Boletim de Psicologia
ISSN 0006-5943
ARTIGOS ORIGINAIS
O psicodiagnóstico interventivo psicanalítico na pesquisa acadêmica: fundamentos teóricos, científicos e éticos
Interventive psychodiagnosis in academic research: theoretical, scientific and ethical foundations
Valéria Barbieri *
Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras - Departamento de Psicologia e Educação - Ribeirão Preto-SP
RESUMO
O Psicodiagnóstico Interventivo Psicanalítico, além de ser uma prática clínica eficaz, se constitui em um valioso procedimento de investigação científica. Embora sua posição como intervenção clínica esteja bem estabelecida, há poucos estudos referentes ao seu potencial como método de pesquisa. Diante disso, o presente ensaio tem como objetivo realizar uma análise preliminar da qualidade do conhecimento produzido pelo Psicodiagnóstico Interventivo em termos de sua validade e precisão e os meios para avaliá-las. O estudo também defende a possibilidade de obter conhecimento objetivo por meio do Psicodiagnóstico Interventivo, a despeito da influência da subjetividade do pesquisador/profissional nos resultados do trabalho. Nesse sentido, a conduta ética do pesquisador e sua capacidade de se identificar com seu sujeito de pesquisa desempenham papel fundamental. Finalmente, são apresentadas algumas correntes do pensamento psicanalítico, particularmente a kleiniana e a winnicottiana, capazes de sustentar esse procedimento clínico/científico, preservando sua integridade epistemológica.
Palavras-Chave: Psicodiagnóstico interventivo, Pesquisa qualitativa, Psicanálise-metodologia, Epistemologia, Ética profissional.
ABSTRACT
Interventive Psychodiagnosis, is not just an effective clinical practice, it is also a valuable scientific research procedure. Although it has a well-established status as a clinical intervention, there are few studies regarding its potential as a research method. In view of this situation, the present essay aims to accomplish a preliminary analysis of the quality of knowledge produced by Therapeutic Assessment, concerning its validity and reliability, as well as the means to assess them. The study also supports the possibility of obtaining objective knowledge from Therapeutic Assessment, in spite of the influence of researcher’s subjectivity on the results of the work. In this sense, the researcher ethical conduct and his/her capacity to identify himself/herself with the participant play an essential role. Finally, some trends of psychoanalytical thought, particularly the kleinian and winnicottian theories are presented, as they can support this clinical/scientific procedure in order to preserve its epistemological integrity.
Keywords: Interventive psychodiagnosis, Qualitative research, Psychoanalysis-methodology, Epistemology, Professional ethics.
O Psicodiagnóstico Interventivo é um procedimento clínico que consiste em efetuar intervenções já no momento de realização de entrevistas e aplicação de testes, oferecendo ao paciente devoluções durante todo o processo avaliativo e não somente ao seu final. Neste contexto, as técnicas projetivas são empregadas como meios de comunicação entre o psicólogo e o paciente (Arzeno, 1995). Pode ser realizado de acordo com diferentes modelos como o Psicométrico (Finn e Tonsager, 1997), o Fenomenológico-Existencial (Fischer, 1979; Ancona-Lopez et al., 1995) e o Psicanalítico (Vaisberg, 2004). Embora a prática de conjugar avaliação e intervenção exista há longa data (Morgan e Murray, 1935; Bellak, 1974; Friedenthal, 1976), ela ganhou identidade própria e passou a ser melhor organizada e debatida na literatura a partir da década de 1990. Os estudos sistematizados a seu respeito são unânimes em comprovar seus benefícios terapêuticos em crianças, adolescentes, adultos e idosos (A. M. T. Trinca, 2003; Gil, 2005; Paulo, 2005).
Definido o valor clínico do Psicodiagnóstico Interventivo, o interesse dos pesquisadores tem se deslocado para a averiguação de suas potencialidades como método de investigação científica (Barbieri, 2008a) e para formas de ensiná-lo em cursos de Psicologia (Tardivo, 2006). Assim, atenção especial tem sido devotada aos seus fundamentos epistemológicos e metodológicos, que devem ser aprofundados; além disso, há necessidade de estender o debate sobre esse procedimento para outras direções.
Diante dessa situação, este estudo visa aprofundar a análise das bases epistemológicas e metodológicas do Psicodiagnóstico Interventivo de orientação psicanalítica por meio do exame de seus fundamentos teóricos, técnicos e éticos, visando solidificar sua posição como método de investigação científica. Tratando-se de um procedimento psicanaliticamente fundamentado, é necessário considerá-lo no âmbito da discussão sobre o emprego do método psicanalítico em Ciência, averiguando as características gerais compartilhadas por ambos e como o Psicodiagnóstico Interventivo posiciona-se em situações em que há antagonismos entre a diversidade de pensamentos presente na Psicanálise.
PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO E MÉTODO PSICANALÍTICO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA
Embora alguns autores prefiram conceber a Psicanálise como arte ou aproximá-la de áreas como a História (Klauber, 1968), Pacheco Filho (2000a) afirma que ela é um paradigma científico, já que suas propostas incluem leis e teorias sobre fatos psíquicos, construção de métodos para a sua investigação e propostas de aplicação. Kvale (2003), ao ponderar sobre a entrevista psicanalítica como método científico, afirma que a forma de compreendê-la insere-se numa concepção da Ciência próxima ao conhecimento da Filosofia existencial, hermenêutica e pós-moderna, que considera os aspectos humanos nela presentes como centrais para obter um conhecimento vívido do indivíduo. Klauber (1968) também já asseverava que aceitar a Psicanálise como Ciência implica sustentar que o método científico é baseado em conceitos mais amplos que a medida e a predição, o que traz sentidos novos para o que se entende por objetividade ou replicabilidade. Nesses termos, a Psicanálise apropriar-se-ia do paradigma qualitativo de investigação (e seria por ele apropriada), num compartilhamento de raízes epistemológicas com o Psicodiagnóstico Interventivo (Barbieri, 2008a), que se estende a características metodológicas, técnicas e éticas. Desse modo, muitas considerações referentes à Psicanálise como método científico também se aplicam ao Psicodiagnóstico Interventivo. Nesse sentido, Violante (2000) afirma que a investigação em Psicanálise não se restringe à situação analítica em si, podendo ser transposta para outras áreas, desde que se respeite o seu critério teórico- metodológico, já que, como afirmou Glover (s/d, citado por Kubie, 1960), se há um processo de associação livre, uma análise está acontecendo.
Dentre as características comuns à Psicanálise e ao Psicodiagnóstico Interventivo, destaca-se em primeiro plano a indissociabilidade entre investigação e intervenção. Freud (1912/1976) afirmou que uma análise, além de operação terapêutica, é um empreendimento científico; portanto, pesquisa e tratamento caminham juntos. Nessa direção, Kvale (2003) sustenta que alguns dos conhecimentos mais penetrantes sobre a condição humana foram produzidos como efeito do trabalho de ajudar terapeuticamente os pacientes.
Considerando essa fecundidade científica, Pacheco Filho (2000a) defendeu que a produtividade e a eficácia da pesquisa em Psicanálise dependem mais da profundidade, tempo de duração e detalhamento do estudo de cada paciente, acompanhado da reflexão teórica, do que do número de indivíduos analisados. Klauber (1968) acrescenta que para o psicanalista não basta conhecer uma lei geral, mas também como ela se aplica a determinada pessoa em determinado momento, e como as leis interagem entre si. Assim, ao invés de buscar uma explicação única para vários eventos, o psicanalista deve encontrar múltiplas explicações para eventos únicos e, acrescentamos, em um caso específico, integrá-las, organizá-las e experimentá-las nas intervenções dirigidas ao paciente. O Psicodiagnóstico Interventivo vai ao encontro dessa perspectiva, já que um dos seus eixos estruturantes é obter uma compreensão profunda e global do indivíduo, o que pressupõe uma consideração de conjunto do material clínico (Ancona-Lopez, 1987), visando estabelecer relações entre os elementos dentro de um sistema e entre os diferentes sistemas (W. Trinca, 1984). Quanto ao vínculo entre a profundidade da pesquisa e a duração do estudo de cada paciente, argumentamos que a limitação de tempo no Psicodiagnóstico Interventivo não implica na produção de um conhecimento de qualidade inferior ao da análise ou psicoterapia, já que ele consiste numa psicanálise condensada (Anzieu, 1961/1988) e, portanto, num lócus importante e prático para a pesquisa.
