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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.40 no.98 São Paulo jan./jun. 2020
I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO
Representações sociais e transtornos alimentares: revisão sistemática
Social representations and eating disorders: systematic review
Representaciones sociales y trastornos alimenticios: revisión sistemática
Ligia Ziegler SamuelI, Gislei Mocelin PolliII
IMestre em Psicologia pela UTP, endereço: Rua Assis Figueiredo 1315, Fase B, Torre 1 - ap 83. Guaíra. Curitiba, PR. E-mail: zieglerligia@gmail.com, ORCID: 0000-0001-7429-6025
IIDoutor em Psicologia pela UFSC Professora Adjunta no programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Tuiuti do Paraná. Endereço: Rua Nicarágua, 1995, apto. 705-B. Bacacheri. Curitiba, PR. E-mail: gismocelin@gmail.com, ORCID: 0000-0001-7254-7441
RESUMO
A etiologia dos transtornos alimentares é multifatorial e as representações sociais assumem um papel importante na maneira como os indivíduos veem e vivem o próprio corpo e alimentação. Esse estudo teve como objetivo apresentar uma revisão sistemática da literatura sobre as representações sociais dos transtornos alimentares nos últimos 10 anos. A pesquisa foi realizada em oito bases de dados nacionais e foram encontrados 192 materiais que passaram por refinamento, resultando em nove artigos analisados. Os artigos relacionam práticas comportamentais de culto ao corpo belo, desejado e práticas alimentares para a manutenção do mesmo. A mídia contribui para reforçar as ideias de culto ao corpo e alimentação adequada, e as representações sociais constituem uma interessante opção para o estudo dos significados que as pessoas constroem em relação ao corpo e à comida.
Palavras-chaves: transtornos alimentares; representações sociais; corpo; mídia.
ABSTRACT
The etiology of eating disorders is multifactorial and social representations play an important role in the way individuals view and live their own bodies and food. This study aimed to present a systematic review of the literature on the social representations of eating disorders in the last 10 years. A search was performed in eight national databases and found 192 works that were refined, resulting in nine papers. The papers relate behavioral practices of worship to the beautiful and desired body, and eating practices for the maintenance of the same. The media helps to reinforce the ideas of body worship, proper eating, and social representations are an interesting option for the study of the meanings that people construct in relation to the body and food.
Keywords: eating disorders; social representations; body; media.
RESUMEN
La etiología de los trastornos alimenticios es multifactorial y las representaciones sociales asumen un papel importante en la forma como los individuos ven y viven el propio cuerpo y alimentación. Ese estudio tuvo como objetivo presentar una revisión sistemática de la literatura sobre las representaciones sociales de los trastornos alimenticios en los últimos 10 años. El estudio fue hecho en ocho bases de dato nacionales y fueron encontrados 192 materiales que tuvieron un refinamiento, resultando en nueve artículos analizados. Los artículos vinculan prácticas comportamentales de culto al cuerpo bello, deseado y prácticas alimenticias para el mantenimiento de este. Los medios de divulgación contribuyen para reforzar las ideas de culto al cuerpo y alimentación adecuada y las representaciones sociales constituyen una interesante opción para el estudio de los significados que las personas construyen con relación al cuerpo y la comida.
Palabras clave: trastornos alimenticios; representaciones sociales; cuerpo; medios de divulgación.
Introdução
Os transtornos alimentares têm causas multifatoriais e caracterizam-se por perturbações na alimentação ou no comportamento relacionado a ela. As caracterizações e especificidades dos transtornos alimentares são diferentes e causam diversos prejuízos à vida do indivíduo. A etiologia dos transtornos relaciona fatores biológicos, genéticos, psicológicos e socioculturais (APA, 2014). No século XIII já havia descrição de mulheres que se auto impunham jejum como uma forma de se aproximar espiritualmente de Deus. Eram chamadas de "santas anoréxicas". As características presentes nessas mulheres eram acompanhadas de perfeccionismo, auto-insuficiência, rigidez no comportamento, auto insatisfação e distorções cognitivas. Características muito similares com os transtornos alimentares de hoje (Cordas, 2004).
