebê com seus objetos externos - incluindo as ações e reações de tais objetos (mães e avós, por exemplo) à criança pequena -e o que vai construindo em suas hipóteses acerca do mundo interno, do in-trapsíquico, a partir do que experimenta e observa no trabalho clínico e no campo transferencial.
De qualquer forma, Decio Gurfinkel deixa clara a exclusão de Klein e a "justifica", embora suas justificativas pareçam um tanto discutíveis, assim como nos parecem equivocadas as ideias dos seus mentores americanos, que colocaram Klein como figura de transição, ponte entre as teorias pulsionais e as "verdadeiras" teorias das relações de objeto.
Há, contudo, uma exclusão não justificada e, na verdade, injustificável. Aliás, o próprio Decio Gurfinkel sabe disso. Nas páginas 484 e 485, ele acaba falando de Wilfred Bion e o cita em textos sobre o adoecimento psicótico que não deixam, nem a nós nem a Gurfinkel, margem à dúvida. Diz Bion, transcrito por Decio: "A origem da perturbação é dupla. De um lado, a disposição inata ... de outro, o ambiente", razão pela qual Decio Gurfinkel nos fala do "entrecruzamento complexo entre herdado e aprendido" (p. 485).
Assim sendo.
Uma exclusão não justificada e injustificável: Wilfred R. Bion
Comecemos tratando das noções de experiência emocional e de pensamento, e seu alcance na teoria do pensar, último texto do livro que Decio Gurfinkel leu e citou em seu tratado, Second thoughts (1967). O capítulo sobre a teoria do pensar, no entanto, é de 1962, ao contrário dos demais republicados em 1967, todos da época mais kleiniana de Bion, a década de 1950. Em 1962, começa uma fase muito nova do pensamento do autor; é o ano em que publica o livro Learning from experience, em parte anunciado no artigo que, no mesmo ano, publica no International Journal of Psychoanalysis.6
A experiência emocional é o que e-mociona, move, mobiliza, põe a unidade somatopsíquica em movimento, abrindo o campo para uma série de possibilidades e exigências de transformação. Uma delas, a mais importante para o crescimento psíquico, requer a capacidade de suportar o desconforto, tolerar a frustração e, eventualmente, a dor, a fim de encontrar para essa experiência um destino melhor do que sua pura e imediata eliminação. Ora, a tal da frustração se dá quando as expectativas do bebê - o que Klein chamou de innate unconscious awareness of the existence of the mother - não são minimamente correspondidas. Nos termos de Bion, as preconcepções dão no vazio, ocorrem na ausência do objeto, um objeto externo, evidentemente, em falta. Às vezes, não se trata de uma ausência absoluta, mas da incapacidade de o objeto externo realizar o que lhe compete. Pensa-se na ausência do objeto, mas no caso de essa ausência ser muito primária, vale dizer, de o recém-nascido não encontrar primariamente um objeto plenamente apto a corresponder às suas preconcepções, transtornos graves, como os dos adoecimentos psicóticos e borderline, virão a emergir no lugar do que seria uma capacidade para pensar e processar a experiência emocional bruta, ainda não processada.
De qualquer forma, o que é claro é que o bebê nasce pressupondo - inconscientemente - o encontro com bons objetos externos, presentes e aptos, uma mãe bem equilibrada (well-balanced mother). Nesse bom balanceamento inclui-se a capacidade materna de se apresentar e se ausentar dentro de certa medida.
