Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008
DIÁLOGO
Lygia Fagundes Telles: entrevista1
Lygia Fagundes Telles: interview
RBP A senhora foi uma mulher à frente do seu tempo. Advogada, escritora, foi fazer Direito, em uma época em que isto era muito raro.
Lygia Fagundes Telles Na opinião do pensador Norberto Bobbio, a mais importante revolução do século XX foi a Revolução da Mulher que começou na Segunda Guerra Mundial, quando os homens válidos foram lutar e as mulheres foram ocupando os espaços nas fábricas, nos escritórios, nas universidades... Mostrando competência elas começaram a batalhar fora do lar e assim a verdadeira revolução foi se desenvolvendo com alguns exageros, é claro os exageros fazem parte das revoluções. Pois a minha geração foi pioneira desse avanço, entrei para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco no ano de 1941, sim, Segunda Guerra Mundial. Éramos cinco ou seis mocinhas na turma de quase duzentos rapazes e que nos perguntavam com irônico espanto, “Mas o que vocês vieram fazer aqui? Casar?” No mesmo tom bem-humorado eu respondi: “Casar também, por que não?” Nessa época eu já escrevia os meus contos, outro ofício considerado masculino. Confesso que esse começo foi difícil, era um desafio. Estavam na moda as poetisas, aquelas declamadoras que brilhavam nos salões, mas escrever um livro com a liberdade de abordar todos os temas, ah! isso era outra coisa. Sim, foi um duro desafio porque o preconceito era antigo e profundo. Enfim, eu sabia que na opinião de Trotsky os que vão logo na primeira fila são os que levam no peito as primeiras rajadas. A solução era assumir a luta, sair da condição de mulher-goiabada...
RBP O que é mulher-goiabada?
Lygia Fagundes Telles É a mulher caseira, antiga “rainha do lar” que sabe fazer a melhor goiabada no tacho de cobre. A minha mãe, uma excelente pianista, não prosseguiu na carreira que começou na adolescência porque estava dentro da mentalidade preconceituosa de seu tempo e também minha avó, minhas tias lá longe... Mulheres sem condições de ousar a profissão, sem coragem de atender ao chamado, vocare em latim. A vocação, a paixão. Eu me lembro, era menina quando ia com a cesta para colher goiabas no quintal da nossa casa lá em Sertãozinho e onde meu pai era promotor. Minha mãe seria mais feliz se fosse pianista? E se ela continuasse estudando e compondo naquele antigo piano preto com os quatro castiçais, hein? Mas esta seria uma extravagância, uma ousadia e em vez de abrir o álbum de Chopin ela abria o caderno de receitas.
RBP O seu conto é feminino. Como podemos caracterizar uma literatura feminina?
Lygia Fagundes Telles A literatura da mulher é diferente da literatura do homem lá nas raízes, isso porque a mulher é mais intuitiva do que o homem. Penso que vem dessa aguda percepção a maior diferença na obra de ambos, compreende? No passado, quando alguém queria elogiar uma escritora falava assim: “Mas ela escreve como um homem!”. Hoje, macho e fêmea são julgados (ou devem ser julgados) pela qualidade. O livro ou o quadro do João ou da Maria presta ou não presta e ponto final. Mas é preciso insistir quelá nas cavernas permanece essa diferença entre os sexos e que me parece importante, conforme escreveu aquele grande poeta francês do século XIX Arthur Rimbaud “Je dis qu’il faut être Voyant, se faire Voyant!”. Sim, é preciso ser vidente como são as mulheres lá no subterrâneo do ser, e ele acrescentou: “Eu já atingi com a minha linguagem o máximo que um escritor pode atingir. Agora, só as mulheres, quando as mulheres souberem escrever.” Ele amava o desconhecido, o mistério “Que a nossa fria e pálida razão esconde.” Daí a admiração pelo segundo sexo, o único que guarda lá nas profundezas as chaves secretas da sabedoria. Sim, minhas caras psicanalistas, ele era um homossexual cheio de revolta e fúria, lamentando sempre a submissão da mulher tão perseguida desde a mais remota antiguidade, quando era queimada viva nas fogueiras como feiticeira, a bruxa com o maldito dom de abrir a cortina do tempo para devassar o futuro. Sinuosa e traiçoeira, a mulher era comparada à bíblica serpente. E o poeta Rimbaud, fascinado justamente por aquilo que aos olhos alheio era um dom maldito: “Ela, a mulher, também será poeta e descobrirá coisas estranhas e insondáveis, repousantes e deliciosas”. Voilá! Um cidadão bem comportado há de resmungar nessa altura: “Mas esse poeta era louco!”. Recorro ao filósofo Pascal que afirmava: “O ser humano é tão necessariamente louco que não ser louco seria uma outra forma de loucura.”
