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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

OUTRAS PALAVRAS

 

A voz no limiar entre a carne e a palavra no teatro de Valère Novarina1

 

The voice on the threshold between flesh and word in the theater of Valère Novarina

 

La voz en el umbral entre la carne y la palabra en el teatro de Valère Novarina

 

La voix sur le seuil entre chair et parole dans le théâtre de Valère Novarina

 

 

Mário César Coelho GomesI; Maurício Eugênio MaliskaII

IPsicanalista. Participante de Maiêutica Florianópolis, Instituição Psicanalítica. Mestrando no Curso de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)
IIPsicanalista. Membro de Maiêutica Florianópolis, Instituição Psicanalítica. Professor de psicanálise no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tenta fazer uma aproximação entre o teatro de Valère Novarina e a psicanálise lacaniana através da abordagem do objeto voz. No teatro de Novarina, vemos uma profusão da palavra no intuito de extrair não o seu sentido, mas a sua voz, como um pedaço de corpo que é lançado no espaço cênico. Na psicanálise, a voz desponta não como um veículo ou um instrumento da palavra, mas como aquilo que se subtrai dela na constituição do sujeito e permanece enquanto resto. O resto vocálico é o que retorna à cena, seja no teatro do dramaturgo francês, seja na própria sessão analítica, como um real do corpo que insiste em transmitir algo para além do sentido. Dessa forma, o objeto voz é o pivô dessa aproximação justamente por ser o inexorável do sujeito, a libra de carne que o sujeito perde para se constituir e retorna para o palco da vida numa insistente presença.

Palavras-chave: voz, palavra, teatro de Novarina, psicanálise


ABSTRACT

This article attempts to approximate Valère Novarina's theater and Lacanian psychoanalysis by approaching the voice object. In Novarina's theater we see a profusion of the word in order to extract not its meaning but its voice as a part of the body that is thrown into the scenic area. In psychoanalysis, the voice emerges not as a vehicle or instrument of the word, but that which is subtracted from it in the constitution of the subject and remains as remnant. The vowel remnant is what returns to the scene, whether in the theater of the French playwright or in the analytic session itself, as a real body that insists on conveying something beyond meaning. Thus, the voice object is the pivot of this approach precisely because it is the inexorable of the subject, the pound of flesh that the subject loses to be constituted and returns to the stage of life in an insistent presence.

Keywords: voice, word, Novarina's theater, psychoanalysis


RESUMEN

Este artículo intenta aproximarse al teatro de Valère Novarina y al psicoanálisis lacaniano al acercarse al objeto voz. En el teatro de Novarina vemos una profusión de la palabra para extraer no su significado, sino su voz como una pieza de cuerpo que se arroja al espacio escénico. En el psicoanálisis, la voz emerge no como un vehículo o instrumento de la palabra, sino como aquello que se le resta en la constitución del sujeto y permanece como un resto. El resto de las vocales es lo que vuelve a la escena, ya sea en el teatro del dramaturgo francés o en la sesión analítica misma, como un cuerpo real que insiste en transmitir algo más allá del significado. Por lo tanto, el objeto voz es el eje de este enfoque precisamente porque es lo inexorable del sujeto, la libra de carne que el sujeto pierde para constituirse y regresa a la escena de la vida en una presencia insistente.

Palabras clave: voz, palabra, teatro de Novarina, psicoanálisis


RÉSUMÉ

Cet article tente de rapprocher le théâtre de Valère Novarina et la psychanalyse lacanienne au moyen de l'objet vocal. Dans le théâtre de Novarina, nous voyons une profusion de mots dans le dessein d'extraire non pas son sens mais sa voix, tel un morceau de corps lancé dans l'espace scénique. En psychanalyse, la voix n'émerge pas comme un véhicule ou un instrument de la parole, mais comme ce qui s'en soustrait dans la constitution du sujet et demeure en tant qu'un reste. Le reste vocal est ce qui revient sur la scène, que ce soit sur le théâtre du dramaturge français soit dans la session analytique elle-même, comme un corps réel qui insiste pour transmettre quelque chose qui dépasse le sens. Ainsi, l'objet vocal est le pivot de cette approche, précisément parce qu'il est l'inexorable du sujet, la livre de chair que le sujet perd pour se constituer et revient sur la scène de la vie dans une présence insistante.

