Revista Psicologia Organizações e Trabalho
ISSN 1984-6657
https://doi.org/10.5935/rpot/2021.2.19705
O rito de passagem do jovem aprendiz: uma leitura junguiana
The young apprentice's rite of passage: a jungian reading
El rito de iniciación del joven aprendiz: una lectura junguiana
Camila CostaI; Liliana Liviano WahbaII
IPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil
RESUMO
O impacto do trabalho no desenvolvimento psicossocial é um dos processos que marca a transição para a vida adulta. Para investigar essa transição, foi realizada a pesquisa sobre a compreensão da experiência laboral de jovens aprendizes a partir do entendimento junguiano de juventude e de ritos de passagem. Objetivou-se aferir as expectativas de futuro dos aprendizes e a relação com suas motivações, os manejos psicológicos das adversidades e a vinculação com figuras de apoio. Participaram do estudo 60 aprendizes. Os instrumentos utilizados foram a Escala de Expectativa de Futuro, um Questionário e uma entrevista semiestruturada com três participantes. Concluiu-se que a entrada do jovem no mundo ocupacional é motivada por expectativas de sucesso profissional e de ganhos financeiros, que enfrentam dificuldades e preconceitos, e que as figuras de apoio nessa aprendizagem profissional, entre elas o orientador, são percebidas como imprescindíveis para o engajamento diante das adversidades no ambiente de trabalho.
Palavras-chave: juventude, trabalho, psicologia analítica.
ABSTRACT
The impact of work on psychosocial development is one of the processes that determines the transition to adulthood. To investigate this transition, research was conducted on the understanding of the work experience of young apprentices based on Jung's understanding of youth and rites of passage. The objective was to measure the future expectations of the apprentices and the relationship with their motivations, the psychological management of adversity, and the connection with supporting figures. The study included 60 apprentices. The instruments used were the Future Expectation Scale, a questionnaire, and a semi-structured interview with three participants. It was concluded that the entrance of the young person into the occupational world is motivated by expectations of professional success and financial gains, that they face difficulties and prejudices, and that the supporting figures in this professional learning, including the advisor, are perceived as indispensable for engagement in the face of adversities in the work environment.
Keywords: youth, work, analytical psychology.
RESUMEN
El impacto del trabajo en el desarrollo psicosocial es uno de los procesos que marcan la transición a la vida adulta. Para comprender esa transición, se realizó una investigación sobre cómo viven la experiencia laboral los jóvenes aprendices, con base en el concepto de Jung sobre juventud y ritos de iniciación. Su objetivo fue medir las expectativas de futuro de los aprendices y la relación con sus motivaciones, el manejo psicológico de las adversidades y su vinculación con las figuras de apoyo. Participaron del estudio 60 jóvenes aprendices. Los instrumentos utilizados fueron la Escala de Expectativa de Futuro, un cuestionario y una entrevista semiestructurada con tres participantes. Se concluyó que la entrada del joven en el mundo laboral está motivada por sus expectativas de éxito profesional y de obtención de ingresos financieros, que en ese proceso se enfrenta dificultades y prejuicios y que se consideran imprescindibles las figuras de apoyo en ese aprendizaje profesional, entre ellas la del orientador, para su compromiso ante las adversidades en el ambiente laboral.
Palabras clave: juventud, trabajo, psicología analítica.
A inserção dos jovens no mercado de trabalho é uma preocupação de ordem global, pois o desemprego e o subemprego que afligem essa população prejudicam a economia e o bem-estar social. A impossibilidade dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento ofertarem empregos dignos a todos os seus jovens intensifica a desigualdade socioeconômica nesses países. De acordo com o documento elaborado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho, 2017) sobre as tendências globais de emprego para os jovens, uma transição satisfatória para o mercado de trabalho possibilita o alcance do sucesso profissional ao qual os jovens aspiram. Entretanto, muitos fatores podem ser obstáculos nessa trajetória, como a pouca quantidade de empregos oferecidos para esse público, a exigência do mercado por competências profissionais e a desinformação sobre o mundo laboral, bem como de suas peculiaridades. Segundo o mesmo documento, essa transição pode ser propiciada durante a escolarização por meio de uma educação associada à formação para o trabalho.
