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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.1 n.3 Ribeirão Preto dic. 1993

 

Exclusão social e alfabetização

 

 

Angela B. Kleiman

Universidade Estadual de Campinas

 

 

Manter que a escola serve como instrumento para perpetuar lugares sociais é praticamente um lugar comum. A escola é a instituição que por excelência prepara os recursos humanos que irão preencher os diversos espaços de atuação econômica, e sua estrutura reflete bem este fato: os graduados do ciclo básico ou, na melhor das hipóteses, do primeiro grau inferior ocupam as posições sociais mais baixas no ciclo econômico, os graduados do segundo grau ocupam lugares intermediários, e assim sucessivamente. Nessa avocação a escola tanto é como legitima o poder (Galtung, 1981).

Pressupõe-se que a escola confere poder porque ela reafirma os valores, habilidades e conhecimentos que a sociedade considera importantes. No caso de sociedades como a brasileira, essa função seria a introdução dos sujeitos à cultura letrada. As crianças que, por força de sua sociabilização primária já tivessem um contato cotidiano com a escrita, através de seus rabiscos precursores da escrita e do desenho, através das estórias que os adultos lêem para elas, através da observação cotidiana de eventos mediados pela escrita, teriam, indiscutivelmente, uma vantagem considerável em relação às crianças cujo dia a dia não inclui tais eventos de letramento.

A crise brasileira na educação mostra que a escola não conseguiu se adequar à grande maioria da população cuja sociabilização no lar não tem na escrita mais uma maneira de significar, de se comunicar naturalmente, de agir sobre os outros e sobre o mundo. Daí que o ciclo de analfabetismo se perpetue num processo que não parece ter fim: geralmente, o analfabeto é ele mesmo filho de analfabetos, e, apesar de seus esforços, ele é também pai de analfabetos.

Ser analfabeto hoje em dia significa estar à margem da sociedade tecnológica e burocratizada em função da qual nossas atividades se articulam. Essa situação periférica não afeta apenas as condições materiais de vida, mas se reflete também na diminuição das expectativas do analfabeto quanto às suas possibilidades de mudança e participação social. Enquanto uma mãe de classe média considera a alfabetização de seus filhos como um dado, a mãe de uma criança pobre considera a probabilidade de seu filho aprender a ler e a escrever extremamente incerta, tanto que essa aprendizagem passa a ser a finalidade do processo que se inicia com a matrícula de seu filho na escola. Esse processo de marginalização da criança se constitui através da linguagem, através da palavra. A linguagem da escola não é a linguagem da criança, seja nos aspectos formais, ou nos aspectos culturais e sociais.

Formalmente, a criança pobre fala uma variedade desprestigiada, que não possui o aval social que o registro escrito confere à linguagem da escola, à variedade padrão da língua.

Do ponto de vista sócio-cognitivo, considerando a linguagem enquanto representação cultural, fala-se, na linguagem da escola, de coisas evidentes, verbaliza-se aquilo que não precisa ser verbalizado. A mãe que verbaliza uma explicação enquanto demonstra uma ação "a gente traça primeiro um círculo com esse pirex e depois vamos recortar" em vez de apenas mostrar como se realiza a ação (Faz assim ô) está também familiarizando a criança com o discurso escolar, no qual o falante se apresenta como testemunha distante e não como participante.

Entretanto, a diferença mais devastadora para o desenvolvimento e a aprendizagem da criança está na diferença da linguagem enquanto ação social, enquanto interação. A aprendizagem só é possível quando existe uma relação de confiança, de respeito, de proximidade nas perspectivas de adulto e criança, de professor e aprendiz (Erickson, 1987; Cazden, 1988; Wertsch, 1988). É o fato de partilhar uma perspectiva comum que permitirá aos participantes da situação definir o objeto do discurso simetricamente. A mãe que, ao observar seu filho com um livro de cabeça para baixo enquanto produz uma seqüência de sons, inteligível ou não, comenta sua ação elogiando-o pela "leitura", sabe perfeitamente que a criança não está lendo, mas apenas imitando os comportamentos observáveis do leitor, mas adota a perspectiva da criança (para quem isso é leitura) para encorajá-la no seu interesse e valorizar sua ação. O objeto leitura, nesse momento, está definido a partir da perspectiva da criança, daí que há interação. Com menos atividade verbalizadora, mas essencialmente a mesma, é a experiência lingüística da criança pobre no seu contato com amigos, irmãos, adultos.

