Ide
ISSN 0101-3106
EM PAUTA - AMORES
Heroicas histórias, histórias amorosas
Heroic stories, love stories
Eva Maria Migliavacca*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia
RESUMO
A autora focaliza as dores da perda do ser amado, a partir de Heroidas de Ovídio.
Palavras-chave: Amor, Dor, Ovídio, Briseida, Medeia, Fedra.
ABSTRACT
The author refers to Heroidas, by Ovidio, to analyze the pain caused by the loss of the loved one.
Keywords: Love, Pain, Ovidio, Briseis, Medea, Phaedra.
Ovídio foi o último grande poeta latino do período entre os imperadores romanos Júlio César e Augusto. Nasceu em 43 de nossa era, quando Virgílio e Horácio ainda eram jovens, compondo com eles e outros um grupo protagonista de notável episódio da história da poesia. A referência literário-poética daquele grupo era a cultura helênica. Sua admiração pela Grécia e seus costumes, pela mitologia, épica e tragédia, não conhecia limites e tornou-se fonte de inspiração e contínua emulação. Um dos livros mais conhecidos de Ovídio, As metamorfoses, obra da maturidade, contém relatos e é excelente fonte de mitos gregos, aos quais somam-se alguns propriamente romanos, com um traço comum, ou seja, personagens que sofrem transformações em sua natureza física, conforme o título indica. No entanto, Ovídio é sobretudo poeta do amor. Ainda na juventude, escreveu Amores, a que seguiu-se o mais célebre Arte de amar, texto de leitura cativante, um primor da bossa da conquista, saboroso ensinamento sobre as delícias amorosas. Ambos, em especial o segundo, primam pelo erotismo e pela liberdade da escrita, tendo causado escândalo e sofrido ataques moralistas e restrições de publicação em diferentes épocas.
Os amores entre heróis e heroínas da mitologia grega chegaram até nós pelas epopeias homéricas e tragédias clássicas. No entanto, há também outras pequenas e preciosíssimas fontes, posteriores e menos conhecidas, que certamente contribuíram para que mesmo quem não leu os poemas homéricos ou as tragédias, conheçam as histórias e os personagens, ainda que de modo incompleto e com certa distorção. Nessa categoria inclui-se Heroidum Epistolae, literalmente "Cartas das heroínas", conjunto de 21 cartas de amor-lamento publicado em espanhol1 com o título Heroidas (Ovídio, 1987). Ovídio compõe-nas pelo vértice das jovens mulheres abandonadas ou menosprezadas por seus amados. Todas elas figuram nas narrativas mitológicas, exceto Safo, amantíssima poeta lírica, venerada a tal ponto que se tornou quase uma habitante do universo mítico.
Todas as agruras do amor podem ser encontradas naquelas cartas inventadas por Ovídio e, portanto, jamais enviadas. Amor romântico, apaixonado, sexual, doloroso, incontrolável, o drama das heroínas era conhecido do leitor daquela época, nem tanto do atual. Solilóquios epistolares, "gênero poético inventado por Ovídio" (1987, p. 11), o lamento das jovens põe a descoberto o anseio pelo encontro com o ser amado e a dor provocada pela distância e incerteza e pela mágoa do abandono. Em todas as cartas as Heroidas lamentam sua ausência e sofrem com a indiferença que, supõem, temem ou percebem, eles lhes votam. Pensamentos de morte são recorrentes, elas oferecem-se até mesmo para morrer desde que eles voltem a interessar-se por elas. Estar perto e privar da presença do herói, mesmo se reduzidas a condições aviltantes, é o que basta para dar-lhes novo alento. As lágrimas pela ideia de terem sido esquecidas ou de terem perdido o significado afetivo em seus corações superam a mágoa que possam sentir se ele dorme à noite em leito macio com outra mulher em seus braços. Por que, pergunta-se a amante abandonada, tu me deixaste? É incompreensível para ela ter sido abandonada, uma vez que seus sentimentos são tão intensos e sua entrega tão completa. Com tantas qualidades, tanta dedicação e beleza e, acima de tudo, tanta paixão e amor – como pode ele, ainda assim, virar-lhe as costas? Pela guerra, pela honra, por aventuras, por outra mulher – que importa? Aos olhos dela, nada justifica aquele ato de abandono e não há consolo. Amor desesperado é o amor do abandonado, do esquecido, daquele que não mais vive na mente do outro – se é que alguma vez viveu.
