Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
ISSN 1983-8220
https://doi.org/10.36298/gerais2019120106
ARTIGOS
"Como se produz um homossexual?": a origem da homossexualidade na percepção de indivíduos que alegaram ter mudado de identidade sexual
"How is a homosexual produced?": the origin of homosexuality in the perception of individuals who claimed to have changed their sexual identity
Odacyr Roberth Moura da SilvaI; Maria Cristina Smith MenandroII
IUniversidade Federal do Espírito Santo, Barra de São Francisco, Brasil. E-mail: odacyrroberth@gmail.com
IIUniversidade Federal do Espírito Santo, Barra de São Francisco, Brasil. E-mail: cristinasmithmenandro@gmail.com
RESUMO
Este artigo analisa as representações sociais sobre a origem da homossexualidade apresentadas por homens que alegaram ter mudado de identidade sexual. Trata-se de um estudo exploratório, de corte transversal, de abordagem qualitativa. Foram entrevistados quatro homens maiores de 18 anos. O instrumento teve por base um roteiro semiestruturado de entrevista. Os dados foram sistematizados a partir de uma análise de conteúdo temática, revelando quatro categorias: 1. Estrutura familiar deficiente. 2. Abuso sexual na infância. 3. Experiências homossexuais prazerosas. 4. Ação de entidades espirituais. Todos os discursos procuraram justificar/deslegitimar a homossexualidade argumentando que ela é antinatural/causada exclusivamente por fatores ambientais. Além da apropriação de elementos de teorias psicanalíticas e psicológicas, percebeu-se uma forte ancoragem em valores religiosos sobre a homossexualidade. Acredita-se que a busca pela legitimação desse discurso pode pretender justificar as tomadas de posição e os comportamentos relativos à decisão de mudar de orientação sexual.
Palavras-chave: Homossexualidade. Ex-gay. Representações sociais.
ABSTRACT
This article analyzes the social representations about the origin of homosexuality presented by men who claimed to have changed their sexual identity. This is an exploratory, cross-sectional study with a qualitative approach. Four men over the age of eighteen years were interviewed. The instrument was based on a semi-structured interview script. Data were systematized based on a thematic content analysis, revealing four categories: 1. Poor family structure. 2. Sexual abuse in childhood. 3. Pleasurable homosexual experiences. 4. Action of spiritual entities. All discourses sought to justify and/or delegitimize homosexuality by arguing that it is unnatural and/or exclusively caused by environmental factors. In addition to the appropriation of elements of psychoanalytic and psychological theories, a strong anchoring of religious values about homosexuality was observed. It is believed that the search for the legitimization of this discourse may pretend to justify the positions and behaviors related to the decision to change sexual orientation.
Keywords: Homosexuality. Ex-gay. Social representations.
Introdução
Embora o ato sexual entre pessoas do mesmo sexo date de períodos remotos, não há consenso entre os pesquisadores acerca do seu primeiro registro na história da humanidade. Fogel, Lane e Liebert (1989), por exemplo, apontam que os primeiros escritos que revelavam tais práticas remontam à Dinastia Egípcia, em 2500 a.C., enquanto Guimarães (2009) vai mais longe, trazendo relatos de experiências entre Oros e Seti em 4500 a.C. á Outros registros foram encontrados na Grécia Antiga e no Império Romano, onde o sexo entre homens era considerado comum, desde que fosse vivenciada nos limites culturalmente delimitados (Richards, 1995).
Richards (1995) explica que foi no contexto da Idade Média que o cristianismo começou a exercer controle não apenas sobre o sexo entre pares de iguais, mas sobre toda forma de comportamento sexual. A Igreja, que dominava absoluta a vida espiritual e moral da sociedade naquele período, "tomou a iniciativa de especificar que atos sexuais as pessoas poderiam se permitir e de regulamentar onde, quando e com quem o sexo poderia ter lugar" (p. 33). Com esse posicionamento, a Igreja procurava circunscrever a prática sexual ao casamento heterossexual, exclusivamente para fins de procriação. Até mesmo o homem heterossexual que procurasse sua esposa unicamente para obter prazer era considerado pecador. O cristianismo foi, desde seus primórdios, uma religião negativa em relação ao sexo, já que, de acordo com a visão cosmológica e doutrinária que o norteia, o sexo desvia o indivíduo de sua verdadeira missão na terra, que é a busca da perfeição espiritual. Nesse sentido, a limitação do sexo a fins reprodutivos auxiliaria o sujeito a alcançar a purificação do espírito por meio da transcendência da carne. O resgate histórico realizado pelo autor, ao situar o leitor no tempo e no espaço, auxilia na compreensão do significado que a prática entre pessoas do mesmo sexo tem na atualidade.
Ribeiro (2005) ressalva que embora os registros nos permitam identificar a presença da prática sexual entre pessoas do mesmo sexo ao longo da história da humanidade desde os tempos remotos, eles não permitem que se afirme que essas práticas equivalham ao que hoje se entende por homossexualidade.
O termo "homossexualidade" foi utilizado pela primeira vez em 1869 por Karl-Maria Kertbeny, aplicado a homens e mulheres (Guimarães, 2009). Contudo, se por um lado a invenção do termo "homossexual", de certa forma, diminuiu a carga de representações negativas trazidas pela religião, por outro coloca esse indivíduo na qualidade de doente. Segundo Nunan (2003), quando a homossexualidade passou a ser categorizada como uma patologia, começaram a surgir vários mecanismos que buscavam promover a cura desses sujeitos, dentre eles a abstinência, a hipnose e até intervenções cirúrgicas. Sendo assim, "a sexualidade, que poderia representar a diversidade, acabou por se converter em um destino aprisionante, particularmente para aqueles que, tal como os homossexuais, apresentam uma sexualidade considerada desviante" (p. 36).
