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Temas em Psicologia
versión impresa ISSN 1413-389X
Temas psicol. v.1 n.3 Ribeirão Preto dic. 1993
Da transformação das formas de interação social das crianças na aprendizagem
Maria Lúcia F. Moro; Verônica Branco1
Universidade Federal do Paraná
Este texto oferece à discussão uma síntese de nossas reflexões atuais em torno de resultados de estudos anteriores e os de um estudo mais recente sobre a interação social de crianças em situações de aprendizagem na linha da epistemologia genética.
Trabalhos anteriores relativos à aprendizagem de noções operatório-concretas (Moro, 1987; Moro, 1991), com alunos de pré-escola e de 1ª série de uma escola pública, indicaram-nos alguns resultados interessantes sobre o tema. Entre eles, temos os seguintes: a) uma transformação evolutiva das formas de interação das crianças relativa à idade dos sujeitos e à composição numérica dos pequenos grupos; b) uma seqüência predominante dessas formas de interação; c) a relação entre algumas formas de interação e peculiaridades das tarefas; d) a importância maior de uma atuação qualitativamente mais avançada dos sujeitos para a solução das tarefas em relação a uma atuação mais intensa; e) os diferentes modos de polarização da atuação dos sujeitos nas diversas composições grupais e etc.) as formas de participação do adulto ao propor e orientar as tarefas de aprendizagem.
Encontramos explicação para esses resultados em proposições de Piaget sobre o funcionamento cognitivo.
Assim, entendemos que a transformação evolutiva das formas de interação dos sujeitos tem relação com a faixa etária e com o número de componentes dos pequenos grupos porque sujeitos mais jovens, predominantemente em níveis pré-operatórios, estariam mais centrados em suas realizações e com menor possibilidade de levar em conta pontos de vista diversos, sobretudo quanto mais numerosos forem estes pontos de vista em grupos de maior número de componentes. Logo, nos pequenos grupos, os sujeitos tenderiam mais a expressar realizações individualizadas, "isoladas", nelas centrando-se, diante dos obstáculos colocados por sua própria organização cognitiva à descentração para as realizações dos demais. Por outro lado, indícios de uma evolução, mesmo tímida, das formas de interação em alguns pequenos grupos nos levaram a afirmar que o estar no grupo seria condição necessária à descentração de pontos de vista, algo que Piaget, no começo de sua carreira, já afirmara (Piaget, 1969, 1973).
Em segundo lugar, a progressão de ações ditas "isoladas", imitadas ou justapostas para modos mais avançados de ações conjuntas, foi vista em termos do confronto de ações e verbalizações opostas. Nossa interpretação desse resultado apontou o papel da tomada de consciência pelos sujeitos das oposições entre ações antes justapostas, por exemplo, para poder confrontá-las, sendo os confrontos condição prévia para os conflitos cognitivos. Então, para a solução destes surgiria dos indivíduos a necessidade de coordenar soluções diferentes e/ou opostas por meio de formas mais organizadas da atividade conjunta no grupo. Resultados de Piaget sobre a origem da contradição natural (Piaget et al, 1974) viriam a corroborar essa interpretação.
Um terceiro ponto abordado foi o da relação das formas de interação social dos sujeitos com as peculiaridades das tarefas de aprendizagem. Essa relação foi interpretada pela combinação complexa da ação das diferentes dimensões interferentes na situação; mas destacamos que os sujeitos tendem ali a reorganizar suas formas de interação diante de obstáculos advindos da combinação de dificuldades cognitivas e relacionais acarretadas pelas peculiaridades da tarefa em uma relação significativa com a necessária experiência a ser ali vivida com um objeto de conhecimento determinado, cujas especificidades marcam presença necessária na definição das mesmas tarefas.
Em quarto lugar, a constatação de que haveria primazia da qualidade da participação de cada sujeito no grupo (a expressão de soluções cognitivas mais adiantadas para as tarefas) sobre a intensidade desta participação sugere o papel daquela forma de participação também como condição necessária mas não suficiente aos avanços de construção do próprio sujeito que as expressa, pressupondo novamente sua combinação complexa com a gama de fatores interferentes na situação.
