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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

Periferia, violência e estigma sob o enfoque da promoção da saúde: relato de experiência na comunidade de Mata Escura, Salvador/Bahia

 

Periphery, violence and stigma under the focus of health promotion: experience report in the community of Mata Escura, Salvador/Bahia

 

Periferia, violencia y estigma bajo el enfoque de la promoción de la salud: informe de experiencia en la comunidad de Mata Escura, Salvador/Bahia

 

 

Suelem Maria Santana Pinheiro FerreiraI; Carla Maria Lima SantosII; Carla Santos AlmeidaIII; Airton Viniccius Oliveira MoreiraIV; Juliana Costa dos Santos BorgesV; Polliana Alves de OliveiraVI; Rafaela Silva SantosVII

IUniversidade Estadual de Feira de Santana
IIUniversidade do Estado da Bahia
IIIUniversidade do Estado da Bahia
IVUniversidade do Estado da Bahia
VUniversidade do Estado da Bahia
VIUniversidade do Estado da Bahia
VIIUniversidade do Estado da Bahia

 

 


RESUMO

Buscou-se neste estudo relatar a experiência de graduandos da área de saúde, com intervenções comunitárias, para enfrentamento do estigma e preconceito, resultantes do pertencimento a uma comunidade periférica permeada pela violência, em Mata Escura, Salvador/BA. As experiências partiram do componente curricular Programa de Integração Academia Serviço e Comunidade (PIASC), da Universidade do Estado da Bahia. As atividades ocorreram durante três semestres (2016-2017), abrangendo territorialização, diagnóstico situacional, planejamento estratégico situacional e intervenção comunitária. As intervenções foram desenvolvidas com jovens de uma escola estadual, com participação da Unidade Básica de Saúde e equipamentos sociais. Foram evidenciados aspectos históricos, sociais e lutas do bairro, além da problematização do contraste entre o estereótipo da comunidade e sua dinâmica cotidiana, raízes e potencialidades, com protagonismo dos moradores na construção das atividades. As experiências possibilitaram uma formação interdisciplinar, humanizada, crítica-reflexiva dos discentes. Para a comunidade de Mata Escura, estimularam a reflexão sobre a identidade social e de pertencimento.

Palavras-chave: Promoção da saúde. Estigma social. Planejamento em saúde. Educação Profissional em Saúde Pública.


ABSTRACT

It was sought to report the experience of undergraduate students in the health area, with community interventions, to face stigma and prejudice, resulting from belonging to a peripheral community permeated by violence, in Mata Escura, Salvador/BA. The experience started from the curricular component Teaching-Health Service-Community Integration Program (PIASC), of the State University of Bahia. It occurred during three semesters (2016-2017), including territorialization, situational diagnosis, situational strategic planning and community intervention. The interventions were developed with young people from a state school, with participation of the Basic Health Unit and social groups. Social aspects and struggles were highlighted, as well as the problematization of the contrast between the stereotype of the community and its daily dynamics, roots and potentialities, with the inhabitants' protagonism in the construction of activities. The experiences enabled the interdisciplinary, humanized, critical-reflective formation of the students. For the community, the activities stimulated reflection on social identity and belonging.

Keywords: Health Promotion. Social stigma. Health planning. Education, Public Health Professional.


RESUMEN

Se buscó reportar la experiencia de estudiantes universitarios del campo de la salud, con intervenciones comunitarias, para enfrentar el estigma y los prejuicios derivados de pertenecer a una comunidad periférica impregnada de violencia, en Mata Escura, Salvador/BA. Las experiencias partieron del componente curricular Programa de Integración Academia-Servicio-Comunidad (PIASC), de la Universidad del Estado de Bahía. Las actividades ocurrieron durante tres semestres (2016-2017), abarcando territorialización, diagnóstico situacional, planificación estratégica situacional e intervención comunitaria. Las intervenciones desarrollaron con jóvenes de una escuela estatal, participación de la Unidad Básica de Salud y equipamientos sociales. Se evidenciaron aspectos históricos, sociales y luchas del barrio, problematizando el contraste entre el estereotipo de la comunidad y su dinámica, raíces y potencialidades, con protagonismo de los habitantes en la construcción de las actividades. Las experiencias permitieron una formación interdisciplinaria, humanizada, crítica-reflexiva de los estudiantes. Para la comunidad, estimularon la reflexión sobre la identidad social y de pertenencia.

Palabras clave: Promoción de la Salud. Estigma Social. Planificación en Salud. Educación en Salud Pública Profesional.


 

 

Introdução

Mundialmente, o conceito de periferia ganha força depois das guerras mundiais e da Guerra Fria, com a manutenção, no "centro", das nações com alto potencial econômico e bélico. No Brasil, esse termo resulta da metropolização entre 1960 e 1970, como designação de loteamentos clandestinos e favelas localizados em áreas mais centrais, onde vive uma população de baixa renda. Assim, centro e periferia representam polos da teoria de desenvolvimento econômico, delimitados pela concentração de poder econômico de um lado - o centro - e ausência deste no outro lado - a periferia -, o que ultrapassa a dimensão geográfica e assume um caráter político, econômico e social(Pallone, 2005).

Os fluxos migratórios para os centros urbanos brasileiros, por se darem de forma desordenada, produziram uma espécie de desequilíbrio na ocupação do espaço, com constituição de moradias irregulares nos espaços periféricos das cidades(Oliveira, 2011). A incipiente presença do Estado e baixa qualidade de vida produziram um espaço favorável ao crescimento da violência, ao oportunizar práticas ilícitas, como o tráfico de drogas e de armas de fogo, que, por conseguinte, são intimamente relacionadas às manifestações de violência(Cavalcanti & Araújo, 2017).

A violência é um fenômeno multifacetado, intimamente relacionado ao contexto socioeconômico e cultural da sociedade, e assume relevância nas periferias dos grandes centros urbanos(Cerqueira et al., 2017). O Brasil registrou um aumento de 23,1% dos homicídios, nos últimos 10 anos, e 71,5% das taxas anuais têm como vítimas indivíduos de cor preta ou parda. Ademais, as maiores taxas de mortalidade por causas externas, entre 2009 e 2015, estão entre indivíduos de 15 a 29 anos, que representam 46% das vítimas do país(Ministério da Saúde, 2018).

A segregação socioespacial, permeada pela violência, gera e fortalece estigmas acerca do indivíduo que reside em comunidades periféricas(Zanatta & Motta, 2015). O estigma interfere negativamente na construção da identidade e autoestima dos indivíduos, a partir da produção de indignidade pessoal; degradação da periferia (simbólica e física); e diminuição do senso de coletividade para a busca de melhorias(Bezerra, 2011).

A sociedade perpetua a imagem negativa sobre a periferia com o objetivo de manter a estrutura simbólica das relações de poder socioeconômico(Evangelista, 2013) e a mídia, como espaço de (re)produção dos estereótipos, imputa à periferia característica exclusiva de violência e, aos jovens, o papel de seus principais perpetradores. À medida que se estabelecem categorias sobre o ambiente social, a sociedade cria para elas uma identidade virtual que distorce a "identidade social real", e a partir disso os indivíduos podem ser alvos de julgamento e símbolos de estigma. Por sua vez, o estigma limita as oportunidades e torna o jovem vulnerável às violências, retroalimentando o ciclo de marginalização-estigma-violência(Silva & Ávila, 2015).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece que ações de enfrentamento da violência devem ser prioritárias(Belga, Silva, & Sena, 2017). No Brasil, a incorporação da violência na agenda da saúde é recente e, no que se refere ao SUS, a intersetorialidade constitui-se como uma ferramenta no enfrentamento dessa problemática social(Minayo et al., 2018). Nesse sentido, a política social "Cultura da Paz", inserida no Programa Saúde na Escola, busca agir por meio do diálogo e do estímulo ao respeito às diversidades, educação para a paz e luta contra injustiças e opressões(Brasil, 2011). O caráter transformador de valores individuais e coletivos oportuniza um novo olhar sobre a violência e os conflitos inerentes a ela ao considerar micro e macro determinantes (Belga et al., 2017).

Apesar da relativa imprecisão teórica na definição de intersetorialidade, esta pode ser reconhecida como uma articulação entre sujeitos de setores diversos, com diferentes saberes e poderes que possibilitam respostas mais efetivas aos problemas complexos, que se transforma numa prática social (Warschauer & Carvalho, 2014). A despeito da sua potencialidade na promoção da saúde, desafios são inerentes na operacionalização de ações intersetoriais. Nestas estão implicados atores de diferentes espaços sociais, com processos de trabalho cujos objetos e visões podem ser conflitantes. Escuta qualificada, diálogo e articulação são basilares para planejamento das ações mediante consensos pré-estabelecidos capazes de atender ao processo saúde-doença-cuidado nas práticas de saúde (Silva & Tavares, 2016; Morais, 2018).

No que tange à formação em saúde, é imperativo preparar os trabalhadores para o reconhecimento das necessidades de saúde, à luz da reprodução social, para que possam assumir a corresponsabilidade no enfrentamento de questões sociais complexas. Tais questões, como as iniquidades sociais, a violência e o estigma, interferem direta e indiretamente nas condições de saúde da população(Morais, 2018). Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), por intermédio da integração ensino-serviço-comunidade, inserem o graduando no cotidiano dos serviços de saúde e da comunidade, desde o início da formação, para possibilitar a vivência multiprofissional, articulação intersetorial e a ressignificação dos processos de trabalho em saúde(Moreira & Dias, 2015).

Assim, este artigo tem como objetivo relatar a experiência de graduandos em cursos da área de saúde, na realização de intervenções comunitárias, com vistas ao enfrentamento do estigma e preconceito resultantes do pertencimento a uma comunidade periférica permeada pela violência.

 

O componente curricular promotor da experiência

As experiências aqui abordadas foram desenvolvidas no Programa de Integração Academia Serviço e Comunidade (PIASC) e aconteceram entre fevereiro de 2016 e junho de 2017, no bairro de Mata Escura, Salvador/Bahia. O PIASC é um componente do projeto político-pedagógico dos cursos da Área de Saúde, do Departamento de Ciências da Vida, da Universidade do Estado da Bahia, implementado em 2012. Sua proposta visa à integração das diferentes formações para estímulo à interdisciplinaridade, sob a óptica da humanização. Desse modo, a construção humanizada do perfil desses futuros profissionais contribui diretamente para a superação do modelo hegemônico por meio do ensino holístico no cuidado em saúde (Vendruscolo, Prado, & Kleba, 2016).

Todos os discentes matriculados em cursos de saúde vivenciam o PIASC, o que totaliza cerca de 180 discentes por semestre. Estes são divididos em 10 turmas, cada uma delas com uma comunidade e USF de referência. Os discentes são divididos paritariamente, sendo que cada turma abrange três discentes de cada curso, os quais são mantidos na mesma comunidade durante os três semestres a fim de potencializar o vínculo necessário ao desenvolvimento da proposta do PIASC. Assim, as intervenções aqui relatadas foram realizadas pelos mesmos discentes ao longo dos três semestres.

 

Figura 1

 

Territorialização, diagnóstico situacional e planejamento estratégico situacional

As ações do PIASC se assentaram sobre o referencial teórico da Saúde Coletiva, com discussões sobre o processo saúde-doença-cuidado e seus determinantes, a interface dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS) com a Promoção da Saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) e a Atenção Primária à Saúde (APS), a transição epidemiológica e perfil de morbimortalidade do Brasil, a produção de dados em saúde, o Planejamento Estratégico e Situacional (PES), a intersetorialidade e a Educação Popular em saúde(Paim & Almeida-Filho, 2014).

No PIASC I (primeiro semestre de 2016), foram realizadas as primeiras visitas à Mata Escura, em conjunto com os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), da Unidade Básica de Saúde (UBS) local, que representaram o primeiro elo para integração da academia com o serviço de saúde em Mata Escura e a comunidade. As atividades foram voltadas para o acompanhamento e interação com as equipes de trabalho multiprofissional da UBS, bem como com os moradores do bairro, grupos sociais e equipamentos sociais presentes no local. Essas atividades buscaram o conhecimento da dinâmica da comunidade, suas condições de vida e saúde e permitiram identificar problemas sociais importantes, tais como deficiências da infraestrutura urbana, dificuldades de acesso a bens e serviços, a influência do tráfico de drogas e o estigma.

Salienta-se que antes da primeira visita à Mata Escura, foram realizadas pesquisas virtuais sobre o bairro, e as referências midiáticas encontradas reforçavam apenas os aspectos negativos da comunidade, com destaque para as manifestações de violência. Dessa forma, para os agentes externos à comunidade, se produzia uma identidade sobre o bairro distorcida pelo apelo e sensacionalismo midiático, por se tratar de uma comunidade periférica. Essa questão foi remontada nas falas produzidas pelos sujeitos da comunidade, que apontaram sofrer preconceito e, por vezes, se sentirem constrangidos ao referenciar o local de moradia como Mata Escura. A depreciação que o estigma carrega para a comunidade abre espaço para que potencialidades locais sejam ocultas e/ou tampouco sejam reveladas para o público externo, como também aos próprios moradores. Logo, a estigmatização do bairro fortalece a marginalização e a perda de sua própria identidade (Phelan et al., 2014).

Com base nisso, foi proposto um diagnóstico situacional, que subsidiasse o enfrentamento dessa problemática, a partir da identificação das potencialidades existentes em Mata Escura. Esse diagnóstico foi realizado no segundo semestre de 2016 (PIASC II) e foi baseado em entrevistas e observações, registradas em vídeos e com consentimento prévio. Inicialmente, definiram-se, com apoio dos ACS, os agentes, grupos e instituições a serem procurados, os quais representaram moradores locais antigos, um historiador, uma instituição religiosa e cultural, duas ONGs (uma cooperativa de catadores de lixo e uma instituição de prevenção ao risco social de crianças e adolescentes) e três grupos artísticos (música, teatro e dança). Também foram realizados registros de um evento local criado para fortalecimento da identidade comunitária, do qual participaram os grupos artísticos do bairro que se apresentaram nas ruas da comunidade, buscando chamar atenção para as potencialidades de Mata Escura. O registro em vídeo foi planejado, para que no PIASC III pudesse ser construído um documentário sobre as potencialidades de Mata Escura, como uma das intervenções propostas.

Com o diagnóstico situacional, foi possível identificar vários aspectos positivos de Mata Escura, no campo social, ambiental, artístico e cultural. Estas não eram difundidas pela mídia e redes sociais, as quais apenas valorizavam os acontecimentos negativos relacionados à comunidade. Além disso, não havia amplo conhecimento da própria comunidade sobre tais atributos, o que contribui para a internalização da identidade depreciativa produzida pela mídia(Ferreira et al., 2014).

Com base nesse diagnóstico, foi proposta uma intervenção comunitária embasada na desconstrução do estigma da comunidade de Mata Escura, pela ressignificação do bairro e fortalecimento de sua identidade. Essa intervenção foi desenvolvida no primeiro semestre de 2017, com uma estratégia intersetorial, no setor educação. O público-alvo escolhido foram os alunos do ensino fundamental II de uma escola estadual da comunidade de Mata Escura. Os critérios para seleção da escola foram baseados em: ofertar séries para faixa etária de adolescentes; facilidade de acesso aos discentes do PIASC; e receptividade à proposta apresentada pelo PIASC. Embora a escola também ofertasse ensino médio, esse grupo não foi incluído nas intervenções, em função de questões como a falta de espaço que comportasse o total de alunos do fundamental II e ensino médio; dificuldades dos discentes do PIASC em lidar com um grupo de alunos tão grande; impacto de um quantitativo muito grande de alunos na qualidade das atividades a serem realizadas; limitações de cronograma do componente do PIASC, que possibilitava número específico de datas para aplicar toda a programação. Dessa forma, optou-se por incluir os alunos do ensino médio como público-alvo de intervenções futuras do PIASC.

O público-alvo foi assim definido, pois os jovens são um dos grupos etários mais atingidos pela violência e estigma. Os registros dos crimes de homicídio e suas tentativas entre 2014 e 2015, no bairro da Mata Escura, mostraram que as vítimas, na sua quase totalidade, eram do sexo masculino e 67,5% destas eram crianças, adolescentes e jovens entre 10 e 29 anos de idade(Marx et al., 2016). A mídia comprova, com esses dados, como a violência atinge os jovens da periferia, mas ainda não divulga estatísticas sobre o impacto que pode causar a estigmatização. O estigma, quando internalizado em um jovem, tem a capacidade de comprometer sua formação profissional e inserção no mercado de trabalho. Tais afirmativas são preocupantes, de modo que, ao não reconhecer sua identidade, esses jovens irão, consequentemente, diminuir a autoestima, desacreditar e reprimir suas potencialidades(Felicissimo et al., 2013).

A intervenção foi permeada pelo PES. O momento explicativo foi iniciado desde o PIASC I e II, a partir do reconhecimento do território e diagnóstico situacional. No momento normativo, foram traçadas as estratégias para enfrentamento da problemática, centrada na educação popular, de forma a produzir a mudança da situação inicial em direção à ideal. No momento estratégico, foram ponderadas as facilidades, dificuldades e estratégias de enfrentamento destas rumo à construção da viabilidade das intervenções. E no momento tático-operacional, a construção dos momentos anteriores se transformou em ação concreta(Matus, 1996).

Assim, definiu-se que a intervenção seria desenvolvida em duas linhas: 1. Realização de uma gincana, escolhida como estratégia recreativa por ser um método atrativo para o público-alvo e por permitir a possibilidade de protagonismo, assim como trazer estímulo à criatividade e reflexão(Fadel, Alves, & Fillus, 2015). 2. Construção de um videodocumentário com participação dos movimentos sociais de Mata Escura, tendo em vista que produzir um vídeo permite a combinação de várias tecnologias que, consequentemente, levarão à transformação por meio da colaboração e da reflexão(Friends, Militello, & Lights, 2015).

 

Intervenções comunitárias

Participaram da intervenção todos os alunos regularmente matriculados em séries do ensino fundamental II que frequentaram a escola na data das intervenções, o que totalizou 137 jovens entre 11 e 16 anos. Adicionalmente, houve participação do corpo docente da escola, especificamente os professores vinculados ao público-alvo, e dos ACS, que colaboraram ativamente na organização e execução das atividades com o PIASC.

No primeiro encontro, os jovens foram divididos aleatoriamente em nove grupos, para os quais foi designado um discente do PIASC como coordenador, buscando maior estímulo para o público-alvo e maior capilaridade das discussões sobre as experiências de preconceito e estigma. Os grupos foram estimulados a escolher um nome sinônimo de força e um grito de guerra, de forma a despertar a potencialidade dos jovens por meio da identidade coletiva e do pertencimento. As noções de pertencimento e identidade contribuem para criticidade e reflexão emancipatória, pois permeiam conceitos como responsabilidade, cuidado, proteção, solidariedade, compromisso e honestidade. Assim, são elementos fundamentais para transformação dos valores e atitudes das pessoas na busca pela justiça social e qualidade de vida(Nepomuceno et al., 2017).

Seguiu-se com a confecção de um mural de cada grupo em resposta à pergunta "Que Mata Escura é esta?", com o objetivo de explorar a visão sobre o bairro, o estigma relacionado a ele, bem como promover a reflexão sobre as potencialidades. Predominantemente, foram expressos nos cartazes elementos que remontavam a problemas sociais reais de Mata Escura, como o tráfico de drogas, racismo, o lixo nas ruas, as limitações da infraestrutura urbana e de moradia, a carência de oportunidades e a falta de espaços de lazer. Apesar da incipiente representação de potencialidades do bairro, alguns elementos apontaram para a arte, afetos, riqueza ambiental e histórica, mas demandaram o estímulo efetivo dos coordenadores dos grupos (discentes do PIASC) para serem expostos nos murais. Frases como "Mata Escura, uma só família" e "gente do bem", estavam ao lado de expressões como "perigo" e "A Mata Escura está tendo muitas mortes, deveria mudar mais". Isso expressou o dualismo nas percepções sobre a comunidade, quer pelas experiências vivenciadas pelos jovens, quer pela internalização da identidade estigmatizada(Ferreira et al., 2014).

A atividade seguinte foi proposta ao fim do primeiro dia de gincana e consistiu na construção de um perfil de rede social virtual para cada grupo, no qual deveriam ser publicadas imagens sobre locais e elementos de Mata Escura singulares para os jovens como expressão da força e potencialidade local, tendo como legenda o motivo de escolha de tal registro. Além disso, os grupos deveriam publicar a página e buscar o maior número de seguidores, curtidas e compartilhamentos. Com isso, buscou-se que pessoas da comunidade e fora dela fossem envolvidas na atividade e ampliassem as percepções sobre as potencialidades de Mata Escura. Destaca-se o protagonismo dos jovens da comunidade na ação, já que as redes sociais virtuais potencializam o empoderamento comunitário, a ruptura da invisibilidade e o reconhecimento da cultura do grupo (Melgaço & Madureira, 2017).

O segundo encontro da gincana iniciou-se com a projeção dos perfis de rede social criados pelos grupos. As imagens publicadas representavam uma Mata Escura fora do campo de visão dos próprios moradores, por estarem impregnados com estereótipos negativos. O olhar empoderado dos jovens se traduziu no empenho das equipes em fotografarem o bairro com legendas como: "é tão bom assistir a uma peça de teatro em lugar confortável, não é? No teatro Artesão da Paz, aqui no bairro da Mata Escura, você tem conforto", demonstrando a valorização cultural. Os jovens também postaram fotografias da UBS, destacando a importância de ter um centro de saúde local. Demonstraram empatia pela pluralidade religiosa no bairro, ao fotografarem uma igreja católica como representação, mas citarem as outras entidades religiosas presentes e a importância destas para os moradores. Houve também exposição do pôr do sol no bairro, caracterizando a riqueza ambiental que nasce e se põe todos os dias. O impacto das páginas foi ainda maior com os compartilhamentos alcançados. Ficou claro como esses jovens da periferia ousaram enfrentar o estigma por intermédio do reconhecimento das potencialidades locais.

A última atividade proposta na gincana envolveu a construção de um segundo mural, agora com um novo tema: "Esta é a minha Mata Escura!" Foi notória a mudança no enfoque em relação ao primeiro mural produzido, com maior visibilidade e valorização das potencialidades do bairro, o que estimula a transformação. Os recortes traduziam as reflexões dos jovens acerca das tarefas anteriores propostas pela gincana e, consequentemente, caracterizavam uma Mata Escura de resistência sociocultural. Elementos que antes demandavam estímulo dos discentes do PIASC foram escolhidos espontaneamente para valorizar a arte, a cultura e a riqueza ambiental local. Os novos murais retratavam faces do bairro que se escondem por trás do estereótipo negativo midiático, como as escolas ativas, a importância do estudo na vida de um jovem da periferia, a valorização da UBS e das entidades sociais. Algumas frases foram escritas nos murais e um poema foi criado, enaltecendo as grandes competências presentes em Mata Escura.

Além da gincana, a proposta do videodocumentário foi dar visibilidade à história, raízes e potencialidades de Mata Escura, com o protagonismo de membros da própria comunidade. Desde a construção do documentário, a comunidade revelava-se a partir das cenas e imagens. Além disso, definiu em parceria com os membros do PIASC a sequência da narração de si mesma como forma de ampliação do sentido de identidade e pertencimento(Maia & Abib, 2015). O trabalho utilizou a imagem como ferramenta para reconstrução da identidade de Mata Escura, desde o resgate da sua memória à valorização e percepção de riqueza cultural, ao apontar que "o aspecto mais importante da fotografia é definir a identidade de coisas e pessoas". O documentário é, pois, um instrumento capaz de transmitir e de transformar uma realidade(Souza & Oliveira, 2013).

Assim, o documentário reuniu aspectos históricos, sociais, culturais e as lutas vivenciadas pela Mata Escura, num roteiro que de início apontava o contraste entre a imagem midiática da comunidade e a dinâmica da vida que se seguia a si mesma. A participação de um historiador, com experiência acadêmica em Cultura Baiana, e o diálogo com moradores antigos da comunidade, possibilitaram compreender a historicidade da exclusão social, sobretudo pelos primórdios da sua ocupação por povos negros e indígenas(Amado, 2007). Dessa forma, por um lado, Mata Escura representava um lócus de pluralidade cultural e religiosa e, por outro, desde sua ascendência, foi degradado socioespacialmente e visto como ambiente de resistência(Caldas & Nunes, 2002),não reconhecido como parte de Salvador. Ademais, o documentário possibilitou retratar equipamentos sociais, grupos comunitários e instituições religiosas que resguardam a cultura da própria Bahia e desenvolvem projetos de inclusão social, a partir da profissionalização de jovens e da arte, como forma de ressignificar a identidade e divulgar a cultura local.

A última atividade desenvolvida consistiu na divulgação do documentário para a comunidade, numa "sessão de cinema" que aconteceu na mesma escola sede da gincana, e contou com a presença da comunidade escolar, lideranças comunitárias, profissionais da UBS local e integrantes do PIASC. A Mata Escura de potencialidades ali exposta era desconhecida por muitos moradores, que apontaram o impacto daquele momento no resgate e estímulo de um olhar afetuoso sobre seu bairro e sobre si mesmo.

"O aluno é o autor de seu processo de aprendizagem e deve realizar suas potencialidades. A educação assume um caráter mais amplo e organiza-se no sentido da formação total do homem, e não apenas do estudante"(Oliveira & Leite, 2011). As experiências proporcionadas pelo PIASC corroboraram com os autores supracitados, pois contribuíram para a formação pessoal e profissional dos acadêmicos, baseada na criticidade e na aprendizagem ativa. Outrossim, os discentes puderam desenvolver habilidades voltadas ao trabalho interdisciplinar, à intersetorialidade nas ações em saúde, ao estímulo à participação social e ao planejamento em saúde.

 

Considerações finais

As experiências aqui relatadas contribuíram positivamente para uma formação interdisciplinar, ampliada, humanizada, crítica e reflexiva para os graduandos em saúde do PIASC, que terão subsídios para a transformação de seu processo de trabalho, de forma a se aproximar dos princípios do SUS. O trabalho intersetorial oportunizou a identificação de fatores determinantes no estigma e preconceito, experimentados pelos adolescentes do bairro, como fenômenos sociais sinérgicos à exclusão social. A adoção do conceito ampliado de saúde contribuiu para o enfrentamento dos problemas, com ações para a ressignificação da identidade social e pertencimento comunitário.

Para a comunidade de Mata Escura, particularmente para os participantes das intervenções, as vivências proporcionadas pelo PIASC alimentaram o ideário de resistência e lutas por dignidade, direitos humanos e melhores condições de vida e saúde. Aliado a isso, as experiências contribuíram para refletir sobre a revitalização da identidade social e da noção de pertencimento.

Por fim, o equacionamento da problemática em torno da periferia, violência e estigma não se faz por métodos simples e rápidos, mas as experiências aqui relatadas demonstraram o papel essencial da promoção de saúde no enfrentamento dessas questões. Assim, o estímulo à intersetorialidade, à interdisciplinaridade e às práticas educativas libertárias deve transversalizar a agenda da saúde, de forma a construir a integralidade da saúde e a intervenção sobre seus determinantes sociais.

 

Referências

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Recebido em: 16/11/2018
Aprovado em: 15/6/2020

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