É bastante recente a retirada da homossexualidade dos manuais de patologias da Medicina e da Psicologia. No Brasil, somente em 1985 a homossexualidade deixou de ser considerada doença pelo Conselho Federal de Medicina. O Conselho Federal de Psicologia, por sua vez, só se manifestou em relação a esse assunto em 1999, apesar de já em 1975 a homossexualidade ser considerada pela Associação Americana de Psicologia uma orientação sexual e não um distúrbio ou uma doença psicológica. Apesar disso, "esta celebrada despatologização da homossexualidade não foi capaz de resolver todas as questões que longos anos de pertença a códigos punitivos, listagens de aberrações e perversões e finalmente a um repertório nosológico 'cientificamente' estipulado, tinham instalado" (Leal, 2004).
Diante desse panorama, tomando como referencial a Teoria das Representações Sociais - TRS (Moscovici, 2011), tivemos como objetivo analisar as teorias e justificativas sobre a origem da homossexualidade apresentadas por indivíduos que mudaram de identidade sexual e compreender o comportamento social de "deixar de ser gay", tendo por base uma rede de significados construída em torno da homossexualidade.
Optou-se pela adoção do termo "identidade sexual" para se referir à mudança dos participantes deste estudo da condição de homossexual para heterossexual. Embora bastante controverso, especialmente em alguns segmentos da militância LGBTQIA,+1 que afirmam não existir identidade sexual, mas sim orientação sexual ou identidade de gênero, a escolha do termo foi feita, pelo menos, por dois motivos. Primeiro, porque ele já vem sendo usado na literatura, inclusive em trabalhos que versam sobre sexualidade e Psicologia Social (APA, 2009; Gomes & Serôdio, 2014; Pinho & Pulcino, 2016; Silva & Pereira, 2010). Segundo, porque foi a forma como dois dos entrevistados referiram-se ao seu processo de transformação, e por semanticamente abarcar a experiência de todos, preferimos adotar "mudança da identidade sexual" a "reorientação sexual".
No relatório Report of the APA Task Force on Appropriate Therapeutic Responses to Sexual Orientation, a APA (2009) mostrou que a orientação sexual envolve pelo menos três componentes: o comportamento sexual, a atração sexual e a identidade sexual. O relatório traz diversas pesquisas (Beckstead, 2003; Carrillo, 2002; Diamond, 2003, 2008; Diamond & Savin-Williams, 2000; Dunne et al., 2000; Fox, 2004; Gonsiorek, Sell & Weinrich, 1995; Hobinch, Konik, Williams, & Crawford, 2004; Kinsey et al., 1948, 1953; Klein et al., 1985; Masters & Johnson, 1979; McConaghy, 1987, 1999; McConaghy, Buhrich & Silove, 1994, 1980; Thompson & Morgan, 2008, citados pela APA, 2009) que indicam que existe um conjunto de indivíduos que se envolvem em práticas sexuais com pessoas do mesmo sexo mas que não se reconhecem ou se identificam como LGB, da mesma forma que existem gays e lésbicas que se envolvem sexualmente com pessoas de outro sexo e não se identificam como bissexuais ou heterossexuais. Dessa forma, ainda de acordo com o mesmo relatório (APA, 2009, p. 30),
[...] a orientação sexual refere-se aos padrões sexuais, românticos e afetivos de um indivíduo e ao desejo por pessoas baseado nas características sexuais e de gênero dessas pessoas. A orientação sexual está ligada a impulsos fisiológicos e sistemas biológicos que estão além da escolha consciente e envolvem sentimentos emocionais profundos, como "se apaixonar". A identidade sexual refere-se ao reconhecimento e internalização da orientação sexual e reflete a auto-exploração, a autoconsciência, o auto-reconhecimento, a participação e a afiliação em grupos, cultura e autoestigma. A identidade sexual envolve formas públicas e privadas de auto-identificação e é um elemento-chave na determinação de decisões relacionais e interpessoais, pois cria uma base para a formação de comunidade, apoio social, modelos de papel social, amizade e parceria. (APA, 2003; Jordan & Deluty, 1998; McCarn & Fassinger, 1996; Morris, 1997; Ponticelli, 1999; Wolkomir, 2001)
Sobre a representação social dos homossexuais, Scardua e Souza Filho (2006, p. 483) afirmam que
Muito além da esfera conceitual há um conhecimento compartilhado socialmente sobre este tema, que possibilita práticas entre indivíduos e grupos. Ou seja, tomamos como base a noção de que a homossexualidade é construída socialmente e só pode ser entendida dentro de um contexto social e histórico dinâmico. Tal multigrupalidade existente nas sociedades contemporâneas engendra múltiplas formas de ser, ver, compreender, representar, praticar, comunicar, vivenciar, enfim, debater a homossexualidade.
