Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.99-113
ARTIGOS
Crença religiosa e final de análise: o sujeito frente à elaboração de saber
Religious belief and the end of analysis: the subject facing the elaboration of knowledge
Creencia religiosa y final de análisis: el sujeto frente a la elaboración de saber
Fuad Kyrillos NetoI; Carlos Roberto DrawinII
IDocente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). São João del-Rei. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIProfessor titular. Departamento de Filosofia. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
RESUMO
Este manuscrito objetiva investigar as possibilidades de crença religiosa para um sujeito em final de análise. Trata-se de uma pesquisa teórica em psicanálise coligida com três fragmentos de casos clínicos. Adotam-se, como referência, textos de Freud e Lacan e pretende-se averiguar e tencionar a urdidura conceitual da teoria psicanalítica referente às relações entre final de análise e crença religiosa. Discute-se o final de análise a partir das coordenadas da travessia do fantasma e da identificação com o sintoma, ambas imbricadas com a esfera do saber. Apresenta-se a concepção lacaniana de religião, ressaltando sua propriedade de encobrir o real com um juízo acerca do fim do mundo. Ressalta-se a disparidade de saberes entre psicanálise e religião e conclui-se que, apesar de ocuparem campos heterogêneos, o final de análise pode possibilitar a radicalização da crença religiosa e sua responsabilização subjetiva.
Palavras-chave: Psicanálise; Final de Análise; Religião; Saber.
ABSTRACT
This manuscript aims to investigate the possibilities of religious belief for a subject at the end of analysis. This is a theoretical research in psychoanalysis collected with three fragments of clinical cases. The texts of Freud and Lacan are used as reference and this research intends to investigate and to articulate the conceptual warp of the psychoanalytic theory concerning the relations between the end of analysis and religious belief. We discuss the end of analysis from the coordinates of the phantom crossing and the identification with the symptom, both imbricated with the sphere of knowledge. It presents the Lacanian conception of religion emphasizing its property of covering up the real with a judgment about the end of the world. It is emphasized the disparity of knowledge between psychoanalysis and religion. It can be concluded that, although psychoanalysis and religion occupy heterogeneous fields, the end of analysis can enable the radicalization of religious belief and its subjective accountability.
Keywords: Psychoanalysis; Final of Analysis; Religion; Knowledge.
RESUMEN
Este manuscrito tiene como objetivo investigar las posibilidades de las creencias religiosas para un sujeto en final de análisis. Esta es una investigación teórica en psicoanálisis articulada a tres fragmentos de casos clínicos. Se adoptan, como referencia, textos de Freud y Lacan y se pretende averiguar la urdimbre conceptual de la teoría psicoanalítica referente a las relaciones entre final de análisis y creencia religiosa. Se discute el final de análisis a partir de las coordenadas de la travesía del fantasma y de la identificación con el síntoma, ambas articuladas con la esfera del saber. Se presenta la concepción lacaniana de religión, resaltando su propiedad de encubrir lo real con un juicio acerca del fin del mundo. Se resalta la disparidad de saberes entre psicoanálisis y religión y se concluye que, a pesar de ocupar campos heterogéneos, el final de análisis puede posibilitar la radicalización de la creencia religiosa y su responsabilización subjetiva.
Palabras clave: Psicoanálisis; Final de Análisis; Religión; Saber.
Introdução
Uma das formas comuns de caracterizar a modernidade ocidental foi destacar como um de seus traços essenciais a secularização. O termo é proveniente do latim saeculum que designa o mundo e o tempo profanos e foi inicialmente utilizado para indicar o processo de laicização de um religioso que abandona a sua ordem e retorna para o século, assim como o confisco dos bens da Igreja, no mais das vezes em proveito do Estado. Esse sentido específico e circunscrito à esfera jurídica ganhou crescente extensão semântica passando a se referir ao processo geral da modernização social e cultural abrangendo a dessacralização de atividades dependentes até então total ou parcialmente da religião: a arte, a política, a técnica, os comportamentos e as normas éticas (Bedouelle, 2004).
Todo esse conjunto de atividades sai da esfera do sagrado e torna-se indiferente e hostil ao controle religioso. No decorrer do século XX a caracterização da modernidade como época da secularização suscitou acirrada polêmica: para alguns o processo moderno de secularização seria a transposição para o tempo profano da noção judaico-cristã de um sentido escatológico ou salvífico da história, para outros, tal processo significaria uma ruptura em relação ao passado religioso e a proposição de uma nova instância de legitimação para a compreensão e a transformação do mundo (Marramao, 1995).
O fenômeno da secularização não é fácil de ser interpretado em suas múltiplas dimensões. Na economia deste artigo basta-nos demarcar a seguinte situação: de um lado, na perspectiva das esferas autônomas da sociedade - a economia, a política, a cultura - há um refluxo da presença e interferência religiosas, segmentos significativos das pessoas que vivem nessas sociedades, acreditam em Deus e são religiosos praticantes (Taylor, 2010). Segundo o mesmo autor, dois outros aspectos da secularização podem ser apontados:
[...] o abandono das convicções e práticas religiosas [...] e a passagem de uma sociedade em que a fé em Deus é inquestionável e, de fato, não problemática, para uma na qual a fé é entendida como uma opção entre outras e, em geral, não a mais fácil de ser abraçada (Taylor, 2010, p. 15).
Esta rápida caracterização nos ajuda a fazer uma distinção entre as crenças pessoais e as mudanças estruturais das sociedades modernas e a perceber o porquê de um grande número de pessoas reivindicarem razões religiosas como justificação para suas atividades sociais e políticas. O avanço da secularização não levou ao mero abandono das crenças religiosas como um resquício do passado, pois elas persistem não apenas no plano das convicções individuais, mas também como um fenômeno de massa caracterizado por alguns estudiosos como ressurgimento do religioso através de uma grande diversidade de manifestações: fundamentalismos, esoterismos, orientalismos, novas seitas, movimentos carismáticos e comunitários, além de um renovado interesse por experiências místicas e reflexões teológicas (Libânio, 2002).
