Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
ARTIGOS
O "Nostálgico" e o "Contemporâneo": algumas considerações sobre o lugar do psicanalista no século XXI
The "Nostalgic" and the "Contemporary": some considerations about the position of the psychoanalyst in the twenty-first century
Humberto Moacir de Oliveira*
Faculdade Pitágoras - Brasil
Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço-CEPP - Brasil
RESUMO
Se o sujeito é efeito do encontro do corpo vivente com o Outro, as mudanças sociais, econômicas e políticas no campo do Outro provocam também mudanças subjetivas e clínicas. Diante das novidades de seu tempo, o psicanalista deve escutar os novos arranjos dos sintomas e os desafios de sua época. O psicanalista deve ser crítico, porém deve evitar ocupar tanto a posição de "nostálgico", quanto posição de "bem ajustado" ao seu tempo. O presente artigo apresenta uma contribuição sobre o lugar do psicanalista no século XXI, a partir de um debate sobre o que é ser "nostálgico" e o que é ser "contemporâneo" do ponto de vista da psicanálise freudiana e da filosofia de Giorgio Agamben.
Palavras-chave: Clínica, Contemporaneidade, Nostalgia, Freud, Giorgio Agamben.
ABSTRACT
As far as the subject is the effect of the encounter between the living body and the Other, social, economic, and political changes occurring in the domain of the Other also stimulate some subjective and clinical changes. In face of the novelty of present times, the psychoanalyst must listen to new symptom arrangements and meet the challenges of his own time. The psychoanalyst should be critical, while avoiding both a "nostalgic" posture, as well as a condition of "well adjusted" to his time. This article aims to make a contribution to the position of the psychoanalyst in the twenty-first century, from a debate about what is to be "nostalgic" and what is to be "contemporary" from the point of view of Freudian psychoanalysis and the philosophy of Giorgio Agamben.
Keywords: Clinic, Contemporary, Nostalgia, Freud, Giorgio Agamben.
Introdução
Ainda que seja claro e evidente o compromisso que a psicanálise sempre manteve com a clínica e com a singularidade do sujeito, também é perceptível o interesse que ela teve, desde seus primórdios, em abordar problemas que extrapolam a dimensão subjetiva da clínica, alcançando campos como a sociologia, a antropologia, a biologia, a literatura, a arte, a religião e a educação - apenas para citar alguns problemas destacados por Freud no texto O interesse científico da psicanálise (1996/1913). Essa preocupação freudiana, não só em divulgar a importância da inclusão do fator pulsional investigado pela psicanálise na compreensão dos fenômenos estudados por outros campos, mas, principalmente, de reconhecer que a reflexão sobre outras disciplinas poderia ajudar o psicanalista em seu trabalho clínico diário, nos serve para afirmar o quão injusto seria acusar Freud de negligenciar o efeito que o mundo - seja o mundo natural, social, biológico etc. - exerce sobre o sujeito e vice e versa.
Em Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud (1996/1921) sublinha essa influência recíproca entre o sujeito e o mundo que o cerca quando afirma não haver motivos para contrastarmos radicalmente a "psicologia individual" e a "psicologia social", uma vez que um estudo de grupos não pode desconsiderar o fato de que todo grupo humano é formado por um encontro de indivíduos, da mesma forma que uma análise individual não deve desprezar o fato de todo ser humano sofrer consequências das relações que mantém com os outros seres humanos e com o mundo que o cerca.
Lacan irá aproximar ainda mais essa relação do sujeito com aquilo que lhe é alteridade - a linguagem, o mundo, ou mesmo o corpo - quando propõe, como um dos nomes do inconsciente, o Outro, grafando-o com a inicial em maiúscula para diferenciá-lo do pequeno outro, o próximo e semelhante, a quem emprestamos uma consistência imaginária que o grande Outro não apresenta. Portanto, em Lacan, a presença do inconsciente situa-se no lugar do Outro enquanto tesouro do significante, depósito do material que o sujeito recebe do que lhe é estranho ou externo. O próprio sujeito, na obra lacaniana, passa a ser definido como efeito desse Outro: "Esse sujeito é o que o significante representa, e este não pode representar nada senão um outro significante: ao que se reduz, por conseguinte, o sujeito que escuta" (LACAN, 1998/1964, p. 849). O sujeito, assim, é o que o significante representa; e tendo o significante seu valor apenas na diferença que ele sustenta em relação aos outros significantes da cadeia, o sujeito se encontrará sempre no intervalo, não sendo nem o significante que o representa (S1) nem o significante que a esse faz diferença (S2). Ambos os significantes, S1 e S2, vêm do campo do Outro da linguagem que é sempre pré-existente ao sujeito, exterior a ele. Por isso, sendo o sujeito efeito da articulação significante vinda do Outro, o Outro será sempre, como lembra Quinet (2012), o lugar onde a questão da existência, do sexo, da morte e da própria história de cada um se colocará para o sujeito.
Assim é que, em psicanálise, sujeito e Outro se fundem e tudo o que é exterior ao sujeito também lhe é bastante pertencente. A relação que temos aqui é semelhante a que Lacan (2005/ 1962-1963) salientou existir na banda de Moebius, onde uma fita, torcida de maneira peculiar, coincide duas superfícies misturando o interior e o exterior, quebrando assim com a lógica da topologia da esfera onde se tem uma separação clara entre a superfície interna e a externa. Assim, o sujeito, desde o processo de sua constituição, não está imune aos acontecimentos da palavra que o representa, do corpo que nele pulsa, do mundo que o cerca, da política que o comanda, da ciência que o define, da arte que o atinge e de toda a cultura que o afeta e o produz. Não obstante, o lugar do Outro permanece sendo o mesmo: morada dos significantes que se articulam em cadeias ao mesmo tempo em que sofrem e causam efeitos do e no real. No entanto, se, por um lado, o lugar do Outro permanece sendo sempre o lugar para onde o sujeito dirige suas questões, por outro, sendo morada dos significantes, ele está vivo tal como podemos dizer que a língua é viva; ou seja, está em constante modificação e construção, sofrendo alterações que afetam os discursos dominantes da cultura e influenciam os modos do sujeito se posicionar frente à castração, ao desejo, ao sexo, à lei e à angústia.