Para poder nos entendermos, precisamos estar falando da mesma coisa, e naturalmente cabe ao adulto, quando os objetos forem muito assimétricos, adotar a perspectiva da criança (mostrando com isso seu respeito por ela) e redefinir o objeto, redefinindo assim a situação.

Sabemos, no entanto, pelo enorme fracasso da escola pública, que esse não é o caso. A escola favorece uma ação, própria da assimetria, na qual o adulto unilateralmente define a situação e os objetivos, seleciona tópicos e determina até o direito à palavra, de falar e ser ouvido. O participante menos poderoso é assim marginalizado no contexto que é construído pelo professor em torno de sua própria figura. Tal marginalização não é conseqüência inescapável da assimetria quando a tarefa do professor deixa de ser entendida como o traspasse de informações, transformando-se no ensino e na aprendizagem, dando origem assim a uma parceria entre professor e aluno.

Examinaremos, nesta apresentação, um episódio de sala de aula, entre uma professora alfabetizadora e um adolescente analfabeto, que constitui um exemplo de marginalização em ação através da ação lingüística do professor. O sistema lingüístico do aluno, bem como a base axiológica que subjaz a sua fala, são contestados, criticados e finalmente descartados pelo adulto, dando origem ao conflito e à resistência do aluno. Não se trata de um episódio incomum nem de uma professora particularmente mal intencionada: como veremos, por força de sua profissão e de sua formação ela não pode senão atuar dessa maneira. Isto é, a instituição em que eles estão inseridos é um espaço que propicia o conflito e determina a exclusão.

Assim, para o adolescente analfabeto, a escola constitui-se em mais um espaço de violência social, instituída mediante a linguagem, mais especificamente, mediante o uso da própria linguagem do aluno para silenciá-lo e, no processo de silenciamento, marginalizá-lo.

 

O letramento e a escola

Um fator determinante dos problemas e conflitos que são corriqueiros nas situações interculturais é a percepção que o professor tem sobre sua função na escola. Esta não é, nem de longe, a de introduzir o aluno, já comprometidamente defasado na sua escolarização e marginalizado pelo seu analfabetismo à cultura letrada.

Podemos pensar em várias dimensões que a tarefa de introdução do aluno à cultura letrada teria.

Se considerarmos o impacto social da escrita, o letramento, a introdução à cultura letrada significa propiciar as condições necessárias para que a criança possa ser um membro pleno, de atuação segura numa sociedade permeada pela escrita: avisos, letreiros, planfletos, embalagens, contratos, formulários fazem parte do cotidiano do sujeito letrado sem que representem qualquer ameaça a sua autoconfiança. O sujeito letrado, nessa perspectiva, é o sujeito instrumentalizado (onde o instrumento é a escrita) para funcionar na sociedade.

Se, por outro lado, considerarmos as mudanças cognitivas que para alguns (Goody e Watt, 1968; Ong, 1982) decorrem do letramento, a introdução à cultura letrada significa propiciar as condições para que o aluno aprenda um tipo de discurso abstrato e descontextualizado que lhe permitirá resolver problemas como explicar, descrever, fazer deduções, planejar, sem o apoio do contexto imediato. O sujeito letrado, nesta segunda perspectiva, é o sujeito verbalizador.

Podemos ainda considerar a introdução do sujeito à cultura letrada como a introdução a novas e diferentes redes referenciais de produção e circulação de conhecimento. O livro, nesse caso, passa a ser uma fonte confiável de conhecimentos, tal qual a interação face a face com pessoas próximas, amigos e familiares em quem confia. Nesta perspectiva, talvez o sujeito letrado corresponda mais de perto ao sujeito educado (em oposição ao meramente escolarizado).