Certamente uma experiência humana muito frequente, amiúde encontrada na clínica, e que Ovídio devia conhecer bastante bem para traduzi-la em sua poesia de modo tão vivo. Se assim não for, o poeta realmente tinha uma capacidade empática notável.
As narrativas mitológicas são povoadas por personagens extremamente apaixonados tanto nas relações de uns com os outros, como nos interesses, valores que prezam, prerrogativas, ações e decisões. Ou seja, o caráter apaixonado amplia-se para as inúmeras esferas da vida. O amor romântico sexual propriamente é pouco expandido como reflexão, mas é dado de modo vigoroso, não raro em conflitos e desencontros.
Como comumente se diz, as experiências do amor têm muitas formas e qualidades, algumas especialmente marcantes e idealizadas ao extremo. Casais imortais, como Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Páris e Helena contêm as mágoas e as alegrias da experiência amorosa em seus limites, mas não as esgotam. Do mesmo modo, as dores mais pungentes são as decorrentes das decepções amorosas, das quais Ovídio trata de modo magistral.
O poeta percorre desde os sentimentos mais ternos até os mais violentos, rimando a palavra amor com todos os termos que a poesia tem usado, entre tantos, dor, calor, furor, ardor, temor, pudor, mas também desejo, vingança, desespero, desesperança, esperança, expectativa, culpa, repreensão, tristeza, oferendas, sempre acentuando a experiência do abandono.
Há 21 cartas, uma mais interessante do que a outra. Cada uma delas contém, invariavelmente, cenas de fácil identificação, mas não caberia neste texto ocupar-me de todas. Referir-me-ei apenas a três delas, escolhidas por preferência pessoal.
Uma das mais comoventes e delicadas é a carta de Briseida a Aquiles (Carta III, pp. 34-38). Pivô do conflito que desencadeia a ira de Aquiles, imortal herói da Ilíada, Briseida o amava e foi levada à tenda de Agamêmnon como compensação por este ter de devolver a mulher que lhe cabia como prenda. Insultado, Aquiles retirar-se-á da luta, dando o mote para o tema central do poema. Ao mesmo tempo em que censura o herói, revela-se a gentileza e a fragilidade da jovem. Briseida chora sua ausência, mas acima de tudo, sua insensibilidade para com o desamparo em que se vê lançada. Ela o repreende com dó e doçura, pela facilidade com que permitiu que os emissários do comandante a levassem. Nem sequer opôs qualquer resistência! Como pôde ele, tão facilmente permitir que a levassem, como se não tivesse sentimentos? Até mesmo os emissários olhavam-se, perguntando- se, diz a jovem, "onde estava nosso amor2". A jovem queixa- -se com profunda mágoa pela falta de cuidado: "Por que tanta pressa? Com um pouco que tivesses retardado minha dor, ter- - me-ia sentido alegre. Não pude sequer – ai de mim! – dar-te um beijo de despedida; só pude chorar lágrimas sem fim e arrancar- -me os cabelos". Teria sido culpa dela? "Que fiz, Aquiles, para merecer tanto menosprezo?"
Boa parte do desdobramento do poema está condensada na carta de Briseida. A Aquiles é oferecida régia compensação para que renuncie a sua ira, incluindo-se "a mais bela de todas as mulheres aqueias, para compartilhar seu leito". Que seja, diz Briseida. Ela será humilde serva e fará todas as tarefas que lhe ordenem, desde que jamais a afastem da presença do herói amado. Ela sempre foi escrava e assim continuará: nunca outro homem veio a seu leito depois de Aquiles, que não pode dizer o mesmo. Crente na força de seus sentimentos, oferece-se aos aqueus como embaixadora para convencer o herói a voltar à luta e interrompero massacre de seus companheiros. Quem sabe ele se comova com seus rogos: "Eu misturarei minha mensagem com muitos beijos. De alguma coisa servirá rodear seu peito com meus braços como antes e requerer seus olhares com minha presença". Quem sabe com a força de suas lágrimas e de seu carinho, ele se comova.