FUNDAMENTOS TEÓRICOS
Embora o Psicodiagnóstico Tradicional (Ocampo, Arzeno e Piccolo, 1987) integre conceitos da Psicanálise para a compreensão do material produzido pelo paciente na entrevista e testagem, o processo se torna incongruente já que o método psicanalítico não é acatado. Nessa situação não é possível articular uma Psicologia não psicanalítica com a Psicanálise sem a ocorrência de rebaixamentos conceituais nos dois campos, com perda de rigor teórico (Violante, 2000). Subsidiando esse ponto de vista, Pacheco Filho (2000b) afirma que vários psicanalistas recearam que a aproximação entre Psicologia e Psicanálise descaracterizasse esta última no que possuía de mais original e criativo. Birman (1989) afirma que o resultado dessa junção foi a deformação do discurso freudiano e o silenciamento das dimensões mítica e fantasmática da experiência por um modelo preocupado com a adaptação social e com o comportamento. Essa deformação é representada no Psicodiagnóstico Tradicional, que incorporou principalmente as contribuições da Psicologia do Ego, deixando pouco espaço para análises dinâmicas baseadas no significado simbólico dos estímulos das técnicas de avaliação. Em termos práticos, ela se operacionalizou na ênfase dada à avaliação das funções egóicas, resultando na submissão da Psicanálise ao modelo médico-psiquiátrico. Com isso, ao invés de preservar o caráter científico do psicodiagnóstico, tal incorporação contribuiu para fomentar o distanciamento entre a Psicanálise e a Ciência, além de trazer mais uma contradição interna ao procedimento avaliativo (Barbieri, 2008b). Nesse sentido, a despeito de acatar as diretrizes qualitativas da pesquisa psicanalítica, Lagache (1974) defende que a Psicanálise é uma Ciência exata, porque o pensamento inconsciente não é inexato como se costuma dizer. O que acontece é que as fantasias, desejos, sentimentos e conflitos, que ele contém, aparecem distorcidos pelas defesas do ego. O pensamento inconsciente possui lógica própria e não pode ser apreendido, nem pelo pensamento racional, nem pela fantasia isoladamente, mas por uma combinação de ambos; somente assim seria possível encontrar a exatidão e a fecundidade da pesquisa psicanalítica.
Situação similar acontece no Psicodiagnóstico Interventivo, pois o encontro do conflito nodal da personalidade, que pressupõe o desvelamento das características dos objetos internos e de seus relacionamentos entre si e com o ego, das angústias dominantes e das defesas empregadas para o seu controle, das condições constitutivas do self e sua capacidade para a transicionalidade, confere coerência e sentido ao material produzido na situação de tratamento/avaliação. Essa coerência e sentido atestariam a validade do processo, superando a confiabilidade informada pelos índices de validade e precisão dos testes psicológicos.
A integração entre Psicologia e Psicanálise no Psicodiagnóstico Interventivo permite apreender o que existe no indivíduo de mais criativo, original e singular, a significação que ele atribui à experiência, conforme construída no contexto de um estilo de ser em desenvolvimento mediante o relacionamento com o outro; assim, vai além da ênfase na adaptação à realidade. Nessa direção, Violante (2000) defende que uma aproximação entre a Psicanálise e a Psicologia deve permitir superar os limites desta última para realizar um percurso que transcenda o comportamento, a consciência e o ego, e encontrar o funcionamento pulsional do paciente e suas identificações. Somente assim seria possível alcançar o significado da conduta ou a essência do psiquismo. Considere-se ainda que, do ponto de vista epistemológico, a postura teórico-pragmática de enfatizar a avaliação das funções do ego implica a possibilidade de existir uma estrutura vazia de dinamismos psicológicos individuais, remontando à Filosofia quantitativo-positivista que acata a existência de uma realidade puramente formal, passível de ser preenchida por conteúdos vicariantes (Barbieri, 2008a).
Alguns psicanalistas como Brierley (1944, citada por Souza, 2000) consideram a existência de um modelo de reação regido por mecanismos psíquicos anteriores à experiência, que a condicionariam e conformariam. Segundo esse pensamento, mecanismos e experiências psíquicas seriam distintos, sendo atribuído aos primeiros um papel de causalidade, compreendida como não experiencial. De acordo com Souza (2000), à exceção da Psicologia do Ego, quase todos os remanejamentos clínicos e metapsicológicos que sucederam Freud repudiam essas concepções, que resultavam em descrições impessoais e abstratas do psiquismo, aparentadas com os conceitos das Ciências Naturais. Exemplos desses desenvolvimentos são as teorias de Klein (1952/1982) e de Isaacs (1952/1982), que invertem os pressupostos de Brierley ao considerarem que a fantasia é o conteúdo primário de todos os processos mentais e que estes derivam delas. Isso implica dizer que a essência dos processos psíquicos seria a sua significação e que eles se constituiriam em experiências psíquicas e não apenas em reações diante de significações (Souza, 2000). Assim, os processos psíquicos teriam uma natureza simbólica e seriam, eles mesmos, fantasias.
A fantasia, do ponto de vista kleiniano, nasce da experiência intersubjetiva, pressupondo a idéia de alteridade, sendo que as pulsões não apenas investiriam as representações dos objetos, mas os constituiriam em si mesmos (Klein, 1952/1982). Considerar a fantasia como o conteúdo essencial dos processos mentais traz um importante problema teórico já que, nascendo da experiência intersubjetiva, pressupõe um ego minimamente estruturado no nascimento para conceber a existência de objetos separados de si, mesmo parciais. Essa pressuposição, acatada na teoria kleiniana, foi criticada por vários psicanalistas, entre eles Winnicott (1960/1990), que também sustentou a existência de dimensões não pulsionais da experiência. Contudo, na teoria winnicottiana, ante a precária capacidade de fantasiar do bebê, a dimensão do significado da experiência é fornecida a ele pela mãe, nos termos do cuidado físico e do holding que ela oferece. A mãe significaria o corpo do bebê e as sensações físicas que daí advém, com as tarefas de integração, personalização e realização sendo constituídas nesse terreno relacional. Dessa maneira, tanto o referencial teórico kleiniano quanto o winnicottiano, por recuperarem a concepção de um psiquismo geneticamente substantivo e não apenas formal, permitem subsidiar a proposta do Psicodiagnóstico Interventivo, mantendo sua coerência metodológica e epistemológica. Nesse contexto, por sua ênfase na relação de objeto para a constituição, desenvolvimento e transformação do psiquismo, corroboram a importância do profissional que se dedica a essa prática clínica.
VALOR DO CONHECIMENTO
No Psicodiagnóstico Tradicional, apesar de ser atribuído ao psicólogo o papel de elemento mais importante do processo (Cunha, Freitas e Raymundo, 1986), o valor do conhecimento depende principalmente da qualidade dos instrumentos utilizados, especificamente de sua validade e precisão, supondo que elas garantiriam uma síntese final realista e coerente do caso. Essa pressuposição nem sempre é verdadeira, dadas as inúmeras contradições internas com que o profissional se depara no momento de escrever a síntese e que necessitam ser por ele solucionadas e integradas (Barbieri, 2008b). Portanto, a validade dos instrumentos (das partes) não garante a validade do processo (do todo) e, uma vez que as formas de definição da primeira já se encontram bem estabelecidas no modelo tradicional, atenção maior deve ser dada à segunda.
No Psicodiagnóstico Interventivo a situação é um pouco diferente, já que a priorização de instrumentos pouco estruturados e baseados na associação livre faz com que considerações sobre sua validade, precisão e padronização estatística percam muito do seu sentido. Buscando conhecer o que existe de singular na pessoa, interessa menos saber em que ela se aproxima ou desvia da amostra de padronização e, mais, as razões e o significado de sua conduta. Ainda, a união entre diagnóstico e psicoterapia desloca as questões de validade e precisão do âmbito da avaliação para o da intervenção, pois a ‘exatidão’ desta última implica também na da primeira.
Embora no Psicodiagnóstico Interventivo exista uma relação mais estreita entre a validade da parte e a do todo do que no processo tradicional, ela não é unívoca ou absoluta, mesmo que intervenções específicas promovam, em nível micro, o objetivo de transformação do trabalho todo. Portanto, há necessidade de estimar tanto o valor da intervenção específica como o do processo completo para a avaliação da qualidade e objetividade do conhecimento produzido. Contudo, não existe entre os métodos qualitativos um arsenal de procedimentos de avaliação da qualidade dos dados tão sistematizado quanto os das pesquisas quantitativas, sendo necessário o desenvolvimento de procedimentos para tal.
Nesse contexto, a psicoterapia e o Psicodiagnóstico Interventivo seriam settings oportunos para a avaliação da qualidade do conhecimento neles construído, porque permitem que a intervenção nascida do contexto biográfico, a que se tem acesso, tenha o seu valor testado, observando-se os seus efeitos sobre o paciente. Nessa direção, Bleger (1980) afirmava que a boa observação requer formular hipóteses durante a entrevista e verificá-las no momento mesmo em que elas ocorrem, de acordo com as observações subseqüentes; assim, do seu ponto de vista, observar, pensar e imaginar compõem um único processo dialético. Esse tipo de validade fundada no acordo intersubjetivo entre paciente e profissional é denominada ‘member checks’, e consiste em um meio de avaliar a objetividade do conhecimento produzido em entrevistas (Kvale, 2003).