Mots-clés: voix, mot, théâtre de Novarina, psychanalyse


 

 

Introdução

Dramaturgo e filósofo franco-suíço, Valère Novarina é um autor teatral que redefine o paradigma da cena francófona a partir da segunda metade do século xx. Por um lado, vai na esteira da tradição francesa que privilegia a palavra em cena desde o neoclassicismo, com Racine e Corneille. Por outro, leva a palavra até as suas últimas fronteiras. Animal de seu tempo, Novarina é influenciado pelo trabalho da dramaturgia pós-guerra marcada pelo teatro do absurdo. Mais do que dissertar ou narrar a falta de sentido que as experiências de horror lançaram à humanidade, este dramaturgo utilizou-se da quebra da estrutura narrativa como recurso para promover transformações na teatralidade contemporânea.

Novarina representa então esse território de passagem entre o neoclássico e o pós-moderno. Suas peças exprimem uma relação dialética em que a prolixidade das palavras emerge do vazio, verborrágicas, autorreferentes, efêmeras, como excrementos de carne lançados no espaço cênico. A escrita de Novarina parece concretizar enfim o desejo de outro criador francês, Antonin Artaud, que décadas antes pretendia que as palavras no teatro fossem "tomadas num sentido encantatório, verdadeiramente mágico - por sua forma, suas emanações sensíveis, e já não apenas por seu sentido" (1984, p. 146).

Se não é mais em busca de racionalizações que vamos ao teatro, por que seria então? Ora, assim como pretendia Artaud, o teatro contemporâneo é a marca de um retorno à assembleia humana, à coletividade, inclusive em seus aspectos ritualísticos, na fronteira entre o sagrado e o profano. É pelo corpo de atores e espectadores que o teatro atual passa novamente. Corpo, emoções, gestos, voz. Pois a voz é corpo, e a palavra toma corpo na voz. Esse é o universo teatral no qual Valère Novarina está inserido. Para ele é preciso corp(oralizar) a cena.

Essa voz que emerge do real do corpo, utilizando a expressão lacaniana, é também aquilo que produz efeito na experiência analítica. Não é apenas da voz em sua extensão sonora que analista e analisante se valem na situação de análise. São os ceceios, gagueiras, afonias, silêncios, pigarros, atos falhos, vozes da memória ou esquecimento que estabelecem essa íntima relação com o corpo em sua dimensão inconsciente. Quando o analista cala, o que emerge é o discurso sem palavra do analisante, como traçou Lacan (2008) no Seminário 16.

Inserida no oceano de possibilidades que caracteriza o Zeitgeist do chamado teatro contemporâneo, a polifônica dramaturgia de Valère Novarina evoca uma escuta atenta sob diversos aspectos. Sem dúvida, o que salta aos olhos e ouvidos de leitores e espectadores iniciantes no contato com sua obra é o protagonismo que linguagem e palavra ocupam em seu teatro. Tal característica faz com que a voz do autor ressoe como um potente bramido no horizonte cênico, invocando a plateia a relacionar-se corporalmente com sua obra.

Para dar uma ideia mais precisa ao leitor a respeito da própria encenação de Novarina, pode-se dizer que é um teatro que privilegia a estrutura formal ao conteúdo. Isso leva suas criações a uma pobreza quase grotowskiana2 na narrativa, no cenário e na atuação dos atores, mas a uma extrema riqueza nas palavras, em que a voz não está a serviço de um texto, no sentido de dar voz a ele, mas o contrário, o texto está a serviço da voz, pois é esta que se sobressai na sua impostação, no seu ardor, em seu esvaziamento de sentido. No teatro de Novarina, a cena é a pura voz, e por aí se aproxima, entre outras coisas, da cena psicanalítica, na medida em que esta também é pura voz, como um objeto vazio de sentido, oco de significação.