As interpretações acerca do ressurgimento religioso são várias e a discussão infinda. Queremos aventar a hipótese de que ele expressa o mal-estar suscitado pelo funcionamento da sociedade capitalista globalizada, com a crescente exacerbação de seus critérios de desempenho, eficiência e competitividade. Na sociedade contemporânea nos deparamos com uma crise de motivação e sentido, em decorrência da qual, crenças religiosas as mais diversas e de procedência multicultural proliferam em nosso quotidiano suscitando um contínuo entrecruzamento entre a globalização econômica e secular e a vitalidade do pluralismo religioso (Drawin, 2015).
Pode-se ponderar que o processo de secularização não refluiu ou terminou, porém, a presunção de sua incompatibilidade de princípio com a religião passou a ser contestada, tornando perceptível certo desencanto com relação à racionalidade moderna. (Taylor, 2010). As grandes narrativas seculares, como as ideologias políticas que antes apontavam para um futuro promissor da humanidade foram historicamente desmentidas e se enfraqueceram com as grandes catástrofes ocorridas no último século. Como resultado desse processo histórico as religiões reaparecem, não tanto em seu conteúdo dogmático, como um sistema consistente de crenças, mas em sua dimensão funcional, como uma instância provedora de sentido e identidade frente às mais radicais interrogações existenciais (Brandt, 2002). Tudo isso é difícil de ser avaliado em seu alcance e em suas raízes. Todavia, a sua constatação nos leva a perguntar sobre a dimensão subjetiva da crença religiosa.
A religião é uma das forças de plasmação do processo civilizatório. Como a teoria psicanalítica contribuiu decisivamente para a compreensão crítica da cultura e da civilização ocidental moderna o problema da religião não poderia lhe ser indiferente e nem ser situado como um tema menor ou descartável. O permanente interesse de Freud pelo assunto, cobrindo mais de quarenta anos de investigação, pode ser facilmente atestado em breve consulta aos títulos catalogados e ao índice geral temático, ambos registrados em suas obras completas (Freud, &Veszy-Wagner, 1999; Araújo, 2014). Por conseguinte, as relações entre a psicanálise freudiana e a religião exigem estudos árduos e não podem ser reduzidas a uma ou outra formulação mais difundida como, por exemplo, a da identificação da religião com a ilusão, acarretando a vaga e cômoda conclusão da incompatibilidade entre uma análise bem-sucedida e o abandono das crenças religiosas tidas como resíduos infantis e neuróticos, embora renitentes (Morano, 1991; Araújo, 2014).
Nossa pretensão, feita a advertência acima, é tão somente proceder a uma reflexão sobre as possibilidades de crença para um sujeito em final de análise. Trata-se de uma reflexão de caráter eminentemente teórico e não um estudo clínico, embora em nossa conclusão tenhamos coligido três fragmentos de caso. Uma discussão teórica sem ser acompanhada de relatos clínicos seria justificável? Acreditamos que a resposta é afirmativa. Um texto de tão grande importância clínica como A direção do tratamento e os princípios de seu poder, apresentado em 1958 por Jacques Lacan no Colóquio de Royaumont, desenvolve uma intrincada exposição teórica sem se apoiar explicitamente em relatos de casos senão em algumas alusões ao Homem dos Ratos e ao relato retirado de um artigo de Ernst Kris, porém atribuído a Melitta Schmiderberg (Lacan, 1958/1998). Isto é aceitável porque a teoria psicanalítica não pode ser diretamente falsificada por meio do dado empírico. Ou seja, a questão da prova em psicanálise, como mostra Paul Ricoeur, não é fácil de ser deslindada, pois há de haver muitas mediações conceituais entre a pretensão de verdade de suas proposições e o procedimento de sua verificação ou, antes, de sua falsificação. Desse modo, conclui Ricoeur, "se a pretensão última à verdade reside nas histórias de casos, o meio de prova reside na articulação do entrelaçamento inteiro: teoria, hermenêutica, terapêutica e narração" (Ricoeur, 2010, p. 49). Num texto breve não se pode realizar esse entrelaçamento inteiro, razão esta de se considerar legítima a relativa autonomia da exposição teórica, sobretudo, se esta contribuir, ainda que pouco, para estimular o debate e a investigação.
Em Análise terminável e interminável, Freud diz ser necessário antes de tudo se pôr em acordo acerca da expressão polissêmica término de uma análise (Ende einer Analyse). Na prática, ele prossegue, isso ocorre
[...] quando são aproximadamente preenchidas duas condições, a primeira, que o paciente não padeça mais de seus sintomas e tenha superado suas angústias, assim como suas inibições; a segunda, que o analista julgue ter tornado consciente no doente tanto do recalcado, esclarecido tanto do incompreensível, ter derrotado tanto da resistência interna, que não se precise temer a repetição dos processos patológicos (Freud, 1937/1999, p.63).