E mais: é preciso que esse objeto externo cumpra tarefas de continência e transformação psíquica das experiências emocionais do bebê que ultrapassam, em muito, as capacidades de processamento dele. Vai ser nesse equilíbrio sutil entre encontrar e não encontrar a mãe bem equilibrada - um objeto externo - e interagir com essa mãe real, capaz de dar continência às identificações projetivas do bebê, ainda incapaz de fazer de suas experiências emocionais outra coisa que não seja evacuá-las para dentro de um objeto real (capaz de as processar, significar e devolver de forma atenuada e suportável), que se constituirá o psiquismo do infante. Ou seja, o objeto real é pressuposto, procurado, "usado" como alvo de uma comunicação emocional primitiva e tem uma importância insubstituível na constituição do psiquismo nesse processo interativo complexo e delicado. É assim que vai sendo construído o próprio aparelho para pensar do bebê. Este vai expandindo sua capacidade de tolerar e compreender frustrações, ansiedades, raivas, culpas e desejos não realizados, e de sustentá-los sem negações onipotentes. A expansão das capacidades psíquicas dos sujeitos ocorre, desde o começo da vida e sempre, ao longo de toda a existência, necessariamente, pela intermediação do outro, o objeto externo, a mãe real. A ela não basta estar presente nem ser fonte de gratificações e frustrações bem calibradas. Ela precisa oferecer muito mais de si ao filho pequeno: suas capacidades de elaboração psíquica. É essa mãe com tais capacidades que será concebida por Christopher Bollas (1979) como o nosso primeiro objeto transformacional.
Excluir essa teorização do campo dito intersubjetivista parece um con-trassenso, mas diga-se, a bem da verdade, que a ênfase nessa dimensão intersubjetiva em Bion não vem em prejuízo da dimensão intrapsíquica, e o que Decio Gurfinkel chama de movimento pendular (p. 484) seria mais justamente denominado de entrecruzamento, o que aliás ele mesmo sugere na página seguinte.
Trata-se, como se vê, daquelas figuras da intersubjetividade denominadas de intersubjetividade interpessoal e de intersubjetividade intrapsíquica por Coelho e Figueiredo (2003): no lugar de "objeto", a mãe é efetivamente um sujeito, uma pessoa ativa e interativa (intersubjetividade interpessoal), e o próprio aparelho para pensar da criança vai se organizando segundo o modelo intersubjetivo que nos vem de Freud e Melanie Klein (intersubjetividade intrapsíquica).7
Mas ainda haveria mais a dizer a favor da inclusão de Bion no tratado de Decio Gurfinkel, indo além da intersubjetividade interpessoal, e também da intrapsíquica, tão reconhecível na linhagem freudo-kleiniana a que Bion pertence e que o leva a prestar enorme atenção aos conflitos entre eu e supereu nos adoecimentos mais graves (Coelho & Figueiredo, 2003).8
É notável como, na evolução de seu pensamento teórico e clínico, o processo de intuição ganha relevância, bem como a noção de verdade em O. Vale assinalar que, nas obras de Bion posteriores a 1965, estamos realmente indo muito além de Freud e de Melanie Klein (Gerber & Figueiredo, 2018) e de todas as figuras de intersubjetividade pensáveis a partir desses autores.
Resumidamente, a intuição possibilita o acesso à experiência como coisa em si, indo além dos vínculos L, H e K.9 Sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia corresponde, na disposição psíquica do analista, à renúncia à dominância de amor, ódio e conhecimento intelectual nas relações do sujeito com o mundo, com os outros e consigo mesmo. A transposição, ou ultrapassagem, dos vínculos amor, ódio e conhecimento na direção da coisa em si da experiência - O10 - é absolutamente indispensável para a expansão da mente no contexto dessa dimensão "mística" e estética das teorizações clínicas de Bion. É contra estas possibilidades do intuir que resistem as instituições (establishment, tal como as denomina na obra de 1970 Attention and interpretation), sejam as do mundo externo, sejam as do mundo interno: intuir é a fonte do descobrir e do inventar, é a ampliação do campo do pensar criativo na direção do infinito, é a tarefa da mente livre e in-finita.