A Teoria das Representações Sociais se ocupa da construção do saber por parte das pessoas leigas, no seu cotidiano (Moscovici, 2011). Dois processos fundamentais ocorrem na produção das representações sociais: objetivação e ancoragem. Objetivação é o processo pelo qual ideias abstratas são transformadas em imagens concretas. Do saber científico (universo reificado) algumas informações são privilegiadas em detrimento de outras. Essas informações passam por um processo de simplificação e dissociação do seu quadro teórico original e são associadas ao quadro de significações que o grupo tem. Sendo assim, a objetivação transforma aquilo que era novo e desconhecido em familiar. O segundo processo, a ancoragem, trata do agrupamento dessas novas ideias e imagens a um assunto similar. É a incorporação, após alguns ajustes, desse novo objeto às categorias já existentes. Dessa forma, novas imagens se juntam àquelas que já existiam e, em decorrência disso, o entendimento que se tem da realidade circundante sofre mutações, fazendo emergir, então, novos conceitos (Trindade, Santos & Almeida, 2014).
Pereira, Torres, Pereira e Falcão (2011), em uma pesquisa realizada com seminaristas católicos e evangélicos, encontraram relação entre as crenças sobre a origem da homossexualidade e o tipo de preconceito apresentado pelos sujeitos entrevistados. O estudo concluiu que "a forma como seminaristas expressam as suas atitudes em relação aos homossexuais está associada às suas representações sobre a homossexualidade" (p. 74).
Nesse mesmo sentido, um estudo sobre as formas de preconceito contra homossexuais entre universitários realizado por Lacerda, Pereira e Camino (2002, p. 175) apontou que "as variáveis que mais contribuem para a ancoragem social do preconceito dos estudantes contra os homossexuais são as explicações atribuídas à homossexualidade". De acordo com a análise realizada, os estudantes não preconceituosos foram aqueles que aderiram a explicações de cunho psicossociológicos sobre a origem da homossexualidade, enquanto os preconceituosos sutis buscaram explicar a homossexualidade partindo de causas biológicas e psicológicas. Os preconceituosos flagrantes, por sua vez, apresentaram uma adesão mais forte às explicações ético-morais e religiosas.
Apesar de haver literatura científica que discute, sob o prisma de diferentes teorias, a violência do discurso por trás do comportamento de "deixar de ser gay", existe uma carência de estudos que abordem o fenômeno pela óptica das representações sociais. Assim sendo, a realização deste estudo justifica-se por apresentar uma perspectiva que possibilita ampliar a compreensão da forma como os indivíduos/grupos apreendem e transformam o saber científico existente sobre as causas da homossexualidade, e como esse saber, apropriado e transformado afeta as práticas sociais desses indivíduos, reforçando a estrutura violenta contida nesses discursos excludentes.
Método
Trata-se de um estudo exploratório, de corte transversal e abordagem qualitativa (Gaskell, 2013). Participaram deste estudo quatro indivíduos do sexo masculino, com idade superior a 18 anos, que declararam ter sua identidade sexual alterada de homossexual para heterossexual. A amostragem utilizada foi intencional. A realização de entrevista com esse quantitativo de participantes deu-se devido à escassez de sujeitos encontrados que se encaixavam no perfil procurado e na dificuldade de acesso a essa população (dentre os poucos encontrados, não foram todos que aceitaram falar sobre sua experiência). Apesar dessa limitação, acredita-se que o número de entrevistados foi suficiente para trazer informações relevantes capazes de responder aos objetivos da pesquisa.
Os participantes foram localizados a partir de contatos do pesquisador responsável por esta pesquisa e de indicação de terceiros. O local da coleta foi escolhido pelo participante, e primou-se pela escolha de um espaço que permitisse conforto para que ele se expressasse e também que permitisse a manutenção da tranquilidade e do sigilo. Foram incluídos na amostra os sujeitos que mudaram de identidade sexual há pelo menos seis meses, e que se dispuseram a falar sobre o tema abordado.
O instrumento utilizado na coleta de dados foi um roteiro semiestruturado de entrevista que explorou questões tais como: primeiras experiências sexuais, descoberta da homossexualidade, inserção social, relacionamentos interpessoais e fatores intervenientes na decisão da mudança de identidade sexual.
A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa da instituição à qual os pesquisadores estão vinculados sob o parecer nº 1.579.301/2016.
Os dados foram analisados segundo a técnica de Análise de Conteúdo (Bardin, 2009). O material foi sistematizado a partir de uma análise de conteúdo temática realizada em três etapas: pré-análise, exploração do material (codificação) e tratamento dos resultados (inferência e interpretação). Nos resultados, inicialmente apresentaremos uma caracterização geral dos participantes. Em seguida estão sistematizados os dados relacionados à definição da homossexualidade e às explicações de como ela se origina. Na discussão buscou-se estabelecer, à luz da TRS, uma articulação entre os achados desta pesquisa e a literatura, levando com consideração os objetivos a que nos propusemos.
Resultados
O Quadro 1 foi elaborado com o intuito de apresentar uma caracterização dos entrevistados. Para garantir o anonimato dos participantes, utilizamos nomes fictícios que eles mesmos tiveram a oportunidade de escolher.
Os participantes têm características pessoais bastante heterogêneas: suas idades variam de 25 a 49 anos, o tempo de permanência assumidamente gay variou entre 10 meses e 25 anos, e o tempo de mudança de identidade sexual variou entre 2 anos e 23 anos. Em relação às similaridades encontradas, três deles estavam envolvidos em relacionamento amoroso heterossexual no momento da entrevista. Três se declaram pardos e de classe média. Além disso, todos os participantes eram cristãos/evangélicos.