Em outras palavras, o sujeito não passa incólume às transformações do mundo. As metamorfoses do dinheiro, do trabalho, da ciência, da política, da religião, da arte e de tantos outros campos, afetam o sujeito e chegam à clínica. Essa interferência da cultura no sujeito exige que o psicanalista esteja atento aos problemas de sua época. Mas, ocupar-se desses problemas e dessas transformações não implica apenas denunciar as mazelas de seu tempo e, menos ainda, em pregar um retorno ou uma busca por reencontrar a moda antiga de se neurotizar ou adoecer. É preciso ser, então, menos nostálgico do que contemporâneo. Enquanto a nostalgia nos conduz ao risco de tentar, de forma necessariamente frustrada, reproduzir o passado no presente, ser contemporâneo, como veremos adiante, implica em ser capaz de enxergar os inconvenientes de sua época ao mesmo tempo em que se reconhece pertencente a ela. O psicanalista, portanto, deverá assim ocupar um lugar que o permita, nem estar em conformidade demais com seu tempo, o que seria se alienar nele, nem estar em confronto permanente com ele, agindo como se a única saída para a nova época fosse um regresso e não um avanço. É, como sempre foi a posição do analista, um lugar desconfortante e ao mesmo tempo arriscado, pois se é sedutor fazer alterações no manejo da clínica adaptando-a à exigência do mundo atual - nas piores das hipóteses ferindo os princípios éticos da psicanálise -, também é sedutor ocupar o lugar do analista crítico, que apenas denuncia o que em sua época atrapalha e obstrui a condução de sua clínica. É nesse sentido que uma reflexão sobre a posição do psicanalista no século XXI faz-se tão necessária quanto urgente.
O presente artigo apresenta-se como uma contribuição a essa reflexão sobre o lugar do psicanalista em seu tempo e, mais detalhadamente, em nossa época. Para isso, propomos, em primeiro lugar, apresentar um debate teórico sobre o que poderia ser o "nostálgico" de acordo com a teoria psicanalítica de Freud, que, embora não apresente a nostalgia como um conceito, nos dá ferramentas suficientes para refletir sobre o tema. Também será imprescindível, para a discussão, um debate sobre o que é ser "contemporâneo", quando as reflexões do filósofo italiano Giorgio Agamben nos serão de precioso valor. Apresentado esse primeiro debate entre o nostálgico e o contemporâneo, faremos uma análise das principais mudanças e características do nosso tempo, de acordo com os mesmos referenciais. Destacaremos aqui a forma como o discurso dominante de nossa época, denominado por Lacan (1992/ 1969-1970) de discurso capitalista, interfere na dinâmica da relação do sujeito com o grande Outro da linguagem e com o pequeno outro. Será, a partir dessa reflexão sobre o nosso tempo, que concluiremos o trabalho destacando algumas considerações que acreditamos serem úteis para que o psicanalista não engrosse o coro dos nostálgicos, tão comum em variados discursos de nossa época, e seja, de fato, ele mesmo, contemporâneo.
Ser nostálgico
A palavra nostalgia aparece raríssimas vezes na obra de Freud. A palavra saudade, a que o significante nostalgia nos remete, aparece um pouco mais, mas ainda está longe de ser uma palavra constante nos trabalhos freudianos e muito mais longe ainda de ser um conceito. No entanto, a referência ao apego a um objeto perdido é uma constante na obra freudiana. E seus comentários a respeito desse fenômeno psíquico de investimento no que foi perdido - comentários presentes na teoria do desejo, do luto, da fixação, das pulsões, do narcisismo, entre outros - podem nos auxiliar a pensar o que seria, em termos psíquicos, a nostalgia segundo Freud. Desde sua formulação do desejo que visaria, não exatamente um encontro com o objeto, mas um reencontro, como bem percebeu Lacan (1997/1960), até a sua elaboração da pulsão de morte (1996/1920) como tendência do organismo a retornar ao estado inorgânico, a obra de Freud é repleta de considerações, que nos permite refletir sobre essa característica, ou mesmo tendência, do psiquismo se apegar ao passado mais do que ao presente.
As palavras "saudade" e "nostalgia" se misturam na língua portuguesa1. Ambas as palavras se referem ao sentimento causado pela privação de algo. Embora a palavra saudade apareça um pouco mais na obra freudiana, privilegiaremos o termo nostalgia por acreditar ser um termo mais amplo, já que designa o sofrimento causado pela fixação no passado e não somente a um objeto que estava no passado (como, por exemplo, uma pessoa), mas de uma época passada, ainda que seja inevitável que os termos se misturem um pouco.
Na edição supracitada da obra de Freud, encontramos o termo saudade no sentido corriqueiro de nossa língua: falta de algo ou alguém amado. Em algumas situações, o termo ganha contornos mais próximos do que gostaríamos de chamar aqui de nostalgia, ou seja, sofrimento causado pela saudade de uma época que passou. Por exemplo, quando em "Romances Familiares" Freud fala da fantasia infantil mais ou menos comum de imaginar-se filho de pais superiores aos que se tem, o autor irá dizer que essa construção é "(...) expressão da saudade que a criança tem dos dias felizes do passado, quando o pai lhe parecia o mais nobre e o mais forte dos homens, e a mãe a mais linda e amável das mulheres" (FREUD, 1996/1908b, p. 222). A saudade aqui está determinada pelo o que o autor chama de princípio do prazer, que consiste na tendência de o organismo psíquico buscar o prazer mesmo que, por vezes, tenha que se abster da realidade. A saudade, ou a nostalgia, aparece como uma dificuldade de o sujeito abandonar um momento que lhe foi supostamente prazeroso, enquanto que a fantasia de se ter outra linhagem aparece como um remédio para tal nostalgia. Trata-se do investimento pulsional na imagem de uma época supervalorizada, quando as coisas pareciam atender melhor ao princípio do prazer. Assim, o pensamento de Freud é que o homem, só com muito esforço, abandonaria qualquer objeto que lhe desse prazer, e mais do que isso, só o abandonaria na condição de buscá-lo nos novos objetos encontrados, já que o próprio desejo humano consiste na tentativa, não de encontrar o objeto, mas de reencontrá-lo. O processo de luto consistiria exatamente nessa experiência de hiperinvestir libidinalmente no objeto perdido para depois ser possível um desligamento da libido (FREUD, 1996/1917). Podemos encontrar o sentimento de saudade toda vez que o psiquismo, constatando a privação do objeto na realidade, investe sua libido em alguma imagem psíquica do que foi perdido.