A passagem da escola para o mundo laboral se constitui em um estágio crítico para muitos jovens, especialmente os de baixa renda, que anseiam por um emprego estável e satisfatório. Nos países cuja renda per capita é considerada alta, esse movimento geralmente culmina em um emprego assalariado e legalmente seguro. Em contrapartida, nos países onde a renda per capita é baixa, uma parcela significativa dos jovens realiza essa transição por meio de empregos informais (Ministério das Relações Exteriores, 2016).
Ibarrarán, Kluve, Ripani & Shady (2015) estudaram os impactos a longo prazo de um programa de aprendizagem profissional na carreira de jovens residentes na República Dominicana, por meio de um estudo experimental e longitudinal com 3.200 jovens, que foram acompanhados no mercado de trabalho por seis anos, após terminarem o processo de formação profissional. Os resultados do estudo apontaram que os homens que concluíram esse programa se mantiveram por mais tempo no mercado formal do que aqueles que não passaram por esse processo. Já as mulheres apresentaram ganhos salariais maiores do que as que não passaram por uma formação como essa. Com base nesse estudo, os autores concluíram que esses programas sociais acarretam resultados profissionais positivos a longo prazo por possibilitarem que seus participantes iniciem a carreira no mercado de trabalho formal; propiciam o desenvolvimento de habilidades sociais entre os jovens para o mercado de trabalho, tais como a liderança e resolução de conflito.
No Brasil, o programa Jovem Aprendiz reúne as políticas públicas relativas à inserção de jovens no mercado de trabalho. Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais (2019), o programa é regulamentado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e tem como missão a inclusão social de jovens de baixa renda por meio da atividade laboral. É realizado por duas instituições: a instituição qualificadora que, sob orientação pedagógica, visa a oferecer conhecimentos acerca do mercado de trabalho mediante uma formação teórico-profissionalizante; e pela instituição empregadora, na qual os aprendizes desenvolvem as atividades ocupacionais de acordo com a Lei da Aprendizagem.
A fim de verificar a contribuição ocupacional para os participantes do programa Jovem Aprendiz, Villar & Mourão (2019) realizaram um estudo quase-experimental com 509 aprendizes, com idades entre 15 e 18 anos. A pesquisa foi realizada em dois momentos distintos da formação profissional, no início e seis meses depois. Os resultados indicaram que o programa favorece o desenvolvimento profissional, a empregabilidade e a autoeficácia, portanto, contribui positivamente para a autoestima do jovem, visto que ele passa a projetar-se em um futuro profissional mais satisfatório se comparado com os jovens não inseridos legalmente no mercado de trabalho.
Há, entretanto, adversidades enfrentadas pelos jovens aprendizes no ambiente de trabalho. Luz, Turte-Cavadinha, Fisher & Turte-Cavadinha (2014) realizaram um estudo qualitativo com 30 jovens trabalhadores, com idades entre 15 e 20 anos para investigar as situações laborais percebidas por eles como violência psicológica. Os autores verificaram na fala dos participantes aspectos positivos e negativos acerca do ambiente ocupacional no qual os jovens estavam inseridos. Os entrevistados, ao mesmo tempo em que perceberam situações positivas nos relacionamentos estabelecidos no local de trabalho, também relataram inúmeras situações de mal-estar, como humilhações verbais, abusos de poder, constrangimento e assédio sexual.
