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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021
ARTIGO
Interrogar as práticas, construir possíveis: notas para tempos virais
Interrogate practices, build possibilities: notes for viral times
Interrogar prácticas, construir posibles: notas para tiempos virales
Flávia Fernandes Fernandes de CarvalhaesI; Ruth Taina Aparecida PivetaII; Talita Machado VieiraIII
IDoutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC e Mestra em Psicologia Social pela Universidade Estadual Paulista/UNESP. Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina / fcarvalhaes@uel.br
IIDoutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Campus de Assis -SP. Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Campus de Assis -SP. Psicóloga no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Londrina / ruthpiveta@yahoo.com.br
IIIMestra em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2017). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho / talita_mv.psicouel@hotmail.com
RESUMO
Desde as primeiras notícias sobre sua incidência, a pandemia da Covid-19 vem intensificando e reatualizando uma série de problemáticas sociais. Diante desse cenário, este estudo teórico problematiza questões que emergiram a partir das vivências e leituras de três psicólogas vinculadas ao campo das Políticas Públicas de Assistência Social em uma cidade de médio porte localizada no interior do estado do Paraná, bem como a Programas de Pós-Graduação em Psicologia da região. Tendo a noção de pandemia como dispositivo, a presente análise percorre um conjunto de narrativas que coexistem em disputa neste tempo histórico, além de localizar as relações entre a psicologia e a crise imposta pela Covid-19 e suas implicações. Por fim, apontamos para a necessidade, colocada pela pandemia, de produzirmos sensibilidades outras para o acolhimento de singularidades que se manifestam nos modos de ser e se relacionar no Sul Global.
Palavras-chave: Psicologia; Pandemia; Dispositivo.
ABSTRACT
Since the first news about its incidence, the Covid-19 pandemic has intensified and updated a series of social problems. Given this scenario, this theoretical study problematizes issues that would emerge from experiences and readings of three psychologists linked to the field of Public Policies for Social Assistance in a medium-sized city located in the countryside of the State of Paraná, as well as to Post-Graduate Psychology Programs in the region. Taking the notion of pandemic as a device, this analysis covers a set of narratives that coexist in dispute in this historical time, in addition to locating the relationship between Psychology and Covid-19 posed crisis and their implications. Finally, we emphasize the need, posed by the pandemic, to produce other sensibilities to welcome singularities that manifest themselves in the ways of being and relating in the Global South.
Key words: Psychology; Pandemic; Device.
RESUMEN
Desde las primeras noticias sobre su incidencia, la pandemia Covid- 19 ha intensificado y actualizado una serie de problemas sociales. Ante este escenario, este estudio teórico problematiza cuestiones que surgirían de las vivencias y lecturas de tres psicólogos que laboran en los campos de las Políticas Públicas de Asistencia Social en una ciudad mediana ubicada en el interior del estado de Paraná, así como en programas de posgrado en Psicología en la región. Desde la idea de pandemia como dispositivo, traemos en el texto la discusión de un conjunto de narrativas coexistentes y en disputa en este tiempo histórico, además, discutimos algunos de los circuitos de la psicología en la crisis impuesta por Covid-19. Finalmente, señalamos la posibilidad, que plantea la pandemia, de producir otras sensibilidades para la recepción de singularidades que se manifiestan en las formas de ser y relacionarse en el Sur Global.
Palabras claves: Psicología; Pandemia; Dispositivo.
Introdução
Este artigo articula uma reflexão teórica sobre inquietações que emergiram de nossas leituras e vivências como pesquisadoras e psicólogas em meio à pandemia do novo coronavírus. Desde as primeiras notícias sobre sua incidência no Brasil, nos vimos diante de uma série de problemas que, não sendo efetivamente novos, foram inflacionados pela realidade pandêmica. As questões trazidas aqui dizem respeito aos nossos campos de atuação, quer como profissionais das Políticas Públicas de Assistência Social (doravante, PPAS) de uma cidade de médio porte no interior do Paraná, quer como pesquisadoras. Os questionamentos surgiram também dos intervalos de silêncio entre essas práticas, momentos localizados por nós, em meio às velocidades e intensidades que se articulam na sociedade capitalística, como oportunidades de reflexão, como passo atrás.
As pessoas vão se dando conta que a pandemia existe em modos e velocidades distintas, afinal, nosso campo perceptivo é atravessado por dinâmicas diferenciadas que se articulam entre condições objetivas e subjetivas múltiplas, bem como entre dinâmicas raciais, de gênero, étnicas, geracionais, econômicas e territoriais variadas. O corpo é, portanto, a nossa primeira baliza na relação com o mundo. Corpo como espaço vivo e em movimento. Corpo como campo onde circuitos geopolíticos e políticas de fronteira se desenham, se conectam, se precipitam, se desfazem, pois, assim como anuncia o pesquisador Paul Preciado (2020, p. 8), em tempos da Covid-19 "a nova fronteira é a sua epiderme".
A pandemia nos ensinou algo que era considerado impossível. Em questão de semanas, "um sistema econômico que era dito como impossível de parar teve que desacelerar, teve que redirecionar" (Latour, 2020, p. 2). Assim, a pandemia articulou uma interrupção que demarcou outros tempos, evidenciando modos diferenciados de pensar e de existir. Tempos que elucidam as fragilidades no campo das Políticas Públicas e que nos colocam frente a frente com contradições que se desenham em uma dimensão geopolítica: as políticas da pele, os racismos genderizados, a gritante desigualdade social, as práticas coletivas de risco, entre outros exemplos.
A pandemia nos desloca do lugar comum, familiar, normativo, supostamente seguro. Põe em questão parte dos sentidos que, na nossa vida, foram encadeados como compreensíveis e previsíveis. Evidencia as fragilidades de muitas de nossas certezas, de muitas de nossas verdades, "quebra o nexo do mundo" (Gil, 2020, p. 2) e isso reverbera, por vezes, em uma sensação de confusão, de desamparo, de asfixia, de perda de território - em medo, em saudade do mundo.
Portanto, a pandemia imprime um tempo sem precedentes em nossas vivências, sem representação, o que dificulta a localização em palavras. Mas o encontro com o não saber, com o não predizível, pode também consolidar brechas para que novos respiros possam circular, para que encontros inusitados, consigo e com os outros, possam se desenhar, para vivências de intensidades outras em nós. Logo, a pandemia também instaura um tempo que assume perspectivas sensíveis e críticas, pois nos convida à experimentação de outros possíveis em nós, nos convida ao exercício de desacelerar, de decolonizar o pensamento, decolonizar o corpo, decolonizar o eu.