Todavia, a característica marcante do letramento é que ele está determinado pelo contexto específico em que ele se dá, seus usos e funções. No contexto escolar, o letramento não implica a introdução do aluno a nenhuma das concepções de letramento aqui sugeridas. Isto porque a função da escola não é a introdução do sujeito à cultura letrada, abrindo assim possibilidade de redistribuição do poder, mas é apenas a introdução do aluno ao esquema burocrático escolar, que visa a obtenção de um grau ou diploma e que exige, portanto, a sujeição do aluno a um conjunto de regras e normas peculiares à instituição.

Nesse contexto, o compromisso do professor não é com o acervo cultural, que representa um conhecimento de ordem mais genérica, ordenado e passível de verificação; seu compromisso está com resolução de problemas imediatos lançando mão do contexto imediato, de forma a dar respostas verossímeis, não verdadeiras, aos problemas que ele mesmo, e, às vezes, o aluno, colocam (Signorini e Kleiman, 1992)(1). Ele deve ainda, no processo, assegurar o controle do andamento da aula, se constituindo como o falante primário (Bortoni e Lopes, 1991), que determina o rumo da comunicação: ele determina e muda os tópicos, concede ou nega a palavra, decide quem está certo ou errado. Tal domínio e controle determinam um tipo de movimento comunicativo que é universal: o professor pergunta, o aluno responde, e o professor avalia ou comenta a resposta para em seguida perguntar novamente.

Em conseqüência desses compromissos e concepções de sua tarefa, o professor, extremamente frágil devido ao negligenciamento já histórico que vem sofrendo, não tem como se sair bem se ele de fato abrir o diálogo com o aluno. Isto porque o aluno, em sua grande maioria, provém de grupos cujos sistemas de crenças e valores diferem radicalmente daquele que o professor, por força de sua profissão, deve representar. Abrir o diálogo irhplicaria permitir um percurso pedagógico por caminhos não pré-estabelecidos, percurso no qual o professor seria apenas o mediador da aprendizagem. O grau de incerteza, que tal opção significaria, torna-se um risco ameaçador para o professor cujas referências se constituem, na grande maioria dos casos, apenas daquelas do livro didático. Nessa situação, ele não pode senão silenciar o aluno, com conseqüências devastadoras.

 

O conflito precursor da resistência e da exclusão

As evidências a serem apresnetadas provém de aulas de alfabetização de adultos observadas durante um período de 12 meses. O curso em questão tem características comuns à maioria dos cursos para alfabetização de adultos que são oferecidos no contexto da escola, em oposição à alfabetização na indústria, ou na igreja.

Trata-se, assim, de turmas extremamente heterogêneas quanto aos objetivos e expectativas dos alunos, uma vez que nelas se congregam desde crianças (apesar do limite de idade legal para admissão ser 14 anos, amiúde encontram-se aí crianças de 12 e 13 anos) até adultos da meia idade. Para os primeiros a sala de aula é, primordialmente, um lugar de sociabilização e recreio, já que as comunidades a que eles pertencem não têm espaços para tais objetivos, enquanto que para os últimos a sala de aula é o lugar onde eles pretendem adquirir as habilidades necessárias para mudanças mínimas de função nos seus empregos: pelas declarações dos próprios alunos, percebe-se que é a escrita - saber como preencher um formulário, por exemplo - a ponte que separa a tarefa pesada e cansativa de carregador da tarefa mais leve e mais prestigiosa de encarregado dos carregadores.

Por outro lado, as turmas são extremamente homogêneas quanto à origem social dos alunos. Na maioria, são migrantes nordestinos, filhos de analfabetos, que exercem as profissões de menor prestígio. Como a cidade em que moram está rodeada por diversos tipos de plantações, a maioria dos adolescentes e jovens adultos, quando estão empregados, trabalham no campo: eles são catadores de laranjas, cortadores de cana, colhedores de café.

As turmas são muito jovens: 45% dos alunos não fizeram ainda 19 anos. Esses jovens, crianças e adolescentes, permitem entrever, através de suas atitudes, o conflito cultural que a aula representa para o analfabeto adulto. Isto porque são eles os únicos que contestam e oferecem alguma forma de resistência ao professor.