 

A vociferação em Novarina

Se o teatro de Jerzy Grotowski é pobre, o de Valère Novarina é miserável. O encenador polonês almejou um teatro despojado de apetrechos e acessórios que provocassem ruídos ilusórios no encontro entre atores e público. Para Novarina, mesmo essa experiência parece intangível. Seus escritos e tentativas dramatúrgicas expõem de modo visceral na contemporaneidade toda a pobreza de experiência vislumbrada por Walter Benjamin (1933/1987) a partir da Primeira Guerra Mundial.

O fim da experiência foi assinalado pelo filósofo alemão a partir da percepção sobre os soldados sobreviventes, que marcavam no real do corpo suas cicatrizes linguageiras de batalha ao voltarem para casa silentes. "Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca" (Benjamin, 1933/1987, p. 115).

Esse fim de linguagem que transborda na arte através da obra de artistas das mais diversas vertentes encontra em Novarina uma via esburacada em direção ao teatro. Tremblay (2008, citado por Zuluaga, 2014) aponta duas distintas fases na poética teatral novariana: a primeira, denominada teatro dos ouvidos; a segunda, teatro das palavras. Se na fase inicial a participação do espectador era instigada através de provocações rítmicas nos textos, na seguinte é a palavra que toma o protagonismo, sendo o público atravessado por ela, como um grande território de passagem.

Ainda assim, o que sobra dessa palavra é uma voz impessoal do autor, que funciona como mero emissor de uma manifestação vocálica. O ator é um receptáculo dessa voz autoral, uma Über-Marionette - consonante às aspirações do encenador inglês Edward Gordon Craig. Já o público, habitante desse grande território passageiro, é esburacado por essas vozes, cavado, chamado por uma fala que é "um buraco no mundo e nossa boca uma espécie de pedido de ar que cava um vazio - e uma reviravolta na criação" (Novarina, 2002, p. 11).

Lançando o teatro no registro do real, a cena novariana prescinde de personagens. Não há seres ficcionais em suas obras. O que fica evidente no contato com a escrita desse autor é a sensação de estar sendo lancinado apenas por uma alteridade. Sob vários aspectos, "o eu no teatro de Novarina é um eu vazado, atravessado por música, vazio, afeto, falta. O eu falta no teatro de Novarina" (Kfouri, 2011, p. 47). Não há atores nem atuação (quiçá atualizações). Nem personagens, autor, texto dramático ou público. Só uma voz que resta dessa equação complexa e inexata. Voz restante de um não eu que chama, invoca.

Se as últimas palavras proferidas por Hamlet como um sopro em direção a Horácio, na peça homônima do bardo inglês William Shakespeare, são "O resto é silêncio" (1999, p. 139), na obra de Novarina ressoa a sensação de que as alegorias por ele concebidas como uma grande coralidade polifônica dizem, ainda que sem palavras, "O resto é voz".

 

A voz como objeto a em Lacan

Para compreender que resto é esse e como ele é produzido quando da constituição do sujeito, é preciso voltar ao entendimento da concepção lacaniana acerca do objeto pulsional. No Seminário 11, o analista francês concebe como objeto a "algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão" (1985, p. 101). Um lugar marcado pela perda, que lança o sujeito na falta e o insere na corrida desejante. Entrelugar já explorado por Freud no artigo "As pulsões e seus destinos" (1915/1996), onde compreende a pulsão como um território que está entre o psíquico e o somático.

Enquanto objeto da pulsão, a voz é circunscrita ao real do corpo, um objeto em falta, caído, o que faz com que se ligue ao conceito de objeto a instituído na obra lacaniana. Essa voz, tomada em seu aspecto real, nada tem a ver com aquela articulada aos significantes enquanto representantes simbólicos na fala ou palavra. É a voz do infans (aquele que não tem acesso à fala) e que é perdida para que só então este emerja enquanto fala-ser.