Além disso, ao longo dos anos, os modelos de beleza e os padrões alimentares se modificaram e se adaptaram aos contextos sociais, econômicos e históricos. No século XIX, por exemplo, os alimentos eram oferecidos com abundância calórica e os padrões estéticos corporais eram robustos e arredondados demonstrando poder e grandiosidade. A partir da década de 60 a imagem feminina foi associada a modelos e manequins magros e sem gorduras. No começo dos anos 1980 houve uma transição ainda mais enraizada ligada ao padrão estético mais magro e ao culto ao corpo (Oliveira & Hutz, 2010). Sendo assim, apesar de não serem considerados novos, os registros de transtornos alimentares aumentaram significativamente na sociedade pós-moderna com as mudanças nos padrões estéticos e alimentares. As determinações socioculturais atuais podem influenciar no desenvolvimento de hábitos e práticas alimentares disfuncionais que podem aumentar a ocorrência de doenças relacionadas à alimentação. Com isso, os transtornos alimentares foram identificados e tratados como doenças mentais e incluídos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) da American Psychiatric Association (APA) (Oliveira & Hutz, 2010). Na quinta edição do DSM os transtornos alimentares são descritos como adoecimento persistente na alimentação ou no comportamento relacionado a ela, que resulta na ingestão ou absorção modificada dos alimentos e que compromete a saúde física e emocional do indivíduo. Os transtornos alimentares são descritos em compulsão alimentar, bulimia ner- vosa, anorexia nervosa, transtorno de ruminação, transtorno alimentar restritivo/evitativo e transtorno alimentar não especificado (APA, 2014). Os distúrbios do comportamento alimentar podem estar associados à prática excessiva de atividades físicas, ao medo de engordar e ao desejo constante de emagrecer. Ou seja, os transtornos alimentares estão relacionados a perturbação alimentar ou ao comportamento relacionado a alimentação. Outro fator de risco para o seu desenvolvimento é a insatisfação corporal e o desejo de modificar o corpo (Manochio-Pina, Ganero, Silva & Pessa, 2018).
O DSM V caracteriza a bulimia por episódios de ingestão, em curto período, de uma quantidade de alimentos maior do que a maioria das pessoas consumiria em um período similar, seguido de comportamentos compensatórios inapropriados para evitar ganho de peso. Os comportamentos compensatórios envolvem uso de laxantes, vômito induzido, excesso de atividades físicas, jejum ou uso de diuréticos. A compulsão alimentar e o comportamento compensatório inadequado ocorrem no mínimo uma vez por semana durante três meses para caracterizar-se bulimia (APA, 2014). Também a anorexia é descrita no DSM V por medo excessivo de ganho de peso, associado à restrição de ingestão de calorias e perturbação exacerbada com relação à autoimagem, percebendo-se com peso corporal maior do que o real. O indivíduo mantém o peso corporal abaixo do considerado natural para a idade, gênero e histórico de desenvolvimento físico. A incidência é maior entre jovens do sexo feminino do que em jovens do sexo masculino, permeando entre 0,5% e 1% da população diagnosticada com anorexia nervosa. Esses números podem ser questionáveis pelo fato de que apenas os casos mais graves chegam até os ambulatórios e consultórios médicos (APA, 2014).
A compulsão alimentar é caracterizada, no DSM V, por episódios recorrentes de excesso alimentar que devem ocorrer, em média, ao menos uma vez por semana durante três meses. Um episódio de compulsão alimentar é definido como a ingestão de uma quantidade de alimento definitivamente maior do que a maioria das pessoas consumiria em um mesmo período sob circunstâncias semelhantes. Além disso, o indivíduo tem a sensação de falta de controle acompanhado aos episódios de excesso alimentar. No episódio de compulsão alimentar o indivíduo não precisa sentir fome e come muito mais rápido do que o normal, ocasionando em sentir-se exageradamente saciado (APA, 2014).
O transtorno alimentar não especificado (TANE) é caracterizado no DSM V por sofrimento significativo ou prejuízo do convívio social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. O TANE é diagnosticado nas situações em que o indivíduo apresenta uma relação disfuncional com a alimentação, mas não há informações suficientes para que seja realizada identificação mais específica de transtorno alimentar. Ou seja, contempla especificações de outros transtornos alimentares, mas não fecha critérios suficientes para enquadrá-los no diagnóstico. A prevalência maior também é relatada por mulheres jovens e adultas.