Quanto aos modos de atuação dos sujeitos nos pequenos grupos, foi observada sobretudo uma polarização das trocas entre eles, no confronto entre soluções mais adiantadas, e entre estas e as menos adiantadas. Lembrando, no caso, a provável e complexa interferência da gama de dimensões ali presentes, evocamos mais uma vez para explicar esse fenômeno o papel do confronto de soluções diferentes ou opostas na elaboração de soluções para as tarefas.
Sobre a atuação do adulto nas situações de aprendizagem foram identificadas: uma participação mediadora, centralizada mais na sua figura e mais ligada à dimensão verbal das tarefas; e uma participação orientadora, deixando o adulto de ser o eixo das trocas das crianças, e ligada sobretudo à dimensão mais prática das tarefas. Foi constatado também que esse adulto reorganiza ali seu modo de atuação, modulando-o constantemente entre mais mediação ou mais orientação, conforme a composição numérica do grupo e a idade cronológica dos seus componentes. Assim, por exemplo, sendo mais difícil para crianças menores confrontar vários pontos de vista ao mesmo tempo em grupos maiores, mais necessária seria, então, no caso, a mediação do adulto.
Em trabalho recente, executado em campo, em 1989, com alunos de 1ª série do 1º grau compondo trios, estamos reavaliando as explicações recém-expostas. Nessa investigação, duas séries de situações de aprendizagem, entendidas como construtivistas, visaram ativar a construção respectiva dos seguintes conteúdos escolares (a escrita alfabética e o sistema de adição/subtração) no contexto da interação social das crianças.
No momento, temos apenas resultados da análise qualitativa preliminar das formas de interação social de três dos seis trios de sujeitos na primeira situação de aprendizagem relativa à escrita alfabética.
Porém, mesmo tais resultados muito parciais já nos permitem rever as idéias antes delineadas sobre as formas de interação das crianças naquele gênero de situação.
Assim, sobre a transformação dessas formas de interação, novamente constatamos que as crianças em pequenos grupos mostram possibilidades de organizar progressivamente sua atividade em relação e com os demais. Foi possível ver, em uma sessão de aprendizagem apenas, sinais de avanços das formas de interação no sentido de modos mais organizados da atividade conjunta.
Como em estudos anteriores, esses avanços configuram-se grosso modo na alteração de ações (ações práticas e/ou verbalizações) "isoladas", imitadas ou justapostas para ações conjuntas, intercomplementares, via ações opostas.
Entretanto, esse modelo de seqüência de formas de interação, embora freqüente, não se manifesta regularmente nessa ordem e, muito menos, de modo linear. Pudemos, no atual estudo, verificar melhor o que chamaríamos de variações neste ciclo em ritmo e intensidade diversas: a passagem de ações opostas para intercomplementares, e vice-versa, em ambos os casos com retorno respectivo a ações opostas e intercomplementares; seqüências de ações intercomplementares desde o início, ou de ações que se mantêm justapostas por certo momento, entre dois ou três sujeitos; ainda, seqüências de ações imitadas, de justapostas que chegam a opostas. A salientar, que não registramos episódios de passagem direta de ações justapostas para intercomplementares; sempre esta passagem se fez via ações opostas.
Vemos, então, essas seqüências como ciclos extremamente cambiantes das interações das crianças no contexto grupal, em um modelo com a marca da circularidade. Sugerem novamente que, no grupo, conforme Fraisse (1985), as crianças a todo momento fazem inferências sobre os modos de ação com o(s) outro(s) e sobre os resultados de suas próprias ações na situação.
Assim, observando em nossos trios, ainda que em ritmo mais ou menos rápido, a progressão de ciclos com a marca predominante de ações intercomplementares, cremos ter indicadores de uma evolução das formas de interação segundo o modelo proposto.
A ocorrência desses avanços, segundo ritmos diferentes sugere-nos o papel de diferentes fatores. Entre eles, alguns indicadores obtidos da situação de aprendizagem permitem-nos apontar os de ordem afetivo-relacional dos componentes de cada trio, elementos estes antecedentes às relações interindividuais das crianças na situação. Foi assim que, muito mais rápida e intensamente, logo melhor se origanizaram seqüências de ações intercomplementares/opostas em dois trios compostos por três meninos do que no trio onde, com dois meninos (um deles mais introvertido), havia uma menina. Cumpre lembrar que em todos os trios os sujeitos eram colegas da mesma turna de 1ª série.