Tais condições, porém, não podem ser confundidas com uma pretensão muito mais ambiciosa, segundo a qual "através da análise poder-se-ia alcançar um nível de absoluta normalidade psíquica ao qual também se poderia atribuir a capacidade de se manter estável [...]" (Freud, 1937/1999, p. 63). Tal distinção parece indicar que a análise tem determinados objetivos, mas não pode visar um estado ideal ou absoluto de normalidade, pois este não é compatível com o caráter inesgotável do inconsciente, com o conflito psíquico estrutural e a incidência incessante e incontrolável da pulsão. Embora Freud não use a distinção lexical alemã entre fim como término (das Ende) e fim como finalidade ou propósito (der Zwek), pode-se dizer que o processo analítico deve conter critérios indicadores do seu adequado desenlace passíveis de diferenciá-lo de sua interrupção por motivos circunstanciais, extrínsecos ou por recuos abruptos diante dos impasses psíquicos. Por isso, retomando a distinção freudiana, Dunker conclui "em suma, a análise termina, mas não acaba. Por que deveríamos supor então que ela se orienta por uma única ética, já que se admite uma duplicidade de seus fins?" (Dunker, 1998, p. 59). Qual o risco da idealização do processo analítico como busca de uma normalidade absoluta ou de um ponto irreversível de estabilidade? O mesmo de qualquer idealização considerada na perspectiva do ideal egoico, da clausura narcísica. E esta pode encontrar expressão em qualquer crença identificada com uma visão de mundo sem falhas, imutável e capaz de responder todas as nossas perguntas e aplacar todas as nossas inquietações. Freud define tal visão de mundo (Weltanschauung) como "uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência a partir de uma hipótese suprema" (Freud, 1933/1999, p. 170) e a contrapõe à ciência, na qual inclui a psicanálise como uma disciplina específica (Spezialwissenschaft) incapaz de ter a sua própria visão de mundo. Para ele a religião se enquadrava nessa definição enquanto dela se afastava a visão científica de mundo (wissenschaftliche Weltansschauung).
Se todas as ciências são particulares, pois têm o seu objeto específico, fica difícil compreender o significado da expressão visão científica de mundo. O importante é ressaltar a ideia da visão de mundo como uma identificação maciça com determinado tipo de interpretação da realidade, seja ela de caráter religioso, político, social, filosófico ou, até mesmo, científico. O Eu acredita ter se assenhoreado da verdade sem precisar colocar-se em questão e abrir-se para a posição de sujeito responsável por seu desejo.
A psicanálise lacaniana concebe o final de análise numa perspectiva prioritariamente negativa, porém segundo coordenadas precisas: perda de gozo, destituição subjetiva, irrealização de ideais, reconhecimento da inexistência da relação sexual e falta-a-ser. Ou seja, tais atributos, apontados como essenciais ao final de análise, descortinam o horizonte ético subjacente à condução da análise e distancia o analisante do plano dos ideais (Soler, 1995). Por conseguinte, comporta uma imbricação paradoxal do sujeito com a esfera do saber: por um lado, há o saber sobre a castração e a divisão subjetiva, por outro, saber sobre os limites do saber e sua irredutibilidade à verdade (Lacan, 1966/1998).
Pressupomos que uma análise leva o analisante até um ponto no qual ele pode reconhecer o impasse fundamental de seu desejo. Este impasse permanece irredutível e condiciona o funcionamento do sintoma e mesmo no momento de concluir, é ainda dele que se trata, pois ele deve reconhecer, em suas desordens, aquilo que sempre assegurou sua existência. A ética do desejo consiste justamente em distinguir esse impasse por outras vias que ultrapassem o sintoma, obrigando o sujeito a defrontar-se com o paradoxo do seu desejo. Podemos nos perguntar, então, se no final de análise o "des-encobrimento" do caráter paradoxal e singular do desejo implicaria na renúncia da crença religiosa como ilusão encobridora ou abriria o sujeito para outras alternativas como, por exemplo, o reconhecimento do Outro como incognoscível e inalcançável por meio das manipulações egoicas de proteção e autoafirmação de si.
A perspectiva lacaniana do final de análise: notas epistemológicas
De modo geral, um final de análise, na perspectiva freudiana, deve conduzir o sujeito ao confronto com o rochedo da castração (Freud, 1937/1999). Há, no entanto, uma distinção prévia entre o término da análise e seu final. O fim de uma análise designa simplesmente a interrupção, o registro de um fato temporal, aquele momento em que a análise é interrompida. O término de uma análise, por sua vez, não se caracteriza por uma interrupção, mas pelo desfecho de um processo. Um fim tomado como solução tem por referência uma resolução de saber, ainda que parcial, e não deve ser colocado em relação direta com o objetivo terapêutico da diminuição do mal-estar (Soler,1995).
Lacan explicita na equação do final da análise como término de um processo que a constante é a agalma que define a transferência: "No começo está a transferência" (Lacan, 1967/2003a, p. 252). A incógnita desta equação é o desejo. Sobre isto Lacan nos oferece o valor da incógnita no final, quando a equação já está resolvida, e aí podemos deduzir de que variável se trata. Consideramos que a única coisa que pode ter o lugar de variável é o saber propriamente dito, o saber suposto, que atinge a singularidade de cada caso: "o sujeito suposto saber é, para nós, o eixo a partir do qual se articula tudo o que acontece na transferência" (Lacan, 1967/2003a, p. 253). Trata-se de um saber que não tem objeto.
Para Lacan,"o que o inconsciente traz a nosso exame é a lei pela qual a enunciação jamais se reduzirá ao enunciado de qualquer discurso" (1961/1998, p. 906). Ele estende sua afirmativa para a ciência, que dissimula as suas opções e as escolhas dos eventos a serem investigados, levando em consideração os fatos em exclusão do sujeito. Assim, a operação constitutiva da ciência consiste na exclusão do conjunto de acontecimentos excluídos, para fazer surgir o fato científico.
Conduzir uma análise com vistas ao real significa levar o analisante ao encontro do saber insabido, lugar da falta-a-ser. O analisante, ao buscar o saber da ciência, se depara com o analista, e este assinala que para o sujeito do inconsciente o saber não é o mesmo da ciência, mas antes um saber em cujo núcleo há o não saber. A divisão do sujeito, produzida por um efeito de linguagem, tem como resultado que o ser falante não pode pretender nem ser inteiro, nem ser Um. A experiência de cada um traduz-se pela presença do não sabido e do não querido, e a posição da psicanálise é de não o refutar.
Indicando o vetor no sentido do real, Lacan espera eliminar a interminável repetição do simbólico como obstáculo ao desejo. Dar o sentido do real significa designar ao analisante que o amor transferencial, dirigido ao saber do analista, equivoca-se. Esse logro do amor transferencial é o responsável pela instituição, por parte do analisante, do analista como detentor do saber derradeiro. O arcabouço teórico lacaniano, deve-se recordar, trabalha com uma concepção negativa do desejo, ou seja, do desejo como decorrente de uma falta constitutiva, originária, estrutural, da ausência de um objeto adequado à pulsão. Esta falta irá movimentar o desejo, que buscará alguma resolutividade por intermédio da produção de saber.
Lacan prioriza o universal do sujeito e a passagem obrigatória pelo Outro, como lugar significante na práxis analítica, desde a entrada até a saída da análise. Efetivamente, para além da dimensão terapêutica, a cura se desenrola não exclusivamente naquilo que alivia o sujeito e reduz o seu mal-estar, mas em sua dimensão vindoura, naquilo que ele pode se tornar quando o fantasma é colocado em causa.
Leguil (1987)1 propõe conceituar fantasma quando o sujeito da falta a ser se correlaciona a um real, um objeto não definido pelo significante, definido justamente por aquilo que o significante não diz e por fazer desse objeto seu complemento de ser. Esse fantasma permite ao sujeito acomodar sua relação com um real e, podemos inferir, que se ele começa uma análise, é porque esse fantasma inconsciente é colocado em causa. Tal fantasma, a partir de uma circunstância a ser confrontada, interroga o sujeito e seus sintomas, levando-o a um estado de sofrimento.
A posição do sujeito no fantasma, que lhe serve de instituição subjetiva, traz a marca de suas identificações. Se o sujeito vai procurar um analista porque sofre, e está cansado de sofrer, é porque o que antes lhe servia de instituição subjetiva não consegue cumprir mais sua função (Leguil, 1987).
Deste modo, podemos pensar a cura como um novo suporte identificatório no interior de seu fantasma, após o fracasso das soluções identificatórias possuídas até então pelo sujeito. Porém, Leguil (1987)1 designa como o prêmio final da cura o tempo da análise no qual o sujeito é convidado a caminhar num percurso onde ele não tem as coordenadas estáticas do que lhe faz bem ou mal. Ou seja, o analista na condução da cura faz uma aposta de levar o sujeito até o fim de seu trajeto possível, sem lhe impor um flagelo do qual esse sujeito não se restabeleceria. Estamos falando da travessia do fantasma quando a questão do sujeito perde completamente a substância de objeto. O final de análise possibilita ao sujeito abdicar a isso que lhe dá o sentimento, no seu fantasma, de lhe oferecer esse complemento de ser. Assim, o final de análise propõe como realização subjetiva uma destituição, momento em que o sujeito perdeu todos os significantes mestres que lhes diziam que ele poderia almejar ser. Por se ter separado desse objeto do qual ele fazia a substância de seu ser, o sujeito encontra-se atravessado pelo sentimento concreto de que nada pode, de agora em diante, dissimular a castração. Neste momento nada pode disfarçar o que existia como ilusão, principalmente a miragem do objeto no qual, se relacionando com ele, o sujeito se esquivaria da posição de ser essencialmente dividido (Leguil, 1987)1.
Outra coordenada do final de análise que consideramos profícua para nossa discussão é a identificação com o sintoma. Em seu ensino, num primeiro momento, Lacan acentuou o aspecto significante do sintoma, sem reduzi-lo ao simbólico, privilegiando o acesso à verdade por intermédio da decifração. Posteriormente, Lacan enfatiza o real, mostrando que o sintoma não se articula apenas com o significante, mas também com elementos fora do significante. Temos aqui a dimensão do gozo. Na lacuna do saber do Outro, institui-se o gozo do sintoma, por intermédio do objeto a. Num terceiro momento de seu percurso, Lacan recorreu à topologia dos nós para abordar o sintoma e o fim de análise. O sintoma, agora, é definido como aquilo com que o sujeito se identifica e o fim de análise é argumentado em termos de saber haver-se com seu sintoma (Associação Mundial de Psicanálise, 1995).
Sabemos que a alienação ao Outro é inerente à significação, porquanto ela traz consigo a presença do "eu sou" e esta tem como efeito imediato a inibição do pensamento do sujeito. Concernente ao sintoma, temos uma contradição, pois ele traz consigo a singularidade de sujeito e é o que há de mais insurgente na universalização e, se a identificação cria o mesmo, o sintoma criará a diferença. Nesse sentido, o sintoma tem algo de real, nenhum outro é igual. Ele é um registro da separação quanto ao Outro e se apresenta absolutamente afastado da dialética do sentido. (Soler, 1995).
As identificações, em suas conexões essenciais com o sintoma, fundam-se no desejo e encontram nele seu determinante. A identificação, dessa forma, não é somente uma cobertura, mas está inerentemente ligada à libido. Recalcati ressalta a incongruência intrínseca ao desejo: "O desejo é o eu próprio, define o que sou no mais íntimo; mas, ao mesmo tempo eu não posso governar completamente a experiência do desejo porque é experiência de uma força que me ultrapassa" (Recalcati, 2017, p. 8).
Devido às intrínsecas relações com o desejo e com a identificação, o sintoma não pode ser colocado em série com o lapso, o ato falho, o chiste e o sonho, considerados exclusivamente formações do inconsciente. O sintoma tem peculiaridades que o distinguem destas formações. Lapso, ato falho e chiste são fenômenos evanescentes. De forma antagônica, o sintoma encerra um efeito dotado de constância, estabilidade e resistência.
A identificação do sujeito com o sintoma consiste em assumir o gozo. Lacan encontra-se em consonância com as indagações freudianas, pois Freud (1937/1999) se pergunta acerca do destino do recalque no final de uma análise, pois ele é o causador dos sintomas. Reconhecer os recalques designa um efeito da análise, que é a obtenção de um saber não como domínio de um objeto, mas como produção de um consentimento. Na concepção de Freud (1937/1999), tal produção possibilita ao sujeito chegar a um fim de análise, como revisão de suas posições quanto à pulsão, deixando para ele a sua escolha e a assunção ou rejeição do que descobriu de seu inconsciente.
A identificação com o sintoma não assevera um fim de análise associado com a impotência do sujeito, mas um fim em consonância com o impossível da relação sexual. No terceiro tempo de ensino, caracterizado pela prevalência do real em sua condição de suposto ineliminável da cadeia significante, Lacan afirma que o sintoma preenche a falta da relação sexual. Esta identificação tem correlação com a desconexão do sujeito com o seu inconsciente. O sintoma deixa de ser crível, pois há uma deflação do sentido.
No final da análise a descrença no sintoma o desconecta da cadeia significante, possibilitando um fechamento do inconsciente. É o retorno a um não penso, porém, nesse momento, sem a presença das identificações maciças, alienantes (Soler, 1995).
Lacan (1958/1998) assevera que a interpretação aponta o horizonte desabitado do ser, ou o nada que é o ser (des-ser). Assim, toda análise produz um saber na experiência de vida do sujeito no encontro com o seu limite, com o objeto em relação ao desejo e à pulsão. O final de análise possibilita o reencontro do sujeito com sua condição desejante, abordando sua experiência com o fantasma, esse objeto que, no real, para o desejo do Outro, é sem importância e, para o desejo do analisante, representa a carência constitutiva. Na definição de seu ser, este objeto é um resto, um objeto perdido. Porém, a análise produz esse saber como verdade, que o sujeito se apropria retroativamente. Essa verdade não poderá ser integralmente dita, apesar do alívio do sintoma estar em relação com ela.
A crença religiosa nas coordenadas do saber
No manuscrito A ciência e a verdade (1966/1998), Lacan, recorrendo a Aristóteles e Kant, nos oferece subsídios para compreendermos a forma de produção de sentido na religião. Ele nos lembra que a existência da psicanálise remonta ao estatuto do inconsciente como derivado da ciência do século XVII e de seus modos formais de mestria. Porém, o sujeito sobre o qual opera a psicanálise anseia por dialetizar a ciência, se instituindo na diferença e destituindo qualquer referência estável ou substancial.
Na teoria aristotélica o conhecimento é o conhecimento das causas - a causa material (aquilo de que uma coisa é feita), a causa formal (aquilo que faz com que uma coisa seja o que é), a causa eficiente (a que transforma a matéria) e a causa final (o objetivo com que a coisa é feita). Tal tipologia pressupõe uma causa primeira, uma causa não causada, o motor imóvel do cosmos, a divindade como realidade suprema. Porém, para Aristóteles, a divindade não tem a faculdade da criação do mundo, que existe desde sempre. É a filosofia cristã que vai dar à divindade o poder da criação (Lalande, 1985).
Em Kant, temos uma preocupação com a maneira como o sujeito conhece algo, ou como o psiquismo opera para dar forma ao conhecimento. Embora nosso conhecimento comece com a experiência, sua origem não está na experiência, pois a experiência é organizada segundo as formas a priori da sensibilidade e as categorias do entendimento. Este filósofo considera que o espaço e o tempo não seriam realidades materiais ou externas, mas formas subjetivas de nossas representações. O espaço e o tempo não são propriedades dos objetos, mas parte indispensável de nossa cognição do mundo (Carneiro, 2004).
Com base nestas noções, Lacan (1966/1998) procura demonstrar como o saber se justifica e se formaliza em sua separação com o sujeito e, ao fazê-lo, atribui ao analista a posição ética e política de renunciar ao pressuposto da correspondência entre verdade e saber. Assim, a verdade será evocada como causa em todas as formulações discursivas e como forma de sua desconstrução no decorrer de uma análise.
Na psicanálise, toda causa vem testemunhar uma implicação do sujeito. Somos sempre responsáveis pela nossa posição de sujeitos e temos responsabilidade pela resposta que produzimos frente a algo que nos interpela e se impõe. A causalidade do sujeito é pensada por Lacan numa dupla vertente: significante e real, que, essencialmente entrelaçados, se faz um. A causa do sujeito se dá como estrutura significante, uma estrutura compósita formada por significantes e objeto. A perspectiva lacaniana pressupõe que o efeito da linguagem é a causa introduzida no sujeito. Dizer efeito da linguagem é dizer efeito da estrutura, e esta de um lado produz a causa material, o significante separado de sua significação, e de outro, engendra uma perda, algo que lhe é concomitantemente intrínseco e heterogêneo, o objeto a, o real. Essa causa divide o sujeito em sua constituição como sujeito de desejo. Assim, "[...] a causa não é, como também se diz do ser, um logro das formas do discurso - já o teríamos desfeito Ela perpetua a razão que subordina o sujeito ao efeito do significante" (Lacan, 1964/1998, p. 853).
Essas formulações sobre a noção de causa permitem ao analista apreender o inconsciente como efeito do significante. Negligenciar as relações de causalidade é, por um lado, reduzir a psicanálise a uma hermenêutica e, por outro, deixá-la cair no obscurantismo, pois a causa possibilita ao analista se aproximar do significante como limite do gozo.
Concernente à religião, ela se situa no âmbito da Causa Final, na qual a substancialidade do discurso faz com que ele seja o fato. Nas palavras de Lacan:
Digamos que o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso ele corta seu próprio acesso à verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo, o que é propriamente o objeto de seu sacrifício. Sua demanda é submetida ao desejo de um Deus que, por conseguinte, é preciso seduzir. O jogo do amor entra aí (Lacan,1966/1998, p. 887).
O religioso entrega a Deus a tarefa da causa, impedindo o seu acesso à verdade. Consequentemente a causa de seu desejo é atribuída a Deus, objeto de seu sacrifício, pois a Causa Final comporta a culpa, porquanto a verdade é instalada nesse lugar. Ela é remetida à doutrina das coisas que podem acontecer no final dos tempos, sempre reportada a um juízo acerca do fim do mundo.
A religião, Lacan nos adverte, ainda tem muito a nos ensinar, pois ela não é simples devaneio, mas também se caracteriza por um pensamento teológico sutil e organizado de forma racional. Para ele, "se existe fantasia [no discurso religioso], é no mais rigoroso sentido da instituição de um real que cobre a verdade" (Lacan,1966/1998, p. 887).
O seminário intitulado A ética na psicanálise já considerava a crença religiosa como um saber. Lacan asseverava considerar que a crença é um saber como os outros, e como tal, cai no campo do exame concedido a qualquer saber, pois enquanto analistas, pensamos não haver saber algum que não se erga sobre um fundo de ignorância.
Neste seminário, ao discorrer sobre o drama primordial articulado em Totem e Tabu, ele enfatiza as consequências do assassinato do pai na origem da cultura, na instalação de um consenso inaugural na instituição da Lei e em sua difusão. O assassinato do pai é identificado com a ambivalência estrutural das relações do filho com o pai e, por isso, a efetivação do ato acaba por promover o retorno do amor.
Se o mito da origem da Lei se encarna no assassinato do pai, também de lá é tirado o protótipo do Deus único, Deus concebido como o Pai. Desse modo, "o mito do assassinato do pai é justamente o mito de um tempo para o qual Deus está morto" (Lacan, 1959-60/1988, p. 217).
A experiência freudiana é relida, e dela se extrai uma consequência: o Deus sintoma é um mito, na medida em que ele foi veículo do Deus da verdade, pois por seu intermédio a verdade sobre Deus pode vir à luz, isto é, Deus foi morto pelos homens e a reprodução deste assassinato possibilitou a redenção do crime primitivo: "A verdade encontrou sua via por meio daquele que a escritura chama de o Verbo, mas também o Filho do Homem, confessando assim a natureza humana do Pai" (Lacan,1959-60/ 1988, p. 221).
A obra freudiana não se descuida do Pai como agente da castração simbólica. Para Freud, é desejável que no decorrer da história do sujeito haja a presença efetiva do pai, de modo a possibilitar a identificação viril, por intermédio do amor pelo pai e de seu papel na normatização do desejo. Lacan (1959-60/1998) extrai as consequências destas formulações freudianas como origem do interesse do sujeito pela religiosidade, pelo viés da sublimação.
Porém, a psicanálise nos adverte que isso só pode acontecer quando temos uma função paterna operando de modo satisfatório, embora a função paterna por ele colocada ao lado de Deus signifique a sua não existência enquanto realidade transcendente. Dessa forma, o pai ocupa uma posição particularmente dificultosa, pois o mito da origem da Lei se encarna no assassinato do Pai. Ou como ele nos esclarece:
Mas se Deus está morto para nós, é porque o está desde sempre, e é justamente isso que nos diz Freud. Ele nunca foi o pai a não ser na mitologia do filho, isto é, na do mandamento que ordena amá-lo, ele o pai, e no drama da paixão que nos mostra que há uma ressurreição para além da morte. Quer dizer que o homem que encarnou a morte de Deus continua existindo. Continua existindo com esse mandamento que ordena amar a Deus (Lacan, 1959-60/1988, p. 217).
Deus só se torna pai a partir da mitologia do filho. Esta afirmação abre a perspectiva de um questionamento acerca do Um. No seminário intitulado Mais, ainda Lacan propõe que esse Um seja interrogado na dimensão da linguagem. Ele ressalta o domínio de Eros em nossa experiência, propondo que o Há Um seja entendido como Há um sozinho. Chegamos, assim, ao amor, com o qual o analista lida cotidianamente em sua práxis, pois não é por outra via que a análise opera com o singular, pois permite "suportar a transferência, no que ela não se distingue do amor, com a fórmula o sujeito suposto saber" (Lacan,1972-73/1985, p. 91, grifos do autor).
A perspectiva lacaniana define sujeito suposto saber como aquele constituído, pelo analisante, com a figura de seu analista. Lacan, posteriormente, o fará equivaler a Deus Pai. Interessante notar que o vocábulo "suposição" apresenta significativa semelhança com a crença religiosa. Supor não leva a uma inferência necessária, não é tampouco estritamente saber, é meramente acreditar que se vai achar. Na psicanálise, a fé precede a prova. Entretanto, o analista deve se precaver de identificar com esta posição de objeto da crença para incluir a falta, sem a qual não há análise possível. A práxis psicanalítica requer uma disjunção do "sujeito suposto saber" da pessoa do analista, que propiciará a escolha do significante da transferência com um significante qualquer do analista escolhido. Temos assim, a produção do sujeito da associação livre inaugurada por intermédio da suposição de um saber inconsciente (Quinet, 2009).