No Brasil, a dinâmica de contaminação do vírus instala uma crise sanitária, que, ao se desenhar em aliança com as crises política e econômica em curso, assume uma feição sem precedentes (Anjos, 2020). E, de fato, palavras já não bastam para nomear os afetos que circulam em nosso corpo frente aos desmandos de governantes que insistem em dimensionar tal complexidade como uma 'gripezinha'. As questões em tela nos permitem dizer, ainda, que o coronavírus, para além de seus efeitos biológicos, nos impõe também uma crise estética (Preciado, 2020). Afirma Preciado:
Se lo ha descrito mucho como una crisis sanitaria, como una crisis política, pero también ha sido una crisis estética y de la subjetividad. Cuando digo estética, me refiero al régimen de la percepción. Por primera vez, hemos oído cosas que jamás habíamos oído, que nunca antes habíamos percibido. De repente ha habido una transformación, nos hemos dicho: sí, las cosas pueden ser diferentes. Hubo dos elementos cruciales: por un lado, esta ruptura estética tan violenta; por otro, el hecho de que, durante este período de crisis, las líneas de opresión más fuertes cayeron precisamente sobre los cuerpos racializados, sexualizados, los cuerpos más precários.1 (Preciado, 2020, p. 2)
Vale ressaltar que não é o vírus em si, na sua própria estrutura e potência interna de destruição, que produz esse contexto caótico, mas os modelos socioeconômicos e políticos nos quais estamos inseridos, tendo em vista que os efeitos do vírus são circunscritos pelos contextos em que ele se difunde. Assim, a crise atualizada na pandemia nos mostra que, como raça humana, temos falhado. Falhado em nossas prioridades, falhado em produzir relações de respeito com a natureza, com outros animais, com a diferença.
Vírus global, vírus itinerante, vírus voraz que fragiliza demarcações normativas, que desloca fronteiras, que invade territórios subjetivos e objetivos. Assim, partindo do pressuposto analítico da pandemia como dispositivo, ou seja, como campo em que um conjunto de forças coexistem em disputa (Foucault, 2000), questionamos: como pensar na continuidade da vida? Quais futuros se desenham em um pós-covid? Que outros modos de pensar/fazer/sentir a Psicologia emergem a partir das vivências da pandemia? Quais são os efeitos subjetivos do ano covid? Ainda neste campo de tensionamentos, perguntamos quais corpos podem existir? Quais corpos têm, assim como questiona Mbembe (2020), o direito universal à respiração? Este é o debate que articulamos a seguir.
Que corpos podem respirar?
Um primeiro ponto que trazemos para se pensar nesse caminho, que produz ou não lógicas de vida e de cuidado em nossos tempos, é a ideia do antropocentrismo como grande discurso que permeia nossa relação com a natureza, com os outros animais, com as tecnologias. O homem como medida de todas as coisas, e tudo a serviço do humano, porém, não de qualquer humanidade. A lógica do consumo e da expropriação da natureza, balizada pela lógica capitalística, nos apresenta um mundo que deve nos servir, baseado em recursos naturais que podem ser utilizados sem escrúpulos em nome do conforto humano, práticas agrícolas e de utilização de animais que não respeitam a terra, os ciclos naturais, numa total relação objetificada com o que nos cerca (Castillo, 2014; Krenak, 2019).
Junto a outros diversos autores, Donna Haraway (2016) nos auxilia a pensar os efeitos da lógica antropocêntrica, inclusive para a própria espécie humana. Os efeitos são nefastos, produzindo um mundo no qual vão se destruindo os possíveis refúgios por meio dos quais "diversos grupos de espécies (com ou sem pessoas) podem ser reconstituídos após eventos extremos (como desertificação, desmatamento, crises sanitárias)" (Haraway, 2016, p. 140). Nesse sentido, como nos posicionamos como espécie para pensar as formas de nos relacionarmos com o planeta, considerando, inclusive, as formas de contágio de um vírus? Quais são as nossas possibilidades diante de algo quase invisível que nos desestabiliza, a ponto de nos fazer questionar que mundo é possível após essa experiência? Qual a dimensão de humano que tomamos em consideração para pensar proteção e cuidado nesse contexto em que vivemos?
O sujeito universal, ficcionado pela ciência moderna, apaga as diferenças e nos oferece como modelo uma imagem, sem idade, sem sexo, sem classe social, sem diferenças raciais, sem território, sem história, sem gênero. Uma imagem que, hegemonicamente, correlaciona a esse sujeito um tipo humano específico - pautado pela lógica de um sistema moderno-colonial de gênero (Lugones, 2008) - do homem como medida de todas as coisas - homem aqui compreendido enquanto modelo universal: macho, branco, europeu, belo, magro, de inteligência normal (Braidotti, 2015). Modelo que, como efeito, acaba por deixar de fora uma série de pessoas marcadas enquanto outras, que escapam dessa imagem clássica, e, por conseguinte, ficam "reducidos al estado no humano de cuerpos de usar y tirar"2 (Braidotti, 2015, p. 24), corpos que se tornam invisíveis por não corresponderem a certas categorias. É a esse sujeito universal que se endereçam e a partir do qual irradiam as práticas universalizadas, dentre elas, considerando o contexto de pandemia, de cuidado, higiene, acesso, proteção.
Cabe refletir que tal conformação universalizante não é desimplicada. Diz respeito a um projeto que, desde o surgimento da ciência como a temos em nosso tempo histórico, vai tratar de vidas que são consideradas vivíveis e vidas que são consideradas matáveis, balizadas justamente por esse argumento do estatuto de humanidade que é conferido. Um estatuto que, assim como analisa Lugones (2008), vai dividir pessoas entre humanas e não humanas, estabelecendo o racismo intraespécie, o que sustenta lógicas de apagamento, genocídios e epistemicídios ao longo da história. Esse estatuto circunscreve, ainda, um especismo (racismo interespécies), na medida em que os animais são categorizados como desimportantes, descartáveis e, paradoxalmente, como recursos que existiriam para atender às necessidades e desejos do sujeito universal e da forma de vida que se irradia a partir dele. Um sentido que também orienta a relação com outros modos de existência como rios, matas e florestas.