Levando-se em consideração que nossa amostra apresenta homogeneidade religiosa e que contextualizar as pertenças grupais dos participantes é de fundamental importância em estudos de representações sociais, faz-se necessário levantar um debate acerca desse ponto.
Nossa busca iniciou-se sem nenhum tipo de direcionamento religioso específico, porém, após um período de procura sem sucesso, decidimos procurar no meio religioso, no qual desde o início da pesquisa conjecturávamos ser menos difícil encontrar participantes com o perfil desejado. Isso não significa necessariamente que não existam indivíduos que não passaram pelo mesmo processo que nossos entrevistados fora do meio cristão, ou sem a alegada interferência divina. Apenas significa que, no meio secular, esses sujeitos podem não fazer questão de serem notados por esse aspecto da sua vida.
Além de haver no meio religioso uma cultura do testemunho em que há uma supervalorização da história do indivíduo que estava em um estado considerado (por aquele grupo) inferior e que passa por uma transformação, para um estado considerado superior, acredita-se que não exista pressão normativa no meio não religioso para que se exalte uma condição socialmente considerada negativa que a pessoa tenha sido ou vivenciado. Pelo contrário, existe até o receio de ser estigmatizado por uma coisa que foi e não é mais: "ex-drogado, ex-bandido, ex-prostituta, ex-ladrão", tal como reforça Henrique. Em outras palavras, o indivíduo não teria motivos fora do meio cristão para sentir orgulho em dizer que foi gay e que hoje não é mais, não há nenhum reforçador social para tal comportamento.
Sobre a origem da homossexualidade, todos afirmaram que ela seria causada exclusivamente pelas influências do meio, ou seja, seria produto de uma "construção". Partindo tanto de sua experiência pessoal quanto de observação das vivências dos colegas que viveram situações semelhantes às suas, os entrevistados se arriscaram a criar uma explicação universalizante que acreditam englobar todos os homossexuais.
[...] a homossexualidade ela é 100% comportamental. [...] eu creio que não é... eh... nascimento e nem genética, que ainda a ciência não pôde comprovar 100% AINDA com eficácia isso [...]. Porque é a questão de uma cura mesmo. Porque é uma enfermidade espiritual. É uma enfermidade física. E também comportamental, porque ninguém eh... decide ser gay e fala assim: "tá tudo bem. É isso que eu quero", sem ter nenhum problema lá dentro. São sentimentos construídos, relacionamento construído. É uma orientação toda construída para estar naquele molde, daquele jeito, com aquela visão. (Junior)
Eu não acho que seja uma escolha [...], que seja genético [...], que seja uma questão espiritual, de possessão demoníaca, essas coisas [...]. Eu acho que o que leva a pessoa a [...] receber uma orientação sexual pra homossexualidade de forma... digamos que... muitas vezes - na maioria das vezes - inconsciente, é a influência da família - a influência negativa da família -, a influência negativa da escola, e a influência negativa, por exemplo, da comunidade em geral - comunidade, bairro onde ele vive, vizinhança -, e também igreja, seja qual for. (Carlos Daniel)
Mesmo havendo consenso entre os participantes de que a homossexualidade seria uma condição produzida por determinadas circunstâncias ambientais interpretadas por eles como desfavorecedoras, há divergência quanto à possibilidade de ela ser ou não uma escolha. Conforme consta no relato de Carlos Daniel, as experiências da vida poderiam levar o indivíduo a ser gay, assim como poderiam levá-lo a deixar de sê-lo, não sendo, portanto, uma questão de opção, de escolha. Para os outros participantes, embora as vivências direcionassem os indivíduos à homossexualidade, assumi-la ou permanecer vivendo-a, se trataria de uma escolha do sujeito. No entendimento desses entrevistados, é como se a pessoa não escolhesse ser gay, mas tivesse a liberdade para decidir não sê-lo. Essa aparente contradição na estrutura da representação em um mesmo grupo se dissolve quando analisamos os elementos da representação como centrais e periféricos, em que o sistema periférico suporta as heterogeneidades do grupo e o sistema central define a homogeneidade, dando estabilidade à representação (Mazzotti, 2002).
Para a realização da Análise de Conteúdo, foram selecionados todos os trechos de falas que continham elementos apontados pelos entrevistados como causadores da homossexualidade, tanto nos homossexuais, de uma forma geral, quanto em si próprios. Neste material está contido uma tentativa de explicar como e porque os homens se tornariam gays. A partir da análise realizada, foi possível identificar quatro categorias, construídas a partir da convergência de ideias. São elas: 1. Estrutura familiar deficiente. 2. Abuso sexual na infância. 3. Experiências homossexuais prazerosas. 4. Ação de entidades espirituais. A exposição será ilustrada por trechos de falas dos entrevistados
Estrutura familiar deficiente: nesta categoria estão inseridos os discursos que apontam a estrutura familiar incompleta ou deficitária como uma das causas para a condução de um indivíduo heterossexual para a homossexualidade. De acordo com os respondentes, dentre os componentes que indicam a "desestrutura" de uma família considerada ideal para a formação de um sujeito heterossexual estão: a separação dos pais, a ausência de um referencial masculino ou de uma forte presença masculina na educação, o contato com muitas mulheres ou forte presença feminina na educação (mãe, irmã, madrinhas, tias, primas) e a ação de uma mãe superprotetora.