A jovem vale-se de argumentos que pouco efeito terão e parece, ao fim, desistir deles e apelar para o coração de Aquiles: "Veja a angústia de Briseida, não sejas tão duro, não atormentes esta infeliz com uma espera tão longa". E se ele não mais a quer, é preferível morrer, mais ainda pelo fio de sua espada. "Desembainha tu mesmo a espada e transpassa meu corpo; tenho sangue que brote quando abras meu peito". No entanto, ela prefere viver: "Conserva esta vida, que é um benefício que te devo. Chama-me para teu lado com o direito com que o senhor chama a escrava".
Há uma variação extraordinária de nuanças nos sentimentos expressos por Briseida – ou antes, o vai e vem de sentimentos e emoções evidencia a notável capacidade de Ovídio de perceber a complexidade das emoções humanas e de expressá- -las de modo claro.
A delicadeza da mágoa de Briseida faz contraste com a dor ressentida de Medeia repudiada por Jasão (Carta XII, pp. 83- -89). Rainha de reino distante, ela mesma traiu, matou, fugiu de sua terra e família para unir-se ao herói destruidor que a encantou com "teus cabelos vermelhos, e tua formosura, e a graça mentirosa de tuas palavras". Ovídio traduz nessa carta a força dos sentimentos apaixonados de Medeia, ao mesmo tempo em que anuncia a violência que levará a heroína a realizar uma vingança exemplar para punir o amado traidor.
Medeia não conseguiu, desde o primeiro momento em que viu Jasão, disfarçar o que lhe ia na alma. Paixão imediata, seus sentimentos são transparentes e revelam-se no olhar: "Olhei-te e sucumbi. Ardi em chamas desconhecidas, como ardem as achas de pinho nos altares dos deuses excelsos. Roubaste com teus olhos os meus olhares. E tu, pérfido, soubeste-o logo, pois quem é capaz de ocultar o amor? O amor é um fogo que estala; seus sinais o atraiçoam". Ela o lembra de suas palavras doces como o mel, com as mãos entrelaçadas, prometendo-lhe amor e proteção se o ajudar a roubar o Velo de Ouro, sustentáculo moral daquele lugar longínquo. Cativada, Medeia concentra a ferocidade de seu ser em eliminar do caminho qualquer obstáculo à união com o herói, culminando sua traição no sacrifício e despedaçamento do corpo de seu irmão mais jovem. Já na Grécia, esse lado sombrio do espírito de Medeia leva-la-á a induzir as filhas do rei da cidade de Iolcos a matarem o próprio pai, a fim de devolver o trono a Jasão. Ela não hesita em lembrar Jasão dos atos cruéis que realizou tanto para que ele alcançasse seus objetivos como pela recompensa que ela almejava – tão somente seu amor.
Após alguns anos juntos na Grécia, Jasão a abandona para casar-se com a princesa de Corinto, Creúsa. Ele não sabe, mas provoca assim forças sinistras que o envolverão com violência e fúria. Pouco conhecia Jasão a mulher que o amava. Ele nunca a percebeu de fato. E Medeia mal ousa anunciar sequer a si mesma seu ato mais atroz, com o qual consumará uma vingança inesquecível.
Ela usa dos argumentos que encontra, tenta alcançar o coração de Jasão, como um apelo para que ele a salve de si mesma. Pedirá em vão, porém: "Chego a ti com rogos como tantas vezes chegaste a mim com os teus, e não vacilo em lançar-me a teus pés. Se sou para ti desprezível, olha para nossos filhos. Parecem-se tanto contigo que a semelhança me comove, e cada vez que os vejo se arrasam em pranto meus olhos". Chega a ser arrepiante a ambiguidade dessas palavras. Sabemos o desfecho, como aliás, de todas as heroínas com que o poeta se ocupa nessas cartas.
