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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.33 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2021
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n02A02
SEÇÃO TEMÁTICA - MATERNIDADE, VICISSITUDES DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL E REDES DE APOIO
Infâncias, teorias queer, psicanálises: Para além do princípio do progresso e da heteronormatividade
Childhoods, queer theories, and psychoanalysis: Beyond the progress principle and heteronormativity
Infancias, teorías queer y psicoanálisis: Más allá del principio del progreso y de la heteronormatividad
Daniel Boianovsky KvellerI; Rafael CavalheiroII; Léo TietboehlIII
IDoutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. dkveller@gmail.com
IIDoutorando em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. rafaelatler@gmail.com
IIIDoutorando em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. leokt2@gmail.com
RESUMO
Este artigo parte da relação entre gênero, sexualidade e psicanálise para propor uma reflexão acerca dos conceitos de trauma e de pulsão de morte. Em um primeiro momento, exploramos como a heteronormatividade pode ocasionar efeitos traumáticos. Para tanto, tomamos como referência o romance "O Fim de Eddy", de Édouard Louis, e a leitura de Judith Butler sobre a teoria freudiana do trauma. A seguir, do ponto de vista de uma análise cultural, sublinhamos a potência disruptiva e desestabilizadora da queeridade em relação a algumas estratégias discursivas conservadoras que circulam pelo espaço público. Nessa segunda seção, dialogamos especialmente com os apontamentos de Lee Edelman sobre a pulsão de morte. Em seu conjunto, o artigo enfatiza o que pode se relacionar à ideia de criança queer, visto que é frequentemente em nome de uma suposta "infância saudável" e de um desenvolvimento psicossexual "normal" que discursos heteronormativos e conservadores têm ganhado visibilidade no cenário político brasileiro contemporâneo.
Palavras-chave: psicanálise; teoria queer; infância; trauma.
ABSTRACT
This article builds on queer studies and psychoanalysis to reflect upon the concepts of trauma and death drive. First, we examine the traumatic effects of heteronormativity. To do so, we engage with Édouard Louis' novel "The End of Eddy", and Judith Butler's reading of Freudian trauma theory. Then, in a broader cultural analysis, we suggest how queerness itself can disrupt and subvert conservative discursive strategies that have been circulating in the Brazilian public sphere. In this second section, we dialogue specifically with Lee Edelman's theorization of the death drive. Ultimately, we emphasize the idea of queer children, considering that these heteronormative discourses are articulated and reproduced in the contemporary Brazilian political context precisely in the name of a presumed "healthy" childhood and a "normal" psycho-sexual development.
Keywords: psychoanalysis; queer theory; childhood; trauma.
RESUMEN
Este artículo parte de la relación entre género, sexualidad y psicoanálisis para proponer una reflexión acerca de los conceptos de trauma y pulsión de muerte. En primer lugar, exploramos cómo la heteronormatividad puede causar efectos traumáticos. Para ello, tomamos como referencia la novela "Para acabar con Eddy Bellegueule", de Édouard Louis, y la lectura de Judith Butler sobre la teoría freudiana del trauma. Asimismo, desde el punto de vista de un análisis cultural, subrayamos el poder disruptivo y desestabilizador de la queeridad con relación a estrategias discursivas conservadoras que circulan en el espacio público. En esta segunda sección, dialogamos especialmente con las notas de Lee Edelman sobre la pulsión de muerte. En su conjunto, el artículo enfatiza la idea de niños queer, ya que a menudo es en nombre de la supuesta "infancia sana" y del desarrollo psicosexual "normal" que los discursos heteronormativos y conservadores han ganado visibilidad en el escenario político brasileño contemporáneo.
Palabras clave: psicoanálisis; teoría queer; infancia; trauma.
Introdução
Embora as críticas dirigidas à psicanálise pelos estudos feministas e queer1 contem pelo menos 60 anos, é recente a abertura dos psicanalistas brasileiros para uma reflexão significativa sobre suas implicações. Foi apenas nos últimos dez anos, e nos últimos cinco com mais intensidade, que assistimos a um crescimento de pesquisas psicanalíticas brasileiras dispostas a sustentar um diálogo sério e politicamente implicado (Cavalheiro, 2019). Tal fresta, ainda que se faça com certo atraso e que provavelmente exija mais tempo para ultrapassar fronteiras acadêmicas, mostra ser de extrema importância. Devemos creditar-lhe a iniciativa de fazer perceptível o conservadorismo que dominou as instituições psicanalíticas ao longo do século XX e que foi responsável, por exemplo, pela exclusão de candidatos homossexuais à formação psicanalítica (Bulamah, 2016), pelo posicionamento público reacionário de psicanalistas contra pautas levantadas por movimentos sociais (Quinet, 2016) e pela distribuição moralista de diagnósticos que associavam apressadamente pacientes homossexuais e transexuais à perversão ou à psicose (Cunha, 2013; Ayouch, 2015).
Este escrito trabalha com dois conceitos que entendemos como complementares entre si e cruciais para pensarmos as sobreposições entre psicanálise, gênero e sexualidade: o trauma e a pulsão de morte. Num primeiro momento, exploramos as correlações entre a heteronormatividade2 e seus efeitos traumáticos. A partir de uma análise sobre O Fim de Eddy, romance de Édouard Louis, debruçamo-nos sobre as possibilidades de uma elaboração desses efeitos a partir de sua própria repetição. Colocamos esta como peça chave e essencial de um processo de diferenciação, ao mesmo tempo que questionamos as chances de ver dissolvida tal intrinsecabilidade. A seguir, do ponto de vista de uma análise cultural, apontamos em que medida o queer pode ser pensado como uma figuração da pulsão de morte, e assinalamos a potência disruptiva e desestabilizadora dessa equação em relação a estratégias discursivas conservadoras que circulam pelo espaço comum.