Embora os transtornos alimentares tenham sido relatados desde as santas anoréxicas, nos dias atuais sua ocorrência pode estar relacionada aos padrões de beleza e saúde socialmente impostos. A busca pela percepção da autoimagem corporal positiva é disseminada pelos meios de comunicação da massa e pelo discurso social que prescrevem modelos de beleza e da saúde e comportamentos aceitos para que este padrão possa ser alcançado. Esse padrão, quando inadequado, pode ocasionar em distúrbios psicossociais e autoestima negativa (Maciel, Brum, Bianco & Costa, 2019).
Podem ser estabelecidas relações entre o conceito de beleza e as práticas alimentares, sendo que movimentos excessivos relacionados a cuidados com a beleza e preocupações constantes com exercício físico podem resultar em transtornos alimentares. Houve inúmeras variações ao longo da história que associaram os hábitos alimentares e os padrões estéticos á determinações socioculturais. O culto ao corpo se tornou um dos conceitos mais importantes, e as práticas de cuidado com o corpo e com a alimentação, se forem inadequadas, podem desenvolver transtornos alimentares. Essa busca obsessiva pode ser compreendida como uma manifestação para atingir um ideal de magreza, desfigurando um cuidado saudável com o corpo e gerando distúrbios alimentares (Maciel, Brum, Bianco & Costa, 2019).
A construção da percepção da imagem corporal e dos padrões alimentares, são influenciados pelo meio social que o indivíduo está inserido. A alimentação e o corpo são conceitos social e culturalmente construídos, partilhados no discurso social e que criam representações sociais (Monaco & Bonetto, 2018). O corpo é caracterizado pela dimensão orgânica, indi- vidual e social e essa dinâmica é manifestada pela forma como os indivíduos usam, transformam e modificam o corpo (Camargo, Justo & Jodelet, 2010).
As representações sociais (RS) assumem um papel importante na maneira como os indivíduos veem e vivem o próprio corpo, disseminando modelos de comportamento e de pensamento associados a ele. As representações sociais contribuem para entendermos a dimensão social e os valores compartilhados pelos grupos em relação aos corpos e as práticas adotadas por eles (Camargo, Justo & Jodelet, 2010).
Sendo assim, as representações sociais podem ser compreendidas como a reapresentação de fenômenos do cotidiano. Essa reapresentação ocorre quando as pessoas de forma coletiva pensam, se posicionam, se expressam e compartilham de pensamentos e que reproduzem representações sociais. Para conhecer o mundo e torná-lo mais controlável e próximo as pessoas criam representações sociais. Ou seja, o indivíduo participa de forma ativa da construção do pensamento social, explicando e dando sentido a fatos do dia a dia (Polli & Camargo, 2010). Segundo Jodelet (2001) as representações sociais podem ser entendidas como uma forma de conhecimento construído e compartilhando socialmente, que contribui para a construção social de uma realidade comum. O objeto ou fato recebe o significado de representação social porque tem origem nas relações sociais e os grupos compartilham o sentido através da linguagem.
As representações sociais nos aproximam dos objetos a nossa volta e permitem nossa adaptação ao mundo, ajustando comportamentos e pensamentos. Sendo assim, nos sentimos confortáveis frente as situações que são novas e nos tornamos familiarizados com os objetos e acontecimentos (Jodelet, 2001).
As representações sociais são um processo de formação, elaboração e disseminação do conhecimento compartilhado através da manifestação social dos grupos. Sendo assim, os hábitos e práticas corporais de autocuidado dos indivíduos podem ser decorrentes de representações sociais de um determinado grupo social que reforçam ideias de corpo magro, esbelto e livre de gorduras indesejadas (Faria & Siqueira, 2007).
Ocorrem dois processos importantes para a formação das representações sociais: objetificação e ancoragem. A objetificação administra o conteúdo do pensamento do objeto que está sendo representado, tornando o pensamento em algo real e visível. Como exemplo a imagem de uma mulher muito magra. Nos dias atuais, essa imagem nos remete a objetificação da anorexia. A ancoragem é o processo que liga as informações desconhecidas a pontos de referência já conhecidos, visando familiarizar e transformar o novo no universo do pensamento já existente. A ancoragem enraíza a representação do objeto no que já é conhecido, assegurando sua incorporação no social (Jodelet, 2001).
O corpo pode ser entendido por uma perspectiva social e cultural. Esta perspectiva se altera no decorrer da história, contando com características que são externas a ele, como por exemplo, a mídia e influência de questões sociais. Através das representações sociais compreendemos se há conexão entre o que os indivíduos pensam sobre o corpo e as práticas corporais adotadas (Maciel, Brum, Bianco & Costa, 2019).