Ela lança uma última súplica, como um apelo para que ele a impeça de realizar os atos extremos para os quais sente-se impelida por sua própria natureza: "Pelos deuses do céu, pelo esplendor da luz ancestral, por meus favores, e por estas crianças, prenda de nosso amor, suplico-te: devolve-me esse leito pelo qual, louca que fui, abandonei um dia tantas coisas. O que peço é tu mesmo, pois que te mereci, pois que te entregaste a mim, pois que és pai ao mesmo tempo em que sou mãe".
Ressentimento mesclado com mágoa levam-na a prevenir Jasão, ao mesmo tempo em que fala consigo mesma suas últimas palavras: "Tremendas são as ameaças que surgem da exasperação e irei até onde a exasperação me leve. Quiçá me pesará isso que vou fazer, porém também pesa-me haver socorrido a um esposo infiel. Certamente algo terrível, não sei o quê, medita meu espírito".
O final da carta anuncia a atrocidade ainda incipiente na consciência de Medeia. Sabemos que ela matará os filhos que teve com Jasão, dois pequenos meninos, atingindo o herói no cerne de um valor eminentemente grego, a descendência que se encarrega de preservar e cultuar a linhagem, mantendo aceso o fogo do lar. Escolherá ela a identificação com a esposa traída e renegará a identificação com a mãe, atacando os filhos para atingir o esposo.
Em outro registro literário, a tragédia Medeia de Eurípides (1991), provavelmente a principal fonte de Ovídio, põe em cena as profundezas obscuras e indizíveis da maga, filha de um filho do Sol, poderosa possuidora de artes negras, feitiçarias, filtros de morte e destruição. Nessa peça vemos a chegada ao ápice do drama daquela mulher que sofreu os mais dolorosos aguilhões do abandono, estrangeira em terra estranha, temida, só e sem amigos, sem apoio. Em um ato solitário, ela deixou sua marca imorredoura, mesmo pagando um preço altíssimo. Exemplo acabado da vingança arrasadora de uma amante abandonada e desprezada por um homem que se interessa por outra mulher, a figura de Medeia talvez seja uma das mais fortes dentre as heroínas gregas que habitam o imaginário ocidental.
As cartas percorrem vários desdobramentos da experiência amorosa sexual. Entre eles destaca-se aquele vivido por Fedra (Carta IV, pp. 40-45), que apaixona-se de modo irrecorrível por seu enteado Hipólito.
Paixão desvairada, alucinante, Fedra perde todo o bom-senso na ânsia de ser correspondida pelo virtuoso jovem que, na verdade, é mais dedicado às artes da caça nos bosques em companhia da perigosa deusa Ártemis, do que disposto a entregar-se aos furores amorosos inspirados por Afrodite. No entanto, a deusa da paixão revelar-se-á mais temível e invencível: "É perigoso desdenhar o que o Amor ordena, pois ele reina, e seu império avassala até os deuses soberanos". Afrodite inspira em Fedra um amor desesperado, culposo e enlouquecedor, que resultará na destruição de todos os envolvidos.
Fedra não pode declarar-se. Esposa de Teseu, pai de Hipólito, sua paixão é proibida pelas convenções sociais, sim, mas também por ser ela uma mulher madura e ele um adolescente. Não cabe tal amor. E, no entanto, "Queimo por dentro, queimo! Sou a única que conhece, em silêncio, o amor que me queima".
Fedra anula-se, não é mais a rainha de Atenas, não quer ficar no palácio e declara que tudo o que a interessa são os interesses de Hipólito. Quer correr pelos bosques, caçar os cervos, lançar o venábulo com o impulso de seu braço, descansar sobre a terra coberta de grama; deleita-se em guiar um carro puxado por potros velozes, em meio à poeira das estradas. Ela faz tais coisas, inconsciente de si, "Pois tudo isso me contam uma vez que hajam passado meus arrebatamentos de loucura". Mistura-se com o objeto de seu amor, loucamente funde-se nele à força, mais ainda por sentir que ele lhe escapa.
Fedra descende de uma estirpe marcada pela fatalidade. Sua própria mãe foi dominada pela deusa irresistível e apaixonou-se irremediavelmente por um touro sagrado e teve com ele um filho monstruoso, metade touro e metade homem, habitante do negro labirinto de Creta, a quem Teseu venceu ajudado por sua irmã Ariadne. Seria por isso que ela sofria tanto, pergunta-se, atrelada à fatalidade familiar, um tributo que Afrodite exige a toda a descendência daquela dinastia cretense?