Baseamos nossa análise nas teorizações de dois autores frequentemente associados aos estudos queer e fortemente influenciados pela psicanálise: Judith Butler e Lee Edelman. Sugerimos, por meio dessa escolha, que os estudos sobre gênero, sexualidade e psicanálise não devem se concentrar apenas em promover um diálogo entre os campos, mas também em apontar as conexões que já existem entre eles e, no limite, sua inseparabilidade. As abordagens de Butler e Edelman, embora sejam informadas por teorias e conceitos semelhantes, nesta análise funcionam pelo avesso uma da outra; esperamos que o tensionamento decorrente, mais do que uma conciliação teórica e política, possa transmitir algo do impasse e da irredutibilidade colocada tanto pelo termo queer, quanto pela própria teoria psicanalítica do trauma.
Enfatizamos a relação entre queer e infância porque é frequentemente em nome de uma suposta "infância saudável" e de um desenvolvimento psicossexual "normal" que discursos conservadores e heteronormativos são articulados e reproduzidos. Esse é obviamente o caso do nosso país, como atestam polêmicas envolvendo o fechamento de exposições de arte e a tentativa de proibir os debates sobre gênero em escolas públicas. Em ambos os casos, está em jogo a tentativa de evitar um desvirtuamento, uma suposta "perversão do desenvolvimento infantil" - o que revela, pelo seu avesso, a naturalização da heterossexualidade e da cisgeneridade como parâmetros de normalidade psíquica.
Injúria e trauma
O Fim de Eddy (Louis, 2018) é uma narrativa autobiográfica sobre a difícil infância e adolescência de Édouard Louis no vilarejo de Hallencourt, norte da França, durante os anos 1990 e início dos anos 2000. Trata-se de um romance curto em que momentos de recordações afetivas e fragmentos ensaísticos são costurados para descrever e analisar como a desigualdade econômica, a homofobia, o sexismo e a xenofobia interferiram diretamente no cotidiano da família do autor, construindo, de fato, seu cotidiano, suas formas de ver e de se relacionar com o mundo. O amálgama entre memória e ensaio, brilhantemente trabalhado por Louis, lembra outras obras contemporâneas de escritores franceses gays, como Retour à Reims, de Didier Eribon (2009). Essa conexão, como veremos a seguir, não é meramente casual.
A sexualidade é central nas recordações de Louis (2018). Devido aos trejeitos afeminados, associados desde cedo pelos colegas e pela família à homossexualidade, Eddy sofreu inúmeras formas de rejeição e agressão, as quais, na condição de leitores, somos convidados a testemunhar. Logo nas primeiras páginas do capítulo de abertura, o autor descreve uma cena vivida na escola onde estudava, quando dois rapazes mais velhos se aproximam e o interpelam:
Me fizeram a pergunta que eu em seguida passei a me repetir incansavelmente, por meses, por anos, É você o veado? Quando a pronunciaram eles a inscreveram em mim para sempre, como um estigma, aquelas marcas que os gregos infligiam a ferro em brasa ou a faca no corpo dos indivíduos desviantes, perigosos para a comunidade. E percebi a impossibilidade de me desfazer desse estigma. (p. 15)
Em outra cena, um dos rapazes cospe em seu rosto:
O escarro desceu lentamente pelo meu rosto, amarelo e espesso, como esses catarros ruidosos que obstruem a garganta dos idosos ou doentes, de cheiro forte e nauseabundos. As risadas agudas, estridentes dos dois garotos Olha lá pegou a cara toda do filho da puta. O catarro escorre do meu olho até os meus lábios, quase entrando na minha boca. Não ouso limpar. Eu poderia fazer isso, bastaria uma esfregada de manga. Bastaria uma fração de segundo, um gesto minúsculo para que o escarro não entrasse em contato com meus lábios, mas eu não o faço, por medo de que eles se ofendam, por medo de que eles se irritem ainda mais. (p. 13)
Ao iniciar pela cena humilhante de um insulto que é recebido de forma aparentemente passiva, a narrativa destaca a importância da injúria na vida de crianças que desafiam normas de gênero e sexualidade. A cena se alinha com algumas reflexões de Didier Eribon (1999/2008, p. 25), autor que define o universo homossexual como um "mundo de injúrias". Mais precisamente, Eribon afirma que a injúria é o começo desse mundo, seu marco fundacional, já que termos pejorativos como "bicha" e "sapatão" não somente descrevem uma realidade já dada, mas, no próprio momento em que são proferidos, constituem o sujeito desviante e o mundo hostil ao seu redor. O "insulto é um veredito. É uma sentença quase definitiva, uma condenação perpétua com a qual vai ser preciso viver" (p. 28); nas palavras de Louis (2018, p. 15), "a gente nunca se acostuma às ofensas". Segundo Eribon (1999/2008), a injúria não é um enunciado meramente comunicativo ou constatativo. Aquele que insulta o faz em um exercício de dominação, ciente de que sua palavra terá o poder de inscrever sobre o sujeito-alvo a marca indelével da vergonha e da anormalidade.