As representações são compostas por sentidos e significados originados nas relações sociais partilhadas através da comunicação. Em uma mesma sociedade temos representações sociais diferentes, porque os discursos produzidos sobre um determinado objeto são diferentes para cada grupo social (Polli & Camargo, 2010).
Sendo assim, os aspectos socioculturais têm papel importante em vários aspectos da vida cotidiana, como àqueles relacionados aos transtornos alimentares, por exemplo. Outros aspectos que influenciam para o desenvolvimento de transtornos alimentares são fatores históricos, estéticos, socioeconômicos, midiáticos e transculturais (Oliveira & Hutz, 2010).
Comportamentos alimentares envolvem sentimentos, crenças e pensamentos em relação à alimentação. Essas ações podem ser disfuncionais ou não, e suas consequências podem ocasionar transtornos alimentares.
Em relação às representações sociais, a influência de pensamentos dicotômico em relação ao corpo, saúde e beleza desencadeia prejuízos a vida dos indivíduos. Os pensamentos dicotômicos são aqueles divididos em apenas duas categorias ao invés de diferentes alternativas. Por exemplo, os pensamentos de que corpo magro e sem gorduras é necessariamente saudável e o corpo robusto é impreterivelmente indesejável e doente. Sendo assim, esse artigo de revisão sistemática tem como objetivo analisar os estudos publicados sobre transtornos alimentares que tenham sido realizados sob o aporte teórico das representações sociais.
A ênfase do artigo será o transtorno da compulsão alimentar, anorexia nervosa e bulimia nervosa, que são os transtornos alimentares com maior incidência e que atingem em grande parte as mulheres jovens e adolescentes, representando 90% dos casos (Silva, Chitolina & Zink, 2019).
Método
Esta pesquisa é uma revisão sistemática da literatura científica que fornece uma análise da produção científica em um determinado assunto, em um período, fornecendo uma visão geral da área de estudo. Este estudo seguiu os procedimentos e recomendações do Relatório Preferencial para Revisões Sistemáticas e Meta-Análises (PRISMA). Para tanto foi realizada uma busca de documentos relacionados com o tema representações sociais e transtornos alimentares, em diferentes bases de dados nos últimos 10 anos. O levantamento bibliográfico realizado para este estudo foi realizado nos meses de janeiro e fevereiro de 2019 e contemplou as seguintes bases de dados: SCIELO, PEPSIC, REDALYC, MEDLINE, PUBMED, BVS-PSI, APA PsycNET e Periódicos CAPES. A busca foi realizada por meio das seguintes palavras chaves: "representações sociais" OR "representação social" OR "teoria das representações sociais" OR "representaciones sociales" OR "teoria de las representaciones sociales" OR "social representations" OR "social representations theory" AND "transtornos alimentares" OR "anorexia" OR "bulimia" OR "compulsão alimentar" OR "binge eating" OR "Eating Disorders" OR " Trastornos alimentarios" OR "compulsión alimentaria". O termo OR foi utilizado para que fossem consideradas diferentes formas de se referir à Teoria das Representações Sociais (TRS) e diferentes transtornos alimentares (TA), em diferentes idiomas. O termo AND foi utilizado para alcançar artigos que combinassem a TRS com TA.
Foram incluídos todos os artigos publicados em periódicos científicos que tivessem como tema as representações sociais e os transtornos alimentares e que estivessem publicados nas línguas portuguesa, inglesa ou espanhola. Além de terem sido excluídos os artigos cujo tema não contemplasse o objetivo proposto neste estudo e teses, dissertações, livros ou outros documentos. A leitura do título, seguida da leitura do artigo na íntegra, possibilitou o refinamento. Essa avaliação foi feita de forma independente por dois juízes, que concordaram com os artigos que compuseram esta revisão sistemática.
Resultados
Inicialmente foram identificados 192 materiais. Destes, dois foram excluídos por estarem disponíveis em outro idioma que não o português, inglês ou espanhol. Além disso, outros nove foram excluídos por serem livros, três revistas e quatro jornais.
Após a aplicação desta primeira seleção, 174 artigos permaneceram, os quais foram analisados quanto aos seguintes critérios de inclusão, considerando os títulos e resumos: representações sociais e transtornos alimentares. Após esta segunda seleção, 7 artigos permaneceram e todos estavam disponíveis gratuitamente. Todos os estudos selecionados foram analisados de acordo com o objetivo e critérios pré-estabelecidos no presente estudo, conforme consta na Figura 1.
A partir da seleção final, foi realizada a análise temática, em que todos os artigos foram analisados após atenta leitura. Após a realização da pré-análise, a partir da qual o material identificado foi avaliado, realizou-se exploração e organização do mesmo, agrupando-o de acordo com as convergências e divergências encontradas.
Tendo por base o objeto investigado, os artigos foram classificados em três categorias: Representações Sociais (RS) (1) dos transtornos alimentares, (2) do corpo, (3) da alimentação. Foram agrupados dois artigos na categoria das representações sociais dos transtornos alimentares. O estudo de Polli e outros (2018) buscou identificar as representações sociais da anorexia e a presença de fatores de risco para seu desenvolvimento entre estudantes do sexo feminino de diferentes cursos universitários. Já o artigo de Giacomozzi (2010) discute a representação social da anorexia por grupos de jovens garotas que participam de comunidades pró-anorexia no Orkut. Observou-se que as representações contribuem para a construção e o sustento de uma identidade social da anorexia. Os dois artigos que abordaram sobre as representações sociais da anorexia (Giacomozzi, 2010; Polli et al, 2018) mostraram diferentes resultados. Polli e outros (2018) verificaram que os participantes demonstram representações da doença próximo ao conhecimento científico. Giacomozzi (2010) identificou que os participantes encorajam e supervalorizam comportamentos anoréxicos e bulímicos, o que pode dificultar a adesão dos jovens ao tratamento.
A categoria 2) representações sociais do corpo, agrupou quatro artigos (Braga, Molina, Figueiredo & Martins, 2010; Campos, Cecílio & Penaforte, 2016; Giacomozzi & Bousfield, 2011; Santiago, Oliveira, Bulhões & Simões, 2012). O estudo de Braga, Molina, Figueiredo e Martins (2010) buscou analisar as representações sociais do corpo em adolescentes do Centro Salesiano do Menor, em Vitória (ES). Os adolescentes apontaram a percepção de um corpo ideal e que as consequências de não o ter pode gerar exclusão, infelicidade, doenças e até morte. O estudo apontou que os distúrbios do comportamento alimentar (bulimia e anorexia) aparecem com maior frequência entre adolescentes, apesar de nenhum participante relatar ter transtorno alimentar. O objetivo do estudo de Campos, Cecílio e Penaforte (2016) foi compreender como ocorre a produção do sentido do corpo nos discursos produzidos pelas capas da revista Boa Forma. Foi possível observar a associação entre dieta, saúde e beleza e a influência da mídia sobre as ideias de corpo, que se não obtida pode gerar culpa, tensões e até transtornos alimentares de forma geral. Ainda na categoria 2), Giacomozzi e Bousfield (2011) investigaram as representações sociais do corpo e comportamentos alimentares de mulheres jovens participantes da comunidade pró-anorexia no Orkut. Os dados indicam que o corpo é sinônimo de poder, representado como cartão de visitas e reflexo de beleza. As participantes demonstraram comportamentos em busca do corpo perfeito, o que pode contribuir com desenvolvimento e manutenção da anorexia.
Santiago, Oliveira, Bulhões e Simões (2012) analisaram as representações do corpo em adolescentes de ambos os sexos, que estudam no nono ano de uma escola em Portugal. Entre os colegas havia uma aluna diagnosticada com anorexia, o que pode ter influenciado no conteúdo das RS. Os adolescentes relataram que percebem o corpo como uma forma de sociabilidade, parte da identidade do jovem. Além disso, alguns relataram sobre o ideal de corpo, atividade física, lazer, influência da mídia sobre a imagem corporal e por último a percepção da anorexia nervosa do corpo que remeteram à doença. Apesar do diagnóstico da aluna, os colegas da escola não a reconhecem com a patologia. Observou que a anorexia nervosa é representada por questões socioculturais e que a comunicação social influencia para os alunos não reconhecerem uma aluna diagnosticada com a patologia.