Fielding e Llewelyn (1982) afirmam que o único modo de saber, se uma intervenção ou teoria é significativa, é verificar o que acontece quando ela é utilizada; isso seria predição, empregada como meio para compreender o sujeito de estudo. Contudo, nos procedimentos psicanaliticamente orientados, em que a existência de fenômenos inconscientes é um pressuposto básico, o método do member-checks necessita ir além da simples aceitação por parte do paciente como prova da autenticidade da intervenção. Assim, Freud (1937/1976), ao avaliar a qualidade da interpretação, distinguiu entre a sua validade comunicativa e a pragmática. Ele não confiava na comunicação verbal por parte dos pacientes e não aceitava o ‘sim’ ou ‘não’ deles como evidência da confirmação ou refutação da interpretação, porque esse tipo de resposta é ambíguo e pode resultar de sugestão ou resistência. Portanto, sugeriu que o processo de member-checks meramente verbal fosse abandonado e recomendou formas indiretas de validação (pragmáticas), inferindo a partir das reações do paciente após a interpretação, por exemplo, mudanças nas associações livres, sonhos, evocação de lembranças esquecidas e alterações nos sintomas neuróticos. Brenner (1955, citado por Klauber, 1968) acrescentou a essa listagem a diminuição da ansiedade, melhora do sintoma (ou seu oposto nos casos em que há uma predominante necessidade de sofrer), surgimento de novas fantasias ou outras associações verbais ou gestos confirmatórios, acompanhados ou não por uma experiência emocional.
Klauber (1968) afirma que a ‘correção’ da interpretação não pode ser estimada fora do contexto da análise completa e da personalidade do paciente. Hanns (2000) ecoa esse pensamento, afirmando que uma intervenção inócua ou nociva no curto prazo pode ser benéfica no longo prazo; da mesma forma uma ação terapêutica pode ser prejudicial para um sintoma, mas relevante para uma mudança estrutural no sistema psíquico.
Portanto, a definição do valor do processo psicanalítico e do Psicodiagnóstico Interventivo necessita ir além do critério de avaliação imediata das alterações sintomáticas, substituindo essa aferição herdada do modelo médico por outra, referente às modificações nos psicodinamismos dos pacientes, numa análise que inclui a articulação entre as fantasias e os processos mentais que derivam delas. Somente assim será possível contornar o problema da ausência de critérios objetivos para estimar o valor do conhecimento produzido nessas situações. Nesse sentido, Arzeno (1995) ressalta a utilidade do processo psicodiagnóstico para a avaliação dos tratamentos psicológicos.
Embora o método member-checks demonstre a possibilidade de obter conhecimento objetivo em processos em que a subjetividade do pesquisador é parte constituinte, uma maneira mais direta de fazê-lo é por meio do procedimento peer-checks, também baseado no acordo intersubjetivo. Sua realização implica remeter relatos das sessões, entrevistas e aplicações interventivas de técnicas projetivas a outros profissionais, que irão inspecionar e avaliar as interações entre o psicólogo e o paciente, e as intervenções realizadas. Esse método é considerado por Kvale (2003) como integrando uma concepção dialógica de validade, comunicativa e não pragmática, já que envolve uma negociação entre pares. Sua utilização implica na necessidade de uma escrita clara e minuciosa do relato, que torne transparentes as linhas de raciocínio utilizadas pelo psicólogo para realizar suas intervenções. Nesse sentido, Eisner (2003) afirma que um estudo qualitativo é adequado, se, por meio de sua capacidade de ‘revelar’ ele capacita os leitores a verem as qualidades nele descritas.
A despeito de sua difusão, o método do peer-checks apresenta dificuldades importantes, quando aplicado a procedimentos psicanaliticamente orientados, sendo a razão mais dramática disso a quantidade de subdivisões da Psicanálise em escolas, situação que tem sido bastante ignorada como um problema metodológico (Klauber, 1968). Contudo, mesmo dentro de um único referencial teórico as avaliações individuais desses relatos sempre variam um pouco, o que faz com que a determinação da validade dependa também do número de ‘juízes’. De acordo com Pacheco Filho (2000a), a resolução desse impasse dependeria do desenvolvimento de ensaios que evidenciassem a matriz epistemológica dos conceitos teóricos utilizados e dos critérios de sua legitimidade que fundamentam a interpretação, atribuindo-lhe um caráter de autenticidade ou eficácia.