Embora eles não sejam bem sucedidos, já que o professor sempre tem a última palavra, e já que suas tentativas servem para reafirmar as pré-concepções do professor, a ação desses jovens não permite a naturalização do discurso do professor (Clark et alii, 1987). Devido aos questionamentos e oposição por parte dos alunos, esse discurso se revela como uma construção social, deixando de ser a única forma em que o professor poderia falar, a forma natural, e mostrando-se como uma construção social que pode ser questionada, contestada e até mudada.

No episódio que analisaremos (descrito a partir de uma concepção lingüístico-pragmática, em Kleiman, 1992)(2) a professora traz para a aula de leitura o seguinte texto:

Bula é um papel pequeno que vem dentro da embalagem dos remédios. Ele contém as seguintes informações:

Indicação: explica para que tipos de problemas ele serve.

Fórmula ou composição: explica com que substâncias o remédio é feito.

Advertência ou riscos e precauções: explica os cuidados que devemos ter com o uso de alguns remédios.

Efeitos colaterais: explica alguns problemas que podem aparecer na pessoa que usa o remédio.

Contra-indicação: explica que o remédio não é bom para algumas pessoas.

Posologia ou modo de usar, ou dosagem: explica em que quantidade o remédio deve ser usado.

Diversos pressupostos que determinaram a escolha do texto foram considerados como dados e, portanto, não explicitados pela professora. Levando em consideração uma prática bastante difundida, a de automedicação, o texto teria uma função instrumentadora, no sentido que sua leitura e conhecimento poderiam ter uma função específica na ação cotidiana do aluno, necessária pois poderia evitar riscos comuns na prática de se automedicar.

Entretanto, pressupõe-se que a prática de comprar remédios farmacêuticos é também corriqueira e pressupõe-se ainda a habilidade para ler a bula propriamente dita, que, por sua vez, é reflexo de outras crenças culturalmente determinadas, mas assumidas como universais pela professora. A linguagem utilizada na bula supõe um leitor que é membro de uma cultura onde o texto escrito circula livremente como uma fonte de conhecimento e que tem alguma familiaridade com textos medidos de divulgação científica, pois tipicamente a bula usa linguagem especializada. Pressupõe-se ainda um leitor bastante eficiente que conseguirá entender, não apenas o léxico especializado, mas a construção elaborada do texto: enquanto a advertência no cotidiano, num letreiro, por exemplo, é curta e direta, em frases simples (Perigo. Não nadar) a advertência típica da bula é indireta, extensa e com bastante subordinação, como pode se perceber nas quatro advertências a seguir, de uma mesma bula:

Atenção: Não tome remédio com o prazo de validade vencida.

O resultado poderá ser nulo ou prejudicial para a sua saúde.

Informe a seu médico se tem algum problema de saúde e está fazendo uso de algum medicamento.

Todo medicamento deverá ser mantido fora do alcance das crianças.

Não tome o medicamento sem o conhecimento de seu médico.

Pode ser perigoso para a sua saúde.

A aula que discutiremos começou pela leitura, por partes, de cada uma das orações do texto. Os alunos, que caracteristicamente fazem poucos comentários voluntários, liam o trecho, a professora perguntava o significado da palavra que acabaram de definir, e o aluno apresentava como resposta à pergunta da professora, a releitura do trecho. Já no fim da aula, após 70 minutos desse exercício, um adolescente, Dirval, rompe o padrão e explicita seu desacordo, sua não aceitação da premissa básica. Ele diz:

- Tem vei que tomá remédio em casa é meio que i no médico.

A professora imediatamente contradiz a afirmação, mas o aluno insiste, três vezes, que essa é sua opinião, e duas vezes responde negativamente à perguntas dirigidas pela professora como uma forma de conseguir a adesão do aluno ao seu ponto de vista:

- Mas lá (no médico) num tá garantido?

Dirval começa então a elaborar seu comentário inicial, mas é imediatamente interrompido pela professora que indica não ter compreendido a expressão lingüística que ele usou, e Dirval imediatamente substitui a expressão:

Dirval: Remédio de mato é meio.

Professora: Huhh?

Dirval: Remédio de agora num presta.

Após esse momento, muda a estratégia da professora: já que não conseguira que Dirval mudasse de opinião apenas pelo fato de o interlocutor mais poderoso questionar suas opiniões, ela passa a exigir provas e a fornecer contra-argumentos:

Como que num presta?

Remédio de agora? E por que ceis acham que os médicos estudam?

Dirval nega a premissa da pergunta (já que os médicos estudam, os remédios que eles receitam são superiores) e contra-argumenta:

Nãããão. Eles estudam prá ficá lá sentadu. Ganha dinheiro dos pobre.

O raciocínio de Dirval, até o momento, é impecável, mas o mesmo não pode ser dito do da professora, cujo argumento relativo aos médicos mostra que ela não percebe que é essa justamente a premissa que está sendo questionada. Entretanto, essa premissa lhe fornece uma base para continuar a argumentação e para a interpretação particular que ela passa a construir:

Hãã. Estudam pra ficá sentadus. Aha. E você acha que... que... que ele poder - quando ele vai consulta ele vai dá aquele remédio láááááá de 1900 ou vai dá um remédio que...

Note-se o equívoco que a professora introduz agora na sua argumentação. Quando Dirval fornece a expressão "remédio de agora" o faz para esclarecer o significado de "remédio do mato", como o oposto desta última expressão. O parâmetro semântico relevante para a interpretação é, portanto, o contraste científico ou moderno versus tradicional, na rede referencial genética de remédios. Entretanto, a professora reinterpreta os dois termos no eixo moderno versus obsoleto na rede referencial de remédios científicos, de farmácia. Considerando a opção que ela coloca, entre o remédio obsoleto e o moderno Dirval só pode concordar com ela, que os remédios mais recentes são superiores.

Entretanto, Dirval não desiste ainda. Já que seu comentário geral não é aceito, o aluno passa então a exemplificar:

Eu tenho uma tia ... que não deu remédio pra ela.

Remédio dela é remédio do mato.

Depois de perguntar se remédio de mato é remédio natural, pergunta esta tanto inoportuna como desnecessária dado o contexto, mas que serve para marcar melhoras diferenças sócio-lingüísticas encapsuladas no uso da forma não erudita, a professora muda novamente a perspectiva, perguntando:

E não é um remédio?

Apesar de ser essa a tese que o aluno tentava sustentar desde o início, ele esclarece que se trata de um remédio de planta, e a professora conclui a argumentação a partir dessa nova perspectiva, a de que remédio é necessário, dizendo:

Então,... essa planta ... ela tá usando como um remédio prá ela.

E você não acha que é remédio?

Com essa pergunta, ela força novamente o acordo do aluno com aquilo que era inicialmente seu mas que fora apropriado e resignificado pela professora com a finalidade de manipular os argumentos. Dirval, depois de concordar que é remédio, que era sua premissa original, retoma a sua fala inicial, dizendo, já exasperadamente:

Mas não é passada por médico

Nesse diálogo, ou melhor, nessa troca de palavras a violência construída mediante a argumentação fica evidente. O adulto letrado tem todas as vantagens sociolingüísticas nessas situação: fala a variedade padrão da língua, é membro, periférico, talvez, mas ainda membro, da cultura letrada, e tem a força da instituição para sustentar suas palavras. Tendo em vista essas vantagens, e por força de sua função pedagógica no contexto, caberia a ele utilizar estratégias flexíveis na comunicação a fim de adotar, mesmo que temporariamente, a perspectiva do aluno, para conjuntamente construir um objeto de discurso que tivesse pontos em comum, permitindo a interação, que, como dizíamos anteriormente, sustenta-se na confiança e respeito mútuos.

A contribuição do aluno à discussão, que era coerente e relevante ao tópico, deveria ter sido incorporada ao discurso do adulto, como um ponto de partida válido para iniciar o diálogo. Em vez disso, presenciamos uma série de manipulações de ordem lingüística, a partir de uma posição extremadamente etnocentrista, que determina a recusa do professor de aceitar a existência de um sistema cultural distinto, onde o conhecimento de cunho científico, divulgado mediante a palavra escrita, não é questão de fé. É justamente porque os membros da cultura cujos valores estão em questão não têm acesso a esse conjunto de crenças e valores, que a palavra escrita e o conhecimento distante não são valorizados, e isso deveria fazer parte do conhecimento do professor para propiciar uma pedagogia culturalmente receptiva e responsável (Erickson, 1987).