Assim, para Lacan, uma análise vai tratar do verbo que faz gozar. "Para a análise, pelo menos, isso é verdade, no começo é o verbo. Se não fosse isso, não vejo o que estaríamos escarafunchando ali" (Lacan,1974/2005, p. 75).
Em contraste com a psicanálise, que ressalta o real, a religião pode ser uma forma de subtraí-lo, por intermédio de elaborações teológicas que não preconizam a falta. Porém, para a psicanálise, o real é intrínseco ao sujeito, e devemos nos habituar a ele (Lacan, 1974/2005).
É imprescindível em uma análise o analisante percorrer um caminho de retomada dos significantes esquecidos, reescrevendo, desta forma, sua posição de sujeito enquanto objeto no desejo do Outro. Percorrer este caminho requer do analista a sua implicação em um fazer no qual, desde o início, ele se inclua na experiência "da estrutura do engano do sujeito suposto saber" (Lacan,1967/2003b).
Ao abordar o deslize do sujeito suposto saber, Lacan forja a expressão: "Deus dos filósofos" (Lacan,1967/2003b), como algo de interesse para os analistas. Em linhas gerais podemos considerá-lo como uma garantia dos saberes ao qual o homem endereça suas indagações. A verdade evocada por esse discurso de busca do saber está no âmbito da causa formal. Desta forma, podemos pensar uma proximidade entre o Deus dos filósofos e o Deus da ciência. No momento em que os sujeitos falam de seus sofrimentos, o Deus dos filósofos é suposto pelos analisantes em sua busca de uma resposta. A clínica psicanalítica nos ensina que não há produção de saber sem essa conjectura inicial. E por intermédio desta retomada de significantes, a psicanálise faz desamarrar os efeitos de furo, criando, assim, a possibilidade de queda do sujeito suposto saber, na condição de manifestação sintomática do inconsciente.
Destarte, no decorrer de uma análise, o "Deus dos filósofos" será conduzido a uma falha, um tropeço, ou seja, um saber que nega a ideia de totalidade e harmonia, numa irrupção designada por Lacan como real. Nestes termos, podemos conjecturar como é a partir de uma falha dos conceitos, de um equívoco do sujeito, que outro saber se dá. Um saber construído a partir da negação, pois o saber oferecido pelo Deus dos filósofos será atualizado como equívoco.
Psicanálise e religião: disparidades de saberes
O decurso de uma análise traz consigo uma relação com o ateísmo. Aquele que fala e pensa é crédulo. Só é ateu aquele que se abstém do pensamento e da fala. Podemos afirmar que na identificação com o sintoma, desejável para o final de análise, é com o ato que o ateísmo do analista sempre espreita. A descrença do analista não é uma descrença proclamada, pois não existe pregação de ateísmo. O verdadeiro ateísmo encontra-se primeiramente no ato (Soler,1985).
Fomentar ou recusar um sentido é um ato de fé irredutível, pró ou contra. O sentido nunca é garantido. Apesar deste fato, nenhum sujeito abdica de sua paixão por ele. Em contraposição ao gozo do sentido, no qual o sujeito quer garanti-lo em uma única série, podemos falar de adoção de sentido, no qual um gozo pode contribuir. Nestes termos, Leguil (1987)2 nos lembra aquilo que o neurótico descobre no final de análise: o Outro não existe, porque, justamente no seu lugar de encobrimento mais profundo, não há nada. Por ter atingido este ponto, não há mais nada a descobrir, e a partir daí está condenado a inventar.
O ato religioso reproduz uma certeza, da qual provém credibilidade. Os homens da igreja precisam ser críveis, não lhes basta serem apenas crentes (Leguil, 1987)2. Se assim o fossem, seriam simplesmente neuróticos, e precisaríamos saber por que eles seriam inanalisáveis, pois Lacan assevera que esta é a condição de um homem de fé, animado de uma certeza proveniente de um ato que modifica sua vida. Lacan afirma não considerar:
que a fé, a esperança e a caridade sejam os primeiros sintomas a serem colocados na berlinda. Estes são sintomas ruins, mas enfim, isso mantém perfeitamente a neurose universal, quer dizer que no final das contas as coisas não vão tão mal assim, e que estamos todos submetidos ao princípio da realidade, isto é, a fantasia (Lacan, 1974/ 2002, p.12).
Em se tratando de neuróticos, esta certeza motivada pela crença vai resistir a todos os desmentidos apresentados pela vida. Esta afirmação abona a assertiva lacaniana de que a interpretação não deve alimentar o sintoma do sentido. Quanto ao sentido, a igreja se incumbe de velá-lo (Lacan,1974/2002).
A certeza deriva do ato de fé movido pela causa final, e esta desvela a natureza e o sentido do mundo. Para crer em Deus é preciso renunciar à pretensão de que vai apreendê-lo no universo sensorial, abdicando, deste modo, a algo essencial ao sujeito, sua relação com a percepção e ainda ao saber por ele possuído. Ou seja, temos assim uma certeza porque o sujeito, ao assumir um discurso motivado pela causa final, assume o risco de não ser jamais confirmado pelos fatos provenientes da realidade. Destarte, a certeza do crente procede de um ato de separação do saber sobre o que é o mundo, e esta certeza é distinta do ato analítico, pois ela se constitui na confiança de que algo em si é deixado integralmente nas mãos de Deus.
A certeza do crente se pauta na leitura dos signos sensíveis. Ele vê esses signos e os lê como signos de Deus presentes nele e no mundo. Apesar da possibilidade de seu saber sobre estes signos ser questionado pelo saber estabelecido, ele tem certeza de seu caráter sagrado, de sua referência a uma ação divina e assim todo o seu ser é tomado nas mãos de Deus. O sujeito crente é tomado integralmente por Deus no momento em que seus signos são alvo de objeções (Leguil, 1987)3.