A universalização é fundamentada, dentre outros aspectos, numa ideia de linearidade da história da civilização humana, cujo movimento seria do natural ao civilizado, balizado, aqui, pela concepção eurocentrada do chamado processo civilizatório, que toma a Europa como ponto mítico de início e o não europeu como primitivo, inferior (Lugones, 2008). Linearidade, portanto, fundamentada no norte global, que pressupõe uma norma a partir da qual se definirá o que é considerado civilizado. E, assim, tudo que não corresponde ou não se adapta à norma seria digno de correção, penalização e/ou escravização (Castillo, 2014).
Do lado de cá dessa história, ficam as marcas desse processo colonizador de normalização. A colonização do conjunto de terras a que se denomina América Latina, e, por consequência, brasileira, é marcada por genocídios e pela expropriação cultural brutal, que nos compõe enquanto povo e enquanto sujeitos (Castillo, 2014). Essa expropriação cultural tem como um dos efeitos a prática de desqualificação do que é de nossas terras e de enaltecimento do europeu, do norte global.
Partindo dessa ideia do projeto colonial, vinculado à ciência na produção de humanos e não humanos, se observam práticas e tecnologias sociais utilizadas para sobrepor povos à lógica do homem branco. Dois fortes exemplos podem ser tomados como elucidativos, concretamente, dessa condição, no contexto brasileiro: "a desapropriação dos povos originários das Américas e a escravidão dos negros africanos" (Guimarães, 2017, p. 261).
O primeiro, desde a invasão de nossas terras pelas caravelas portuguesas, justificado pela ausência de alma, pela ausência de humanidade dos indígenas vistos como bárbaros, animalescos, povo a ser convertido pelos cânones cristãos para, então, serem escravizados e dizimados. Genocídio e etnocídio dos povos originários que, contrariamente do que narra a história oficial, não têm sua existência circunscrita aos séculos iniciais da colonização (Tupinambá & Angatu, 2017). Como nos contam os autores em tela, os povos indígenas vivem sob o jugo de uma ditadura desde então, apagados em sua história e apartados de seu território. Uma violência que, além de física, é também simbólica, pois uma das manifestações se dá pela sobreposição da escrita formal à fala, na forma de uma "gramática oficial como sendo portadora de verdades ... Um adágio que conduz a pensarmos que a escrita possui mais valor do que a fala" (Tupinambá & Angatu, 2017, p. 134). Imposição que, como afirmam os autores, estabelece demérito à oralidade, esse fundamento tão importante na transmissão da cultura e da memória dos povos originários.
O segundo, grande prática genocida e mercantil que produziu e ergueu, a custo de sangue e violência, a nação brasileira, também justificada por esse estatuto de humano, que, defendia-se, negros não possuiriam. Animalidade, irracionalidade, atraso cultural, tudo isso construído por teorias que se implicavam em localizar nos povos não europeus, nos povos não brancos, um outro estatuto de vida: não humanos.
Não há como pensarmos outras lógicas possíveis de cuidado sem retomar essa história coletiva que nos compõe. As feridas coloniais ainda purgam, e muito disso por serem apagadas, silenciadas, diminuídas. É preciso falar, retomar, sentir, doer, reconhecer o chão no qual pisamos como chão repleto de sangue, construído por lógicas violentas, ora aparentes, ora sutis, mas que sobrevivem no plano discursivo. Reconhecer a ferida colonial que nos subjetiva, aprender com ela. Reconhecer, desde a branquitude que impera como norma, os caminhos que já foram trilhados, para poder, de fato, pensar caminhos outros. Como nos assevera, Guimarães:
como não fomos capazes, na América Latina, de perceber a nós mesmos, devido às nossas formações históricas fruto de uma construção surgida do processo colonizador, temos dificuldade de lidar conosco como realmente somos, com a multiplicidade que somos. A colonialidade do poder eurocentrada configurou-nos como imagens com pouca semelhança, mas que tentam enquadrar-se aos modelos europeus. (Guimarães, 2017, p. 262)
Interrogar quais corpos podem respirar, viver, num contexto como este que nos é imposto, implica retomar essa história, sentir em nossos corpos como tais lógicas coloniais se atualizam e continuam a produzir efeitos em tempos de globalização. Aliás, a pandemia redesenha nossa relação com a noção de globalização, para além das notícias sobre seus efeitos econômicos, climáticos, turísticos, de comunicação, entre outros. Temos agora uma experimentação global no corpo e, embora as condições objetivas e subjetivas de vida da população mundial sejam diferenciadas, compartilhamos, supostamente, imagens, sensações e narrativas que edificam uma perspectiva parcial de globalização (Gil, 2020).
Mas a pandemia também nos ensina, assim como anuncia Carvalho (2020, p. 4), que "não somos iguais e que essas desigualdades se manifestam inclusive na hora de morrer". Será que uma travesti será priorizada em uma disputa de leitos de Covid-19? Será que estamos assistindo passivamente a uma atualização do processo de genocídio da população indígena no Brasil? Será que nossos corpos de psicólogas brancas seriam asfixiados em uma rua qualquer por um policial? Será que uma criança de classe alta seria colocada sozinha em um elevador 3 ? Será que todos os estudantes têm acesso ao ensino remoto?
A pandemia nos ensina que populações ou raças inteiras são, cotidianamente, submetidas a uma respiração difícil, a uma respiração ofegante, a uma vida precária (Mbembe, 2020). O corpo de George Floyd 4 jogado no chão sem ar, dessa maneira, se constitui como metáfora daqueles que, na lógica colonial, vêm sendo inscritos como descartáveis, objetos, selvagens, subcidadanias. Assim, e principalmente no Brasil em virtude dos desmandos do governo federal, a pandemia nos obrigou, ainda que provisoriamente, a nos identificar com parte daqueles demarcados como não humanos: moradores de rua, indígenas, negros, pessoas pobres, pessoas presas, imigrantes, pessoas gordas, trans, entre outros exemplos de vidas localizadas como anormais, abjetas, inviáveis.