Em seu comentário sobre a injúria, Eribon (1999/2008) reporta-se ao trabalho de Judith Butler, filósofa que também se dedicou a analisar o poder performativo da linguagem e, em especial, a capacidade dos discursos de ódio de ferir. Em Excitable Speech: A politics of the performative (1997), ela analisa de onde emana e o que sustenta esse poder; se a virulência desses discursos é inerente às suas expressões; se ela é de alguma forma conferida por alguém ou alguma instituição; se depende de quem pronuncia o discurso, de seu endereçamento, ou, ainda, do contexto social dos sujeitos envolvidos. A autora reflete acerca das propostas de proibição e punição legal para aqueles que repetem discursos de ódio, e questiona se a censura seria, de fato, uma maneira eficiente de barrar ou interromper as violências que se exercem por meio da linguagem. Por vias que guardam afinidades com as colocações de Michel Foucault (1976/2011) sobre a "hipótese repressiva", Butler argumenta que impor o silêncio não faria senão conferir ainda mais potência e visibilidade aos discursos de ódio. É no ensejo dessas associações que ela sugere que os sentidos ofensivos dessas palavras e expressões sejam, em vez de reprimidos, subvertidos: tal como a própria palavra queer foi apropriada e ressignificada até se tornar uma expressão de luta e de afirmação política da diferença.
A própria filósofa reconhece, no entanto, a aporia sob a qual se estabelecem tais proposições: se fosse simples subverter o sentido das expressões e palavras, por que ainda estaríamos nos deparando com incessantes repetições de discursos de ódio? Por que persiste sua capacidade de ferir? Butler (1997) responde a essas perguntas afirmando que a resistência à ressignificação se relaciona à história que os discursos de ódio e palavras ofensivas inevitavelmente carregam consigo. Não simplesmente a história do termo injurioso de acordo com diferentes tempos, contextos e desígnios, mas uma historicidade interna ao próprio insulto, uma sedimentação dos usos que se tornaram parte de si, uma repetição que congela e que confere ao insulto sua virulência. Nas palavras da autora, "não há nenhuma linguagem que seja capaz de se livrar de seu resíduo traumático, assim como não há nenhuma outra maneira de lidar com o trauma a não ser através do esforço árduo exigido para dirigir o rumo de sua repetição" (p. 38, tradução nossa).
As discussões sobre o trauma atravessam a obra freudiana, mas é em Além do Princípio do Prazer (Freud, 1920/2016) que encontramos as teorizações mais densas sobre o assunto. Nesse texto, publicado em 1920, Freud propõe como modelo um organismo primitivo, cujo aparelho psíquico é envolto por uma espécie de escudo que o protege de estímulos externos por meio de processos de bloqueio e filtragem. O trauma, entretanto, mostra sua particularidade pelo fator surpresa que lhe é intrínseco: o evento traumático gera um excesso de desprazer que rompe as capacidades para-excitatórias do escudo e termina por adentrar o aparelho psíquico de maneira inassimilável, como um corpo estranho. O aparelho psíquico passa a trabalhar pelas vias de uma repetição compulsiva na tentativa de promover ligações entre esse evento e a constelação de representações, e assim constituir um sentido propriamente dito para a vivência traumática.
A psicanálise sustenta um paradoxo ao considerar que a repetição do trauma pode oferecer as próprias possibilidades de sua elaboração: em um percurso de análise, é preciso repetir para que se possa parar de repetir; ou, ainda, é preciso repetir para que possa advir uma diferença. De forma análoga, Butler (1997) sustenta que é preciso que o discurso de ódio seja verbalizado - e não reprimido - para que ele possa ser subvertido. Como em um tratamento analítico, esse processo depende de um denso trabalho de elaboração e de uma disposição para perceber, na ou pela repetição mesma, as outras perspectivas ou formas narrativas que ela propicia.
Vale lembrar que, para Butler (1993), a própria abjeção tem efeitos traumáticos. Segundo a autora, o funcionamento da norma e da identidade heterossexual depende de um processo de exclusão constitutiva, ou seja, da criação simultânea de zonas abjetas em direção às quais são repelidos os sujeitos cujos corpos, identidades e desejos não se conjugam totalmente de acordo com o padrão normativo. A violência física e linguística é uma iteração materializante da própria condição ontológica dessa abjeção; ela opera como repetição do traçado das linhas de inteligibilidade que confere àqueles às suas margens a condição de não-ser. Em outras palavras, o que está em jogo na violência física ou linguística - no caso da injúria - é a repetição/reiteração das fronteiras que delimitam o que pode ser reconhecido como humano, uma vida digna de ser vivida. O "abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas 'inóspitas' e 'inabitáveis' da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do 'inabitável' é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito" (p. 3, tradução nossa).
No testemunho de Édouard Louis (2018), a repetição se materializa em diversos momentos. A mais óbvia, sem dúvida, é o fato de que Eddy continua se encontrando com seus dois colegas que o espancam sem demonstrar qualquer resistência: "eu fazia do silêncio meu melhor aliado e, de certa forma, cúmplice daquela violência" (p. 35). A única condição que Eddy estipula para continuar encontrando os dois alunos (uma condição combinada apenas consigo mesmo, evidentemente) é que esses encontros não sejam testemunhados por mais ninguém, uma vez que o fato de se "oferecer" como vítima é, para ele, um consentimento de sua condição de "bicha", "maricas". Parece-lhe suficiente apanhar escondido desde que o estigma não se espalhe entre outros colegas.
Outras reverberações da injúria são sua dificuldade em fazer amigos na escola - "o estigma era contagioso; ser visto como amigo do veado causaria má impressão" (Louis, 2018, p. 30, grifo do autor) -, a repulsa e a vergonha que sente do próprio corpo quando começa a sentir desejo por outros homens e, sobretudo, suas tentativas frustradas de tentar se ajustar às normas, forçando encontros amorosos com mulheres - ainda que não notasse qualquer desejo heterossexual - e vigiando minuciosamente seus modos de andar e falar para evitar a expressão de trejeitos afeminados. Um dos trechos mais impactantes da narrativa fala justamente sobre esta última questão:
Eu me repetia exatamente aquela frase, como se faz com uma oração, com aquelas exatas palavras - Hoje eu vou ser um cara durão (e eu choro enquanto escrevo estas linhas: choro porque eu acho essa frase ridícula e horripilante, essa frase que, durante anos, me acompanhou e que de certa forma ocupou, não creio que haja exagero em dizer isso, o centro da minha vida). (p. 131-132, grifo do autor)
Passa a acompanhar Eddy uma constante vigilância para não expressar um desejo proibido, o medo recorrente de ser descoberto e rejeitado, um jogo de visibilidade e invisibilidade que termina por cindir sua própria experiência entre aquilo que pode ser mostrado e vivido com honra e aquilo que deve ser escondido do passeio público, a vergonhosa "perversão" que não tem lugar na esfera social e, portanto, não deveria nem mesmo existir. O autor vive por anos nessa situação, acreditando que o esforço para criar um novo personagem para si poderia, em algum momento, efetivamente trazê-lo à vida: "a mentira era a única possibilidade para fazer surgir uma nova verdade" (Louis, 2018, p. 132).
Ao final do livro, Eddy é aprovado em uma escola de ensino médio e finalmente consegue sair de seu vilarejo. Não sabemos exatamente o que acontece após a fuga; podemos imaginar, apenas, que ele realizou o ensino médio e isso provavelmente lhe garantiu a continuidade do estudo nas esferas de graduação e pós-graduação. Algum tempo depois, ele troca seu nome, escreve O Fim de Eddy e compartilha suas lembranças, talvez como uma tentativa de ressignificar o sofrimento que elas lhe causaram na infância e na adolescência.
Existem muitos outros elementos sociológicos e literários a serem discutidos à luz desse curto e pungente romance. Nossas considerações apontam na direção de pensar o livro como uma tentativa de escritura do trauma; isto é, como uma tentativa de conferir um sentido, mesmo que transitório, capaz bordejar a experiência de abjeção. A escritura é, em si mesma, uma repetição da violência, mas uma repetição que permite a Édouard Louis produzir uma reflexão que, apesar da aparência acadêmica, tem seu maior valor no movimento afetivo em direção ao seu passado e ao passado de sua própria família.
O diálogo entre O Fim de Eddy, a psicanálise freudiana e as considerações de Judith Butler conduz, assim, à explicitação do caráter performativo do trauma: trata-se de uma experiência que não é plenamente reconhecida pelo sujeito como sua; o sujeito não detém controle sobre a experiência traumática, mas é a experiência que exerce um controle oblíquo e imprevisível sobre o próprio sujeito por meio das suas repetições literais e intempestivas. Só é possível ter notícias da experiência original em après-coup, mediante um movimento de elaboração que envolve um processo de transformação dessa experiência pelo próprio sujeito. Nesse sentido, podemos dizer que a repetição da vivência traumática funciona de maneira análoga à repetição das normas de gênero e sexualidade na teoria butleriana. Para Judith Butler (1990/2017), o sujeito não tem gênero - porque o gênero não é uma substância passível de posse ou mesmo uma identidade a ser revelada -, mas deve fazer referências gestuais, corporais e linguísticas às normas de gênero para que se torne inteligível. Nesse processo de referência imperativo e, por vezes, violento, o sujeito não só assimila o gênero, como também o transforma - daí a aposta de Butler na paródia como estratégia política. Como a repetição do trauma, a repetição do gênero é ao mesmo tempo uma citação e uma transformação de um elemento original inacessível. Em ambos os casos, o sujeito não pode ser pensado de maneira anterior à repetição, mas como aquilo que emerge justamente nesse limiar de indiscernibilidade. No caso específico de O Fim de Eddy, sugerimos que o sujeito em questão não é o autor do livro, Édouard Louis, nem mesmo seu "personagem", Eddy, mas o que se produz justamente na tentativa, tanto necessária quanto impossível, de substituir este por aquele. O relato traumático excede a própria capacidade de narração, tornando o processo opaco, vacilante, incompleto e pondo em questão a própria distinção entre autor e personagem (Butler, 2015).
A nosso ver, as questões de sexualidade e gênero podem ser (re)pensadas na psicopatologia psicanalítica à luz da leitura butleriana da teoria do trauma. Não se trataria mais de investigar a natureza da sexualidade humana ou seus supostos desvios homo ou transexuais. Como se viu ao longo do século XX, tal atitude acaba por reforçar estigmas, colando sujeitos em diagnósticos e enrijecendo a escuta. Parece-nos mais proveitoso discutir os efeitos constitutivos da violência que atinge aqueles que desafiam as normas de inteligibilidade de uma dada cultura, e como a escuta psicanalítica pode oferecer a possibilidade de um reposicionamento subjetivo diante da agressão, da injúria e das tentativas de exclusão simbólica; uma possibilidade de inscrição política no laço social e de tensionamento das fronteiras da abjeção (Kveller, 2019).
Ademais, se retomarmos os apontamentos de Butler (1997) sobre as possibilidades de subversão linguística, devemos inquirir se a clínica psicanalítica - que, entre outras coisas, propõe um movimento de "elaboração" - poderia aportar uma possibilidade de subverter a virulência da injúria e dos discursos de ódio. O que isso significaria do ponto de vista clínico? Como exatamente uma pessoa que tenha passado por uma experiência traumática de preconceito, discriminação e/ou violência associadas à diversidade de orientação sexual e de identidade/expressões de gênero pode ressignificá-la em análise? Seria a transferência um espaço de deslocamento e subversão política dos efeitos dessas violências?
Assumir essa proposta implica colocar-se de maneira atenta aos riscos de que se opere uma identificação imobilizante do sujeito com a posição de vítima, a qual não disporia de outros meios de reconhecimento social senão a revivescência constante dos efeitos da violência. Reconhecemos que tal deslize poderia tornar a análise do trauma um reforço moral do processo de vitimização (Fassin & Rechtman, 2010), suturando o inabitável e inacessível do trauma com a identidade fixa e monolítica da vítima. Encontramos em O Fim de Eddy, contudo, justificativas para apostar em outras possibilidades mais produtivas: que o traumático pode não apenas ser repetido, mas também subvertido, mesmo que de maneira instável, ambígua e sem garantias de apaziguamento.
Desafiando o progresso
No mês de setembro de 2017, duas polêmicas envolvendo exposições artísticas tomaram conta das manchetes de grandes tabloides brasileiros. Ainda na primeira quinzena, a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, que estava em cartaz há quase 30 dias no Santander Cultural, em Porto Alegre, foi cancelada após uma série de protestos em redes sociais. A mostra reunia 270 trabalhos de 85 artistas que, percorrendo o período de meados do século XX até os dias de hoje, abordavam temáticas relacionadas à diversidade sexual e de gênero. Algum tempo depois, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o registro audiovisual da performance La Bête, que envolve a participação de um homem nu, gerou controvérsias: próxima à apresentação havia uma criança, de cerca de quatro anos, que chegava a tocar o pé do artista.
Em ambos os casos, a polêmica acabou desdobrando-se em manifestações inflamadas e lideradas por uma parceria no mínimo inusitada: grupos religiosos e um movimento organizado de ativismo político que, paradoxalmente, de acordo com sua autodescrição, visa a mobilizar cidadãos em favor de uma sociedade mais livre. O ponto central nos argumentos daqueles que clamavam pelo fechamento das exposições foi o perigo que o conteúdo das obras supostamente poderia representar para as crianças. De acordo com os protestantes, tanto as imagens de crianças travestidas e afeminadas pintadas por Bia Leite na série Criança Viada, quanto a performance realizada por um artista nu, fariam apologia à pedofilia e à pornografia infantil.
Esses são exemplos recentes de uma estratégia discursiva cada vez mais prevalente no convulsionado cenário político brasileiro, e que traz questões da infância para o centro dos debates sobre gênero e sexualidade3. Trata-se de uma tática que opera pela produção de medo e pânico moral, que descontextualiza e mobiliza informações falsas para sugerir que os movimentos ligados à defesa da livre expressão da sexualidade estão na verdade impondo uma ideologia, convertendo pacíficas crianças em transexuais perversos e estimulando-as a se experimentarem em relações pedofílicas e homossexuais (Miskolci & Campanara, 2017). Como sublinha Miskolci (2007, p. 112), junto ao pânico moral advém uma sensação de que algo deve ser feito, normalmente relacionado com o fortalecimento do controle social, que varia desde promulgação de novas leis até a "condenação pública a determinados estilos de vida".
A infância aparece como vetor privilegiado e catalisa os discursos movidos por pânico moral - e essa é uma das razões pela qual nos ocupamos de teorizar sobre infâncias queer. Ao referir-se aos estudos da infância, Megg Rayara Oliveira (2017) argumenta que há uma concentração importante da literatura na projeção da infância como assexuada, branca e heterossexual, de modo que as infâncias "desviantes", além de serem subteorizadas, são lidas como perigosas. De acordo com a autora, "um menino afeminado coloca em risco um projeto de futuro, um empreendimento fadado ao fracasso. O futuro que importa anunciado por uma criança só pode ser aceitável se corresponder à norma cis heterossexual branca" (p. 114).
Um ponto interessante a ser destacado nessa estratégia discursiva - e o que nos leva a sublinhá-la num texto psicanalítico - é que argumentos de natureza similar já foram usados por psicanalistas para se opor a propostas levadas a cabo pelo movimento LGBT, como a autorização de pedidos de adoção feitos por casais homossexuais. Como aponta Quinet (2016, p. 194-195), os psicanalistas que tomavam essas posições falavam a partir da teoria psicanalítica para justificar sua posição: "estou convencido de que a criança se constrói pensando que ela é o resultado de um encontro entre um homem e uma mulher", sustenta um psicanalista. Um segundo afirma que filhos de pais homossexuais não passariam pela "crise edipiana". Outro, ao responder a um jornalista, pergunta "se algo lhe acontecesse, você concordaria que seus filhos fossem entregues a um casal homossexual?", e profetiza: "em 15 anos teríamos processos judiciários de filhos de homossexuais contra o Estado" (p. 194-195).
A ideia de que o avanço das pautas defendidas pelo movimento LGBT pode configurar um risco às fundações da cultura, como uma chaga que se prolifera perigosamente, talvez seja um dos motivos que levaram outros psicanalistas, dessa vez brasileiros, a retirar a transexualidade do rol das psicoses para pensá-la como uma "epidemia" - o que nos parece, diga-se de passagem, igualmente equivocado e politicamente desastroso (Jorge & Travassos, 2017). Tal posição demonstra que os argumentos citados por Quinet (2016) não indicam uma lógica superada, mas algo que resta, ainda, no funcionamento contemporâneo da psicanálise.
Contrassensos à parte, o ponto fundamental a ser analisado, na esteira das contribuições de Lee Edelman (2004), é que a estratégia discursiva em questão, ao projetar essa imagem específica da infância na base das condições de desenvolvimento e progresso da civilização - uma Criança gerada por um casal heterossexual e que supostamente se tornará, se tudo correr como o esperado, também heterossexual, cisgênera e reprodutiva -, acaba delimitando e enquadrando o próprio terreno do que é pensável e discutível na arena política.
Não se trata de uma questão contemporânea. De acordo com o autor (Edelman, 2004), há um consenso entre diversos historiadores que a imagem da infância serviu amiúde como repositório de uma variedade de identificações culturais, incorporando, assim, o telos da ordem social e vindo a ser vista como aquela a quem essa própria cultura deve ser confiada perpetuamente. Por meio dessa "universalização coercitiva" (p. 11, tradução nossa), a Criança imaginária - que não deve ser confundida com as próprias crianças de carne e osso - serve como uma espécie de regulação estrutural do debate político, obrigando os discursos que o compõem a aderir antecipadamente à realidade de um futuro que nunca pode ser posto em questão. Afinal, o que significaria não lutar pelas crianças, se delas dependemos para a transmissão dos fundamentos da cultura? Como alguém poderia lutar contra o futuro e o progresso da civilização? Como tomar uma posição que ameaçaria a própria possibilidade de tomar posições? Para Edelman, "a queeridade [queerness] é o que nomeia o lado daqueles que não estão 'lutando pelas crianças', o lado exterior ao consenso por meio do qual toda política confirma o valor absoluto do futurismo reprodutivo" (p. 3, tradução nossa).
Tomando a Criança como estandarte da transmissão e da cultura, discursos conservadores - por vezes proferidos por psicanalistas - alocam o queer nesse "outro lado", um território alienígena supostamente fora da cultura. É esperado que a política tenha seus altos e baixos, seus períodos e espaços de tensão e até mesmo de exceção, mas o queer representaria uma ameaça ainda mais radical, uma espécie de Thanatos da ordem social, espaço de abjeção que é preciso ser constantemente recusado e excluído na tentativa de reafirmação de uma identidade cultural. Como uma pressão constante e contraposta ao próprio social, um excesso que o desmantela por dentro e por fora, o queer seria uma das figurações da pulsão de morte que, como dissidência, é chamado a nomear a negatividade oposta a qualquer forma de instituição cultural (Edelman, 2004).
O entendimento da queeridade como uma figuração da pulsão de morte nos leva outra vez até Além do princípio do prazer (Freud, 1920/2016). Um dos problemas enfrentados por esse texto é a reformulação do conflito pulsional que Freud acreditava até então organizar a vida psíquica. A emblemática observação de seu neto que jogava o carretel no berço, na ausência do objeto cuidador, enquanto balbuciava fort-da (indicando presença/ausência); juntamente à escuta dos soldados que reexperimentavam em suas atividades oníricas os cenários de caos e destrutividade vividos na guerra, traziam à tona o enigma do trauma e da compulsão à repetição, e assim punham em xeque a suposição de que o aparelho psíquico é regulado exclusivamente pelo princípio de busca e obtenção do prazer. É a partir desse impasse que Freud propõe uma das viradas conceituais mais importantes da história da psicanálise: o aparelho psíquico deixa de ser circunscrito ao princípio do prazer e passa a ser compreendido a partir da dualidade pulsão de vida e pulsão de morte. A primeira seria responsável pela tendência de realizar ligações entre diferentes representações, manter unidades vitais existentes e contribuir para a construção de unidades cada vez maiores. A segunda buscaria justamente o contrário: desfazer ligações, dissolver agregados e destruir as unidades vitais na direção de um suposto retorno ao estado anterior por sua regressividade extintiva.
Essa parte da teoria psicanalítica tem um impacto crucial nos estudos queer. O foco da leitura de Judith Butler, como vimos na seção anterior, recai sobre a ambiguidade entre repetição e diferenciação que marca a vivência traumática, e que reflete a atuação conflitiva das pulsões de vida e morte. A autora entende o processo de elaboração de maneira instável e não linear, mas aposta ainda assim em um desdobramento positivo; isto é, ela acredita que esse movimento de elaboração propicie uma subversão e uma expansão das normas que governam determinados regimes de inteligibilidade. Já Edelman, por outro lado, não confia na elaboração como estratégia política, porque, para ele, a queeridade é aquilo que marca especificamente o polo negativo do embate entre vida e morte, aquilo que nunca pode ser elaborado, já que qualquer "elaboração" ou "subversão" produz necessariamente um novo exterior constitutivo e, portanto, uma nova exclusão. Ao associar a queeridade à pulsão de morte, Edelman se distancia de perspectivas teóricas que exaltam a vivência harmônica da diversidade. Para o autor, o culto à Criança será sempre violento em relação a qualquer diferença, visto que toda diferença será automaticamente entendida como uma expressão da pulsão de morte que ameaça dissolver e desintegrar a promessa de futuro projetada nessa Criança. Tal promessa de futuro, como podemos ver, não é nada mais do que a manutenção do presente.
Edelman e Butler também se distinguem em relação à crítica à própria teoria psicanalítica. Butler sustenta uma filiação ambígua a Freud. Ela usa alguns de seus conceitos, mas sempre a partir de uma revisão teórica e política. Já Edelman, embora utilize a psicanálise para pensar o estatuto do queer como figuração da pulsão de morte, omite em seu texto o próprio papel da psicanálise na reiteração do culto à Criança e ao futurismo reprodutivo. A nosso ver, a atuação normativa da psicanálise responde justamente à maneira pela qual a questão do desenvolvimento psicossexual se relaciona com os ideais de "progresso" e "futuro" criticados por Edelman.
Ao longo das obras de Freud, podem ser encontradas duas formas radicalmente distintas de se pensar a psicopatologia: a patoanálise e a psicogênese (Van Haute & Geyskens, 2016). A primeira representa de fato uma ruptura da psicanálise com as formas tradicionais que fixam a patologia como negativo da saúde psíquica. Por meio dessa perspectiva, Freud indica que apenas podemos compreender a subjetividade humana se a estudarmos à luz de suas variações patológicas; isso porque a patologia expressaria, de maneira excessiva, as forças e tendências que atuam "normalmente" em nossas vidas. Parece-nos que o trauma se situa nos limites dessa mediação, onde a repetição se produz justamente no deparar-se com um excesso. Em contrapartida, a partir da perspectiva da psicogênese, as diferentes neuroses e patologias devem ser pensadas como distúrbios de um desenvolvimento normal predeterminado. Nesse caso, Freud introduz na teoria psicanalítica uma tendência normalizadora e um critério normativo claro e ideal de "desenvolvimento normal"; o que é feito, majoritariamente, pela formulação da centralidade do complexo de Édipo e do seu resultado ideal, o alcance da cisgeneridade e da heterossexualidade.
A distinção entre duas maneiras de pensar a psicopatologia ajuda a entender como a psicanálise pôde abrir caminhos tão divergentes em relação à multiplicidade sexual; como pôde ter sido simultaneamente subversiva - ao apontar a perversão polimorfa e o caráter disruptivo da pulsão de morte analisada por Edelman (2004), por exemplo - e normativa - ao subjugar esses conceitos ao primado de um desenvolvimento genital orientado pelo percurso edipiano. Face às críticas que generalizam a psicanálise apressadamente, podemos apontar que é apenas quando professa o culto à Criança, patologizando tudo aquilo que possa comprometer seu desenvolvimento rumo à heterossexualidade, que a psicanálise se torna de fato normativa. Entretanto, há diversos outros caminhos passíveis de serem trilhados a partir da teoria psicanalítica, os quais levam não apenas a uma postura de maior respeito à diversidade sexual, mas sobretudo ao reconhecimento das potencialidades ameaçadoramente subversivas do seu caráter desviante.
Quiçá tais formulações pareçam banais 30 anos após a publicação de Problemas de Gênero (Butler, 1990/2017), mas ainda não nos parece que tenhamos de fato conseguido sustentar uma posição condizente com a radicalidade dos estudos queer. Muitas vezes, o que se busca para contrapor a estratégia retórica de discursos homofóbicos é uma tentativa de incluir as sexualidades desviantes nesse projeto, expondo que não, famílias gays e trans não colocarão em risco o futuro da civilização ocidental. Do ponto de vista queer, contudo, isso não vai muito além de uma captura liberal, de um enclausuramento da potência disjuntiva da abjeção pela continência dos discursos de tolerância (Brown, 2009). Reconhecemos que a "inclusão" é certamente uma demanda necessária, especialmente àqueles e àquelas que têm direitos essenciais negados. Todavia, indagamos se, ao lutar exclusivamente pelo reconhecimento das sexualidades desviantes no rol da normalidade, estaríamos deixando de questionar não apenas os parâmetros que regem essa normalidade, mas também as noções de futuro e progresso que a subjazem.
Antes de nos levantarmos contra o conservadorismo e o fundamentalismo religioso para reivindicar pluralidade e tolerância, antes de assegurarmos a legitimidade do amor homossexual e das identidades trans, antes de invocarmos - como fez o próprio Freud (1951) - as gloriosas contribuições de sujeitos que tiveram práticas homossexuais ao longo da história, talvez devêssemos parar por um instante e, seguindo a sugestão de Edelman (2004), considerar que é possível que os discursos conservadores tenham algo de verdadeiro: o queer precisa e deve ameaçar a cultura, deve ameaçar o que entendemos por suas bases fundacionais, inclusive colocando em xeque a imagem que projetamos sobre o passado da infância na promessa de um futuro imaginário, mas que a rigor é, possivelmente, nada mais do que isso, a regulação das formas de vida no presente.
A estratégia política proposta por Edelman (2004) é que não trabalhemos apenas para desmistificar a retórica conservadora, mas que abracemos e façamos jus à pulsão de morte projetada sobre os sujeitos sexualmente desviantes. Trata-se de uma provocação polêmica e sobretudo irônica, mais do que uma proposta pragmática - dado que, no limite, é impossível fazer jus à pulsão de morte. Não há onde se sustentar nessa posição, visto que a pulsão de morte atua justamente para decompor qualquer possível base de sustentação. Ainda assim, há consequências materiais a serem consideradas. O encontro entre a psicanálise e os estudos queer traçado por Edelman nos leva a apostar menos em uma lógica das fases do desenvolvimento e mais no imprevisível e irrepresentável do traumático e da pulsão de morte; menos na criança edípica que deve obedecer à linearidade da organização genital dos prazeres e mais na criança que brinca com o carretel em Além do Princípio do Prazer (Freud, 1920/2016) e que é muitas vezes esquecida nos debates sobre psicanálise, gênero e sexualidade. Esta segunda criança, em um vai e vem aparentemente sem sentido, explora uma temporalidade não linear para tentar elaborar a ausência de sua "mãe" sem qualquer promessa de redenção. Juntamente aos casos dos soldados que voltam da guerra e que dividem com ela as páginas desse grande texto freudiano, a criança e seu carretel expõem que a questão fundamental na dualidade pulsão de vida / pulsão de morte não são os parâmetros de normalidade e anormalidade de um roteiro de desenvolvimento predeterminado, mas a vida que habita o limiar entre repetição e subversão, entre violência e sobrevivência.
Considerações finais
A escrita deste artigo foi motivada por um princípio ético e político: mais do que buscar uma etiologia das dissidências sexuais e de gênero, mais do que constituir um saber sobre a diferença, acreditamos ser fundamental nos interrogarmos sobre as repercussões da violência que atinge aqueles e aquelas que desafiam as normas de inteligibilidade de um dado contexto cultural.
Entendemos a violência não como um fenômeno isolado e repressivo, mas como algo articulado ao funcionamento da heteronormatividade e parte do processo de constituição do próprio sujeito "desviante". No brincar da criança, nos pesadelos dos soldados, na escritura de Édouard Louis e nas polêmicas envolvendo manifestações artísticas, assinalamos as repercussões dessa violência nas tentativas oblíquas de narração de experiências traumáticas; possibilidade reais, mas nunca peremptórias e conclusivas, de tornar-se sujeito, e não assujeitado, de histórias que não cessam de não se inscrever.
O título que escolhemos evoca uma aposta na pluralidade: há diversas infâncias, teorias queer e psicanálises. Na primeira seção, falamos de uma criança em particular, Eddy, que futuramente passaria a se chamar Édouard. Sugerimos que a própria escritura de suas memórias tem um papel fundamental nessa transição aporética - hipótese que exploramos a partir da leitura de Judith Butler sobre as noções de trauma e performatividade. Já na segunda seção, falamos de uma Criança imaginária que, embora guarde relação com crianças de carne e osso, como Eddy, é constituída muito mais como garantia de proteção às identidades dos adultos. Para essa análise, apoiamo-nos nas proposições de Lee Edelman, autor que busca sustentação teórica nas mesmas fontes que Butler, mas que extrai delas outras implicações. Conforme já declaramos, não temos como objetivo sobrepor ou fazer prevalecer qualquer dos referenciais que aqui se elucidam, mas pensar meios pelos quais ambos podem, cada um à sua maneira, contribuir para a invenção de outros caminhos para os corpos que subvertem a linearidade do sistema sexo/gênero/desejo.
Entendemos ser possível conceber diálogos entre psicanálise e teoria queer que operem no tensionamento irredutível de duas linhas de raciocínio - pensando, por um lado, na indecidibilidade entre reiteração e subversão, repetição e elaboração; por outro, tomando aquilo que desvia não tanto como fragilidade, mas como potência de ruptura. O que ambas as premissas parecem compartilhar é o princípio de que esses processos não podem ser reduzidos à dimensão individual, visto que se articulam, seja assertiva ou negativamente, às condições históricas, materiais e linguísticas que precedem, acompanham e excedem o sujeito.
Nesse sentido, ao passo que nos debruçamos sobre as possibilidades de legitimar e inscrever em um regime de reconhecimento os modos de existência que desviam das prescrições heteronormativas, também procuramos denunciar a arbitrariedade dos valores que sustentam essa mesma heteronormatividade, fazendo ver seu inevitável fracasso. Com efeito, o fracasso talvez se mostre um ponto de articulação fundamental neste artigo: a elaboração do trauma e a subversão do gênero, afinal, só existem porque há fracassos; fracassos do aparelho psíquico, das normas regulatórias, de um projeto de futuro. Eddy fracassou em suas tentativas de se adaptar ao entorno violento, e a Criança imaginária também deve fracassar em cumprir as promessas nela projetadas. Por aquilo que movimenta, pela potência frustrante que carrega em si, o fracasso talvez seja o que há de mais queer em todos esses casos, em todas essas teorias.
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Recebido em 07 de janeiro de 2020
Aceito para publicação em 22 de setembro de 2020
O primeiro autor é bolsista da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior.
1 A tradução do termo "queer" para o português tem sido alvo de debates entre diferentes autoras e autores brasileiros nos últimos anos (Pelúcio, 2014; Bento, 2014; Pereira, 2015). Neste artigo, optamos por utilizar o termo em inglês para manter dois sentidos complementares que se perdem ou se dissociam em traduções já propostas na literatura: a designação de sujeitos cujos corpos, identidades, expressões e desejos não se conjugam de acordo com padrões heteronormativos; e a indicação do próprio caráter abjeto da diferença incorporada por esses sujeitos (queeridade).
2 "Por heteronormatividade entendemos as instituições, estruturas de compreensão e operações práticas que fazem com que a heterossexualidade pareça não apenas coerente - isto é, organizada como sexualidade - mas também privilegiada… [A heteronormatividade] consiste menos em regras que poderiam ser compiladas no corpo de uma doutrina do que em um senso de retidão produzido em manifestações contraditórias - às vezes inconscientes, imanentes à prática ou às instituições" (Berlant & Warner, 1998, p. 548, tradução nossa).
3 Para uma análise histórica desse processo e sua relação com a expressão "ideologia de gênero", ver o trabalho de Lionço, Alves, Mattiello e Freire (2018).