Cabe uma pequena digressão. A verdade em O procurada pela intuição poderia se parecer ao que Balint e Winnicott teorizam como regressão terapêutica, o que foi muito bem trabalhado no livro de Decio Gurfinkel. Mas é o contrário: para Bion, seguidor de Klein, o começo da vida não se dá na indiferenciação, mas na interação com o ambiente externo e seus objetos, alvos de projeções e fontes de introjeções. Desde o começo, há um eu operando, embora muito incipiente e frágil, mas já se angustiando, introjetando e projetando. Assim, o encontro da verdade em O nada tem de regressivo; é ao contrário uma transcendência e uma conquista. O que se requer da mente do analista e, mais amplamente, de uma mente em contínua expansão - idealmente, a de um paciente em análise - é que ela abandone de tempos em tempos o plano pragmático em que imperam amor e ódio e em que se cria um conhecimento "interessado", condicionado pelas categorias do entendimento, para então aceder à intuição da coisa em si e ao inconsciente compreendido como infinito. É quando Bion ultrapassa os limites impostos por Kant ao conhecimento na Crítica da razão pura. Na verdade, no processo psicanalítico, a transformação em K, em conhecimento (conhecimento representacional), não basta e pode mesmo converter-se em resistência à expansão da mente. É o que acontece quando a mente do analista é ocupada pelas teorias psicana-líticas, ou seja, pelo establishment. É preciso ir além de K, ir à intuição de O. Sai de cena Kant, e entra Bergson na cena da psicanálise inspirada em Bion (Torres, 2013). Não se trata mais de conhecer, mas de vir a ser, um vir a ser infinito, um permanente transformar-se. O intuir, nessa medida, não apenas ultrapassa a dimensão pragmática como rompe com as limitações impostas pelas defesas e resistências. Aliás, a fonte de todas as resistências é justamente a defesa contra a expansão da mente e contra a experiência emocional, ou seja, contra o trabalho psíquico em crescimento.
Parece evidente que estamos no terreno do transubjetivo, outra figura da intersubjetividade contemplada por Coelho e Figueiredo (2003),11 onde encontramos a unidade somatopsíquica radicalmente aberta para o mundo e para o outro, e para si mesma em sua infinita alteridade - e infinito é o termo que Bion adota para falar do inconsciente! É a essa dimensão de infinitude que a intuição nos dá acesso.
Assim, nada de regressão ao amor primário (Balint) ou à dependência absoluta (Winnicott), nenhum retorno thalássico (Ferenczi); para Bion, tratase de ascensão, ultrapassagem dos limites narcísicos e suas defesas, abertura total à alteridade e capacidade infinita de aprender com a experiência, justamente na experiência dessa alteridade inclusiva, a alteridade do outro e a alteridade de nós mesmos, o infinito que nos habita.
Essa mente expandida, e em expansão, é a que, de início, se beneficiou do outro - uma mãe bem balanceada no começo da vida e, ela mesma, intuitiva, para acessar a experiência emocional do bebê - e que pode ir se beneficiando dos outros que a convivência em sociedade proporciona, inclusive de um bom analista, ao longo da vida. É precisamente por isso que essa mente pode se desapegar de certezas e enquadramentos rígidos para seguir pelo mundo interagindo e criando, com a disposição da capacidade negativa,12 tolerante às incertezas e novidades imprevisíveis, inevitáveis quando a mente se abre ao inesperado e ao incerto do infinito. Um aparelho para pensar consistente e apto é capaz de enfrentar as mais extremas e variadas experiências emocionais sem recuos e negações onipotentes. O horizonte das trocas e aprendizagens se torna maior e tende ao infinito. O campo das intersubjetividades em todas as suas figuras ganha total dominância com a conquista da intersubjetividade transubjetiva pela via da intuição da verdade em O.
Como excluir esse Bion, tanto o freudo-kleiniano quanto o que vai muito além de Freud e Melanie Klein, de uma história das relações de objeto que enfatize a dimensão intersubjetiva no pensamento psicanalítico?
A falta que Bion fez
O volume volumoso que Decio Gurfinkel nos ofereceu poderia ter se avolumado mais um pouco para incluir Wilfred Bion na galeria em que brilham Balint, Fairbairn e Winnicott. Teríamos com isso inúmeras vantagens.
A primeira seria a possibilidade de reavaliar Melanie Klein, a quem Bion esteve tão ligado, principalmente na década de 1950. A partir de Bion, o "interacionismo" de Klein fica mais claro que nunca, pois o que ele fez foi dar mais passos e ênfases à direção que já era a dela. A quantidade de vezes em que ela fala de interação entre externo e interno está completamente presente e é plenamente realizada nos textos de Bion, no tal entrecruzamento a que alude Decio Gurfinkel.