A régua ficcional, mas de efeitos muito reais, que demarca a distinção entre humano e não humano tem se deslocado, ampliando a gama dos que compõem o segundo grupo. Não podemos desconsiderar esse movimento no levante das vozes que esbravejam e denunciam os absurdos do destrato do atual governo e dos riscos anunciados e já efetivados com a pandemia: risco da morte, risco da fome, risco do desemprego. Com isso, é inevitável pensarmos sobre quais são as condições que tornam uma questão elegível ao lugar de problema que merece atenção e cuidado quanto às suas implicações e desdobramentos. Quais corpos precisam ser atingidos para que um vírus se torne um problema coletivo?
A fala de Guilherme Benchimol, presidente e fundador da corretora XP, exemplifica nosso argumento ao afirmar que o pico da contaminação já teria passado entre as classes médias e alta, mas que o problema do Brasil seria o grande número de comunidades e favelas (Mendonça, 2020). Na visão do empresário, não a pobreza ou a desigualdade social, mas sim o pobre constitui o problema. Vidas que não importam ou, quando muito, importam tão somente em termos da retração econômica que podem provocar. Sim, a pandemia nos atinge a todos, mas não o faz da mesma forma e nem pelos mesmos caminhos ou com a mesma intensidade.
Se parece certo que não havia como se preparar para o inimaginável daquilo que nos atinge, também o é que foram as comunidades e outros grupos ditos periféricos que melhor se organizaram para gerenciar a crise sanitária em seus territórios. Rapidamente criaram seus arranjos, acostumadas que estão ao abandono estatal, enquanto a classe média fica em polvorosa ao assistir o desastre de seu chefe de estado. E, neste caso, a intencionalidade do presidente pouco importa, como já alertou Safatle (2020), pois, independente dela, os efeitos das ações ou falta delas são bastante reais. Enquanto o presidente coloca a máscara sobre olhos e lambe a sola do sapato de Donald Trump, a classe média se vê cada vez mais ameaçada de perder os privilégios do seleto "clube da humanidade" (Krenak, 2019): se apavora, grita e bate panela.
A Covid-19 se instaurou sem pedir licença e nos fez deparar com realidades já existentes, que agora se precipitaram de maneira mais visível e nefasta, criando condições de possibilidade para interesses hegemônicos se presentificarem, como o silenciamento da população indígena, o avanço do agronegócio, a precarização das relações de trabalho, o enfraquecimento do ensino público, o descarte de corpos ditos não produtivos (como, por exemplo, os idosos e a população prisional), entre outros exemplos que se justificam em uma ideia distorcida de desenvolvimento.
As dinâmicas de circulação da pandemia, portanto, possibilitam diagnósticos provisórios dos efeitos das narrativas oficiais nas nossas relações sociais, nos nossos movimentos, nos nossos usos intensificados das tecnologias, nas nossas relações destrutivas com a natureza. Constatamos, como anunciou Gil (2020, p. 2), que a sociedade, as instituições e as leis que criamos para nos protegerem e nos assegurarem uma vida justa são questionáveis e que, de fato, não construímos uma vida viável para a humanidade como um todo.
Ainda que seja evidente que as condições objetivas de vida impliquem em maior ou menor risco de infecção, Butler (2020) ressalta que o vírus, em si, não discrimina, ele nos trata de modo igual, todos podemos adoecer, todos podemos perder pessoas amadas. A dinâmica de infecção do vírus, dessa forma, anuncia os nossos modos de vida precários. É tempo de ouvir o vírus. Que história a Covid-19 nos conta? O que o vírus quer nos dizer?
Ressaltamos, ainda, que o olhar atento à complexidade de vivências e questões que se desenham na pandemia, bem como dos efeitos dessas na população, implica em considerá-la também como dispositivo, ou seja, como campo em que um conjunto de forças coexistem em disputa (Foucault, 2019). Logo, localizamos também as vivências na pandemia como oportunidade, como exercício do pensamento, como possibilidade de produção de outros modos de vivenciar a respiração para além da experiência da asfixia, afinal, assim como sinaliza Krenak (2019, p. 28), "quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar". Tais questões serão analisadas a seguir.
Pandemia como exercício do pensamento e da respiração: empurrando o céu
Em primeiro lugar, interessa-nos refletir: a quem nossas práticas, balizadas por lógicas eurocentradas, desde um modelo muito específico do ficar em casa como proteção, higienização constante, isolamento, lockdown, e tantas outras, protegem? Vale dizer que a ideia não é desqualificar os métodos de proteção, mas pensar como esses discursos se articulam dentro de uma lógica individualizante, que parece fazer recair sobre os sujeitos a total responsabilização sobre o próprio contágio e a transmissão. E, além disso, pensar como tais discursos invisibilizam outros modos de vida, outras formas de sociabilidade.
Segundo ponto. A disseminação, complexa e perigosa, de que o coronavírus seria fatal somente para algumas populações, os chamados grupos de risco: para pessoas velhas, pessoas com comorbidades de saúde, pessoas gordas. Em nome de uma lógica neoliberal, que pressupõe que saúde é responsabilidade individual, se você não se cuidou, a culpa é sua.
E, em nome de certa ideia de cuidado, a propagação dessas assertivas gerou uma ideia bastante complexa, de invencibilidade da juventude em vista da fragilidade da velhice, por exemplo, chegando a nos apresentar assertivas como "só pessoas velhas estão morrendo, não há com que se preocupar", "vamos trancar os velhos em casa". Partindo do modelo universalizado de sujeito, a velhice não é norma, a norma é ser jovem e, dessa forma, uma pessoa velha morrer por um vírus seria de alguma forma aceitável. Torcendo a ideia, como seria se o grupo de risco fosse composto por crianças e jovens? Ou somente homens em idade produtiva? Quando um problema se constitui como tal? A quem é preciso que ele acometa para que desencadeie uma busca por tratamentos e alternativas? Nestas buscas, as ditas soluções servem a todos, todas e todes?
O que se observa é que, além da disseminação de uma lógica de cuidado, de brinde veio a escalada de práticas preconceituosas: pessoas afirmando que o aumento dos casos nas periferias acontece porque pobres não possuem práticas de higiene, são sujos e desregrados, práticas gordofóbicas afirmando que se a pessoa não emagrece é um problema dela, então se ela for contaminada pelo vírus, também é problema dela.