De outra parte, obtivemos evidências da relação esperada entre as formas de interação social das crianças e as peculiaridades das tarefas de aprendizagem, estas ligadas, por sua vez, à natureza da noção trabalhada, conforme a interpretação feita a respeito pelo adulto, ao propô-las e orientá-las.
Realizações individualizadas e coletivas manifestaram-se, então, conforme o previsto, mas com variações nos trios: provavelmente devido também àqueles fatores afetivo-relacionais, houve nos dois trios antes referidos, e desde o inicio da tarefa, intensas trocas interindividuais mesmo quando as tarefas eram de execução individual, conforme a orientação do adulto. Já no outro trio, houve repetidas sugestões do adulto para que os sujeitos realizassem em conjunto tarefas previstas como coletivas. Mesmo assim, este fato ocorreu somente quando um dos sujeitos decidiu abandonar sua realização para prestar ajuda à realização de outro, paralela à sua, ajuda não a ele solicitada. A partir desse fato, é que ocorrem as realizações coletivas no trio e aparece depois, ainda que em ritmo mais lento, a intercomplementariedade das ações dos sujeitos também durante as realizações individuais.
A respeito da participação de cada sujeito nos trios, como nos trabalhos anteriores, encontramos indicadores para reafirmar que uma participação qualitativamente melhor no grupo (soluções mais adiantadas para as tarefas), mesmo quando reduzida, é mais decisiva para a solução das mesmas do que uma participação apenas mais intensa. Contudo, diversamente do observado antes, obtivemos, na situação de aprendizagem ora analisada, sinais claros de uma relação entre a expressão de soluções mais adiantadas (as estratégias cognitivas do sujeito) e os níveis de partida dos sujeitos na noção trabalhada.
Vimos mais uma vez como a participação dos sujeitos nos grupos se organiza em pólos alternados de trocas sociais, e como a expressão de estratégias cognitivas mais adiantadas na solução das tarefas parece pesar nessa polarização. Logo, nos três trios, e com variações em torno das realizações individualizadas ou das coletivas, conforme os diversos momentos da situação, encontramos execuções: ora centradas em um pólo, o da participação do sujeito de estratégias mais adiantadas, com os demais entrosando-se na complementação da sua realização ou dela servindo-se como apoio principal para as suas próprias; ora organizadas em dois pólos (dois sujeitos x um sujeito) em torno do confronto de estratégias mais adiantadas mas diferentes ou de estratégias mais adiantadas com as menos adiantadas.
Finalmente, sobre a participação do adulto nos pequenos grupos, identificamos mais uma vez uma participação orientadora e uma participação mediadora. A primeira esteve presente sempre nos momentos de as tarefas serem iniciadas e quando, no seu transcorrer, o adulto a pedido ou não dos sujeitos, fazia um acompanhamento avaliativo das realizações. A segunda apareceu sempre que o adulto sentiu ser necessário chamar a atenção dos sujeitos para alguma ação do outro, ou quando devolvia ao grupo pedidos de ajuda, de informações de algum dos seus componentes. Pudemos, então, registrar o quanto uma atuação desse gênero por parte do adulto desencadeia seqüências de ações entre os sujeitos, levando-os seja a imitar a realização do colega na impossibilidade de produzir algo de outro modo, seja a opor-se ou a complementar a sua realização em relação à do outro, na busca e na troca de informações e de idéias.
Assim, encontramos novamente a relação entre as formas de participação do adulto com o tipo de tarefa, as práticas no caso da orientação, as verbais no caso da mediação. Mas esta relação revelou-se também limitada, destacando-se novamente o quanto o adulto modula sua atuação no transcorrer da tarefa, conforme a participação dos sujeitos e conforme a expressão por eles de estratégias mais ou menos adiantadas.
Expostos nossos novos resultados sobre as interações sociais das crianças em situação de aprendizagem, para explicá-los entendemos ser válido retomar algumas das alternativas teóricas que delineamos em trabalho anterior. Inspiradas nas proposições de Piaget sobre o funcionamento cognitivo, ei-las como se nos apresentam agora, após reelaboração:
- a presença do movimento pendular da centração para a descentração de pontos de vista no grupo e seu significado para a construção cognitiva (Piaget, 1985);
- a necessidade do confronto das realizações individuais no grupo, para ocorrer conflito cognitivo, em combinação com a hipótese da contradição natural como fruto e não causa dos desequilíbrios (Piaget et al. 1974);
- o papel da tomada de consciência pelas crianças de ações diferentes ou opostas e dos resultados dessas ações expressas no grupo, na conceitualização individual em novo plano de construção (Piaget, 1974a; 1974b).