Eu vivia com minha mãe e com minha irmã e eu tinha contato com muitas mulheres: tias, madrinhas, primas... e eu não tinha uma presença masculina que me afirmasse enquanto homem. (Carlos Daniel)
Então, da formação da minha família são cinco mulheres e eu sou o único filho homem, o caçula da família. Eh... a minha mãe, ela não sabia lidar com a criação de um menino, de um homem, sendo que ela criou a vida inteira só meninas [...]. Com a minha formação e meu contato era muito voltado para com as minhas irmãs, ali eh... eu acabei tendo uns traços, uns trejeitos mais delicados que os outros meninos da escola [...]. A nossa mãe ela era... ela tinha muito... como é que se diz... zelo, né? Vamos colocar esse nome que é melhor. [...]. Era 100% monitorado. Superproteção. (Junior)
O entrelaçamento da ausência paterna à origem da sua homossexualidade é tão forte que os entrevistados acreditam que o que buscavam nos seus parceiros, na verdade, era a figura do pai, o preenchimento do vazio deixado pelo carinho e afeto que o pai não estivera presente para dar.
Eu entendo que essa carência vem da ausência do afeto paterno que eu não tive na minha infância por causa da ausência do meu pai. Eu entendo que eu buscava isso em outros homens, não era por acaso que eu só me apaixonei até então por homens mais velhos, né? [...] "Por que que o mais velho me atrai? Ele tem uma certa... é um pai. Eu tô buscando nele o pai". Eu não sabia de nada disso, né? (Henrique)
Na verdade, o que eu buscava nos outros homens, no relacionamento com outros homens não somente sexual - nem sempre sexual -, mas o que eu buscava muito era o que eu nunca tive. Eu buscava um abraço de pai, buscava um ombro, eu buscava um conselho... tudo que eu nunca tive de pai. (Carlos Daniel)
Observa-se que algumas justificativas para a origem da homossexualidade claramente se ancoram em conceitos (que foram descontextualizados) da teoria psicanalítica. Henrique recorre ao Complexo de Édipo para gerar uma explicação baseada numa relação direta de causa-efeito entre o imenso apego que tinha com a sua mãe e o consequente bloqueio que isso lhe ocasionou com as mulheres:
Eu entendo que eu me encaixo na solução na questão do Complexo de Édipo, é? Eu creio que eu não abandonei minha mãe como objeto de desejo, né? Na ausência do afeto do meu pai, então eu me apeguei à minha mãe [...]. Então, eu entendo que essa minha grande paixão pela mãe, ela vai criar o bloqueio sexual por mulheres, é? Eu vou ver em todas as mulheres uma extensão do sagrado, então tem um bloqueio sexual. (Henrique)
Abuso sexual na infância: esta categoria abarca as respostas relativas à atribuição de abusos sexuais sofridos na infância, seja eles perpetrados por homens ou por mulheres, como potenciais promotores do despertar de uma homossexualidade. Há dois tipos de explicação surgida nesta categoria. O primeiro, presente apenas no relato de Henrique, tem relação com os abusos perpetrados por mulher, que de certa forma criou nele uma aversão sexual à figura feminina.
Por que que eu vejo que os abusos das mulheres e dos homens contribuíram pra construção da minha homossexualidade? Os das mulheres eu ainda era muito criança. Então, aquilo não me deu nenhum prazer. Pra mim foi... foi ruim, né? Uma colocou a minha mão dentro da vagina dela. Eu, como criança, achei aquilo nojento. Então, eu vejo como elas me abusaram eu era muito menino, aquilo criou um bloqueio já do feminino, é? (Henrique)
O segundo tipo de explicação, e o mais comum dentre os respondentes, é que o abuso sexual realizado por outros homens funcionaria como um fator desencadeante para a homossexualidade na criança abusada, seja por curiosidade, seja pelo fato de a criança interpretar a situação de abuso como normal e introjetar essa experiência como prazerosa, conforme relatam.
Eu tinha desejo de ver um homem nu. Eu tinha desejo de ver um homem pelado. Buscava isso no meu pai. Não tinha. Aí, foi surgindo a curiosidade. E aí, a curiosidade foi matada com esta pessoa, com este cara que me abusou, e aí foi o start pra eu poder começar. (Junior)
Existe o motivo de uma criança ser violentada sexualmente e isso trabalhar na psicologia dela, ela achar que aquilo é normal, criar o prazer, o ilibado dela, o prazer nela dela sentir atraída pelo mesmo gênero. (Rafael)
Experiências homossexuais prazerosas: esta categoria engloba as respostas que atribuem a gênese da homossexualidade a experiências sexuais prazerosas com outros homens. Os respondentes reconhecem que o desejo precedeu a ação de ter relações homossexuais, mas justificam dizendo que se essas experiências com homens não tivessem dado prazer, certamente não teriam se tornado homossexuais. "E eu, na época, eu... decidi ser homossexual, não assim, do dia pra noite. Foi uma brincadeirinha com o coleguinha, dali eu gostei... Tive relação com menina, mas preferi seguir o caminho do homossexualismo" (Rafael).