Terceiro ponto. Ficar em casa, o grande mote da ideia de quarentena, é eficaz. Pesquisas e experiências demonstram. (Aquino et al., 2020; Silva et al., 2021). Mas se aplica a todas as pessoas, dadas as gritantes diferenças sociais existentes em nosso país? Como é a experiência de ficar em casa sem acesso a tv a cabo, internet, streamings de vídeo, alimento, doces, exercícios pelo YouTube, yoga matinal? Como deve ser manter crianças em casa, quando você vive numa casa de dois cômodos na periferia da cidade? Como ficar em casa, se o seu salário advém de um trabalho como diarista, vendedor ambulante, pedreiro, entregador? O salário da informalidade não cabe no poema, parafraseando Ferreira Gullar (1980). Como ficar em casa se você é moradora ou morador de rua? Aliás, como exigir higiene adequada a pessoas que moram na rua? Ou que residem em locais sem acesso à água, tratada ou não? Como comprar álcool em gel, quando falta dinheiro para se alimentar? Como ficar em casa, quando patrões, em suas carreatas, exigem a reabertura dos estabelecimentos?
Ficar em casa deve ser compreendido como um privilégio, dadas as condições de vida de grande parte da população brasileira. E não pensemos isso no sentido de ser um privilégio a ser destruído, pelo contrário, um direito que deveria ser garantido a todas as pessoas, a partir de programas de redistribuição de renda justos e eficazes, de programas sociais que garantissem, além do acesso digno à renda, acesso à cultura e arte.
O exercício de nos reconhecermos em nossas diferenças e de entrecruzar as nossas lutas, portanto, nos faz questionar sobre outros modos de vida possíveis, quais relações afetivas sustentáveis podemos fazer circular e quais as implicações da psicologia social nesta reconstrução. Falar na criação de vidas outras, desde outros lugares, com outras organizações, nos convoca a pensar também sobre esse tal fazer científico, naquilo que entendemos como ciência, suas finalidades e compromissos. Isso porque as práticas do conhecimento também incidem sobre a criação de mundos.
Desde uma perspectiva da política de cognição inventiva (Kastrup, 2005), o conhecimento é percebido como parte de um processo de criação do mundo e de si. O produto da investigação científica, mais que descrever elementos de uma realidade supostamente pré-fixada, é visto como uma forma de intervenção sobre si e sobre o mundo, que cria a realidade e a experiência da qual fala, na medida em que fala.
Para Tedesco (2003), linguagem e subjetividade são reciprocamente engendradas, o que nos faz questionar acerca dos efeitos gerados pela primazia da razão no processo de produção do conhecimento, que marca inúmeras escolas da Psicologia - uma razão eurocêntrica, importada e que serviu à escravização e exploração dos ditos povos primitivos. O discurso psicológico, em grande parte, ainda carrega e circula uma linguagem que frequentemente privilegia a abordagem individual, romântica e pautada pela consciência na problematização das experiências humanas. Uma perspectiva que, no mais, é herdeira do processo colonial. Que tipo de humano tal linguagem estaria colaborando para constituir? Que tipo de mundo estaria a produzir?
A aposta na conscientização a respeito de uma verdade, supostamente única e inquestionável, como chave para a mudança social se encontra desgastada. A atual conjuntura vivida no Brasil mostra os limites de uma racionalidade pura, assumida enquanto pedra angular dos nossos modos de conhecer e atuar profissionalmente. Desde a instalação do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, passando pelo pleito eleitoral de 2018, temos nos deparado com uma onda de relativização e/ou negação de dados objetivos que se apresentam no cotidiano, que se consubstancializa nas fake News e ganha contornos particularmente preocupantes no presente pandêmico. Temos no vocábulo pós-verdade um suporte que auxilia a explicitar a ideia de relativização. Segundo o Oxford Dictionaries, que escolheu o verbete como a palavra do ano em 2016, a pós-verdade diz respeito à "circumstances in which people respond more to feelings and beliefs than to facts" 5 . Assim, vemos a escalada do negacionismo, do anticientificismo e do questionamento das orientações e protocolos dos órgãos globais de saúde. O que outrora foi chamado de evidência ou fato, amparando a legitimidade dos saberes produzidos e difundidos na construção do mundo e das relações, parece ter perdido seus efeitos numa sociedade de terra plana. Estaria a ciência suscetível aos ataques da opinião?
Tedesco (2003) argumenta que aquilo que denominamos empírico é condicionado por regimes, assim como nomeia Foucault (1987), de visibilidades e de dizibilidade. Assim, os modos a partir dos quais falamos e tornamos visíveis determinados fenômenos são, ao fim e ao cabo, exatamente isso: um modo. Com efeito, tal perspectiva mostra algo cada vez mais recorrente nos dias atuais: a disputa entre as diferentes narrativas para significar e fazer funcionar o nosso mundo.
No Brasil contemporâneo, temos nossas versões de revisionismos em número bastante abundante: negação do racismo, relativização dos efeitos da escravidão, abordagem do golpe militar de 1964 como revolução. Com isso, um deslocamento parece ser necessário, saindo do âmbito estritamente moralista (bem X mal, sob a forma do verdadeiro X falso) para nos dirigirmos ao terreno da ética. É neste campo, de acordo com Ana Paula Pedro (2014), que temos a possibilidade de questionar os sentidos presentes nos princípios que sustentam e fundamentam nossas práticas na vida social.
Mesmo durante uma pandemia avassaladora e de consequências danosas concretas e, muitas vezes, definitivas, existem narrativas paralelas que reivindicam isso que convencionamos chamar de realidade. Tal operação escancara que a vida, supostamente um bem inviolável (Brasil, 1988), encontra-se sujeitada a uma valoração que a relativiza. Se não há algo propriamente inédito nesta constatação, uma vez que são inúmeros grupos e formas de vida que, historicamente, foram privados do direito de existir, há, no mínimo, um espanto face à relativização até mesmo da própria vida - mais que a aceitação da morte, vemos quase uma busca ativa por ela, um verdadeiro Estado suicidário (Safatle, 2020).
É importante chamar a atenção para a aparente incapacidade de comoção diante da tragédia coletiva que temos vivido. Como afirma Sawaia (2001), os corpos não são afetados da mesma maneira, nem pelas mesmas coisas. Não se trata, portanto, de uma questão exclusivamente racional traduzida pelo par verdadeiro e falso, mas refere-se, também, ao plano das sensibilidades que são ativadas, de modos diversos, em nossos corpos e interferem no nosso poder de agir. Nossa intenção, aqui, não é negar ou recusar a importância da razão, mas apontar suas limitações enquanto produto de um tempo-espaço social específico e herança colonial que, muitas vezes, é reproduzida em nossas práticas e modos de conhecer. Sem a pretensão de responder às questões postas em sua totalidade, problematizamos possibilidades do fazer psi no contexto da Covid-19. Este é o debate que se desenha adiante.