A relação da voz é primordialmente com o corpo ou mais exatamente com a incorporação do objeto a, esse objeto que não é um significante, mas que através de sua queda, através de sua falta, provoca e institui a cadeia significante. Através da queda da voz, enquanto objeto a, surge a possibilidade de emergência da fala, enquanto vetor significante. (Maliska, 2012, p. 74)

A queda da voz a que estamos nos referindo, neste momento, diz respeito a concebê-la como um objeto pulsional, cujo destino é a cadência, entendida como um objeto que cai - uma estrela cadente, por exemplo; mas também a cadência como aquilo que permite ritmo, pulsionalidade. Essa cadência do objeto voz é própria da pulsão; os objetos pulsionais, pela sua própria estrutura de perda (de falta), produzem queda. Dessa forma, num rápido passeio pelos objetos pulsionais, podemos constatar que o seio se desprende da boca do lactante durante o desmame, as fezes caem do corpo, o olhar se atira sobre o outro num movimento de possessão, e a voz também é o que deixa o corpo, cai do corpo quando falamos, vai para o exterior em direção ao outro. Então, essa queda é própria do movimento pulsional dos objetos, porque todos eles tentam encarnar esse objeto a, que é a própria falta, pois ele está desde sempre perdido, é um objeto em cadência, como sendo aquele que cai e, partir dessa queda, produz ritmo e pulsionalidade.

O efeito de subjetivação que sucede à queda da voz só pode ocorrer na relação com a alteridade ou, como expõe Vivès, "o circuito da pulsão invocante implica a presença do Outro" (2012, p. 54). Ou seja, para que o sujeito possa produzir seus próprios significantes é necessária a presença do Outro, que dará sentido aos balbucios, glossolalias, grito puro do infans. Somente dessa maneira esse grito puro torna-se grito para, endereçado ao Outro.

Contudo, para não ficar preso ao círculo narcísico do desejo do Outro, é preciso que em algum momento essa voz da alteridade seja silenciada, ensurdecida, de modo que o sujeito possa se constituir e entrar na cadeia de significantes. A esse tempo da subjetivação, Jean-Michel Vivès denomina ponto surdo, "o lugar intrapsíquico em que o sujeito deverá, após ter entrado em ressonância com o timbre originário, poder se ensurdecer a ele para falar sem saber o que diz, isto é, como sujeito do inconsciente" (2012, p. 49).

Se num primeiro momento o sujeito é chamado - invocado - a advir através da voz do Outro, há também o tempo de negar essa mesma voz para que não fique alienado nela. Porém, esse percurso no circuito da pulsão invocante é complexo, tendo em vista que esse ensurdecimento não ocorre no real, mas no campo simbólico, ou seja, é somente no registro simbólico que o sujeito pode não ouvir. Na pulsão escópica o sujeito pode cerrar os olhos para não encerrar-se no desejo do Outro. Já na pulsão invocante o infans lida com o único orifício que não se fecha no corpo, isto é, o ouvido. De modo que é necessária uma operação inconsciente que faz com que a voz se torne um dejeto do corpo, um resto, permitindo a constituição subjetiva.

 

A voz é o escárnio da palavra encenada

Valère Novarina é enfático ao sustentar que "você atira uma palavra ou você quebra uma palavra, e isso vai produzir um homem" (2011, p. 23). Essa afirmação parece recuperar o dizer lacaniano de que é necessário quebrar os ovos para fazer um omelete, da mesma forma que é necessário quebrar o ovo (a unidade) para fazer um homme (homem), um hommelette. O ponto é que ao quebrar a palavra extraímos a voz, esse resto que sobra da palavra, essa que no teatro novariano é lançada no espaço cênico como excremento de carne. A voz é a libra de carne, o pedaço de corpo que se perde na constituição do sujeito e que retorna no real cênico miserável de Novarina.

Essa quebra da palavra mostra talvez aquilo que Lacan foi buscar em A lógica do sentido, de Deleuze, e que este por sua fez buscou em Lewis Carroll, na ideia de mot-valise, palavra-valise ou palavra-mala - concepção de que a palavra pode comportar várias outras dentro dela. Harari (2008), em relação a isso, argumenta que é necessário entender que toda palavra pode ser uma valise, no sentido de portar várias no seu interior. Portanto, quebrar a palavra e abrir essa mala não significa tão somente extrair de seu interior as palavras ali comportadas, mas também extrair esse resto linguageiro que é a voz. Extrair a voz não sem antes promover certa torção nela, para que daí surja um significante. Extrair a voz desse saco é trazer para o palco da psicanálise isso que Novarina nos ensina no teatro, um teatro que não trata as questões sexuais com a mesma hipocrisia que a sociedade. Quebrar a palavra, espremer a voz para que surja um significante novo, que não seja mais um na cadeia da fala, mas um significante que produza a diferença, a instauração de outra discursividade. É isto que se espera numa análise, a produção de uma transformação na radicalidade contundente do sujeito.