A objetividade do conhecimento de um estudo qualitativo também pode ser definida em termos contextuais, o que envolve perguntar se todos os aspectos relevantes do conjunto social do objeto foram considerados. Assim, a objetividade significaria ser fiel na descrição e compreensão do objeto. De acordo com Klauber (1968), em Psicologia, a sensação de convicção que deriva desse tipo de validade deve-se ao julgamento de que uma avaliação complexa das inter-relações dos motivos psicológicos e das pressões externas foi obtida. A validade contextual também estaria vinculada à corroboração estrutural, que implica na existência de dados suficientes convergindo para uma mesma conclusão. Acrescentamos que a validação contextual, ao se propor compreender a natureza intrínseca do objeto, necessita estar associada à validade pragmática do member-checks, já que esta permite ao objeto protestar.
Klauber (1968) ao comparar o método psicanalítico com o histórico, definiu outro tipo de validade partilhada por ambos, que chamaremos de ‘retrospectiva’. Ela se baseia nas reconstruções que o analista faz sobre o passado do paciente a partir da experiência transferencial. Essas reconstruções seriam confirmadas ou não pelo paciente em suas lembranças e associações subseqüentes, numa semelhança com a validação comunicativa ou pragmática da interpretação. Deve ser considerado, no entanto, que a experiência transferencial não é mera repetição do que já foi vivido, mas implica uma recatexia de conteúdos da memória devido ao desejo de compreensão na situação analítica. Nesse contexto, Lagache (1974) acrescenta que a neurose de transferência é um esforço novo de resolução de conflitos inconscientes, o que torna a tarefa de reconstrução do passado bastante complexa. Segundo Klauber (1968) essa reconstrução não seria diferente das predições, constituindo-se assim em uma espécie de ‘predição no passado’. Contudo, ela seria diferente da predição das Ciências Naturais, baseada na operação de uma única lei. Além disso, enquanto o cientista que conduz um experimento sabe exatamente qual é a hipótese que está investigando, a hipótese do historiador (e a do psicanalista) é implícita ou muito difícil de definir.
Essas considerações apontam todas para a possibilidade de obter conhecimento objetivo a partir da situação psicanalítica e do Psicodiagnóstico Interventivo em acordo com os quatro sentidos de validade descritos, garantindo um rigoroso controle de qualidade dos dados. Com relação à aplicação desses conhecimentos a outras situações e eventos, deve ser posta em questão a afirmação de que pesquisas que apreendem o fenômeno em sua concretude, como os estudos de caso, inviabilizam generalizações.
Eisner (2003) sustenta que os estudos de caso desempenham uma função heurística e podem oferecer uma estrutura ou esquema antecipatório que orienta, facilita e aumenta a eficiência de nossas pesquisas. Dessa maneira, ele teria aplicações para além do caso investigado, desafiando a crença de que N = 1 não teria lições a ensinar; ao contrário, esta seria a nossa forma mais comum de generalizar. Portanto, um observador sensível da situação humana poderia produzir um conhecimento com uma amplitude de alcance similar àquela permitida por uma pesquisa envolvendo um grande número de sujeitos.
É importante acrescentar que o uso de uma situação concreta para compreender outra, potencialmente similar, deve incluir tanto os seus aspectos formais quanto os substantivos, inseparáveis entre si. Assim, embora os casos posteriormente investigados não sejam idênticos ao anterior, alguns temas fornecidos por ele podem ser relevantes e compartilhados. Fundamentados nessa constatação encontram-se os métodos de estudo de caso coletivo (Stake, 2000) que, indo além do caso único, engloba um maior número de participantes, visando identificar regularidades entre eles. Na pesquisa psicanalítica, W. Trinca (1998) salienta o valor desse método na identificação de dinamismos psicológicos comuns a vários casos.
Essas considerações permitem, portanto, rebater as críticas dos quantitativistas e experimentalistas de que não é possível generalizar a partir de estudos qualitativos de casos. Todavia, as peculiaridades próprias da generalização nessa perspectiva de investigação levaram os qualitativistas a substituir esse termo pela expressão ‘transferência de conhecimento’.
FUNDAMENTOS ÉTICOS: A RELAÇÃO PROFISSIONAL/PACIENTE
A relação psicoterapêutica é uma situação privilegiada para a produção de conhecimento sobre a situação humana, por seu entrelaçamento entre ética e objetividade (Kvale, 2003). O valor desse conhecimento, por seu turno, depende da atitude e conduta do psicólogo para com seu paciente. Dessa maneira, a garantia de produção de um conhecimento de qualidade requer um sólido domínio teórico, prática clínica e desenvolvimento pessoal e cultural do pesquisador. Essas habilidades aumentam a perícia para realizar observações e intervenções, particularmente o timing destas últimas.