Desde o primeiro encontro, no desembarque do navio que a trazia a Atenas, junto a Teseu, ela rendeu-se à sedução da beleza de Hipólito: "Esse dia me cativaste; esse dia o amor invadiu-me até a medula dos ossos. Levavas uma túnica branca; uma guirlanda de flores ornava teus cabelos; um rubor pudico coloria tuas faces bronzeadas; e esse rosto, que outras mulheres chamam rígido e cruel, para Fedra não era rígido, mas viril".
Para calar os clamores da culpa e para convencer a si mesma tanto quanto ao jovem, de que aquele amor que sentia era legítimo, Fedra lembra atos de Teseu pouco admiráveis. Ele prefere sair para aventuras com seu amigo Pirítoo, deixando esposa e filho à própria sorte. Abandonou sua irmã, Ariadne, só e à mercê das feras, em uma ilha. Mais, matou a vibrante amazona Hipólita, mãe do jovem, transpassando seu peito com uma espada. E àquele homem devem honrar? "Anda – escreve com virulenta ironia –, reverencia esse leito de um pai tão respeitável, que o abandona e o repudia com suas ações".
Com a chegada da falsa notícia da morte de Teseu, entregue a paroxismos de ansiedade, Fedra clama pela vinda de Hipólito, tenta convencê-lo de que a união de ambos, madrasta e enteado, em amplexos e carinhos, será vista como atos de ternura legítimos, pois ninguém precisa saber da razão que os uniria. Ah, qualquer argumento serve para alcançar a realização de tão premente anseio – parece-nos dizer Ovídio.
Em tom desesperançado, Fedra chega à exaustão, parece reconhecer que sua causa está perdida. "Não me envergonho de rogar-te, humilhada e rendida. Ai! Onde está agora meu orgulho?, onde minhas palavras altivas? Tudo caiu por terra. E estive certa de poder resistir, como se no amor houvesse qualquer certeza! O pudor fugiu de mim e ao fugir deixou abandonadas suas bandeiras. Perdoa esta confissão e domina teu peito arredio. Às minhas súplicas acrescento minhas lágrimas. Leste minhas palavras suplicantes; imagina, por elas, meu pranto". De fato, não há sinal de que Hipólito virá a se comover com a dor apaixonada da esposa de seu pai. O desfecho será coalhado das agruras da calúnia, cegueira e morte.
Eurípides compôs uma tragédia que leva o nome Hipólito (1964), na qual destaca o caráter do jovem. No século XVII, Racine retomou o tema e escreveu uma de suas mais notáveis tragédias, Phedra, na qual essa personagem está mais desenvolvida do que em Eurípides. É em Racine que se encontra a mais arrebatadora declaração de amor apaixonado que conheço. A fala de Fedra desvela o que lhe vai na alma sem qualquer disfarce ou pejo. Sem meias medidas ela revela-se a Hipólito, que recua em espanto e repúdio, recusando-se a acreditar no que ouvira. Vale a pena transcrever suas palavras diante da reação do jovem (Racine, 1949, pp. 41-42):
Ah, cruel! de certo que me ouviste!
Tenho te dito assaz para tirar-te do engano;
Pois bem, conhece Phedra e o seu furor insano;
Amo! não julgues, não, que no instante em que te amo,
Por inocente me haja e ignore que me infamo;
Ou que desse delírio em que meu ser naufraga,
Nutrisse complacente a venenosa chaga;
Alvo infeliz que sou das vinganças divinas,
Mais ódio me tenho eu do que tu me abominas.
Pergunta-o aos deuses, sim, que em meu flanco indefeso
Esse ardor tão funesto a meu sangue hão aceso,
Os deuses de quem foi recreação fatal
Perder o coração de uma infeliz mortal.
Tu mesmo, indaga em ti, lembra-te do passado:
Não me bastou fugir-te, eu te expulsei, malvado!
Odiosa, injusta e má sempre a ti me mostrei;
Para te resistir, mais o ódio te excitei.
Mas, que lucro auferi desses fúteis empenos?