A constatação de que não há nada tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou, é ressaltada por Freud também em "Escritores criativos e devaneios" (1996/1908a) e chega mais tarde a ser a explicação para a compulsão à repetição - antes da formulação da pulsão de morte. Antes de 1920, Freud acreditava que o homem repetia para atender ao princípio do prazer e, mesmo que em algum sistema psíquico a repetição fosse experimentada como desprazer, ela liberaria prazer em outro sistema. Em 1920, Freud reconhece que existe no psiquismo uma tendência a repetir que, não apenas independe do princípio do prazer, como é mais fundamental do que esse, podendo até mesmo atuar em contradição a ele. Com o último dualismo pulsional freudiano - pulsão de vida x pulsão de morte - o psiquismo se apresenta ainda mais conservador. Pois, além do princípio do prazer se apegar ao que foi prazeroso, até mesmo o que sempre foi hostil ao psiquismo tende a ser repetido. Ou seja, se de um lado a pulsão de morte visa fazer com que o organismo retorne a um estado anterior de coisas através de uma compulsão à repetição, a pulsão de vida, por si só, não representa uma tendência do organismo a buscar o novo pelo novo. Pelo contrário, a pulsão de vida nos impulsiona o organismo a unir-se ao que é diferente em busca também da conservação do ser. Ambas as pulsões visam manter certo estado de coisas se diferindo mais pelo laço que faz - ou deixa de fazer - do que pela busca do novo. A pulsão de vida atende à força que os gregos chamavam Eros e que consiste em ligar as coisas, enquanto a pulsão de morte trabalha silenciosamente no organismo na direção de consumi-lo levando-o ao retorno ao inanimado, ou seja, à morte - embora, como ressalta Lacan, caiba à pulão de morte, ao quebrar as ligações feitas por Eros, um efeito de criação de novas possibilidades. Sem entrar nas inúmeras discussões que o último dualismo pulsional de Freud poderia nos conduzir, gostaríamos de destacar aqui apenas o caráter conservador de ambas as pulsões, o que nos ajudará a pensar o sentimento de nostalgia tantas vezes experimentado pelo psiquismo. Esse caráter conservador do psiquismo já está presente na obra de Freud desde o início de suas pesquisas, inicialmente como inércia neuronal (1996/1985-1950), posteriormente como princípio do prazer (1996/1911) e finalmente na fusão e desfusão das pulsões de vida e pulsões de morte (1996/1920).
Esse "empuxo ao passado", se assim nos é permitido dizer, é atribuído ao homem também em O mal-estar da civilização (1996/1930), texto escrito por Freud já em sua última década de vida. O motivo da feitura desse trabalho é revelado logo no início do texto quando Freud descreve o comentário que seu amigo Romain Rolland fizera a respeito de seu último texto sobre a religião. Para Romain Rolland, em O futuro de uma ilusão (1996/1927), Freud desconsiderara uma das principais fontes da religiosidade que seria o sentimento oceânico: uma espécie de sentimento de que o ser se misturava com o não-ser fundindo-se com o mundo e sentindo-se ligado a ele como se dele fosse parte - como uma gota em um oceano. Freud, embora não concorde que aí resida a principal fonte da religiosidade, reconhece que o que o seu colega chamou de sentimento oceânico têm um lugar na teoria psicanalítica já que o eu, embora muitas vezes possa se sentir autônomo e unitário, na verdade se funde, não apenas com outra instância psíquica que lhe é estranha como também com o próprio mundo externo através do amor e do investimento libidinal nos objetos do mundo externo. A principal explicação para essa dificuldade em mantermos uma fronteira nítida entre o eu e o mundo externo Freud retira da constituição do eu, pois esse não pode ter sido o mesmo desde o início. Para o pai da psicanálise "(...) uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte das sensações que fluem sobre ela" (FREUD, 1996/1930, p. 75). Ou seja, antes de ser o que é, o eu se encontra, como podemos dizer com Lacan, alienado no campo do Outro. Será somente gradativamente que o sujeito se separará. Freud conclui seu argumento dizendo que "(...) originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mudo externo" (FREUD, 1996/1930, p. 77). Assim, o eu teria um vínculo muito mais estreito do que se supõe com o mundo que o cerca, portanto, com o Outro. O sentimento oceânico para Freud não passaria de um resto desse momento inicial, uma espécie de nostalgia da época em que o eu se fundia ao mundo. E no amor o sujeito reviveria esse momento de fusão com o mundo externo, muitas vezes devotando mais investimento no objeto do que em si mesmo e se sentindo como uma parte desse objeto.
Essa relação do amor com a saudade de um passado onde o eu se fundia com o Outro já havia aparecido na obra freudiana no texto O estranho (1996/1919). Depois de discutir a estranheza que a vagina causa em determinados neuróticos masculinos, o autor ressalta que o órgão sexual feminino é a entrada para o antigo lar de todos os seres humanos, lugar onde cada um de nós viveu certa vez. Ele termina, então, comentando uma frase da sabedoria popular alemã: "O amor é a saudade de casa". O amor seria assim a nostalgia de uma época em que o eu se fundia com o Outro, nostalgia de uma época em que o sujeito tinha um lar.
Em nenhuma dessas discussões - sobre pulsão de morte e pulsão de vida, sobre o lugar do objeto na teoria do desejo, sobre o luto, sobre o sentimento oceânico e sobre o amor - Freud utiliza a palavra nostalgia. Mas, encontramos em todas elas uma espécie de apego, ou por que não dizer, uma fixação do sujeito a um modo mais arcaico do seu próprio viver.
Por outro lado, sabemos que mesmo que o psiquismo seja tão apegado aos objetos mais arcaicos de seu desejo2, a civilização humana não deixou nunca de ansiar e buscar pelo novo. É que o mesmo psiquismo que encontra satisfação no reencontro do objeto (ou de algum representante seu, já que o objeto é para sempre perdido) está fadado a nunca encontrar o objeto primeiro e absoluto de sua satisfação pelo motivo desse objeto nunca ter existido senão miticamente. O novo vem como possibilidade de promover esse reencontro do objeto faltante que daria ao ser essa prometida completude. O momento atual de nossa civilização evidencia esse fato, diariamente, ao fazer com que um objeto da indústria que implícita ou explicitamente promete preencher a falta de todos os homens torna-se obsoleto e é substituído quase antes de chegar aos lares mais abastados. Diante do novo, encontramos os sujeitos divididos entre desejar o mais novo ainda e mais sofisticado produto da indústria e os sujeitos que se apegam aos objetos do passado, de sua infância, adolescência ou juventude, como defensores de que naquele tempo éramos mais felizes mesmo a despeito de todo o aparato tecnológico que encontramos atualmente e que naquele tempo se fazia improvável ainda.
Essa luta entre o passado e o moderno pode ser encontrada em uma discussão freudiana que, mais do que todas as outras que citamos, se refere ao que estamos aqui chamando de nostalgia. Trata-se novamente do mal-estar na civilização. Após haver discutido a já citada origem do sentimento oceânico, Freud passa a fazer considerações sobre o que ele considera o principal propósito da vida humana: ser feliz. Ele passa, então, a tratar dos obstáculos que se impõem a esse projeto e faz a célebre menção às principais fontes de sofrimento do homem: o corpo, a natureza e as relações entre eles. Para o psicanalista vienense, os homens reconhecem, de certo modo, que nunca dominarão o corpo e a natureza, mas parece ser doloroso demais para eles admitirem que também em relação à civilização - que se organiza com o intuito justamente de evitar nossas desgraças controlando as relações humanas e juntando forças para enfrentar as adversidades do corpo e do mundo - encontramos uma parcela de natureza impossível de se harmonizar. Diante desse fracasso da civilização, que, buscando evitar as desgraças, torna-se causadora delas, surge-nos a pergunta se não seríamos mais felizes sem a civilização e suas interferências. Para Freud, uma pergunta semelhante foi feita pelos colonizadores europeus ao se depararem com os povos primitivos por eles colonizados. Nas palavras de Freud:
Em consequência de uma observação insuficiente e de uma visão equivocada de seus hábitos e costumes, eles apareceram aos europeus como se levassem uma vida simples e feliz, com poucas necessidades, um tipo de vida inatingível por seus visitantes com sua civilização superior" (FREUD, 1996/1930, p. 94).
Como o autor salienta, trata-se de uma observação insuficiente que logo se revelou equivocada. O mesmo acontece em relação aos sujeitos de diferentes gerações que experimentaram tecnologias distintas. Por mais que as novas tecnologias se mostrem surpreendentes, logo os homens percebem que elas não lhe garantem maior quota de felicidade. Freud compara esse avanço do passado para o moderno como o prazer barato obtido, ao se colocar a perna para fora do lençol numa noite de inverno e recolhê-la logo em seguida. Ou seja, as mesmas tecnologias que nos resolvem os problemas são elas mesmas criadoras de novos problemas, muitas vezes solucionando desconfortos que não existiriam sem ela. É evidente que vislumbrar-se demais com a modernidade, a ponto de acreditar que o progresso nos deixaria mais perto de abolirmos o mal-estar próprio à civilização é uma ilusão. Mas também parece ilusório acreditar que povos mais antigos e primitivos, ou mesmo uma geração anterior, teriam por si só mais acesso a felicidade. Nesse sentido, a nostalgia como saudade de um passado supostamente feliz, equivale à observação insuficiente dos europeus sobre os povos primitivos. Para Freud, essa suposição de que a felicidade reside em épocas ou modelos de vida anteriores ao que vivemos é consequência de nossa tendência a tentar considerar objetivamente a aflição ou a alegria das pessoas nos colocando no lugar delas. No entanto, como declara Freud, esse método, embora pareça objetivo, é o mais subjetivo possível, pois coloca nossos próprios estados mentais no lugar de quaisquer outros. O autor conclui essa passagem dizendo que: "A felicidade, contudo, é algo essencialmente subjetivo". E continua dizendo que também o sofrimento o é:
Por mais que nos retraiamos com horror de certas situações - a de um escravo de galé na Antiguidade, a de um camponês durante a Guerra dos Trinta Anos, a de uma vítima da Inquisição, a de um judeu à espera de um pogrom - para nós, sem embargo, é impossível nos colocarmos no lugar dessas pessoas. (...) Parece-me improdutivo levar adiante esse aspecto do problema (FREUD, 1996/1930, p. 96).
Não que seja improdutível olhar para o passado e mesmo aprender com outros povos, sejam ou não primitivos. Mas a saudade de uma época perdida nos coloca o risco de tentarmos fazer comparações de coisas que são incomparáveis por serem demais subjetivas: o sofrimento e a felicidade. Assim, a posição de Freud parece ser que a felicidade perdida de uma era anterior, no mais das vezes, é uma ilusão já que nunca saberemos de fato se seríamos mais ou menos felizes nessa ou em outra época, da mesma forma que não saberemos se seremos mais felizes vivendo de acordo com o nosso tempo ou de acordo com outro. O que parece mais certo é que cada época é como é, e tem suas próprias fontes de sofrimento e felicidade que são experimentadas, subjetivamente, de forma diferente por cada membro que a compõe.
No entanto, seguindo o próprio exemplo de Freud, é imprescindível ao analista atentar e se incomodar com os problemas de seu tempo, e mesmo denunciá-los. Acompanhando a lógica própria do simbólico, que se organiza pela diferença, só podemos pensar nosso tempo distinguindo-o de outros. E, se usamos os significantes "presente", "moderno" ou "atual" estamos opondo-os a outros, "passado", "antigo" ou "démodé". A pergunta que se apresenta, então, é como detectar as mazelas do nosso tempo comparando-o com o passado, mas sem cairmos na improdutividade da nostalgia que nos prende, via princípio do prazer ou compulsão à repetição, a um imaginário de uma época onde as coisas, inclusive o modo de se adoecer, aconteciam de forma supostamente mais harmoniosa. Algumas discussões do filósofo italiano Giorgio Agamben parecem nos dar ótimos recursos no caminho dessa resposta. Passemos então à exposição do que o filósofo considera ser "contemporâneo", termo que oporemos, a partir de agora, a essa forma de gozo que vínhamos chamando de nostalgia.
Ser contemporâneo
Logo no início de seu ensaio O que é o contemporâneo? Agamben revela que ser verdadeiramente contemporâneo nada tem a ver com alienar-se na vida atual e agir em conformidade a ela. Ser contemporâneo, portanto, nada tem a ver com ser ajustado ao seu tempo. Retomando uma frase de Barthes, o autor repete que o contemporâneo é o intempestivo. Barthes chega a essa conclusão a partir de um texto de Nietzsche que classifica uma consideração como intempestiva por compreender como mal um inconveniente que sua época se orgulha. É daí que Barthes afirma que o contemporâneo é o intempestivo, ou seja, paradoxalmente, o contemporâneo é o inatual, pois somente por não coincidir com seu tempo é que ele poderá apreendê-lo. Entretanto, Agamben faz uma ressalva importante sobre esse anacronismo próprio ao contemporâneo:
Essa não coincidência, essa discronia, não significa, naturalmente, que contemporâneo seja aquele que vive num outro tempo, um nostálgico que se sente em casa mais na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre e do marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver (AGAMBEN, 2009, p. 59).
O contemporâneo seria assim aquele que estabelece uma relação específica com o seu tempo aderindo-o ao mesmo tempo em que dele toma distância. Ou seja, aquele que consegue estabelecer uma distância apropriada de seu tempo para perceber suas mazelas, ao mesmo tempo em que se sabe necessariamente pertencente a ele. Se lermos com atenção a advertência do filósofo, perceberemos que o nostálgico não é contemporâneo.
Para explicar melhor o que seria o contemporâneo, Agamben lança mão de uma metáfora que vale a pena ser reproduzida. Partindo de uma pergunta da astronomia, a saber, por que o espaço é escuro mesmo com tantas galáxias e tantos corpos luminosos próximos ou distantes de nós, o autor discute uma hipótese da astrofísica que serve de estímulo para a discussão sobre a contemporaneidade. Para a astrofísica atual, o espaço é escuro porque as luzes oriundas dos incontáveis corpos luminosos nunca alcançam nossa galáxia, já que suas galáxias se distanciam da nossa em uma velocidade superior a velocidade da luz. As galáxias se afastam de nós ao mesmo tempo em que suas luzes tendem a nos atingir; porém, o afastamento dos corpos luminosos é mais veloz do que a luz. Para o autor, ser contemporâneo é perceber, no escuro de nossa época, essa luz que procura nos atingir e não atinge nunca. Olhar para as luzes que brilham em nosso século é inócuo e corre o risco de nos cegar, é preciso manter o olhar fixo para a luz que não nos alcança. Da mesma maneira, ser nostálgico também parece uma forma de cegueira, pois nesse caso se olha mais para a luz que se apagou do que para a luz que virá ainda que não chegue nunca. Isso justifica, segundo Agamben, existir tão poucos homens contemporâneos, e podemos supor também que o mesmo fato explica as grandes personalidades de nossa história serem acusadas de estarem a frente de seu tempo. Eles enxergavam uma luz que não havia chegado ainda. Esse é o maior trunfo dos grandes artistas, pensadores, políticos e outros que marcaram nossa história. Nas palavras do italiano, ser contemporâneo é "ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar" (AGAMBEN, 2009, p. 65).
Para citar um exemplo de algo que é contemporâneo, Agamben fala da moda. Para o autor, a moda introduz, no tempo, uma descontinuidade entre "o que não mais é" e "o que ainda não é". A moda insere um intervalo entre o "não mais" e o "ainda não". No entanto, a moda é inapreensível, não conseguimos alcançá-la nunca, pois ela não está presente nem no desenho do estilista, nem nas agulhas do alfaiate, nem no desfile da manequim, nem na roupa que circula pela cidade. Ou está presente em tudo: "Antes de tudo, o 'agora' da moda, o instante em que esta vem a ser, não é identificável através de nenhum outro cronômetro" (AGAMBEN, 2009, p.66). Mesmo a manequim, quem talvez pudesse dizer estar sempre na moda, nunca nela está, pois a moda só é moda quando as pessoas comuns passam a utilizar as roupas. Antes disso, ela está no "ainda não". Mas quando as roupas invadem as ruas já não estamos mais na moda, pois outras luzes estão na passarela tentando nos alcançar, ou seja, se a próxima moda já existe, então não estamos mais na moda. Assim, a moda, como as luzes das galáxias que se afastam, não nos atinge nunca.