Paralelamente, outros pesquisadores procuraram identificar estratégias de coping e de resiliência para o enfrentamento de dificuldades. Oliveira & Godoy (2015) analisaram o processo de resiliência de 29 aprendizes, com idades entre 15 e 21 anos, e identificaram algumas dessas estratégias sendo adotadas pelos jovens trabalhadores no manejo das adversidades presentes no ambiente ocupacional. Entre elas, o estabelecimento de vínculos fraternais com os colegas de trabalho, bem como procurar sentir-se bem consigo mesmo e projetar-se em um futuro mais satisfatório foram os meios que auxiliavam os aprendizes a continuarem resilientes diante dos problemas presentes no ambiente laboral.
Acrescida à importância dos relacionamentos positivos no ambiente de trabalho para o desenvolvimento ocupacional do jovem, verificada no estudo de Oliveira & Godoy (2015), Lapa (2007) pesquisou a influência do(a) orientador(a)1 no processo de aprendizagem profissional. Por meio de um questionário online e de entrevistas semiestruturadas com 17 orientadores de jovens aprendizes, a pesquisadora observou a imprescindibilidade da presença de um(a) orientador(a) como mentor(a) que contribuísse com as pretensões profissionais dos jovens inseridos neste programa social. A função do(a) orientador(a), neste caso, consistiria em compreender as necessidades dos jovens, além de seus anseios e dúvidas acerca das atividades laborais e das problemáticas alheias à cultura organizacional da empresa.
Há autores que destacam os ganhos obtidos, apesar dos empecilhos existentes no exercício de uma atividade laboral na juventude. Os aprendizes consideram a formação ocupacional como uma oportunidade de adquirir amadurecimento, tanto pessoal quanto profissional. Alves e Albaneses (2016) indicam que as práticas institucionais de programa sociais nesse âmbito têm consequências na imagem que o adolescente constrói de si, no sentido de se reconhecerem mais responsáveis, maduros, autoconfiantes e orientados para construir um projeto de vida.
O panorama de investigações apresentado (Alves & Albaneses, 2016; Lapa, 2007; Luz et al., 2014; Oliveira & Godoy, 2015; Villar & Mourão, 2019) ensejou a elaboração de uma pesquisa que complementasse o estudo das demandas dessa população na entrada no mercado de trabalho a partir de uma compreensão junguiana sobre juventude e ritos de passagem. O percurso para entendimento da experiência laboral de jovens aprendizes levou em consideração: o impacto da aprendizagem profissional na percepção e projeção de si no futuro; a influência dos relacionamentos estabelecidos no ambiente de trabalho para o engajamento do jovem no programa; as estratégias de coping estabelecidas diante das adversidades derivadas da atividade ocupacional e a importância da figura do orientador como um mentor profissional.
Objetivos
Para compreender a experiência dos jovens2 participantes do programa Jovem Aprendiz à luz da psicologia analítica - objetivo geral -, formularam-se dois objetivos específicos. O primeiro buscou estabelecer a relação entre a expectativa de futuro dos aprendizes com as suas motivações para trabalhar, os seus manejos psicológicos adotados diante das adversidades advindas da situação laboral e com as suas figuras de apoio presentes no processo de aprendizagem profissional. Aplicou-se, neste primeiro objetivo, um método quantitativo. O segundo objetivo específico procurou aferir a percepção dos jovens acerca da experiência de ser um jovem aprendiz no mercado de trabalho por meio de três entrevistas semiestruturais e individuais. Para esse objetivo, aplicou-se um método qualitativo.
Base Teórico-Conceitual
A juventude é considerada uma complexa interação entre os aspectos psicodinâmicos, maturacionais e culturais que distinguem essa trajetória das demais. Os aspectos psicodinâmicos da juventude realçam que a principal tarefa dessa trajetória consiste na formação de um senso de identidade e, para isso, é necessária a separação psicológica do mundo parental bem como o engajamento na formação de uma identidade segundo os próprios valores (Bovensiepen, 2010).