Essa produção do inumano posta em ato em Novarina mostra que há um in-humano, um húmus que produz o humano. Esse húmus é um resto, tal como a voz é um resto, um húmus, in-humano, inumano. Novarina pensa essa dimensão do humano e inumano também na ideia do espectador - poeta pretendido pelo autor em seu teatro. Para ele, há um fazer do espectador no ato do espetáculo, ainda que fique numa posição silente ou de contemplação do fenômeno teatral. Haveria nesse momento um profundo trabalho por parte de quem assiste ao espetáculo. O teatro de Novarina invoca, a partir da voz endereçada à plateia, o nascimento de um espect(ator).

Desse modo, o autor insere-se também no atual momento do teatro, que procura tatear seu lugar entre a tv, o cinema e as novas mídias. Às perguntas "Por que ir ao teatro?" e "Por que praticar teatro?" Novarina não hesita em responder que somos seres movidos pelo conhecimento. "Eu sou movido pela pulsão logoscópica", afirma em uma conferência proferida no Rio de Janeiro em 2009. Um saber que se constitui nos corpos em relação. O ator que entrega seu corpo/voz, sua carne, respiração, memória, músculos e emoções, quer saber-se potente em sua faculdade de poder se experimentar outro no palco e aí, paradoxalmente, se descobre impotente, pois "está preso num caminho estreito, de onde não dá pra ver o território todo" (Novarina, 2011, p. 27). O espectador quer conhecer outros mundos, estórias e seres ficcionais, tendo como brinde a capacidade de sair da sala de espetáculos ainda mais intelectualizado. Porém, em Novarina, tanto atores como espectadores são atingidos apenas por uma onda linguageira, que deixa somente a lama da falta no espaço cênico, lançando ambos no vazio e, consequentemente, no gozo da linguagem.

A partir da relação entre o furo da estrutura inconsciente e o gozo por ele gerado pode-se tocar em outro ponto importante da obra novariana. Para o dramaturgo, a fala cava a língua, esburacando-a, como se a linguagem fosse uma terra de passagem onde quanto mais falamos menos sabemos do que falamos. Cada emissão vocálica marca uma ponta de real inapreensível em nossa própria boca, mas que também atravessa o Outro com a inscrição da falta. É a máxima realização lacaniana daquilo que se passa entre o teatro das palavras e teatro dos ouvidos. Lacan é preciso em "Lituraterra" ao dizer: "a aliteração nos lábios, a inversão no ouvido" (2003, p. 15). Com isso, parece falar de um encontro, psicanalítico sem dúvida, em que dos lábios de onde partem as aliterações o analista produz a inversão nos ouvidos, se aproximando, dessa forma, a esse teatro situado entre as palavras e os ouvidos.

Há um chamado, um golpe dado por qualquer palavra, por menor que seja. Cada palavra divide um pedaço do real na tua boca. Aqui é um lugar, na tua boca, onde há esquartejamento do homem pelo espaço e onde escutamos aparecer o vazio, o espaço vir bater. Ouve-se um sopro. O real respira. No pensamento, uma fonte de ar está aberta: um nascimento de espaço aparece entre as palavras. A língua está em fuga, em evasão, em caracol, perseguida, perseguidora, expulsa e abrindo. É algo que cava: uma cavatina; aparece então pra nós, estrangeiro e diante de nós, nosso corpo mais próximo: a linguagem. Nossa carne mental, nosso sangue. (Novarina, 2002, p. 12)

Para além desse lugar do furo enquanto condição para que algo exista, como já acenava Lacan, há também em Novarina uma dimensão carnal do furo no próprio ofício do ator. Em sua "Carta aos atores", almeja atores vaginados, que falem com todos os orifícios do corpo e atinjam o público a partir de uma posição feminina em cena. Essa dimensão sexual do teatro novariano é permeada ainda pela noção da linguagem enquanto zona erógena, tão cara ao autor e à psicanálise. Para gozar na linguagem é preciso ser furado por ela, pois "se pensarmos nos gozos locais, seu lugar no inconsciente será o de um furo bordejado por um limite, imagem que corresponde exatamente ao furo dos orifícios erógenos do corpo" (Nasio, 1993, p. 34).