A contemporaneidade, portanto, assim como a moda e as luzes das galáxias, está sempre no porvir. Mas se não podemos enxergar a luz que não nos alcança, podemos enxergar o escuro que elas estão prestes a iluminar. Portanto, embora seja difícil, não significa que seja impossível ser contemporâneo no sentido que nos conta Agamben. E também não significa que ser contemporâneo signifique olhar somente para o futuro e tentar adivinhá-lo sem voltar o rosto para trás. Agamben nos lembra de que assim como a moda o contemporâneo pode também reatualizar o passado, re-evocar o ausente, revitalizar o que foi mesmo declarado morto. Mas a advertência inicial do autor deve continuar nos iluminando para que não sejamos nostálgicos e não nos sintamos mais em casa na Atenas de Péricles - ou na Viena de Freud - do que em nossa própria época. Reatualizar o passado, seja em moda, seja em termos de contemporaneidade, não significa viver no passado nem tornar o passado mais presente do que o próprio presente, mas sim enxergar o passado que existe em todo presente. Pois, se é correto afirmar que o contemporâneo nunca nos alcança, também é correto dizer que o arcaico não nos abandona totalmente. Isso foi bem observado por Freud inúmeras vezes, o que o levou a comparar o inconsciente com os modos de organização psíquica das crianças e dos povos primitivos. Freud foi contemporâneo a sua época porque enxergou a luz que não conseguia chegar aos tratamentos destinados aos neuróticos; mas o foi contemporâneo também por perceber que os mecanismos neuróticos podiam ser remontados aos mitos que habitavam a Grécia antiga ou aos povos mais primitivos que se organizavam em torno de totens e tabus. O arcaico vive no presente assim como a criança vive no adulto, ressalta Agamben. E nisso podemos dizer que ele é bastante freudiano. Ser contemporâneo, portanto, inclui relacionar o seu tempo a outros tempos - olhar para o passado e perceber o arcaico que existe no moderno, por vezes, fazer uso dele - mas inclui acima de tudo saber-se pertencente ao seu tempo, saber que dele não se pode fugir. Tudo isso, claro, sem cair na dupla armadilha que, por vezes, nos seduz: a nostalgia que nos fixa ao que foi e a conformidade que nos cega com as maravilhas da novidade.
Ser contemporâneo hoje
Diante do exposto, não nos seria possível concluir sem fazermos algumas considerações sobre o nosso tempo. Isso implica, como foi dito, relacionar nosso tempo com outros mais remotos, mas não para cairmos em nostalgia, e sim para refletir o lugar e a política do psicanalista diante do novo, que se nos apresenta, cotidianamente, desde que Freud iniciou seus tratamentos com as histéricas do final do século XIX e começo do século XX. Continuaremos privilegiando as teorias até agora trabalhadas, a saber, a psicanálise - desde Freud até nosso tempo - e a filosofia do italiano Giorgio Agamben.
Para Agamben, o momento em que estamos vivendo é marcado por tamanhas alterações que é justo perguntarmos, inclusive, se não estamos vivendo em uma época em que o sujeito não existe, ou existe apenas de uma forma espectral. Em seu ensaio "O que é um dispositivo?" o autor faz uma breve discussão sobre o que Foucault chama de dispositivo para, então, definir nosso tempo. Sem aprofundarmos na discussão propriamente foucaultiana, destaquemos a conclusão de Agamben que define o dispositivo como qualquer coisa que de algum modo orienta o discurso dos seres viventes:
Generalizando posteriormente a já bastante ampla classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - por que não - a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares de anos um primata - provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar (AGAMBEN, 2009b, p. 40).
A leitura que Agamben faz do conceito de Foucault é que o dispositivo seria, portanto, a práxis que de algum modo ordenaria o ser. E a linguagem poderia ocupar um lugar privilegiado nesse conjunto, já que, como supõe o filósofo, ela foi, provavelmente, o primeiro dispositivo da humanidade. O autor sublinha essa divisão do ser e da práxis comparando o dispositivo ao uso religioso do conceito de economia. Para Agamben, a palavra economia - do grego, Oikonomia3 - passou a ser usada na teologia para dar conta de um problema que o próprio cristianismo provocava na religião cristã: se a religião era monoteísta, como falar de santíssima trindade, que parecia dividir Deus em Pai, Filho e Espirito? A resposta dos padres é que Deus enquanto ser era uno, mas quanto à sua economia, a administração de seu lar, suas atividades práticas, era tríplice. Ser e prática se distinguem no discurso dos cristãos. A atividade, a prática, a economia, ou mesmo o dispositivo, já que Agamben, por diversas vezes, equivale Oikonomia ao dispositivo, não tem fundamento no ser. O ensaio de Agamben nos leva, então, à separação de duas grandes classes, os seres viventes - ou as substâncias - e os dispositivos - ou a Oikonomia. Mas, o que mais nos interessa é que o filósofo coloca entre essas duas classes o sujeito. O sujeito seria o resultado do encontro do ser com os dispositivos. Subjetivar-se incluiria o contato com os dispositivos, as escolas, as fábricas, as disciplinas, mas acima de tudo, com a linguagem, mãe de todos os dispositivos. Vale à pena lembrar que para Lacan também o sujeito é efeito desse dispositivo que é a linguagem, enquanto cadeia de significantes, pois o sujeito, segundo Lacan, não podendo ser um significante, já que não pode ser representado integralmente por nenhum deles, encontra-se como seu efeito, no intervalo entre um e outro significante: "o sujeito não é outra coisa - quer ele tenha ou não consciência de que significante ele é efeito - senão o que desliza numa cadeia de significantes" (LACAN, 1972-73/1985, p.68).
Assim, o dispositivo que assujeita o ser, já que o captura, o manipula, o modela e o ordena, também é operador de subjetivação. Subjetivação e assujeitamento estão em uma articulação dependente. O ser vivente - a substância - se torna sujeito pelo uso dos dispositivos, de uma economia ou uma práxis que não pode ser outra coisa senão uma ordenação de significantes que num processo de alienação e separação produz o sujeito:
O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito (AGAMBEN, 2009b, p. 38).