A aceitação sem reflexão, pela professora, dos valores e crenças da cultura que ela representa como se fossem universais, ou naturais, e não apenas uma criação social, tem como conseqüência a incompreensão, a desvalorização e o silenciamento de outras crenças e valores, e, concomitantemente, o pré-conceito contra os membros da cultura que os valorizam.

Retomando novamente a ótica da aprendizagem, o professor perde uma excelente oportunidade para começar a ampliar as redes sociais formadoras de conhecimento e de opiniões do aluno. Ao mesmo tempo, a necessidade de impor seu ponto de vista leva esse professor a formas de raciocínio inaceitáveis. O aluno, que tem dificuldades para defender seu ponto de vista, certamente não aprenderá estratégias argumentativas da cultura letrada através desse exercício de manipulação, nem, muito menos, aprenderá como resistir a violências mais diretas construídas através do discurso, que constituem seu cotidiano, e que tocam em questões de identidade e de legitimização como membros participantes de um grupo.

É pertinente aqui trazer o depoimento de um outro aluno, falando da discriminação e revelando sua impotência na situação.

Aliás quando uma pessoa de poder fala com a gente que não gosta de pobre e a gente sendo pobre memo que ele gosta da gente mas a gente por dentro fica sentido... eu me sinto assim (inaudível) e ele trabalha comigo e fala dos pobre que é praticamente minha família, nós somu pobre, né?

Esse aluno não foi melhor sucedido do que Dirval, pois quando ele acaba, a professora, presa a um planejamento pré-determinado que não contempla o aluno, solicita que eles encontrem o parágrafo onde se encontra descrita a prática segregacionista que aparentemente era objeto válido, apropriado de discussão, enquanto elemento distante no texto, não enquanto aspecto real da vida deles.

As conseqüências mais extremas dessa violência através do discurso são em relação ao próprio sucesso do aluno na aprendizagem, dados esses contatos tão negativos. O aluno que é assim calado, tem poucas alternativas: ele pode assumir passivamente sua condição de aluno sem voz e passar a se constituir em objeto do ensino, aceitando a concepção do professor de seu papel em sala de aula; ele pode abandonar a aula, e de fato a evasão dos cursos é altíssima, ou ele pode resistir. A resistência, isto é, o desenvolvimento progressivo de conflito entre o professor e o aluno minoritário, pode ser considerado como uma forma de ação política. Entretanto, na escola, a resistência do aluno se manifesta na indisciplina e na sua recusa de aprender, isto é, no seu fracasso escolar.

 

Referencias Bibliográficas

Bortoni, S.M. e Lopes, I. (1991) A interação professora x Alunos x Texto Didático. Trabalhos em Lingüística Aplicada, 78,39-60.         [ Links ]

Cazden. C.B. (1988) Classroom Discourse. The Language of Teaching and Learning. Portsmouth, N.H.: Heinemann Educational Books.         [ Links ]

Clark, R., Fairclough, N., Ivanic, R. e Martin-Jones, M. (1987) Critical Language Awareness. CLS Working Papers 1. University of Lancaster.         [ Links ]

Erickson, F. (1987) Transformation and school success: The politics and culture of educational achievement. Anthropology and Education Quarterly, 18, 335-356.         [ Links ]

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Ong, W.J. (1982) Orality and Uteracy. The Technologizing of the World. London: Meuthen & Co.         [ Links ]

Wertsch, J.V. (1988) Vygotsky y la Formación Social de la Mente. Barcelona: Paidós.         [ Links ]

 

 

(1) Signorini, I. e Kleiman, A.B. (1992). When explaining is saying. Teacher talk in adult literacy classes. Trabalho apresentado durante a I Conference for Sócio Cultural Research. Madri, Espanha.
(2) Kleiman, A.B. (1992). Misunderstanding and control: Teacher-student interaction in an adult literacy classroom. Trabalho apresentado durante o 13th Fórum for Elthnography in Education. Phila., PA.

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