Frankel (1998) complementa que a elaboração das transformações e das mortes simbólicas, perpassadas ao longo da juventude, necessitam de ritos de passagem que se apoiam no simbolismo do herói, oferecendo o encorajamento psíquico necessário para enfrentar as inúmeras e intensas mudanças psicobiológicas e psicossociais dessa trajetória. O autor enfatiza a importância da cultura oferecer rituais institucionalizados para acolher o ímpeto nas experiências iniciáticas, pois, caso contrário, os jovens criam sozinhos os seus próprios ritos sem o amparo da tradição cultural e da orientação dos adultos. Nessa direção, Byington (2017) descreve a ativação do simbolismo do herói na dinâmica psíquica, proporcionando o encorajamento necessário para que o jovem possa superar as vicissitudes específicas dessa trajetória e, consequentemente, enfrentar os dilemas presentes nos diferentes contextos nos quais está inserido.
A necessidade de estabelecer ritos que auxiliem na transição durante o desenvolvimento está presente na civilização desde épocas longínquas, pois possibilitam a elaboração da morte simbólica de um estado de consciência para um novo nascimento psicológico. Os rituais promovem uma sensação de pertencimento à comunidade e motivação espiritual para enfrentar as dificuldades inerentes às mudanças ao longo do desenvolvimento, assim como o fortalecimento da consciência. Atualmente, os jovens se despedem da infância, frequentemente, sem o auxílio dos ritos de passagem socialmente sancionados, buscando suas próprias formas de configurar situações iniciáticas, como o uso de substâncias nocivas e até mesmo as tentativas autodestrutivas como uma prova de coragem (Wahba & Bloise, 2017). Em uma pesquisa realizada por Brêtas, Moreno, Sala, Vieira e Bruno (2008) sobre as impressões dos jovens acerca do que poderia representar um ritual de passagem, uma das respostas mais frequentes no discurso dos entrevistados foi a inserção no mercado de trabalho, visto que isso representa para eles uma mudança social em suas vidas.
Método
Participantes
A pesquisa contou com uma amostra intencional, composta de 60 jovens (28 do sexo feminino e 32 do sexo masculino), com idades entre 18 e 21 anos, todos residentes no município de São Paulo, participantes do programa Jovem Aprendiz e inseridos no mercado de trabalho há, no mínimo, seis meses antes da realização da pesquisa.
Na primeira etapa do estudo, os participantes foram recrutados pelas instituições mediante os critérios de seleção da pesquisa. Os participantes estavam distribuídos em três diferentes instituições pedagógicas especializadas em inserir e acompanhar jovens aprendizes no mercado de trabalho. Participaram 17 jovens da primeira instituição, 24 aprendizes da segunda e 19 jovens da terceira.
Para compor os participantes da segunda etapa, o critério utilizado foram as respostas dos jovens à questão sobre como eles avaliam a instituição qualificadora em que estavam inseridos. Por meio da análise dessas respostas foram selecionados quatro participantes (dois do sexo feminino e dois do sexo masculino), dentre os jovens que apresentaram as respostas mais polarizadas, como "Concordo totalmente" e "Discordo totalmente". Posteriormente, foi realizado contato telefônico com esses aprendizes para convidá-los a participar da entrevista individual e semiestruturada. Todavia, apenas três aprendizes, uma de cada instituição e com idades entre 18 e 19 anos, aceitaram participar da entrevista.
A primeira entrevistada, no momento da realização do estudo, trabalhava em uma Unidade Básica de Saúde, localizada em um bairro de baixa renda do município de São Paulo. A segunda estava trabalhando em uma empresa de Engenharia, localizada na região central da cidade. Já a terceira entrevistada, era jovem aprendiz em uma empresa de Transporte Público, também localizada na região central.