Esse reconhecimento daria, inclusive, mais sustentação e algum crédito à noção de ponte sugerida por Greenberg e Mitchell e adotada pelo autor. Mas é bom ressaltar que uma ponte, se não é a famosa ponte de Avignon, faz contato com os dois lados do Ródano, vale dizer, faz contato com as duas matrizes sugeridas pelos jovens Greenberg e Mitchell. Nessa medida, mesmo reduzida à condição de ponte, Melanie Klein já estaria também do outro lado, o que os dois autores quase chegam a reconhecer no capítulo dedicado a ela no livro de 1983.
Mas se apesar de tudo a dimensão interacionista de Klein continuasse a ser ignorada, já não seria possível ignorar a dimensão intersubjetiva em Bion, completamente entrecruzada à dimensão intrapsíquica e pulsional.
Vemos, porém, que nosso autor de certa forma se retrata: eis Bion de volta... (Será o retorno do recalcado?) É quando, já na terceira parte, ao tratar dos adoecimentos psicóticos, ele se vê levado a aproximar (e diferenciar) Bion e Winnicott. Como indicado antes, nesse momento ele começa a ver em Bion muito mais que um "mero kleiniano", embora ele esteja lendo os textos mais "kleinianos" do autor.
Uma última vantagem teria sido a de, com base em Bion e sua evolução teórico-clínica, incluir uma discussão mais aprofundada da própria noção de intersubjetividade, suas diversas figuras e seus entrelaçamentos. Com Bion, vemos como a intersubjetividade interpessoal participa da constituição da intersubjetividade intrapsíquica e cria as bases para uma expansão da mente; esta, com sua capacidade negativa, conquista a intersubjetividade transubjeti-va pela via da intuição da verdade em O.
Passemos finalmente a considerar mais uma das ideias dos militantes americanos a que Decio Gurfinkel dá muito crédito, a menção aos modelos mistos.
Modelos mistos?
Não precisamos ir a Kohut (como fizeram os americanos) para falar em modelos mistos, que reúnem pulsões e objetos, intrapsíquico e intersubjetivo. Será que Balint, Winnicott e mesmo Fairbairn, apesar da sua nova concepção do "instinto", já não nos oferecem modelos mistos? Afinal, o de Melanie Klein e, principalmente, o de Bion, sem sombra de dúvida, já eram modelos mistos, tal como Decio Gurfinkel chega a reconhecer no "retorno do recalcado" que opera nas páginas finais do livro, embora, é certo, a leitura restritiva de Klein pareça persistir.
A necessidade dos chamados modelos mistos surge apenas da tentativa de os americanos fazerem uma contraposição muito nítida entre o paradigma estrutural-pulsional e o estrutural-relacional, uma contraposição necessária ao projeto institucional e historiográfico deles naquele momento, "puxando a sardinha" para o campo relacional e tendendo a desacreditar a dimensão energética das pulsões.
Algumas vezes, tivemos a oportunidade (Figueiredo, 2009) de falar do momento trans-escolar que vive a psicanálise a partir da década de 1980, momento em que o pensamento psicanalítico começou a atravessar livremente muitos paradigmas: pulsão e objeto, intrapsíquico e intersubjetivo, fantasia e trauma, desejo e desamparo. Embora alguns desses atravessamentos sejam realmente mais recentes, outros, como os dois primeiros mencionados, são bem antigos e já estão presentes em Melanie Klein e em toda a linhagem kleiniana, com Bion aí figurando em posição de destaque, principalmente depois que se destacou geograficamente e foi morar na Califórnia. É claro, porém, que muitos leitores de Melanie Klein deixaram de ler com cuidado a autora e as inúmeras afirmações que fez a favor de uma visão muito mais complexa e nuançada do que aquela que insiste apenas na dominância quase exclusiva da dimensão in-trapsíquica. No entanto, mesmo para esses leitores apressados, a afirmação de que ela não pertence à problemática das relações objetais, como querem os historiadores eleitos por Decio Gurfinkel, parece absurda. E mais ainda para quem estudou Klein com algum cuidado. Por outro lado, é indiscutível a presença da problemática pulsional em seu pensamento.