Primeiro, chamamos a atenção para a interligação necessária dessas hipóteses a partir do quadro explicativo piagetiano sobre a natureza e o papel do processo de equilibração na construção do conhecimento.
Assim, a presença de seqüências cíclicas muito cambiantes das formas de interação das crianças nos trios, organizando-se cada vez mais no sentido da intercomplementariedade de ações e polarizando-se segundo as possibilidades de realização individual, sugere-nos, como antes, que nos trios é intensificado aquele movimento pendular centração/descentração, facilitando descentrações mais freqüentes e flexíveis, pela presença de número limitado de ações do outro a serem inferidas como diferentes ou opostas. Em um contexto onde, por tal razão, oportunidades adequadas de experiência com o objeto são oferecidas a cada sujeito, maior será a probabilidade de haver avanços nas estratégias individuais de solução das tarefas, com suas conseqüências prováveis na construção cognitiva individual, os novos patamares para que prossiga aquele movimento.
Por seu lado, a mudança das formas de atuação dos sujeitos de "isoladas" ou justapostas para intercomplementares, passando por formas opostas, nos faz retomar a explicação sobre o lugar da tomada de consciência pelas crianças, no grupo, da oposição de ações "isoladas", justapostas, para que sejam elas vistas como confrontáveis. Desse confronto, os conflitos cognitivos individuais se estruturariam em torno de possíveis soluções para as tarefas; e, para solucioná-los, haveria a necessidade de compatibilizar aquelas diferentes soluções, mediante formas mais organizadas da atividade conjunta do pequeno grupo.
Essa explicação traz no seu bojo a hipótese de que os progressos cognitivos individuais ocorrem a partir de conflitos e que estes advêm do confronto de pontos de vista senão opostos, ao menos diferentes. Em especial, esses confrontos apareceriam nas trocas interindividuais no pequeno grupo, quando o outro traz a cada sujeito a possibilidade significativa de tomar consciência daquelas diferenças ou oposições entre ações, dos resultados dessas ações em confronto, ativando, flexibilizando o processo centração/descentração.
Retornamos, também, para melhor compreender essas idéias, a hipótese de Piaget sobre a contradição natural. Assim, a expressão inicial de ações "isoladas" ou justapostas no grupo ocorreria por causa do primado das ações afirmativas sobre as negativas. Então, e do "encontro" dessas ações, ali expressas pelos diferentes sujeitos, é que poderia surgir, pelo seu confronto, a tomada de consciência da oposição dessas ações e o "sentir" a contradição. Logo, tomar consciência de oposições levaria a viver a contradição, para cuja solução se imporia como necessária a busca de alguma forma de solução por meio de tentativas de compatibilizar soluções com as dos demais no grupo.
As hipóteses que esboçamos podem também explicar os resultados relativos à participação do adulto nos trios analisados. Assim, sobretudo sua participação mediadora teria contribuído, em certos casos, para a modificação evolutiva das formas de interação por ativar o processo de tomada de consciência dos sujeitos de suas próprias ações, como especialmente das dos seus colegas, do que decorreriam os confrontos e a vivência de possíveis contradições.
Logo, em circunstancias em que somente em maior intervalo de tempo as crianças dar-se-iam conta, por si mesmas, das possíveis relações entre suas ações e as dos seus colegas, e do significado dessas relações na realização das tarefas, essa forma de atuação do adulto contribuiria para a intensificação e a flexibilização do movimento da centração para a descentração, necessário à construção individual.
Portanto, está em discussão esse conjunto de interpretações de nossos resultados relativos às interações sociais das crianças na situação de aprendizagem que propusemos. Entendemos que proposições de Piaget sobre o funcionamento cognitivo, originárias de suas investigações dos anos 70, parecem compor um quadro interessante e válido para compreender a dinâmica daquelas interações, reguladas que seriam pelo processo de equilibração. E, ao mesmo tempo, o tema tão complexo das interações sociais em suas relações com a cognição individual pode ser terreno fértil de verificação daquelas proposições.
Referências Bibliográficas
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(1) Setor de Educação Agência financiadora - CNPq.