Instrumentos
A fim de verificar a relação entre a expectativa de futuro dos jovens com suas motivações para trabalhar, figuras de apoio emocional e manejos psicológicos das dificuldades advindas da sua situação laboral, utilizou-se, na primeira etapa da pesquisa, a versão disponível na internet, reduzida e adaptada da Escala de Expectativa de Futuro (Souza, Pereira, Funck, & Formiga, 2013), e um questionário, especialmente elaborado, considerando os objetivos do estudo.
A Escala de Expectativa de Futuro possui 18 itens, distribuídos em três fatores (sucesso profissional e financeiro; condições da sociedade e realização pessoal), cada um com seis itens. O Questionário abordou 27 questões divididas em cinco temas: motivações para trabalhar; expectativas com relação ao programa Jovem Aprendiz; manejo psicológico das adversidades advindas da situação laboral; percepção do(a) orientador(a) no ambiente de trabalho; e auxílio de pessoas próximas para continuar neste programa de formação profissional. As respostas estavam no formato Likert, com as seguintes categorias: Discordo totalmente; Discordo; Não concordo, nem discordo; Concordo e Concordo totalmente. Este instrumento foi elaborado pela pesquisadora a partir de uma entrevista piloto semiestruturada com uma aprendiz de 17 anos e por meio de um questionário desenvolvido por Silva (2016) em uma pesquisa sobre o acesso dos jovens aprendizes às oportunidades sociais. A entrevista piloto foi gravada, transcrita e, posteriormente, analisada por meio do método Análise de Conteúdo desenvolvido por Laurence Bardin (2015).
Para compreender a experiência de um jovem aprendiz no mercado de trabalho, a entrevista semiestruturada contou com as seguintes perguntas de corte: "por que o trabalho é importante para você?"; "por que você continua trabalhando?"; "em sua opinião, o programa de aprendizagem pode lhe ajudar a alcançar suas aspirações profissionais?; "você poderia contar como foi seu primeiro dia de trabalho como jovem aprendiz? Conte-me um momento marcante deste dia".
Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
Após o contato inicial com as três instituições, foi apresentada a Carta de Informação juntamente com a Declaração de Conhecimento para os coordenadores. Após obter a autorização para a realização do estudo, procedeu-se à pesquisa. A Escala de Expectativa de Futuro e o Questionário foram aplicados em um único dia em cada uma das três instituições participantes da pesquisa. Posteriormente, foram realizadas as entrevistas individuais e semiestruturadas com três aprendizes.
O Projeto de Pesquisa foi inscrito na Plataforma Brasil e obteve aprovação sob o parecer número 2.787.400 consoante aos requerimentos éticos em pesquisa envolvendo seres humanos preconizados pela Resolução CONEP 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, pela Resolução CNS/MS 510/2016 e pelo Regimento dos Comitês de Ética em Pesquisa da PUC-SP.
Procedimentos de Análise de Dados
O tratamento estatístico para o objetivo quantitativo processou-se em dois momentos: no primeiro, realizou-se a análise da frequência das respostas ao Questionário e à Escala de Expectativa de Futuro (E.E.F.). Posteriormente, atribuiu-se aos fatores da escala a qualidade de variáveis independentes e às respostas ao Questionário, a qualidade de variáveis dependentes. No segundo momento, procedeu-se à Análise de Correlação com coeficiente de Pearson entre as varáveis, por meio dos software SPSS 2.0. e SPAD.
Para analisar as entrevistas semiestruturadas, empregou-se a análise de conteúdo descrita por Laurence Bardin (2015). O primeiro passo da análise das entrevistas foi transcrevê-las na íntegra; em seguida, verificaram-se os núcleos de sentido presentes na fala das participantes sobre cada tema abordado na entrevista e, finalmente, examinaram-se esses núcleos de sentido a fim de identificar a expressão de um significado comum entre eles. A partir dessa análise, extraíram-se os temas presentes no discurso das três entrevistadas.