O consumo de material erótico também foi mencionado como um recurso que contribuiu para o surgimento do sentimento de prazer nas experiências sexuais. Henrique relata que foi o acesso a uma revista pornográfica que aguçou o seu desejo sexual para suas primeiras experiências homossexuais:
Agora, o grande divisor de águas, né, eu lembro que tinha um que sempre me chamava e eu tinha nojo... eu não sei por que que ele continuava. Um dia, eu achei uma revista pornográfica [...] hétero, duas mulheres com um homem. E elas fazendo sexo oral no homem. E isso foi um divisor de águas pra minha vida, é? [...] Aquelas imagens me despertaram. Eu lembro das duas fazendo sexo oral com aquela cara boa, aquilo me despertou. Quando o rapaz me chamou de novo, ele levou um susto, porque na hora eu já abaixei e fui fazer sexo oral nele, que eu não fazia. (Henrique)
Ação de entidades espirituais: esta categoria refere-se a respostas que envolviam questões espirituais como causa da homossexualidade. Embora estas aparecessem com menos frequência que as respostas das categorias anteriores, os relatos que indicavam a ação de forças espirituais como fator interveniente na "produção" da homossexualidade mostraram-se muito significativos, em especial para Rafael.
Eu creio que o demônio, o satanás, ele enxerga os planos de Deus em cada indivíduo. Então, ele tenta amputar isso [...]. Acredito, obviamente, no mundo espiritual. O diabo, tentando tragar minha vida mais rápido, fazia essas bandeja, essas ofertas para mim [as ofertas eram os homens ricos da região que o procuravam para sexo] [...]. É aonde que eu te falei. Eu escolhi... Minha opção: vou ser homossexual. E com o tempo eu fui alimentando isso dentro de mim, que a fisolofia... a fisolofia...do... [risos] filosofia do grego, onde ele diz que você é exatamente aquilo que alimenta [...]. E obviamente que a estrutura espiritual do lado apoiava tudo isso.... As pombas-giras... apoiava tudo isso. (Rafael)
Houve menção, ainda que de forma indireta, na crença do poder que o plano espiritual tem para influenciar o indivíduo, tanto para a assunção da heterossexualidade (nesse caso, uma influência benéfica para eles) quanto para a assunção da homossexualidade (influência negativa, provocada por espíritos maus, segundo a concepção dos respondentes desta categoria). No relato a seguir é possível perceber como o participante acredita que as forças espirituais atuam no seu cotidiano e como o "inimigo invisível" é capaz de influenciar astuciosamente sua vida.
Mas... antes de continuar, vem a questão espiritual, né, que eu acredito. A minha mãe, antes de eu nascer, ela me consagrou a Deus. Falou assim: "olha"... Ela sempre falava que eu seria um pastor [...]. E nós conhecemos e temos um inimigo que a gente não consegue ver, mas ele existe e ele sempre tenta tirar proveito daquilo que nós falamos ou distorcer aquilo que foi falado. (Junior)
Tanto para Rafael quanto para os outros respondentes desta categoria, apesar de mencionarem alguns fatores como provocadores ou estimuladores da homossexualidade, consideram que eles sozinhos não são suficientemente capazes de transformar um indivíduo "normal" em homossexual. É como se os fatores ambientais - como o abuso sexual na infância ou uma experiência sexual prazerosa com uma pessoa do mesmo sexo - abrissem brecha para a atuação de espíritos malignos no corpo. Esses espíritos atuariam apenas como um complemento a fatores anteriores, tanto na criação/superestimulação dos desejos que fazem parte da "natureza pecaminosa da carne" quanto no ambiente que o indivíduo está inserido, com a oferta de "bandejas", criando situações que favoreceriam a vazão dos "prazeres pecaminosos".
Em outras palavras, o diabo sozinho não seria motivo suficientemente forte para transformar um indivíduo heterossexual em homossexual. Essas forças espirituais estariam atuando nos bastidores, criando contextos propícios à prática sexual entre homens e alimentando o desejo ou curiosidade que já estava no "coração" do sujeito. Os agentes espirituais funcionariam, nesse caso, como complemento ou como reforçadores de algo que já estava previamente predisposto a acontecer.
Os relatos indicam que, se por um lado haveria um "inimigo invisível" que tenta levar os indivíduos para a homossexualidade, por outro lado haveria um "Deus", que te ajudaria a superá-la, a encontrar outras formas de ser feliz fora da homossexualidade. Henrique relata sua experiência com Deus descrevendo como ela teria sido imprescindível para que ele deixasse de buscar na homossexualidade o preenchimento para o vazio sentimental que vinha sentido até então.
E talvez, o momento principal foi eh... do divisor de águas, é? Eu tinha terminado minha relação, e eu estava eh... morrendo de saudade, eu queria voltar, estava muito apaixonado [...]. Mas nesse momento, eu tive uma experiência espiritual muito gostosa com o amor de Deus. [...]. Eu entreguei minha vida realmente nas mãos de Deus. E o que eu chamo de contentamento, senso de realização, foi vindo de outras maneiras. (Henrique)
Discussão
As explicações apresentadas pelos entrevistados vão ao encontro do que Santos (2003) chama de explicação do ensino bíblico, que inclui no seu arcabouço alguns posicionamentos que se baseiam, dentre outras coisas, em descontextualização de fragmentos das teorias psicológicas e psicanalíticas sobre a sexualidade.
Todas as explicações acerca da gênese da homossexualidade masculina apresentada pelos entrevistados derivam de uma concepção construtivista. Eles negam qualquer possibilidade de algum indivíduo nascer homossexual ou de haver algum nível de influência de componentes genéticos. Ao contrário, acreditam que o homossexual é produto de diversas experiências e influências que o sujeito vai introjetando ao longo da vida. Para eles, à medida que o indivíduo vai passando por determinadas vivências que o vão moldando, ele vai se constituindo como gay.