A psicanálise contemporânea transmatricial: Bion e Winnicott e sua presença em Green, Bollas etc.
Hoje tendemos a pensar que o que diferencia a psicanálise contemporânea não se resume ao atravessamento de paradigmas. Em um livro recente, publicado em coautoria com Nelson Coelho Junior, Paulo Carvalho Ribeiro e Ivanise Fontes (2018), o que acentuamos é seu caráter transmatricial. Neste contexto, não poderemos nos estender muito sobre o que expusemos nesse livro, restringindo-nos a uma apresentação sumária para poder dar continuidade ao argumento e concluir o artigo.
Lá falamos em duas matrizes do adoecimento psíquico. Uma delas, a freudo-kleiniana, é fundamental e indispensável em toda a psicanálise. A outra, a ferencziana, é uma matriz suplementar, e com isso sugerimos que em momento nenhum a segunda matriz possa operar sozinha. De certa forma, o lugar de uma psicanálise transmatricial já está antecipado, e não se trata propriamente de uma forma mista. A ideia do misto nos autores intersubjeti-vistas e relacionais americanos pressupunha duas matrizes em franca oposição e incompatíveis, o que dá ao termo misto um caráter de hibridismo. Já o entre-cruzamento das matrizes suplementares cria um espaço de possíveis soluções extremamente integradas e consistentes, como tentamos demonstrar examinando as obras de André Green, René Roussillon, Anne Alvarez e Thomas Ogden. O adjetivo misto não faria justiça a essas obras, nas quais opera uma articulação suplementarizante.
De qualquer modo, a distinção por nós sugerida não equivale a opor pulsão a relações de objeto, intrapsíquico a intersubjetivo. As oposições envolvem de fato aspectos metapsicológicos, mas dizem respeito à suposta inesgotabilidade ou esgotabilidade de recursos psíquicos diante de situações adversas, sejam elas conflitos agudos e insuportáveis ou traumas, gerando grandes incrementos de angústia, com as defesas superativadas, ou estados de agonia, com o colapso de todas as defesas e experiências de morte psíquica.
Como pilares na constituição da psicanálise transmatricial, muito variada e que inclui Green, Bollas e muitos outros, temos as grandes contribuições de Bion e Winnicott.
Sugerimos também uma forte correlação entre essas concepções do adoecimento psíquico (organizadas em termos de, por um lado, angústias e defesas e, por outro, de colapso de defesas, morte e estados agónicos) e as estratégias de cura vislumbradas pela psicanálise atual. De um lado, temos estratégias de cura capazes de acolher, transformar e atenuar angústias e desconstruir defesas excessivas muito rígidas e invalidantes; de outro, estratégias de vitalização e resgate.
A diferenciação que fizemos antes entre as estratégias regressivas de Balint e Winnicott - formas fundamentais de revitalização, a que se acrescentam muitas outras táticas, que passam pelo brincar e pelo jogar, por exemplo - e a estratégia bioniana de propiciar a expansão da mente, criando condições melhores para a construção ou reconstrução do aparelho para pensar - e para um pensar a experiência emocional infinita (inconsciente) que não se resume a conhecê-la e interpretá-la, mas a aceitá-la e transformá-la -, aponta na direção do que precisa ser diferenciado e articulado, em regime de suplementaridade, nas nossas ideias e práticas.
Há, no entanto, algo interessante na diferença entre a via eferente em Bion, a da mente em expansão, e as vias regressivas promovidas nas clínicas de Balint e Winnicott.13 Elas não podem ser confundidas, certamente. Porém a regressão pode se tornar necessária, para o início do processo de cura, porque essa via de transformações em O, isto é, a construção originária dos "predicados da coisa", como diria Freud, foi, no caso de adoecimentos mais graves, impossibilitada pelo ambiente ou destruída por ele. Por isso, em certas análises longas, é possível verificar que, se não houvesse ganhos acumulativos no processo de regressão, seria difícil alcançar uma expansão de transformação em O. Ou seja, os new beginnings que seguem às regressões preparam o caminho para a via eferente de O. Vale dizer, há distinção e também certa complementação, o que corresponde precisamente ao que estamos denominando de suplementaridade.