Para o psicanalista, a certeza do ato de fé se dá na substituição dos signos de uma presença no lugar onde a práxis clínica pretende instalar um objeto cuja única consistência é a lógica. O psicanalista considera o saber como estruturalmente interligado com a linguagem, e por esse viés diferencia o simbólico pela parte que lhe evade. O saber é intrínseco à parte estruturada do inconsciente. Porém, ele também comporta um ponto de não saber, o que possibilita o aparecimento da verdade. Contudo, em que pese o esforço neurótico de repelir as determinações inconscientes, elas continuarão surgindo e, ao deslocá-las minimamente de lugar, convocam o analisante para o trabalho de elaboração.
Sabemos que no final de uma análise o analista conduz o tratamento a um ponto no qual o analisante adquire uma certeza: ao chamado dele, nenhum Outro responderá, porque este Outro é produzido por este chamado.
Disto decorre um aspecto comum entre psicanálise e religião: o encontro com o impossível de saber. Trata-se de um limite na possibilidade de preencher um vazio no Outro (Julien, 2010). Para a religião, este Outro é Deus, enquanto a psicanálise se interessa pelo puro acaso do encontro, em seu enigma de sentido (real).
À guisa de conclusão. Entrelaçamentos na disparidade: crença religiosa e reposicionamento do sujeito
O traço comum, anteriormente apontado, sugere em um primeiro momento a existência de uma incongruência na busca pelo saber entre psicanálise e religião. Porém, apesar de tal incongruência, inferimos a possibilidade de uma leitura na qual se faça presente uma intersecção entre o campo psicanalítico e o religioso, de modo a abrir a probabilidade de uma radicalização da crença religiosa, no sentido de sua assunção subjetiva.
Antes de encerrarmos nossas reflexões de cunho eminentemente teórico, gostaríamos de introduzir três fragmentos clínicos. Conforme observamos no início do texto, tais relatos por si não visam comprovar nada. Afinal, eles são recortes brevíssimos de processos bem mais intrincados e nuançados e a exigência ética do sigilo os limita a elementos mínimos. No entanto, podem servir como ilustração, certamente bastante parciais, de diferentes encaminhamentos acerca da crença religiosa. Os três fragmentos se referem a homens adultos católicos e motivados por profunda crença religiosa.
O primeiro, José, nasceu e viveu a sua juventude em meio extremamente pobre e numa região marcada pela cultura indígena. Ao tomar contato com a pastoral católica para os jovens ele viveu um processo de conversão que o levou a se engajar intensamente na Igreja, abrindo-lhe a possibilidade de estudar e se distanciar de sua comunidade de origem. A sua procura por análise surgiu muitos anos depois e veio na forma de um questionamento angustiante não só de sua crença religiosa, mas também da militância que até então o sustentara psicologicamente e o levara a frequentar outro mundo cultural. O seu questionamento foi suscitado pelo novo ambiente por ele frequentado: muito mais culto e crítico, refinado e secularizado: a sua fé não seria mero consolo para o dramático desamparo de sua vida quando criança? O trabalho analítico remanejou o questionamento inicial e o analisante mergulhou na rememoração de suas origens. Ao deixar a sua análise a crise inicial foi substituída pela opção de transformar a sua fé, mantida e aprofundada, em comprometimento com sua comunidade originária.
O segundo, Márcio, procurou o analista por julgar a sua vida sexual e afetiva incompatível com a sua crença religiosa. Apesar de pensar desse modo, não pôs em dúvida em momento algum nem sua crença e nem seus relacionamentos. Logo, porém, os impasses de sua homossexualidade eclodiram e diante deles decidiu abandonar o processo analítico mal começado e o fez a partir da seguinte alegação: não quero mexer com essas coisas. Deus saberá tudo acolher e perdoar.
O terceiro, Francisco, era um jovem adulto de bom nível econômico e social. Havia recebido educação sofisticada e falava diversas línguas. Possuía crença religiosa bastante arraigada, com boa configuração racional e sem padecer dúvidas a respeito e se dizia com vocação intelectual. Muito sereno, bem-humorado, sem sintomas e conflitos dizia procurar análise apenas para avançar em seu desejo de autoconhecimento. Na primeira entrevista expôs a partir de um texto escrito um detalhado diagnóstico de sua vida. O processo analítico desmontou a sua aparentemente sólida estrutura intelectual e afetiva e desencadeou dúvidas e angústias inesperadas. No final do processo se afastou tanto de sua crença religiosa, quanto de sua pretensa vocação intelectual.
Nesses três fragmentos, vemos como o processo analítico levou a diferentes posições em relação à crença religiosa, embora no segundo relato, o caso Márcio, o tratamento foi interrompido logo no início e a fé tenha surgido como uma justificação para o não enfrentamento da angústia. Com base em tais fragmentos não há como discutir se houve ou não um final de análise. Nem temos tal intuito ao evocá-los. Eles foram trazidos apenas como indícios ilustrativos do argumento teórico apresentado.
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Endereço para correspondência:
Fuad Kyrillos Neto
fuadneto@ufsj.edu.br
Carlos Roberto Drawin
carlosdrawin@yahoo.com.br
Submetido em: 17/01/2018
Revisado em: 03/12/2018
Aceito em: 01/02/2019
1 Leguil, F. (1987). A questão da cura (Mimeo). Rennes: (s.e.).
2 Leguil, F. (1987). A questão da cura (Mimeo). Rennes: (s.e.).
3 Leguil, F. (1987). A questão da cura (Mimeo). Rennes: (s.e.).