A categoria 3 é composta por apenas um artigo e refere-se às representações sociais da alimentação. Demonte (2017) analisou as representações sociais sobre a alimentação e a relação com a saúde ou doença, no contexto midiático da industrialização alimentícia na Argentina (2009-2014). Foram selecionados três jornais de circulação nacional, frequência diária, com diferentes perfis editoriais e, portanto, que abordam diferentes públicos. O resultado do estudo demonstrou que o discurso médico e nutricional enfatiza a dimensão biológica dos alimentos e classifica-os em saudáveis ou não, omitindo a complexidade alimentar no contexto atual. O foco midiático é relacionado aos nutrientes, gorduras, alimentos saudáveis ou não, ou seja, dimensão nutricional. Para concluir, os resultados não apontaram fatores de risco para transtornos alimentares.
Discussão
A partir da revisão sistemática realizada foi possível observar que a maioria dos artigos tratam dos transtornos alimentares a partir das representações sociais associadas a anorexia, corpo e alimentação. Os estudos relacionam o desejo e o culto ao corpo esbelto e sem gorduras a fatores de risco para transtornos alimentares. Também foi possível analisar que o objetivo dos artigos foi compreender as representações sociais e o discurso social que contribui para a autopercepção corporal dos indivíduos e a consequência dessa percepção pode ser o desenvolvimento de transtornos alimentares.
Dois artigos de Giacomozzi (2010) e Polli e outros (2018) abordaram as representações sociais sobre os transtornos alimentares, em específico a anorexia. O resultado do estudo Giacomozzi (2010) forneceu elementos indicadores para representações sociais da anorexia e a identidade social através dos participantes da rede social Orkut. Os participantes não percebem a anorexia como uma patologia e sim como autocontrole, sucesso, beleza e ideal de corpo. Oestudo de Polli e outros (2018) concluiu que os estudantes universitários percebem a anorexia como patologia, próximo ao conhecimento científico. É possível que as diferenças encontradas nos estudos Giacomozzi (2010) e Polli e outros (2018) se justifiquem pela disparidade dos públicos e pela consequente representação da patologia. No estudo de Polli e outros (2018) as representações sociais da anorexia indicam que os participantes têm um bom conhecimento técnico sobre as características da doença. Esta informação revela-se muito importante, uma vez que os participantes são estudantes universitários dos cursos de Nutrição, Estética, Psicologia e História, nos quais a prevalência maior é de jovens mulheres. Corroborando, a literatura aponta maior predominância de transtornos alimentares em mulheres (Souza et al, 2011). Além disso, o conhecimento técnico apontado pelas participantes desse estudo é semelhante ao caracterizado pelo DSM. Restrição da ingestão de calorias, peso corporal significativamente baixo, forma corporal distorcida e medo excessivo em ganhar peso foram algumas características apontadas pelos participantes no estudo e também atribuídos ao diagnóstico da doença pelo DSM (APA, 2014). No estudo de Giacomozzi (2010) os participantes atribuíram uma representação ligada a visão do senso comum. Esse resultado pode estar associado ao fato de que foi realizada uma pesquisa de arquivos, na qual os textos selecionados para análise estavam disponíveis na rede social Orkut. A valorização da anorexia encontrada no artigo de Giacomozzi (2010) pode estar relacionada a existência de uma relação do aumento do número de casos de transtornos alimentares com aspectos culturais e sociais que reforçam o ideal de beleza e corpo. A imagem ideal é de um corpo magro, fino e os comportamentos obsessivos e mal adaptados contribuem para a construção da autoimagem corpo- ral, que pode ocasionar em perturbações na alimentação e na manifestação da anorexia nervosa (Rajan, 2018).
Na categoria 2 a população estudada é diferente e o método envolve duas pesquisas documentais, uma é a revista boa forma e outra a rede social Orkut, mas os resultados indicam que as representações sociais do corpo influenciam em práticas que podem estar relacionada ao desenvolvimento de diferentes transtornos alimentares. Embora os objetos sejam diferentes nas categorias 1 e 2, o que é observado no artigo da Giacomozzi (2010), categoria 1, é semelhante, concluindo que padrões de beleza influenciam nas práticas corporais.