Fry e Carrara (2016) analisam o embate que existe em torno da natureza da homossexualidade que vem se acirrando nos meios de comunicação brasileira nos últimos anos. De um lado apresenta o pastor Silas Malafaia, representante da ideologia cristã na mídia, que nega qualquer base biológica para o "homossexualismo" e admoesta aos homossexuais "praticantes" a busca por uma conversão para o "heterossexualismo". De outro lado apresentam Eli Vieira, um biólogo e doutorando em genética pela Universidade de Cambrigde, que expõe, também por intermédio dos meios de comunicação de massa, diversos dados que refutam os argumentos puramente ambientais e culturais trazidos pelo pastor. A despeito desse embate, o consenso mais aceito no meio científico é da natureza multifatorial da homossexualidade, ou seja, de que ela é produto da interação tanto de influências biológicas quanto de influências do meio.
Diante desse panorama, pergunta-se: por que o conflito ideológico em torno da origem da homossexualidade é tão feroz? Por que estando as mesmas informações científicas disponíveis para todos, distintos grupos apropriam-se de forma totalmente oposta desses conhecimentos? A teoria das Representações Sociais parte da premissa de que o conhecimento científico não é apreendido da mesma maneira por todos os grupos sociais. Na gênese das representações sociais, estão envolvidos dois processos: ancoragem e objetivação (Trindade, Santos & Almeida, 2014), processos que ocorrem simultaneamente e que têm o objetivo de trazer para o sistema cognitivo do indivíduo informações que lhe são novas, desconhecidas e ameaçadoras.
Acredita-se que esses grupos, no processo de apropriação do conhecimento, no qual algumas informações são privilegiadas e outras minimizadas ou simplesmente ignoradas, selecionaram, consciente ou inconsciente, aquelas informações sobre o objeto que estavam de acordo com seu sistema de categorias influenciado por crenças/dogmas religiosos. Informações radicalmente divergentes daquilo que eles já acreditavam dificilmente conseguiria se inserir nesse sistema, visto que a inserção de novas informações sobre esse objeto se dá em função da inserção social desses sujeitos.
Sendo assim, presume-se que só seriam incorporados no sistema de significação do grupo os novos conceitos ou informações acerca da homossexualidade disponíveis na ciência que não entrariam em conflito com as outras representações sociais que fazem parte do universo social desse grupo. Uma das funções das representações sociais é justamente permitir que "os atores sociais adquiram os saberes práticos do senso comum em um quadro assimilável e compreensível, coerente com seu funcionamento cognitivo e os valores aos quais eles aderem" (Abric, 2001, p. 28).
A partir do momento que esse novo conteúdo é esquematizado, criando-se um núcleo figurativo do objeto, o que antes era abstrato, agora torna-se concreto. Em outras palavras, após a naturalização desses novos fragmentos de informações acerca da homossexualidade, retirados do universo reificado, esse novo conhecimento se tornará expressão da realidade. Essa será "A verdade" defendida pelo sujeito ou pelo grupo que é guiado pelos mesmos princípios que ele.
Por esse motivo, segundo Fry e Carrara (2016), alguns militantes e ativistas LGBTQIA+ insistem em interpretar a influência biológica como determinação, para assim conferir legitimidade genética às suas identidades sexuais. De modo semelhante, o grupo de conservadores continua negando as influências biológicas e se apegam a inúmeras outras evidências, também apresentadas pela ciência (Natividade 2006), para conferir legitimidade ao seu discurso e adequar essas novas informações trazidas ao seu sistema de crenças e valores.
No caso dos sujeitos deste estudo, acredita-se que a busca pela legitimação do seu discurso, além de promover uma imagem social positiva de si e negativa daqueles que permanecem na "prática homossexual", pretende justificar as tomadas de posição e os comportamentos relativos à decisão de mudar de identidade sexual.
É interessante ressaltar que tanto nossos entrevistados quanto os autores cristãos que discutem a homossexualidade (Calvani, 2010; Craig, 2010; Ellens, 2011; Proença, 2008; Santos, 2003; Stoot, 1993; Viula, 2010, dentre outros) reforçam a crença no caráter construtivista da homossexualidade e no caráter essencialista da heterossexualidade. Para eles, a homossexualidade trata-se de uma construção social desviante, enquanto a heterossexualidade é a condição natural do homem. Na lógica defendida por eles, todo ser humano nasce heterossexual; suas experiências e escolhas ao longo da vida é que vão definir se assim ele permanece ou se desvia do caminho traçado pela natureza divina.
O modo particularmente cristão de compreender e explicar a homossexualidade encontrado no relato dos participantes deste estudo vai ao encontro do que Maranhão (2015) chama de teologia cishet-psi-spi. Para ele "a teologia cishet-psi-spi se fundamenta em pressupostos da cisnormatividade e da heteronormatividade, amparados em pressupostos das áreas psi e concepções associadas à espiritualidade" (p. 54). O autor acredita que essa teologia, além da cis-heteronormatividade e a psicologização/psiquiatrização, se baseia na pecadologização da homossexualidade, compreendendo-a como aberração, perversão, abominação e possessão demoníaca. Para ele, essa concepção é claramente expressa em frases ditas pelos cristãos direcionadas às minorias sexuais, tais como "'devemos amar o pecador, mas odiar o pecado', ou 'venha como está, mas não permaneça como você é' e 'estamos aqui pra te ajudar a sair do lamaçal / poço / inferno do homossexualismo'" (Maranhão, 2015, p. 54).