Resultados e Discussão
Os resultados englobam as informações obtidas por meio das medidas estatísticas e de categorias temáticas obtidas a partir das entrevistas semiestruturadas, estabelecendo conexões entre ambas. Por meio da análise de conteúdo das entrevistas semiestruturadas foram criadas categorias de análises com os temas que nortearam as entrevistas. A partir das respostas das entrevistadas, criaram-se subcategorias (Tabela 1).
De acordo com os dados estatísticos, Tabela 2, o fator da Escala de Expectativa de Futuro acerca do sucesso profissional e financeiro está fortemente relacionado com dois temas do Questionário: motivações para trabalhar e manejo das dificuldades advindas da situação laboral. Esse resultado foi obtido por meio do cruzamento entre os três fatores da E.E.F com as 27 questões do Questionário.
As respostas obtidas nas entrevistas semiestruturadas ao tema das motivações para entrar no programa Jovem Aprendiz apresentam analogia com os resultados da Tabela 2. Segundo as jovens entrevistadas, o desejo de obter sucesso profissional no futuro se constituiu na principal razão para elas entrarem em um programa de aprendizagem profissional, pois reconhecem a necessidade de capacitar-se profissionalmente e adquirir amadurecimento pessoal para alcançar seus objetivos ocupacionais.
A aspiração dos participantes em obter o sucesso profissional almejado e a independência financeira desejada representam a necessidade sentida por eles em romper a relação de dependência infantil com os pais bem como desenvolver uma identidade pautada nos próprios valores. Contudo, as adversidades enfrentadas no ambiente laboral tornam esse processo de emancipação muito complexo, o que leva o jovem a se inspirar em histórias de pessoas que superaram e obtiveram êxito nesse decurso profissional.
Em decorrência da complexidade em lidar com essas intensas transformações já citadas, Frankel (1998) postula que uma das peculiaridades dessa trajetória do desenvolvimento é a idealização de certos adultos como inspiração para o estabelecimento da própria identidade. Segundo o autor, a formação da identidade ocupa um lugar central na juventude, período em que a riqueza exploratória de maneiras de se apresentar ao mundo alicerça a resiliência da identidade como adulto.
A Tabela 3 apresenta as correlações entre os diferentes temas do Questionário. Observa-se que as motivações para trabalhar dos aprendizes pesquisados correlacionaram-se com os manejos psicológicos adotados frente às adversidades da situação laboral. A expectativa dos jovens com relação ao programa relacionou-se com o manejo psicológico adotado por eles diante das adversidades vivenciadas no ambiente de trabalho, especificamente com os esforços deles em não deixar que as emoções interfiram na execução de suas tarefas ocupacionais. Essas expectativas também apresentaram correlação forte com as questões sobre a percepção do(a) orientador(a) como uma figura de apoio emocional presente na esfera laboral. A figura do orientador, por sua vez, correlacionou-se com a importância do apoio psicológico das pessoas próximas para o engajamento do jovem neste processo de formação profissional.
Com relação ao tema do Questionário sobre o manejo psicológico das adversidades advindas da situação laboral de trabalho, a análise da frequência das respostas, Figura 1, apontou que as estratégias de coping mais utilizadas pelos pesquisados referem-se a: pensar que todas as dificuldades podem servir como ensinamentos; esforçar-se para não deixar que o emocional atrapalhe na execução das atividades ocupacionais e ter esperança de que no futuro obterão um emprego mais satisfatório.
A necessidade de projetar-se em um futuro mais satisfatório como uma das estratégias de coping adotadas pelos participantes também foi verificada na pesquisa de Oliveira & Godoy (2015) sobre o processo de resiliência dos jovens aprendizes. Segundo esses pesquisadores, o investimento em relacionamentos positivos com familiares e amigos, o estabelecimento de vínculos com figuras fraternais no ambiente de trabalho e o projetar-se em um futuro profissional mais satisfatório, são meios que auxiliam os jovens a continuarem resilientes diante das adversidades laborais. Na pesquisa realizada verificou-se que os estímulos e suportes de figuras de apoio eram encontrados, também, em pessoas fora das instituições empregadoras.