A condição básica para a construção do conhecimento numa situação interpessoal diz respeito à capacidade de o investigador identificar-se com os seus sujeitos de estudo. O distanciamento desapegado em relação a eles, preconizado pelo paradigma positivista, restringiria essa possibilidade somente para situações que foram de fato vividas pelo pesquisador. Portanto, a amplitude do conhecimento depende da liberdade de o pesquisador aproximar-se de seu paciente, tornando-se assim incompatível com o seguimento de regras metodológicas estritas sobre esse relacionamento. Em acordo com esse ponto de vista, Kvale (2003) relata uma tentativa sua de estabelecer procedimentos para a condução e análise de entrevistas psicanalíticas, que considerava útil no início do treinamento do profissional; mesmo assim, o fator decisivo permanecia sendo o julgamento do pesquisador, baseado na aplicação dessas regras de acordo com o conteúdo e o contexto da entrevista. Assim, na medida em que o pesquisador se tornava um expert ou um artista, mais do que um ‘metodologista’, a importância desses manuais diminuía, existindo uma relação inversa entre a ênfase na metodologia e o significado do conhecimento produzido.
Lagache (1974) afirma que no contexto psicanalítico, as exigências dos pacientes conduzem a desvios técnicos que fazem do psicanalista uma pessoa muito particular. Essa condição de observador participante, em que a objetividade exclui o objetivismo, já estaria sendo reconhecida também em outras Ciências, como na Física. Nesse contexto, a Psicanálise tem desempenhado um papel considerável no refinamento metodológico, principalmente das Ciências Psicológicas e Sociais, por chamar a atenção para o papel do homem da Ciência e de suas características na orientação, no desenvolvimento e na eficácia de sua pesquisa.
É fato que, independente de seu relacionamento ser mediado por uma técnica pouco ou altamente estruturada, o pesquisador e o participante são afetados um pelo outro, e modificam seus comportamentos, tanto em função dessa interação, mas também de suas histórias, o que remete à consideração da neutralidade do pesquisador. A esse respeito, Lagache (1974) afirma que o princípio da Psicanálise implica em uma impessoalidade limitada. Ela não seria o ideal de um psicanalista robô, mas o fruto de uma sublimação, já que o primeiro caso transformaria o psicanalista em um excêntrico muito personalizado. A neutralidade só faz sentido como base para o estabelecimento da transferência e da contratransferência; portanto, ela não é um meio de destruir a fantasia do psicanalista, mas uma possibilidade de exploração racional desta última para a compreensão do paciente. A descoberta do papel desempenhado pelas próprias fantasias no processo terapêutico fez com que os psicanalistas percebessem que suas reações pessoais não se limitam a uma reação de contratransferência à transferência do paciente. O analista também faria uma transferência sobre o analisado e, assim, a transferência deste seria mais ou menos uma contratransferência.
Camic, Rodhes e Yardley (2003) referem que o primeiro passo de um psicanalista numa situação terapêutica é atentar para as próprias respostas ao paciente, tanto para assegurar-se que a voz dele não foi distorcida ou submersa por sua própria resposta emocional, mas também porque essas reações promovem um vínculo empático valioso para a apreensão da experiência subjetiva do outro. Esse relacionamento permitira ao profissional recriar em sua própria mente a vida psíquica do paciente. De acordo com Klauber (1968) um ato de intuição desse tipo, advindo da identificação com os pensamentos e sentimentos de outro ser humano é um ato criativo, que deve ser distinguido de outros atos de intuição que não dependem da identificação. Nele, as fontes de conhecimento são ponderadas em direção à experiência endopsíquica, enquanto que no segundo caso elas o seriam com relação ao teste da realidade no mundo externo. Assim, a interação profunda fomenta um tipo intuitivo e sólido de conhecimento e provê uma riqueza de informações que está ausente na ‘Psicologia do Estranho’ (Kvale, 2003). Nessa direção, Kubie (1960) comenta que a literatura psicanalítica está cheia de relatos de atendimento de crianças, psicóticos e pacientes, que soam como se os próprios pacientes os tivessem escrito. Segundo ele, esses dados trazem consigo a validade da experimentação precisa.
Portanto, a capacidade de identificação permite ao pesquisador utilizar racionalmente a sua fantasia para compreender a fantasia do outro, sendo essa a condição para a investigação psicológica atingir seu objetivo de produção de um conhecimento transformador, objetivo, fecundo, válido, que somente é possível quando a ética prima sobre o método.