Em um estudo que analisou o discurso presente em sites e blogs que se propunham a ajudar homossexuais a "abandonar" a homossexualidade, Silva e Menandro (2016) encontraram a mesma estrutura explicativa para a natureza homossexual. Natividade (2006), em uma análise realizada em textos normativos identificados em um mapeamento do universo editorial evangélico e de material on-line, identificou algumas afirmações recorrentes sobre a homossexualidade. O seu estudo mostrou que a homossexualidade, segundo as perspectivas pastorais evangélicas, é uma antinatureza, um problema espiritual e, sobretudo, trata-se de um comportamento aprendido.
Além da defesa de posicionamentos que vão ao encontro dos discursos analisados por Natividade (2006), Silva e Menandro (2016), também encontraram outras explicações para origem da homossexualidade tais como possessão demoníaca, excesso de exposição a materiais pornográficos, mãe dominadora, pai ausente e até influência do desejo dos pais em ter filhos do sexo oposto. Para os autores, muitos homossexuais apropriam-se de discursos dessa natureza e "acreditando no poder de predição destes fatores, procuram encontrar o ponto inicial onde sua sexualidade 'desviou-se dos caminhos da normalidade' para, a partir daí, realizar um exercício de regressão e tentar começar de novo" (Silva & Menandro, 2016, p. 7).
Reforçando a todo momento a ideia de que a homossexualidade é construída por inúmeros fatores, todos ambientais, os participantes, assim, justificam para si e para quem os inquere que é possível mudar, pois acreditam que tudo que não é biologicamente ordenado, tudo que foi processo de influência social, é passível de alteração.
O modo particular como os sujeitos do grupo investigado neste estudo representam a homossexualidade também pode influenciar diretamente os comportamentos e atitudes que eles direcionarão aos homossexuais. Um estudo realizado por Pereira, Torres, Falcão e Pereira (2013) sobre representações sociais acerca da origem da homossexualidade revelou que os indivíduos que baseavam suas crenças em preceitos religiosos, moralistas ou psicológicos, apresentaram maior predisposição a apoiar políticas discriminatórias contra homossexuais, tais como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de criança por esses casais. Esse dado revela-se preocupante, na medida em que quanto mais se difundem e se cristalizam representações de cunho construcionista e religioso acerca da gênese da homossexualidade, mais a sexualidade hegemônica ganha força para se tornar um potencial cerceador de direitos das minorias sexuais.
Ao mesmo tempo que a representação compartilhada por esse grupo permite que eles expliquem e interpretem sua realidade, ela possibilita a criação de uma identidade social positiva, não só para o grupo sexual hegemônico, que reserva para si o privilégio de não ter se "desviado da normalidade", mas principalmente dos respondentes, que, ao decidirem mudar de identidade sexual, são lidos socialmente como "prova viva" ou como argumento irrefutável de que seria possível realizar a mudança por meio do esforço. Logo, partindo das alegações de que foi possível mudar por esforço próprio, o grupo conclui que a homossexualidade não é biologicamente determinada, pois se fosse, a alegada mudança não teria meios para se concretizar. Além da possibilidade de serem socialmente valorados por voltarem a fazer parte da "normalidade", também são gratificados por poderem ser usados como instrumento de refutação das crenças contrárias à ideologia do grupo dominante.
Conforme Abric (2011), além da função identitária e da função de saber, as representações também têm a função de orientação e de justificação de comportamentos. Ao se conceber a homossexualidade como a manifestação de uma sexualidade antinatural ou como afronta à criação divina, pode advir daí práticas excludentes e discriminatórias em relação aos componentes desse grupo. Práticas essas que serão posteriormente justificadas com base nessa diferenciação intergrupal.
Considerações Finais
Embora haja divergência e contradições entre algumas opiniões dos entrevistados, o consenso mais forte entre eles é do caráter socialmente determinado da homossexualidade. Essa característica parece estar entre as mais importantes, inclusive por sua contribuição na atribuição de sentido aos demais elementos caracterizadores.
Este estudo mostrou o evidente processo de simplificação e dissociação de informações retiradas do quadro conceitual científico acerca da homossexualidade e a associação ao conhecimento prévio trazido pelos participantes, em especial o conhecimento derivado da moral cristã. Tal como ocorre na objetivação, no processo de assimilação, acomodação e consequente transformação do conceito, muita informação foi perdida e apenas aquelas que atendiam aos interesses do grupo foram associadas ao contexto do seu conhecimento imagético. A função justificadora das representações identificadas neste estudo serviu para apoiar o discurso que apregoa a possibilidade de mudança de identidade sexual e legitimar a prática de "abandonar a homossexualidade".
Mesmo considerando haver uma transformação sociocultural em relação à proliferação de informações acerca da homossexualidade, por meio de novelas, séries, filmes ou discussões televisivas, parece que os padrões identitários da sexualidade dissolvem-se muito lentamente. Com a emergência cada vez maior das múltiplas formas de expressão da sexualidade, espera-se que o grupo que pertence à sexualidade hegemônica sinta-se ameaçado e queira tornar mais rígida a barreira que protege seu status dominador. Contudo, acreditamos que a promoção do constante debate sobre o tema possa promover o acesso dessas minorias a seus direitos humanos básicos.
Referências
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Recebido em: 31/5/2017
Aprovado em: 30/6/2018
1 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersex, Assexuais. O "+" abarca os indivíduos que não se identificam com as pessoas pertencentes ao grupo LGBTQIA.