Dito de outro modo, incluir Bion em suas considerações não apenas teria sido justo e dado ainda maior abrangência a uma pesquisa já tão bem realizada, como poderia ter aproximado Decio Gurfinkel dos horizontes que nos parecem os mais promissores para pensar a experiência da psicanálise nos dias atuais, com suas mais interessantes perspectivas teóricas e clínicas, que articulam as duas matrizes do adoecimento psíquico e suas estratégias de cura em regime de suplementaridade.
Referências
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Torres, N. (2013). Intuition and ultimate reality in psychoanalysis: Bion's implicit use of Bergson and Whitehead's notions. In N. Torres & R. D. Hinshelwood (Eds.), Bions sources: the shaping of his paradigms (pp. 20-32). Routledge. [ Links ]
Correspondência:
Luís Claudio Figueiredo
Rua Alcides Pertiga, 65
05413-100 São Paulo, SP
Tel.: 11 3086-4016
lclaudio.tablet@gmail.com
Recebido em 29/4/2019
Aceito em 9/9/2019
1 Agradeço às leituras e sugestões de Alfredo Naffah Neto, Andreia Vasconcellos, Daniel Delouya, Daniel Kupermann, Ignacio Gerber, Marina Massi, Myriam Uchitel, Nelson Coelho Junior e Paulo Carvalho Ribeiro para versões preliminares deste artigo.
2 Em termos de pensamento, ao contrário, é de muita finura.
3 É o nome que dão à teoria estrutural da mente, a segunda tópica, proposta por Freud em 1923.
4 O livro desses autores, escrito por dois adeptos e, na época, militantes do intersubjetivismo e da psicanálise relacional, está certamente marcado por uma "política historiográfica" bastante datada, o que não reduz sua importância, mas levanta alguma suspeita sobre muitas de suas apreciações. Certamente, em toda historiografia há, subjacente, uma "política" operando na reconstrução da história, mas, no caso desse livro, tal viés é muito evidente e não me parece que tenha produzido bons resultados. Decio Gurfinkel, todavia, fez dele um ótimo aproveitamento.
5 Essa ideia retornará em Bion com o nome de preconcepções.
6 Sobre essa evolução do pensamento de Bion, ver Gerber e Figueiredo (2018).
7 Fairbairn foi quem levou mais longe essa concepção de uma intersubjetividade intrapsíquica nas suas elaborações sobre estruturas endopsíquicas, mas os autores kleinianos também a tornam muito mais complexa do que o que Freud havia proposto em 1923 em O eu e o isso.
8 Denominamos intersubjetividade intrapsíquica a que é concebida como ocorrendo no mundo interno do sujeito. Começa na teoria estrutural de Freud (isso, eu e supereu) e ganha mais relevo em Melanie Klein e seus discípulos, e também, de forma ainda mais nítida e complexa, nas concepções de Fairbairn sobre a estruturas endopsíquicas, tema muito bem desenvolvido no livro de Decio Gurfinkel. Já a intersubjetividade interpessoal diz respeito às relações e interações entre diferentes sujeitos (ou pessoas). Gurfinkel, acompanhando os intersubjetivistas americanos, restringe o conceito de intersubjetividade a essa única figura.
9 L = love, H = hate, K = knowledge.
10 O = origin.
11 A intersubjetividade transubjetiva é a figura da alteridade em que o sujeito é englobado pelo outro, um outro inclusivo. Essa figura de intersubjetividade também não é considerada pelos intersubjetivistas americanos nem por Decio Gurfinkel.
12 Capacidade negativa é um termo tomado de empréstimo a Keats por Bion para designar a condição de abertura e expansão permanente da mente que se requer do analista em atenção flutuante.
13 Essas observações me foram sugeridas por Daniel Delouya a partir da leitura de uma versão prévia deste trabalho. Neste parágrafo me vali de ideias e palavras sugeridas por Delouya.