Pandemia e geopolítica: circuitos da psicologia na crise da Covid-19
A psicologia, como ciência moderna, é um projeto colonial6, a história que lhe é atribuída vincula essa disciplina científica como uma ciência do controle, ao qual se pode acrescentar: "um controle por meio do ideário eurocentrado" (Guimarães, 2017, p. 258). Dessa forma, a construção dos arcabouços teóricos dos quais nos utilizamos e aprendemos amplamente, se vinculam a modelos e verdades construídas desde esse ideário eurocentrado, que sustentam um sistema-mundo colonial.
Diante dessa assertiva, convidamos ao exercício de problematizar os lugares da(s) psicologia(s) diante de uma crise sanitária como esta que vivemos. Mais do que buscar respostas rápidas e conclusivas, apostamos na possibilidade de sustentar e ampliar as questões. Nesse sentido, questionamos: que estratégias de sobrevivência, dignidade, compreensão, empatia, são possíveis de construção para esses tempos, e para os tempos futuros? Como a psicologia pode auxiliar na produção de lógicas de vida, protegidas e cuidadas, nesse contexto?
O contexto brasileiro nos apresenta um campo complexo, em que pese as estratégias governamentais para o cuidado da população neste momento. Em termos econômicos, houve, a partir de muita pressão, a concessão do auxílio emergencial, no valor de R$ 600, 00 ou R$1.200,00 para mães chefes de família 7, inicialmente, com redução pela metade do valor a partir do mês de setembro, para as duas categorias, e, por fim, sendo encerrado em dezembro de 20208. Com exceção das pessoas já cadastradas no Cadastro Único do Governo Federal, para ter acesso ao benefício, a população teria que se cadastrar por aplicativo ou pelo site do Auxílio Emergencial. Vincular a possiblidade da concessão do referido auxílio ao acesso a dispositivos tecnológicos, num país como o Brasil, é já fazer um corte no que tange aos direitos e seus acessos, tendo em vista que, embora se propague a ideia de que vivemos numa era tecnológica, não há, de fato, universalização ou democratização do acesso à tecnologia virtual. Pessoas em situação de rua, populações ribeirinhas, pessoas que não tiveram acesso à educação digital, ficam limitadas e têm muitas dificuldades de acessar o benefício.
Além da questão do acesso aos meios digitais, as experiências de trabalho na PPAS e como pesquisadoras nos mostram e nos levam a problematizar outras dificuldades que se somam: a demora em ter uma resposta acerca do pedido do auxílio, chegando a quase dois meses após a solicitação, o que já coloca em xeque a ideia de emergência; as fraudes, nas quais, de alguma forma pessoas sacavam os benefícios em nome do sujeito, sem condições de rastreamento dessa situação; a formação de filas nas agências físicas para obtenção de informações, ocasionando aglomerações, face às dificuldades de acesso já referidas. O próprio valor do auxílio não garante necessariamente proteção de renda, considerando que o valor médio de uma cesta básica gira em torno de R$ 450,00 9, sem contar outros gastos que estão envolvidos na manutenção da vida. Práticas que se aliam e são sustentadas por epistemologias, conceitos e modos de sociabilidade coloniais que insistem na reprodução de um Brasil que existe apenas no retrato, parafraseando o samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira no carnaval de 201910.
Ainda sobre a atuação na PPAS, analisamos que nossas trajetórias de trabalho implicaram também em exercícios intensivos ao nos relacionarmos com precariedades e com a experimentação do não saber, com as angústias e as potências que daí emergem (Piveta & Mansano, 2014). Não foi apenas o nosso trabalho prescrito de psicólogas, de atendimento clínico e/ou psicossocial, que nos foi convocado. Para além da demanda de escuta de questões subjetivas da população atendida, nos foi solicitado fazer faxina, entregar cestas básicas, ser segurança na porta de entrada, controlar o horário do banho de moradores de rua, conter fisicamente pacientes psiquiátricos em surto. Experimentações em nossos corpos da precariedade de determinadas relações de trabalho e de vida de parte considerável da população.
Deparamo-nos com a sensação de medo, de risco, de desproteção. EPIs vencidos ou em falta, conflitos com os gestores. Questões que não foram provocadas pela pandemia, mas, certamente, evidenciadas por ela, trazendo à tona os furos das políticas públicas no Brasil, o que não funciona, assim como as hierarquias de poder que as organizam. Experimentamos no nosso corpo, ainda que de modo (realmente) breve, parte do que as populações que atendemos nas PPAS vivenciam nos seus cotidianos, o que nos oportunizou uma identificação, ainda que parcial, com as populações que o Estado admite como descartáveis, como subcidadanias, como extermináveis. Assim, a pandemia nos obrigou a rever nossos pressupostos de segurança e nos fez atentar ainda mais para essas possíveis "formas de terrorismo de Estado sancionadas sutilmente nas democracias contemporâneas" (Mariana, 2017, p. 36).
Nesse sentido, retomando a psicologia como projeto colonial, como nos colocamos diante desse cenário? Como ouvimos, nos consultórios, nas atuações nas políticas públicas, nos processos de pesquisa, as angústias advindas das diversas experiências de vida, de sujeitos diversos, diante do que o risco biológico nos impõe? Ouvimos com a escuta do colonizador, que busca disciplinar, ditar normas e regras gerais às quais as pessoas deveriam se submeter?
Como exercitar e produzir uma escuta ética e implicada? Como retomar o projeto de uma Psicologia como ciência de invenção de outras lógicas, que ultrapassem a ideia de sobrevivência humana rumo a uma ética ecológica de cuidado, que considere não somente a experiência humana como centro dos diálogos e produções, mas o cuidado com a terra, com as outras espécies viventes? Apostamos que algumas estratégias podem nos auxiliar na produção de trilhas, caminhos provisórios que se desenhem como mais alinhados localmente às demandas que se apresentam diante do contexto em tela, e, de forma mais ampla, à construção de um olhar crítico sobre nossas práticas psi em terras brasileiras. Criar estratégias que auxiliem na: "construção de saberes outros que desloquem, desde as fronteiras do conhecimento, o pensamento (ou a racionalidade) do sistema epistemológico eurocêntrico, não porque ele é totalmente inválido, mas porque não dá conta da multiplicidade do que somos" (Guimarães, 2017, p. 265).