O artigo de Campos, Cecílio e Penaforte (2016) analisados na categoria 2, concluíram que a publicidade atribui importância ao corpo ideal exibido pelas modelos, que sempre aparecem sorridentes e sensuais. Além disso, o corpo magro ou musculoso fica a mostra reforçando a ideia de dominação e controle e prescrevem condutas e valores aos corpos. O estudo de Giacomozzi e Bousfield (2011), também analisados na categoria 2, concluiu que a busca pelo corpo perfeito é influenciada pela rede social, propagando mensagens e recomendações que arriscam a saúde e podem levar a consequências trágicas na vida das mulheres. Essa similaridade entre os resultados pode estar atrelada ao fato de ambos estudos foram documentais, em revista e na rede social Orkut. O discurso midiático assume função geradora desses padrões de estética corporal e de alimentação, contribuindo para construção e consolidação de representações sociais (Silva & Silva, 2016).
Os outros dois estudos da categoria 2 de Braga, Molina, Figueiredo e Martins (2010) e Santiago, Oliveira, Bulhões e Simões (2012) apontaram semelhanças nos resultados sobre a percepção do corpo, voltado a ideias de normalidade, proporcionalidade e perfeição e a consequência de não ter o corpo ideal pode levar a doença ou infelicidade. Essa semelhança nos resultados pode estar relacionada ao público adolescente de ambas as pesquisas e a importância das ideias socialmente construídas e partilhadas, que podem formar representações sociais sobre o corpo. Compartilhar práticas e ideias sobre o corpo, constituiem referencias importantes do grupo social. Além disso, dentro da mesma sociedade, a cultura alimentar influência na construção da identidade (Monaco & Bonetto, 2019). Nos estudos de Santiago, Oliveira, Bulhões e Simões (2012), os participantes relatam não perceber que existe uma aluna diagnosticada com anorexia nervosa. Essa conclusão pode estar atribuída ao fato de que os adolescentes do contexto escolar podem ter pouco conhecimento científico sobre a patologia, diferente do estudo de Polli e outros (2018), referente à categoria 1, no qual os estudantes universitários demonstram maior conhecimento técnico sobre anorexia nervosa. No único artigo analisado na categoria 3, Demonte (2017) concluiu que o discurso médico-nutricional reduz os alimentos ao aspecto nutricional e fomenta o controle sobre o corpo. A alimentação é um ato natu- ral e biológico, mas carregado de história, sendo assim a cultura alimentar produz sentido sobre o que e porque comer. Monaco e Bonetto (2018) explicam que as crenças e representações dos alimentos são socialmente constituídos influenciados pela cultura em que estamos inseridos. As classificações que definem o que são comestíveis ou não, o direito de comer ou não e as opiniões a respeito dos alimentos são estabelecidas pelas regras culturais. Assim como o consumo de alimentos constitui um importante fator que contribui para a forma como os indivíduos percebem a si mesmo e aos outros. Ao final, é possivel perceber que a pesquisa foi realizada em 8 bases de dados nacionais, o que pode limitar o estudo. Não foram incluídas bases de dados internacionais que possibilitariam ampliar a revisão e a quantidade de artigos encontrados. Além de que, a ampliação do estudo em bases de dados internacionais possivelmente encontraria diferentes participantes e outros transtornos alimentares, acrescentando resultados e discussões.
Considerações Finais
As pesquisas revisadas relacionam práticas comportamentais de culto ao corpo belo e desejado e práticas alimentares para a manutenção do mesmo. É possível estimular na sociedade e nos indivíduos pensamentos e comportamentos saudáveis sem necessariamente propagar ideias sobre corpo e alimentação. Estimular hábitos e comportamentos saudáveis diz respeito a outras questões que vão além de cuidados corporais e preocupação com alimentação. Cuidar do sono, saúde financeira e saúde mental são exemplos de práticas de autocuidado. A mídia contribui para reforçar as ideias de culto ao corpo e alimentação adequada. Por isso, pesquisas que demonstram o quanto o veículo midiático contribui para autopercepção negativa da imagem corporal e alimentar do indivíduo, são de suma importância. A desconstrução de ideias culturalmente construídas e partilhadas possibilita um novo olhar a respeito de si e da sociedade. Além disso, as representações sociais constituem uma interessante opção para o estudo dos significados que as pessoas constroem em relação ao corpo e a comida. Abordar os transtornos alimentares sob a perspectiva das representações sociais é compreender o processo do indivíduo e cultura, os significados vividos diante ao corpo e a comida, os sentidos, valores e estilo de vida dos grupos sociais. É um campo de estudo não só dos profissionais da área da psicologia, mas da área saúde como um todo.
Referências
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Recebido: 07.06.2019
Corrigido: 10.09.2019
Aprovado: 16.09.2019