Odiavas-me ainda mais sem que te amasse menos;
Com novo encanto até, em teu pesar te ornavas.
Eu languesci, sequei-me, em lágrimas, em lavas:
Seria, p'ra provar-t'o, um teu olhar bastante,
Se me pudessem ver teus olhos um instante.
Que digo? e a confissão que acabo de fazer...
Odiosa confissão! crês que a fiz por querer?
Tremendo por um filho, a quem trair não quis,
Eu te vinha implorar poupares o infeliz;
Que erro de um coração de amor, só, cheio em si!
Não te pude falar, cruel, senão de ti.
Vinga-te, pune enfim essa chama atrevida,
Digno filho do herói autor de tua vida.
De um monstro que te irrita expurga o mundo, a esposa,
A viúva de Theseu amar Hippolyto ousa!
Crê-m'o, esse monstro atroz não te deve escapar;
Olha! eis meu coração: é onde o tens de golpear.
Ansioso por expiar seu crime, ante teu braço
Já sinto que se adianta e se oferece ao aço.
Transpassa-o: mas, se o crês de teu castigo indigno,
Se me invejar teu ódio um golpe tão benigno,
Se em sangue vil a mão visses banhada,
Na falta de teu braço, anda, empresta-me a espada:
Dá!
Em todas as cartas das Heroidas, não há pretensão a realismo – considerando o que há de realista nas narrativas mitológicas. São realistas, entretanto, do ponto de vista da experiência de sentimentos apaixonados que ninguém como os poetas conseguem traduzir em palavras. Ovídio, engenhosa e generosamente, coloca-se no coração de suas heroínas e conta seus dramas pessoais. Naqueles solilóquios epistolares, o poeta mostra que ninguém como os enamorados são capazes de expressar sentimentos amorosos: ele apenas empresta-lhes sua voz e sua pena.
Um aspecto interessante dessas cartas, e que permite uma comovida identificação com as personagens, é que sabemos qual será o seu destino final, ao passo que elas mesmas, no tempo fantástico em que compõem as cartas, não o sabem: amores célebres, dados pela tradição mitológica grega, seu desenlace raramente é feliz. A identificação é possível não só pelo relato da experiência de desamparo decorrente do abandono, mas também por que este é vivido como um evento que cristaliza-se no coração e nele inscreve a dor como chaga de fogo. Imutável naquele instante, é impossível de ser elaborado e evoluído e tem um efeito aprisionante de caráter definitivo. Na verdade, consiste de uma experiência de sofrimento profundo para o qual não há consolo possível. Toda a vida, toda a energia psíquica fica absorvida por aquele penoso estado, que também é físico: as Heroidas expressam-no golpeando o peito, arrancando os cabelos, rasgando as vestes, debulhando-se em lágrimas.
A dor da perda evidencia um vácuo antes preenchido pela figura, presença e interesse do ser amado, como se este funcionasse como um prolongamento do eu. O vácuo é mais insuportável que a experiência da dor em suas inúmeras expressões, ora mais delicada, ora ressentida, ora mais sutil e modesta, ora em fúrias. Todas essas emoções e sentimentos substituem o objeto ausente. A energia psíquica, antes destinada ao contato com o amado presente, passa a ser dirigida para a percepção da ausência, preenchendo-se o espaço com aquelas intensas emoções.