Escutar com cuidado, considerando as diversas dores que se apresentam nesse contexto, considerando os múltiplos atravessamentos que o compõem. Escutar a questão de classe, escutar o racismo, ouvir a LGBTQI+fobia, ouvir a pobreza, ouvir as violências contra as mulheres. Questões que, em partes e em alguma medida, são também nossas, como se fez notar com a experiência evocada pela pandemia e que temos narrado aqui. Escutar politicamente, considerando a dimensão política de todo sofrimento, por mais individual, privado que ele pareça, e entendendo que o modo-indivíduo nos captura a todo momento, e nos impede, muitas vezes, de compreender as lógicas sociais produtoras de efeitos que, em diversos momentos, não compreendemos e passamos a julgar. Escutar com o filtro da ferida colonial que compõe nossas conformações subjetivas. Escuta política que passa, também, pela descolonização das sensibilidades que constituem nossos corpos psi e que possa dar cabo à cisão entre um eu/sujeito e um outro/objeto, produzida por tais códigos do sistema-mundo.
Trata-se da escuta de um sofrimento que é da urgência do orgânico, mas comporta também uma dimensão ético-política (Sawaia, 2001). Sofrimento enquanto uma dor atravessada por projetos políticos, por desigualdades sociais, conforme explicita a autora:
o sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas ... retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente da dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. (Sawaia, 2001, p. 104)
Assim, o sofrimento ético-político se relaciona à ocupação de posições subalternizadas dentro das hierarquizações produzidas pelo código moderno do sistema-mundo. Para a autora em tela, tal processo resulta em violências que atingem o corpo, compreendido numa posição de fronteira, com atravessamentos orgânicos, políticos, afetivos, relacionais.
Entendemos que algumas leituras podem ressaltar parte das bases teóricas pelas quais a autora forja a noção de sofrimento ético-político e que se aproximariam da cosmovisão moderna-colonial, dada sua vinculação com concepções dicotômicas de natureza/cultura. Contudo, tal chave conceitual deixa entrever o esforço da Psicologia brasileira em produzir ferramentas que a desvencilhem da herança colonial, ao desestabilizar outras dicotomias caras à tradição moderna do pensamento ocidental, como individual/coletivo ou corpo/mente. O referido conceito faz isso ao postular o sofrimento como dor compartilhada/vivida na coletividade, cujas afecções produzidas no corpo interferem em nosso poder de agir.
A ferramenta oferecida por Sawaia (2001) nos convoca à criação de uma escuta capaz de apreender a polifonia que chega até nós pelos discursos dos sujeitos, termo aqui grafado com letra minúscula e no plural para demarcar sua distinção e multiplicidade em relação ao Sujeito Universal. É certo que a polifonia referida se encontra ainda, em grande medida, circunscrita às vozes humanas. Entretanto, os modos de vida que, por muito tempo, tiveram suas existências condicionadas ao atendimento das demandas de uma humanidade voraz são cada vez mais prementes nos ruídos e interferências que produzem, anunciando seu esgotamento e descontentamento.
Nesse sentido, a expansão do que se compreende por coletividade seria bastante profícua para enriquecer o conceito de sofrimento ético-político ao agregar vozes não humanas que, decididamente, compõem a polifonia discursiva a que nos referimos aqui. Vozes que não apenas falam, mas gritam sua dor sob a forma de crises hídricas, extinção de espécies, alterações climáticas, derrubada/queimada de florestas e matas, assim como pela irrupção da covid-19. O trabalho de Feitosa e Bomfim (2020) traz contribuições interessantes a esse respeito, ao aproximar a noção de ético-político à cosmovisão indígena que recusa a hierarquia entre humano e não humano, colaborando para a ampliação do entendimento de coletividade.
Para a Psicologia, fica a tarefa de intervir com foco na produção de lógicas de coletivização, compreendendo cuidado e saúde como práticas coletivas. Apostar no engajamento coletivo pela manutenção da vida e do planeta. Apostar na alegria como dispositivo para a construção de outras maquinarias, para criar e sustentar corpos-guerrilha. Alegria, aqui, compreendida enquanto relação, efeito no corpo de encontros que aumentem sua potência. Dessa forma, cabe pensar estratégias para disponibilizar o corpo, possibilitar experimentações que ampliem as chances, diante da imprevisibilidade dos encontros, de que tenhamos encontros que nos alegrem.
Partindo da noção de pandemia como dispositivo, portanto, assinalamos que as vivências na crise da covid-19 também convocaram nossos corpos de psicólogas/pesquisadoras para encontros outros, encontros com redes de solidariedade, com sutilezas. Vivenciamos a união entre servidores, a coragem de exigir direitos de modo coletivo, o compartilhamento de pequenos cuidados, como um pedaço de bolo e o silêncio ao perceber que o outro estava realmente sem palavras. Ou seja, a "pandemia tornou visível a inventividade e o coletivismo de muitos" (Sant´Anna, 2020, p.10).
Vivenciamos também a oportunidade de ter que nos deslocar do lugar de saber, de ter que experimentar em nosso corpo outros agenciamentos, de não sabermos o que dizer muitas vezes, de não saber como escutar, de nos reconhecermos humanas, frágeis. Nós e as pessoas que atendemos estamos em uma pandemia e o conhecimento racional não é suficiente para lidar com os nossos sustos. Assim, ora ajudamos as comunidades que atendemos, ora fomos ajudadas por elas. Exercício de horizontalidade, exercício de humildade, encontros com saberes locais e que desfazem a ficção das posições rigorosamente demarcadas. Exercícios de coprodução. Obras em coautoria que possibilitem a conjugação entre saberes múltiplos para compor práticas e narrativas em favor da vida em suas variadas formas de expressão.
Conclusões provisórias
Diante das questões levantadas, localizamos a pandemia como oportunidade de aprendizado. Uma oportunidade, assim como diz Krenak (2019), de viver o agora, de presentificar a experiência subjetiva. O autor em tela também situa a pandemia como oportunidade para nos perguntarmos se, de fato, conseguimos nos encontrar no dia a dia, se, de fato, conseguimos, por vezes, realizar a experiência do encontro com as pessoas que convivemos. Encontros interpessoais, encontros interculturais.