Se os dispositivos produzem sujeito é porque algo do ser sobrevive ao contato com o dispositivo, ainda que seja enquanto seu efeito. Para Agamben, há dispositivos desde que o homem iniciou seu processo de "hominização" que os tornou "humano". Pois esse processo é um processo semelhante à divisão divina entre o ser e a economia, já que o homem é um produto da separação do ser do seu ambiente (e também de si mesmo). No entanto, o que experimentamos em nosso tempo, de acordo com o autor, é uma proliferação de dispositivos, não havendo um só instante em nossa vida que não somos modelados, contaminados ou controlados por dispositivos fabricados pela ciência e pelo capitalismo. Ocorre, atualmente, o que o autor chama de triunfo da Oikonomia, o que leva o processo separativo (entre o ser e a práxis) ao extremo. Frente ao triunfo da Oikonomia, Agamben se pergunta o que fazer e chega à conclusão que não se trata, nem de destruir os novos dispositivos, nem de usar esses dispositivos de modo correto, já que, para o autor, não há um modo correto de usar esses dispositivos. Estamos novamente na fronteira entre o homem nostálgico que quer retornar ao passado - o próprio Agamben revela seu desejo de destruir ou desativar todos os celulares da Itália - e o homem moderno que procura se adequar cegamente ao seu tempo usando a tecnologia de uma maneira que lhe digam ser a correta.
Segundo Agamben, os dispositivos modernos apresentam uma diferença em relação aos dispositivos tradicionais justamente por não provocar a subjetivação ao fazer imperar a práxis. Se os dispositivos tradicionais como a religião, a educação e o governo visavam através de suas práticas à criação de corpos dóceis, mas sujeitos do seu processo de assujeitamento, os dispositivos atuais do capitalismo não priorizam mais a produção de um sujeito ou mesmo seu assujeitamento, mas agem priorizando um processo que Agamben designa como dessubjetivante:
Um momento dessubjetivante estava certamente implícito em todo processo de subjetivação (...) mas o que acontece agora é que processos de subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar a recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer, espectral (AGAMBEN, 2009b, p. 47).
Os corpos dóceis dão lugar aos sujeitos espectrais e Agamben resume nossa sociedade atual dizendo que ela se apresenta como um corpo inerte atravessado por gigantescos processos dessubjetivantes, que não corresponde a nenhuma subjetivação real.
A saída, segundo Agamben, é a profanação. Pois, se o capitalismo, através da proliferação de dispositivos, leva ao extremo o processo separativo entre o ser e a Oikonomia, um novo tempo exige não eliminar os novos dispositivos, mas restituir aos dispositivos seu vínculo, frágil que seja, com o ser. Se, em termos teológicos, a consagração consiste em separar o que é humano tornando-o divino ou sagrado, a profanação consiste em restituir ao comum o que o sagrado havia separado. Profanação não é nostalgia, é ação, é fazer uso comum do que é sagrado, é devolver ao sagrado seu lugar terreno no meio dos homens e diminuir a distância entre o objeto divino e os demais objetos, entre o ser e sua prática. Para Agamben, uma saída que podemos vislumbrar para o nosso tempo é a profanação dos dispositivos. E aí temos uma boa sugestão aos psicanalistas do século XXI, restituir ao uso comum do ser o que foi separado economicamente. Restituir à Oikonomia o que é do ser, para que possamos então contar com sujeitos menos espectrais.
Considerações finais sobre a política da psicanálise no século XXI
Chegamos, assim, a algumas considerações que não são indiferentes ao psicanalista de hoje. Vivemos em uma época carente de subjetivação, o que faz com que os sujeitos se percam em meio aos objetos da ciência e se apresentem carentes também de sintoma, pelo menos no sentido psicanalítico do termo. Pois, para a psicanálise é difícil pensar um sintoma sem sujeito, já que o sintoma é a própria expressão do sujeito. Enquanto os pacientes de Freud eram marcados por sintomas que, como os sonhos, tinham um sentido oculto, o que conhecemos como sintomas contemporâneos como a toxicomania, a bulimia e acontecimentos corporais, é marcado pela falta de sentido, o que distingue sua estrutura da estrutura dos sonhos. O próprio Freud (1996/1920) já havia se deparado com uma parcela do sintoma opaca ao sentido, pura pulsão de morte que Lacan chamou mais tarde de real e de gozo. Mas o real parecia estar coberto por uma tela que funcionava, a exemplo dos sonhos interpretados por Freud, num campo repleto de sentido. Poderíamos dizer que os novos sintomas são marcados mais pelo real, enquanto carente de sentido, do que pela demanda de interpretação do material simbólico. Se ser contemporâneo, na época de Freud, consistia em despertar o sujeito de seus sonhos noturnos e diurnos, hoje temos que buscar um modo de trabalhar com esses sujeitos, supostamente despertos e mais próximos do real e do gozo.
Os sintomas atuais trazem, portanto, uma vertente distinta do sintoma enquanto uma mensagem cifrada. Nestes casos, encontramos o que o psicanalista Orlando Cruxên diz ser a antítese do percurso sublime, que para o autor pode ser visto, por exemplo, nas toxicomanias, onde "a existência imediata de um objeto real abrevia o circuito pulsional.". O autor continua dizendo que na toxicomania "a fantasia, como tela que recria o roteiro da relação com o objeto é empobrecida e o trajeto pulsional em jogo pouco faz história" (CRUXÊN, 2004, p.60).
Enfim, vivemos em uma cultura que oferece objetos diversos que servem de dispositivos e que se enquadram ao que Cruxên (2004) chama, na toxicomania, de objeto real que abrevia o circuito pulsional e empobrece a dimensão da fantasia. Os medicamentos, as drogas, a televisão, os gadgets4, e tantos outros dispositivos não dão espaço ou tempo para que a falta, estrutural ao simbólico, possa aparecer. Vemos, atualmente, uma crescente promessa de que um objeto ofertado pelo capitalismo será capaz de pôr fim ao circuito significante em torno do objeto perdido. O sujeito se encontra assim tão mergulhado nessa proliferação de dispositivos que o trabalho psíquico de tentar representar, simbólica e imaginariamente, o real quase não acontece. E, como lembra Agamben, a dessubjetivação vem antes mesmo e talvez até independente da subjetivação.
Se voltarmos nossos olhos para a formalização dos discursos feita por Lacan (1992/ 1969-1970), veremos que o discurso dominante da sociedade ganhou uma nova versão. Se antes dominava o discurso do mestre, marcado pelo significante mestre que capturava o sujeito ao mesmo tempo em que ordenava o resto da cadeia significante (assujeitava o sujeito ao mesmo tempo em que o subjetivava); o discurso que domina a cena atual é formulado por Lacan como o discurso do capitalismo. Nele, o agente aparece como sujeito dividido, mas essa não é a grande novidade do discurso - o discurso histérico já se apresentava da mesma maneira -, a novidade é que, ao invés de se dirigir ao campo do Outro em um mecanismo histérico de demandar e desafiar o mestre, o sujeito se dirige - no seu próprio campo - ao significante mestre de nossa época: o Capital. É claro que o Capital, por ser significante (S1), veio do campo do Outro, mas não mais nele se encontra. O sujeito dividido, ou o consumidor, se assim podemos dizer, se dirige não à sociedade, mas ao dinheiro que aparece como a verdade do discurso do capitalismo. Esse Capital, por sua vez, é o que sustenta e determina no campo do Outro o saber (S2), que em nosso tempo aparece com o nome de Ciência. A Ciência, com o seu saber, é quem produz os objetos de consumo que se apresentam como produtos que se dirigem ao sujeito dividido - o consumidor. A novidade que o discurso capitalista traz é que, contrariando o conceito mesmo de discurso, que já implica a formação de um laço social, ele não cria laço. Ou, também podemos dizer, o discurso capitalista não favorece o laço com o pequeno outro, meu semelhante - e talvez nem mesmo com o grande Outro da sociedade. O capitalismo favorece o laço com os objetos da ciência, que visam dispensar a impossibilidade do objeto da pulsão e colocar em seu lugar um objeto, que dê a ilusão não de amor ou de enlaçamento, mas de gozo intenso ou absoluto. Por isso, é que até para amar o próximo o sujeito contemporâneo precisa constantemente de um dispositivo: o computador que acessa o Facebook do amigo, o celular que manda mensagens de amor para o celular da namorada e outros dispositivos que nos fazem rir através de letras (kkkk, rs, hehehe, uauauau) sem mover sequer um músculo da face. Será que passamos a rir com os dedos? Ou o dispositivo é quem ri por nós? O fato é que a proliferação ou o triunfo dos dispositivos nos liga mais a esses aparelhos do que ao campo do Outro. Essa análise dos matemas lacanianos faz Antonio Quinet (2012) concluir que o discurso do capitalismo provoca "um autismo induzido".
Diante dessa realidade, não cabe ao psicanalista lamentar a distância que o separa do velho modo de neurotizar. O psicanalista deve continuar mirando o sujeito, ainda que espectral, no meio da proliferação de dispositivos. Fazê-lo sair desse "autismo induzido" para dar conta do seu desejo, pode ser uma tarefa que ainda persiste no trabalho do psicanalista. Esse é o desafio do analista contemporâneo e é preciso, como alerta Agamben, que ele não seja nostálgico, o que o prenderia ao passado e ao lamento. Mas também é preciso que o analista não "caia na moda" através de adaptações da clínica que desconsiderem os princípios éticos que fundamentam a psicanálise - isso seria o mesmo que se alienar no seu tempo. É preciso que o analista seja propositivo, contemporâneo o bastante para tentar enxergar uma luz que ainda não nos alcançou. Mas sem adaptações a qualquer custo. Refletindo, mais uma vez, sobre as considerações de Agamben a partir da moda, talvez o psicanalista deva procurar não "estar" na moda, mas sim "ser" a moda. Ser a moda não no sentido de reivindicar um uso excessivo e midiático da psicanálise, mas no sentido de que a moda é contemporânea. A moda recupera o passado, transforma-o, mas também sugere um futuro, apresenta saídas que ainda não existem. A moda está sempre entre o "não mais" e o "ainda não". O psicanalista deverá também se colocar nesse intervalo, no meio da curva. Lembremo-nos do brado de Raul Seixas e Paulo Coelho presente na música A verdade sobre a Nostalgia, onde, numa crítica à nostalgia, os autores dizem que "Na curva do futuro muito carro capotou/Talvez por causa disso é que a estrada ali parou / Porém, atrás da curva perigosa eu sei que existe/Alguma coisa nova, mais vibrante e menos triste" (SEIXAS; COELHO, 1975). A psicanálise do século XXI terá que desvendar, como Freud o fez um dia, o quê de mais vibrante e menos triste há atrás da curva do futuro e que ainda não nos iluminou.
Referências
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Artigo recebido em: 19/06/2015
Aprovado para publicação em: 01/12/2015
Endereço para correspondência
Humberto Moacir de Oliveira
E-mail: beto7296@yahoo.com.br
*Psicólogo/Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais-PUC-MG (Belo Horizonte-MG-Brasil), mestrado Estudos Psicanalíticos/Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, prof. Faculdade Pitágoras (Ipatinga-MG-Brasil), coordenador Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço-CEPP (Ipatinga-MG-Brasil).
1Por exemplo, no dicionário eletrônico da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Hollanda, uma das definições da saudade é lembrança de algo ou alguém de que se é privado; também a nostalgia aparece não apenas como o estado melancólico causado pela falta de algo, mas também como tristeza profunda causada por saudade do afastamento da pátria ou da terra natal. Essas definições revelam como as duas palavras compartilham do mesmo campo semântico. (Disponível em: www.dicionariodoaurelio.com).
2Vale lembrar também como as crianças se apegam a seus primeiros objetos infantis, chamados por Winnicott (1975) de objetos transicionais, como um bico, uma fralda ou um pedaço de um cobertor.
3Oikonomia: administração do oikos, do lar, portanto uma atividade relacionada à práxis.
4Gadgets é uma palavra da língua inglesa equivalente à palavra "bugiganga". Ou seja, um objeto com serventia duvidosa, marcado mais por suas funções acessórias do que pela sua função principal. Vários dispositivos eletrônicos ofertados pela ciência moderna parecem cumprir esse papel de tampar a falta do sujeito através de um objeto imaginário, sem função subjetivante. O aparelho celular, usado mais para outras funções do que para ligar, é um exemplo dessas bugigangas que nos separam do mundo, do outro e até dos nossos próprios pensamentos através de atrativos fúteis de pouca relevância subjetiva.