A semelhança nos resultados sobre estratégias de coping adotadas por jovens no ambiente ocupacional indica que os aprendizes reconhecem a imprescindibilidade de manejar as dificuldades de acordo com o código de conduta propagado pela organização laboral e de manter o engajamento no trabalho, a fim de alcançar o sucesso profissional almejado. No entanto, tal reconhecimento deriva de forte pressão externa, e a falta de maturidade e desconhecimentos necessários para enfrentar as atribulações decorrentes desse esforço podem produzir tensão e sofrimento psicológico.
Na análise das entrevistas semiestruturadas, verificou-se o impasse emocional decorrente do choque de classes e de repertórios culturais vivenciados pelos aprendizes no ambiente laboral. A principal adversidade relatada pelas três jovens entrevistadas consiste no enfrentamento da desvalorização por serem aprendizes, visto que o nome "jovem aprendiz" carrega consigo um preconceito social, o qual leva seus colegas de trabalho a acreditarem que todo jovem participante desse programa, por advir de uma família de baixa renda, não consegue desenvolver as atividades ocupacionais de acordo com o esperado pela empresa. Vale salientar que os jovens inseridos nesse programa social, em sua maioria, estudam em escolas com ensino precário e frequentam ambientes com pouco estímulo cultural.
A investigação sobre as figuras de apoio emocional presentes no processo de formação profissional dos aprendizes apontou que o(a) orientador(a) é considerado(a) a principal figura de apoio presente no ambiente. A percepção do aprendiz sobre seu/sua orientador(a) como alguém compreensivo, que lhe transmite ensinamentos sobre o mundo do trabalho e acredita em sua capacidade para desenvolver as atividades ocupacionais, faz com que este se torne um(a) mentor(a) e uma inspiração profissional para o aprendiz (Tabela 4)
Os anseios idealistas são componentes psicológicos estruturantes da juventude e se expressam na busca - tanto consciente quanto inconsciente - , de pessoas e de personagens que possam ser idealizados e admirados; neste caso, representados por um mentor mais velho e membro bem-sucedido da comunidade (Frankel, 1998). O aprendiz percebe o(a) orientador(a) como alguém que já superou os dilemas da juventude e obteve êxito profissional almejado, portanto, uma pessoa merecedora de admiração e fonte de inspiração. Assim, o(a) orientador(a) auxilia o desenvolvimento do aprendiz em dois aspectos: tanto no âmbito ocupacional quanto no âmbito emocional, ao instigar a resiliência necessária para a manutenção do engajamento deste jovem em seu percurso no mundo do trabalho.
O modelo de profissional aspirado pelos aprendizes é alvo de projeções de figuras parentais e, concomitantemente, representa para esses jovens a possibilidade de um futuro diferenciado de suas origens familiares humildes, as quais, muitas vezes, são marcadas por trabalhos sem reconhecimento social. A presente pesquisa abre a reflexão sobre como oferecer suporte a esses "heróis sociais" trabalhadores, os quais, no início da juventude, buscam traçar um destino diferenciado em um meio no qual as necessidades psicológicas são consideradas irrelevantes e relegadas ao preconceito.
É preciso considerar que a inserção no mundo do trabalho exige que o jovem se adapte sem ter claro qual é o script comportamental mais adequado para o novo ambiente. O contexto organizacional possui um corpo de regras e de condutas que, somente em parte, são explícitas e compõem a cultura informal da empresa. A falta de conhecimento dessas regras implícitas gera, muitas vezes, constrangimento e sentimento de inadequação, fazendo que o jovem se sinta impotente e desajustado.