A linguagem erotizada em Novarina faz semblante à proposição lacaniana ao versar que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" (Lacan, 1985, p. 25). Uma linguagem que não é a linguagem, isto é, que não se pretenda ser toda a linguagem, nem mesmo a linguagem/língua objeto de estudo dos linguistas. Uma linguagem específica, que remete ao timbre originário, àquela voz do primeiro tempo da subjetivação inconsciente e que Lacan denomina lalangue.

Se a linguagem é feita de lalangue é porque esta faz a roda dos significantes girar, ensejando justamente a estruturação do inconsciente como uma linguagem, permitindo a subjetivação e produzindo efeitos que reverberam na experiência analítica. Na sua passagem pelo Rio de Janeiro, Valère Novarina conta uma anedota sobre sua mãe, de que cantava ao piano uma canção em uma língua que não era a sua. Chama a atenção para a presença de uma língua materna incompreensível, o que parece fazer menção à ideia de Lacan sobre essa língua originária que soa ao mesmo tempo estranha e familiar.

Mais relevante do que fazer torções teóricas para aproximar forçosamente os dois autores, importa tanto para o teatro quanto para a psicanálise que essa lalangue produza seus efeitos nas cenas teatral e analítica. Efeitos esses carregados pelas sobras vocálicas que restam da operação de constituição do sujeito do inconsciente. Resto de voz com que se faz psicanálise nas pausas, pigarreios, sussurros, gagueira ou mesmo afonia dos analisantes. Resto de voz que também produz efeitos no teatro de Novarina, ao invocar os espect(atores) a partir do aparente nonsense de sua obra.

O que se ouve em Novarina é o texto pulsátil, pulsionante, pulsional. São traçados d'alíngua, pontuados pela respiração da palavra, provocando a contorção dos corpos. É alíngua a que respira através dos corpos, assim ela se encarna. Pois não é o campo visível o que se dá a ouvir, é o outro corpo, o dos esfíncteres e órgãos, o da circulação, o da respiração. (Vidal, 2011, p. 149)

Por fim, é preciso lembrar que a voz aqui posta em debate, do teatro novariano, é também uma voz lida e não apenas a que se ouve nos palcos quando da efemeridade do ato cênico. A voz de um autor, que é obtida por meio de uma dimensão gráfica, mas que produz efeitos no real do corpo. Como explicita Vivès, "a voz necessita menos de uma boca do que de um corpo" (2012, p. 48). De fato, em Novarina essa voz que não compete apenas ao registro sonoro também invoca o leitor-ouvinte à sede por saber a partir do sopro que flui a cada respiração de sua obra.

 

Referências

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Correspondência:
Mário César Coelho Gomes
Rua Áurea Rosa da Luz, 241, bloco 3, ap. 103
88132-157 Palhoça, SC
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Maurício Eugênio Maliska
Rua Europa, 410, casa 9
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Tel.: 48 99105-8251
mmaliska@yahoo.com.br

Recebido em 14/8/2019
Aceito em 26/5/2020

 

 

1 Trabalho fruto da pesquisa de iniciação científica A voz no teatro de Valère Novarina a partir de uma leitura psicanalítica, desenvolvida durante o período de agosto de 2016 a julho de 2017, com bolsa Pibic/CNPQ na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).
2 O polonês Jerzy Grotowski (1933-1999) é o autor de Em busca de um teatro pobre (1968/1971), livro de ensaios sobre a arte teatral em que valoriza a "pobreza" cênica ou um minimalismo teatral, ante a pretensa "riqueza" cênica de espetáculos que prezam pelo exagero na cenografia, nos figurinos e na atuação.

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