CONCLUSÃO
Este estudo teve como objetivo aprofundar o exame dos fundamentos epistemológicos e metodológicos do Psicodiagnóstico Interventivo por meio de uma análise inicial de seus alicerces teóricos, técnicos e éticos. Em razão de sua natureza psicanaliticamente orientada, ao longo de todo o nosso empreendimento o Psicodiagnóstico Interventivo foi debatido ao lado de considerações sobre o uso do método psicanalítico na pesquisa científica e de conceitos básicos constituintes dessa escola de compreensão do psiquismo humano.
Nesse contexto, as ponderações apresentadas conduziram à admissão que, diante da diversidade de pensamentos presentes na Psicanálise, algumas de suas vertentes teóricas, por aproximarem-se de pressupostos próprios das perspectivas quantitativas de investigação, ao invés de fornecer uma base sólida para o Psicodiagnóstico Interventivo, comprometem sua coerência interna. Portanto, nem toda teoria psicanalítica qualifica-se para fundamentar esse procedimento clínico-científico de modo a respeitar sua integridade epistemológica. A Psicologia do Ego, por exemplo, enfatizando a adaptação do indivíduo à realidade e presumindo a existência de mecanismos psíquicos anteriores à experiência, remonta à filosofia platônica de concepção de uma realidade puramente formal. Nesse sentido, o Psicodiagnóstico Interventivo aparece como melhor fundamentado por teorias psicanalíticas que compreendem a estrutura de personalidade como indissociável das fantasias do indivíduo, quando não por elas determinada.
No que concerne à confiabilidade dos dados obtidos nas investigações realizadas por meio do Psicodiagnóstico Interventivo e do método psicanalítico, como há o reconhecimento da influência do pesquisador nos resultados, o problema da objetividade se impõe. Nesse sentido, métodos como o member-checks, o peer-checks, a validade contextual e a retrospectiva são importantes para o controle da qualidade da pesquisa, promovendo um vínculo entre a subjetividade pessoal do pesquisador e sua participação na realidade científica compartilhada. Diante disso, é possível desmistificar a crítica dirigida aos estudos qualitativos sobre a impossibilidade de generalização de seus resultados. Embora essas pesquisas não visem à aplicação de seus achados a outros eventos em termos de princípios causais universais, mesmo os estudos de caso fornecem uma estrutura útil para a compreensão de outras situações, considerando a sua especificidade e singularidade. A despeito dessa diversidade de métodos de análise da validade e precisão do conhecimento, o alcance desses critérios depende, sobretudo, das características e atitudes do psicólogo para com seu paciente. Assim, a qualidade do trabalho vincula-se às suas condições de formação acadêmica e pessoal, principalmente de sua capacidade de identificação com seu paciente. Com isso, a ética aparece como garantia da legitimidade dos resultados.
No decorrer deste estudo, os contrapontos apresentados entre o Psicodiagnóstico Interventivo e o método psicanalítico revelaram várias características em comum como sua sustentação no paradigma qualitativo de investigação científica, a indissociabilidade entre pesquisa e tratamento, busca de uma compreensão ampla e profunda do indivíduo, visando alcançar o significado da experiência, consideração que a produtividade da pesquisa relaciona-se mais ao nível de profundidade e detalhamento do estudo de cada caso do que ao número de sujeitos envolvidos, entre outras. Esses compartilhamentos apontam para a possibilidade de considerar o Psicodiagnóstico Interventivo como um procedimento de pesquisa da condição mental humana disponível para a Psicanálise. Em outras palavras, parece viável compreender o Psicodiagnóstico Interventivo como uma estratégia metodológica dessa escola de pensamento, em acordo com a perspectiva de Glover (s/d, citado por Kubie, 1960) de que a investigação psicanalítica pode ser transposta para qualquer situação em que exista um processo de associação livre.
Evidentemente, o método psicanalítico de investigação científica apresenta distinções e particularidades que não foram abordadas ou aprofundadas de modo suficiente neste estudo e que requerem atenção, como o efeito da introdução de mediadores na comunicação terapêutica, assunto de interesse especial para o pesquisador que se dedica ao Psicodiagnóstico Interventivo. Com isso, a inserção desse procedimento avaliativo/terapêutico no contexto dos métodos psicanalíticos de investigação torna-se um terreno fértil para debates e ensaios futuros.
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Recebido em 18/09/08
Revisto em 26/11/08
Aceito em 28/11/08
* Endereço para correspondência: Dpto. de Psicologia da Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP, Bloco 5. Av. Bandeirantes 3900, Monte Alegre, Campus Universitário. Ribeirão Preto – SP. CEP: 14040-901. Fone: (16) 3966 3009. E-mail: valeriab@ffclrp.usp.br.