O(a) orientador(a), ao facilitar a compreensão do jovem sobre essas dificuldades na empresa, auxilia o(a) aprendiz a adaptar-se ao clima organizacional por meio do desenvolvimento de um novo repertório comportamental, favorecendo um fortalecimento emocional, a integração no mundo laboral e a construção de uma identidade profissional.
Considerações Finais
Verificou-se, a partir dos objetivos propostos, que os jovens reconhecem a aprendizagem profissional e a necessidade de manejar adequadamente as adversidades presentes no ambiente laboral como imprescindíveis para alcançar suas expectativas de sucesso profissional e financeiro no futuro. Figuras de apoio, entre elas o(a) orientador(a), auxiliam na resiliência necessária para que o aprendiz supere as dificuldades advindas da situação de trabalho e mantenha o engajamento em sua jornada no mundo laboral.
Uma ampla discussão sobre a relevância destes programas profissionais permanece aberta, assim como a sobrecarga que a atividade ocupacional acarretaria o início da juventude. Os jovens da pesquisa enfrentaram desafios e tensões psicológicas, mas, na maioria, reconhecem que os treinamentos são importantes para alcançar suas metas aspiradas.
A relevância científica deste estudo aponta para a possibilidade de ações voltadas para o favorecimento da saúde mental dos aprendizes, destacando os apontamentos sobre a compreensão do desenvolvimento psicológico na juventude e de suas expectativas de futuro. Em termos práticos, propõe-se o desenvolvimento de oficinas de compartilhamento de experiências com participantes do programa Jovem Aprendiz, acolhendo as suas vivências e dificuldades, a fim de auxiliá-los no desenvolvimento de habilidades para a transição para o mundo adulto de interação social e atividade laboral.
Com relação à relevância social desta pesquisa, abrem-se perspectivas para compreender o impacto de ações que visam a melhorar as políticas públicas voltadas à inserção do jovem no mercado de trabalho, bem como a importância de figuras de apoio no ambiente ocupacional. Reconhece-se ainda a importância de fornecer meios de enriquecer vivências que fortaleçam a identidade e a mobilização na escala social, almejada por esses e essas jovens trabalhadores(as).
Finalmente, entender a entrada do jovem aprendiz no mundo laboral como um rito de passagem significa ampliar a compreensão dessa experiência e percebê-la como um processo de formação da identidade em que um projeto profissional está inserido. A iniciação, de acordo com a psicologia analítica, constitui-se numa necessidade psíquica por favorecer uma transformação psicológica a partir da integração de novos conteúdos à consciência (Wahba & Bloise, 2017). Assim como nos ritos iniciáticos, há na passagem do adolescente pelo programa Jovem Aprendiz os seguintes aspectos: um ancião mentor, retratado pelo(a) orientador(a), uma motivação interna, expressada nas expectativas de futuro acerca do sucesso profissional, e obstáculos a serem superados, como provar capacidade para desempenhar as atividades ocupacionais e manter o engajamento perante os conflitos emocionais decorrentes dessa experiência laboral.
Ao final desse percurso espera-se que o aprendiz tenha desenvolvido um repertório comportamental que o apresente como um profissional adequado ao mercado de trabalho, assim como se espera que, ao final de um rito de passagem, o iniciado seja reintegrado em uma comunidade.
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Informações sobre as autoras:
Camila Costa
Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, 2842, apartamento 145
01402-000 São Paulo, SP, Brasil
E-mail: camilapsico123@gmail.com
Liliana Liviano Wahba
E-mail: lilwah@uol.com.br
Submissão: 27/12/2019
Primeira decisão editorial: 22/02/2021
Versão final: 08/03/2021
Aceite: 04/05/2021
1 O orientador é o profissional responsável pelo trabalho do jovem aprendiz na instituição empregadora.
2 Nesta pesquisa adotou-se a concepção da Organização Mundial da Saúde sobre juventude, a qual é considerada um fenômeno biopsicossocial que é iniciado aos 15 anos e perdura até os 24 anos (Vasconcellos, 2019).