Em um mundo capitalístico que nos convoca a olhar sempre para o futuro, a acumular, a produzir incessantemente, a sujeitar cada vez mais nossos cotidianos ao digital, a pandemia nos impõe à parada e nos convida a "aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos" (Krenak, 2019, p. 30). O vírus pede calma, pede silêncio, pede paciência.
Há de se ressaltar, porém, que uma parcela significativa da humanidade não tem condições de parar. Pessoas e grupos que, desde há muito, são desconsiderados em sua condição de humanos, como vimos falando ao longo deste artigo. Isso nos coloca diante de duas questões que consideramos problemáticas e que julgamos importantes de serem, ao menos, mencionadas.
A primeira delas diz respeito a esse luto coletivo que se mescla a uma espécie de desejo de uma normalidade a ser recuperada. Ora, normalidade para quem? Ar puro e respiração garantida para quais corpos? É o que temos questionado aqui. A pandemia tem lançado luz a uma série de problemas crônicos, efeitos de um modo de vida hegemônico que organiza as relações a partir do código colonial. Nos distribui em gradações de humanidade, segundo o gênero, a classe, a raça e a sexualidade. Sempre sobrepondo o humano sujeito universal aos sujeitos plurais e aos demais modos de vida que habitam o planeta. A saudosa normalidade é aquela mesma que também nos trouxe no ponto em que nos encontramos. Haveria um lugar ou momento para o qual voltar?
Isso nos traz à segunda questão. Essa, orientada para o futuro, seja sob a forma de um novo normal ou de uma suposta superação da realidade pandêmica. Sem dúvidas que uma vacina ou tratamento eficaz e comprovado para a Covid-19 poderia solucionar aquilo que diz respeito estritamente ao vírus. Mas o que poderíamos dizer destas tantas outras violências e violações que vemos a partir dele? Uma vacina para eliminar a distribuição desigual de renda e a exploração do trabalho nos países do sul global? Vacina contra a depredação ambiental? Contra o racismo? A gordofobia? A LGBTIfobia? E o tratamento para escalada das políticas neoliberais e seu efeito de diminuição do Estado e das políticas públicas, levando à redução de direitos (convertendo-os em mercadorias) e à ampliação da desproteção social da população, qual seria? Sim, a vacina ou o tratamento comprovadamente eficaz para a Covid-19 serão recebidos com alegria, mas estarão longe de garantir a superação das feridas expostas pela pandemia. Assim, tanto a noção de uma normalidade a ser recuperada quanto a de um dito novo normal precisam ser olhadas com prudência.
Se, por um lado, há pessoas que não conseguem parar, há também aquelas que não querem parar, porém, "nossa vida social não está paralisada por estarmos tendo que obedecer a regras de isolamento social, a vida está, de fato, mudando radicalmente. A rejeição ao isolamento, a rejeição a parar tudo, é na verdade uma rejeição à mudança" (Žižek, 2020).
Dessa maneira, e em diálogo com Mbembe (2020), repetimos que a pandemia nos remete ao corpo. É certo que tentamos fazer dele um corpo-objeto, um corpo-máquina, um corpo-digital. Entretanto, o corpo tem seus limites, ele entra em curto-circuito, ele resiste, ele impõe o tédio, ele impõe a saudade, ele impõe a angústia. O corpo tenta, insistentemente, nos dizer: Calma. Respire. Sente.
Logo, comunicar consigo, com os outros e com a comunidade, assim como anuncia Gil (2020), é furar a bolha, redimensionar noções de limite, espaço e tempo, apreender a humanidade como um todo, em suas singularidades, e a partir da intersecção com saberes localizados. A ciência e o fazer profissional que produzimos também compõem a humanidade que herdamos e que legaremos aos que estão por vir. Precisamos, assim como anuncia Mbembe (2020, p. 8), "recomeçar de outro lugar, já que, para nossa própria sobrevivência, é imperativo restituir a todo vivo (incluindo a biosfera) o espaço e a energia de que precisa".
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Recebido em: 20/10/2020
Aprovado em: 09/03/2021
1 Tem sido descrita como uma crise de saúde, como uma crise política, mas também tem sido uma crise estética e de subjetividade. Quando digo estética, refiro-me ao regime de percepção. Pela primeira vez, ouvimos coisas que nunca ouvimos, que nunca percebemos antes. De repente, houve uma transformação, dissemos a nós mesmos: sim, as coisas podem ser diferentes. Temos dois elementos cruciais: de um lado, essa violenta ruptura estética; de outro, o fato de que, nesse período de crise, as linhas mais fortes de opressão recaíam justamente sobre os corpos racializados, sexualizados, mais precários (tradução nossa).
2 "reduzidos ao estado não humano de corpos de usar e descartar" (tradução nossa).
3 A criança em questão se refere a Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Renata Souza. No dia 02 de junho de 2020, Miguel estava sendo cuidado pela patroa de sua mãe, Sari Corte Real, sendo que ela o deixou sozinho no elevador do prédio onde residia. Quando chegou ao 9º andar, Miguel saiu do elevador e subiu em uma estrutura para ar condicionado e caiu de uma altura de 35 metros (G1-Globo, 2020, Junho 4).
4 George Floyd era um homem negro estadunidense de 40 anos, que foi assassinado por um policial branco no dia 25 de maio de 2020.
5 "circunstâncias nas quais as pessoas respondem mais a sentimentos e crenças do que aos fatos" (tradução nossa). Recuperado de https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/definition/english/post-truth?q=post-truth.
6 Para maior aprofundamento do debate sobre psicologia em seu projeto colonial eurocentrado, verificar Alves e Delmondez (2015) e Carvalhaes e Lima (2020).
7 Conforme lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020.
8 E m 2021 houve o retorno do auxílio emergencial, a partir de abril, com novos valores, variando de 150 a 375 reais por família, destinado somente a pessoas já incluídas em 2020 e sem possibilidades de novas inserções.
9 Valor médio calculado a partir de referências de maio/2020.
10 Samba-enredo "História pra ninar gente grande", 2019. Composição de Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mamá, Márcio Bola, Ronie Oliveira, Danilo Firmino, Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo.