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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

CARTA-CONVITE

 

Os veios de ouro da formação psicanalítica

 

 

Ana Clara Duarte GaviãoI; Lidia Maria Chacon de FreitasII,*; Anita Aparecida LopesIII; Geraldo Cutcher GalenderIII; Mariana EizirikIII; Péricles Pinheiro Machado JrIII; Ricardo de Moura BizIII; Yone Vittorello CasteloIII

IEditora
IIEditora associada
IIIEquipe editorial

 

 

Em meu artigo "A história do movimento psicanalítico" [1914d ], mencionei como exemplo da atitude adotada por círculos psiquiátricos de Viena uma conversa com um assistente na clínica [na qual eu fazia palestras ], que escrevera um livro sobre minhas teorias, mas que nunca havia lido minha Interpretação de sonhos.

(Freud, 1925/1990a, p. 63)

Com o número 99 do Jornal de Psicanálise concluiremos o período de quatro anos na função editorial, honrados pela oportunidade de colaborar com um percurso voltado à reconexão com alguns pilares da metapsicologia, tendo em vista certas invariantes que constituem a identidade psicanalítica e que, mediante inúmeros desenvolvimentos teóricos e técnicos que se seguiram durante as últimas décadas, podem ficar um tanto obscurecidas, como na metáfora do telefone sem fio.

A epígrafe acima indica, entretanto, que sempre houve resistências para o estudo profundo da concepção de mente formulada por Freud, desarticulações com os princípios teóricos fundantes que podem levar a distorções, simplificações, estereotipias, como na tendência de restringir a função dos sonhos, no modelo freudiano, como "guardião do sono" e de "realização de desejos", de certa forma subestimando sua função principal de guardião da saúde mental, de evitar cisões psicóticas.

A compreensão da mente humana como um aparelho para sonhar e pensar secundariamente os pensamentos oníricos latentes e as experiências emocionais interligadas ou desconectadas pressupõe estados intuitivos de atenção flutuante e autopercepção (Freud, 1900/1990b). A formulação original do "pensamento onírico de vigília", por exemplo, muitas vezes é atribuída ao modelo bioniano, mas, na verdade, trata-se de um dos aspectos centrais da primeira tópica freudiana, como referido pelo próprio Bion em seus enunciados.

Podemos considerar que a comunidade psicanalítica está sujeita a fenômenos dispersivos que podem desconfigurar sua especificidade, como eventualmente ocorre em qualquer área da ciência. As ideias de pluralidade e contemporaneidade podem, por vezes, camuflar fragmentações nos pilares epistemológicos, fragilizando a identidade científica do psicanalista e, consequentemente, sua consistência clínica para o diálogo interdisciplinar.

No processo de uma análise, e podemos destacar aqui a chamada "análise de formação", a dupla evolui à medida que o campo intersubjetivo instalado promove a complexa interação de subjetividades individuais, dando maior visibilidade a suas dimensões inconscientes e, assim, estabelecendo conexões e reconexões com registros mnêmicos até então imperceptíveis, por isso mesmo suscetíveis à geração de sintomas e aprisionamentos afetivos compulsivos. O "telefone sem fio" da própria história e da própria constituição como sujeito pode ser vivamente percebido em sua atemporalidade, geralmente com ressignificações interessantes e maior liberdade existencial.

Sem dogmatismos, privilegia-se a construção do que pode ser nomeado "verdadeiro self psicanalítico", prevalecendo o pensamento livre, independente, favorecido pela estabilidade de algumas premissas, como propõem criativamente os grandes autores.

Se, por um lado, lidamos com a natureza inefável do objeto psicanalítico, por outro, pesquisas recentes no campo da neurofisiologia têm estabelecido conexões relevantes com o modelo de mente - essencialmente, o modelo de sonho - de Freud, reafirmando a indissociabilidade mente-corpo característica do vértice psicanalítico. Experimentos neurofisiológicos atualmente viabilizados pelas novas tecnologias, em conexão com proposições freudianas do início do século passado, evidenciam o valor clínico do método psicanalítico, seu potencial investigativo (Ribeiro, 2019). Os benefícios da abordagem psicanalítica merecem maior prestígio no campo interdisciplinar, em que abordagens cognitivas mostram-se mais inteligíveis pela confluência de parâmetros observáveis pelo olhar científico tradicional, que, por sua vez, também é valioso.

Não se trata de disputar verdades, sempre relativas, nem de deixar de reconhecer a eficácia de tratamentos farmacológicos e cognitivistas aos quais recorremos em diversos contextos com inegáveis ganhos, mas sim de expandir a comunicação científica sobre a profundidade transformadora da psicanálise, o que depende da clareza e consistência na sua transmissão. Transmissão na formação dos psicanalistas, e na troca científica "intra" e interdisciplinar. Especialmente em tempos de banalização da violência e da morte, vale considerar que a psicanálise dispõe de ferramentas sofisticadas para construção renovada de sentidos e transformações criativas.

O tema deste número toma emprestado o título das aulas inaugurais semestrais do Instituto da SBPSP, desde 2019: "Os veios de ouro da formação psicanalítica". Nota-se que o tema dialoga com a linha editorial a que nos propusemos, uma vez que a valorização do patrimônio metapsicológico desde suas formulações originárias implica o compromisso ético com uma formação aprofundada, encarnada pela experiência de análise pessoal do analista, reconhecidamente imprescindível, como pode ser visto sob diversos prismas nos textos de cada aula inaugural publicados por este Jornal.

As reflexões da equipe editorial realçaram duas perspectivas metafóricas: os veios de ouro tão curiosamente incrustados nas rochas, o fenômeno geológico no qual camadas desse metal precioso podem ser vistas em estado bruto, em suas variadas formas e tamanhos, e que desde a Antiguidade são exploradas para extração e benfeitorias. Revertendo o ângulo, surge a arte do kintsugi, técnica japonesa centenária de restauração de peças de cerâmica quebradas, utilizando ouro derretido para ligar os fragmentos, que até se tornou filosofia de vida por evocar o desgaste provocado pelo tempo em sua qualidade estética, a reparação de fissuras e feridas agregando-lhes beleza e intensidade (Rebón, 2017).

De um lado, veios de ouro como formas puras encontradas pela investigação psicanalítica, preciosas para o autoconhecimento e desenvolvimento emocional. De outro, a equivalência com as intervenções necessárias para lidar com o traumático.

Além de artigos temáticos, também serão bem-vindos trabalhos com temas diversos para as demais seções do Jornal, e o prazo de envio será até 15 de novembro de 2020, seguindo as instruções e normas de publicação da apa, disponibilizadas no link "Jornal de Psicanálise - Normas de Publicação", no site www.sbpsp.org.br.

 

Referências

Freud, S. (1990a). Um estudo autobiográfico. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, Trad., vol. 20, pp. 11-92). Imago. (Trabalho original publicado em 1925)        [ Links ]

Freud, S. (1990b). A interpretação de sonhos. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, Trad., vols. 4-5, pp. 1-566). Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Rebón, M. (2017). Kintsugi: a beleza das cicatrizes da vida. El País Semanal. 10 dez. Recuperado em 14 out. 2020, de https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/01/eps/1512125016 _071172.html.         [ Links ]

Ribeiro, S. (2019). O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho (1.ª ed.). Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

* (In memoriam)

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