Em registro recente, mais prosaico mas tocante, Ernaux (1992) conta uma experiência pessoal de apaixonamento de modo simples e direto. Descreve o intenso envolvimento que teve com um homem, sem nenhuma pretensão de explicá-lo ou justificá-lo. É um belo relato, publicado em livro que ficou vários meses na lista dos mais vendidos na França, sucesso de crítica e de público, que começa assim: "De setembro para cá, só fiz esperar um homem: que ele me ligasse ou viesse à minha casa ... As únicas ações onde eu empenhava a minha vontade, o meu desejo e essa coisa que deve ser a inteligência humana (capacidade de prever, avaliar os prós e os contras, as consequências), tudo tinha uma ligação com esse homem" (p. 9). Toda a sua existência resumia-se à presença daquele homem em sua vida e aos momentos que passavam juntos. A mescla de ansiedade, desejo e excitação presente durante um encontro era substituída por certo torpor seguido do anseio pelo próximo encontro e da angústia de ser abandonada. Os intervalos eram invariavelmente vividos como pequenos abandonos, mas com grande sofrimento. Da mesma forma, a dor física estava sempre presente, só acalmada com o reencontro. A presença na mente era contínua, ainda que em diferentes expressões. O fim do relacionamento com a partida dele para país distante foi seguido de pura dor: "No começo, quando eu acordava às duas da manhã, tanto fazia para mim viver ou morrer. Meu corpo inteiro doía. Eu queria arrancar a dor mas ela se instalara em tudo. Eu desejava que um ladrão entrasse em meu quarto e me matasse" (p. 47). Conta a reação do amado em um encontro posterior à separação, quando ela o censura por não ter sequer dado um telefonema ou notícia por meses a fio. Ele achou graça: "Se eu ligasse, oi, tudo bem. Depois, e daí?" (p. 67), resposta essa que evidencia a distância entre o tipo de entrega da mulher e a do homem, ainda que envolvidos em um relacionamento íntimo e intenso. A mente do outro é uma incógnita. Ainda que não mitológico, o relato de Ernaux ecoa quase literalmente as cartas das Heroidas que, ao fim e ao cabo, representam mulheres apaixonadas por homens que não as percebem como elas gostariam ou não lhes dão o lugar que elas sentem necessidade de ocupar ou mesmo supunham ocupar. Outros tempos, mesmas mulheres, iguais homens?
Naquele texto antigo, mas inegavelmente atual, descreve Ovídio, portanto, um estado emocional que não considera a separação eu-outro, ou não conhece a capacidade de separação e de reconhecimento do outro como um ser autônomo na ordem do mundo. Além disso, fica perdida também a capacidade de discriminar-se dos próprios sentimentos, que são a fonte por excelência daquela exaltação e entrega. Talvez não exista apaixonado capaz de reconhecer e preservar a própria autonomia em nenhum desses dois planos. No entanto, é por ela que se torna possível ao indivíduo preservar-se minimamente em um relacionamento amoroso. Pode soar racional em excesso, mas ainda assim necessário. Na clínica observamos e vivemos continuamente o contato com tal experiência. Identificamos as cisões, as fantasias e idealizações, o estado alucinatório em que homens e mulheres mergulham quando perdidamente apaixonados. No plano da realidade não mitológica as dores são reais e pouco podemos fazer além de acompanhá-las e de tentar descrever como se vivem as penas da separação, agora não mais no mundo sensorial, mas no plano psíquico. Todo o arrebatamento amoroso que aquelas cartas ilustram magistralmente, quando transformado em objeto de reflexão e observação, propicia desenvolvimento e crescimento mental, diminuindo o sofrimento. Ainda assim, é inegável o encantamento que as cartas das Heroidas exalam, talvez por traduzir uma experiência que poucos seres humanos, suponho, deixam de viver pelo menos uma vez.
Referências
Eurípides. (1964). Hipólito. In Teatro grego. (J. Bruna, trad., pp. 91-130). São Paulo: Cultrix. [ Links ]
Eurípides. (1991). Medeia (J. A. A. Torrano, trad.). São Paulo: Hucitec. [ Links ]
Ernaux, A. (1992). Paixão simples (A. C. da Silva, trad.). São Paulo: Objetiva. [ Links ]
Ovídio Nason, P. (1987). Heroidas (A. Alatorre, trad.). México: Secretaría de Educación Pública. (Colección Cien del Mundo). [ Links ]
Racine, J. (1949). Phedra. In J. Racine, Três tragédias (J. K. Segall, trad., pp. 11-77). São Paulo: Irmãos Pongetti. [ Links ]
Endereço para correspondência
Eva Maria Migliavacca
Rua Joaquim Antunes, 767 / 51
05415002 – São Paulo – SP
tel.: 11 3062-3177
E-mail: emiglia@usp.br
Recebido: 18/04/2011
Aceito: 04/05/2011
* Membro efetivo da SBPSP. Professora titular no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1 Não conheço tradução para o português.
2 Todas as transcrições são de tradução livre da autora.