RBP A senhora acha que poderíamos pensar que a mulher está mais ligada ao mundo de dentro e o homem ao mundo de fora? Porque no conto “Antes do baile verde” aquela personagem, a empregada, está ligada no mundo de dentro e a outra está por fora, alienada, vê tudo verde, tudo bem...
Lygia Fagundes Telles Ambas as personagens, patroa e empregada, estão cientes de que o velho no quarto ao lado está agonizando ou morto. Nenhuma delas é alienada, mas acontece que enquanto a jovem patroa bebe e disfarça, a empregada funciona assim como um juiz que aponta friamente a realidade. Mas não se envolve nessa realidade, “O pai é seu!” ela insiste em lembrar. Não aceita os presentes que a outra oferece porque não quer ser comprada, quer ficar livre nesse Carnaval para cumprir o seu programa. Daí o diálogo desesperado que se assemelha a um julgamento, compreende? Até que ambas fogem de repente pela escada abaixo e, seguidas pelas lantejoulas verdes que se desprendem do saiote da fantasia, rolam pelos degraus até a porta da rua. Curiosamente esse conto me faz pensar nas Confissões de Santo Agostinho, livro admirável e onde ele aponta as quatro perturbações do espírito: o desejo e a alegria, o medo e a tristeza. Nesse conto o desejo e a alegria são as perturbações que prevalecem quando ambas fogem da morte para a festa lá fora. Mas eu dizia que, nas profundezas, a mulher difere mesmo do homem e assim, com o dom da intuição ou percepção, ela projeta essa característica na profissão ou ofício. Quando menina eu residia com meus pais na cidade de Descalvado onde ganhei uma lupa e com essa lupa fui fazendo as minhas extraordinárias descobertas no mundo dos bichos, não dos gatos ou cachorros porque esses eu conhecia bem, mas no mundo dos bichos menores, o mundo dos insetos. Ah! a vida secreta das formigas, das abelhas, das aranhas e das borboletas... Certa manhã, aproximei a lupa de uma joaninha que subia pelo tronco da árvore, vocês sabem, joaninha é aquele besourinho com bolinhas vermelhas na carapaça. Ela foi subindo na greta e de repente parou assim como que assustada, ficou imóvel, senti a sua inquietação nas antenas, o seu medo. Hesitou e enveredou por outro caminho como que fugindo. Fui subindo a lupa e dei então com um enorme besouro preto que vinha feroz na mesma direção, e então pensei: “Pronto, a joaninha sentiu o perigo e desviou”; olha aí a percepção, a intuição vigorando também nos insetos, assim como no ser humano. Já falei dessa intuição mais aguda nas mulheres e não esquecer as antigas sacerdotisas, as pitonisas. É um bem ou é um mal? Lembro agora das cartomantes deitando as cartas do baralho na mesa para anunciar o futuro. Lembro que em Portugal a expressão é mais pesada: “Quer que eu leia a sua sina?”. As perigosas videntes. Contudo, não esquecer que o maior de todos os seres, Jesus Cristo, foi grande amigo das mulheres, as quais defendeu bravamente, segundo a Bíblia, em várias circunstâncias. Depois da Ressurreição foi para duas mulheres que Ele apareceu pela primeira vez: Maria Magdalena e Maria, mãe de Tiago. Segundo o Evangelho de São Matheus, foi para ambas que Ele se mostrou na névoa da madrugada e fez a saudação gloriosa, Salve!...
RBP Quando pensamos em Madame Bovary, Ana Karenina e Capitu, temos que ver que são homens escrevendo sobre o universo feminino, assim como fez, por exemplo, Machado de Assis em Dom Casmurro.
Lygia Fagundes Telles Sim, esses escritores maiores escreveram sobre mulheres adúlteras. Contudo, só a Capitu de Dom Casmurro, de Machado de Assis, só ela permanece na dúvida, traiu, não traiu?... Daí a força extraordinária desse romance. Lembro agora que o foco narrador é Bentinho, é o marido quem conta a sua história no feitio de uma confissão. Ora, toda confissão é suspeita, daí a dificuldade do leitor em se posicionar; afinal, Bentinho não será o suspeito maior nesse julgamento? Ele narra o passado, mas será um narrador fiel? Ah! que difícil para o leitor decidir, esse leitor que às vezes chega a ser cúmplice de Bentinho e de repente vem a dúvida, e se o foco narrador estiver blefando?... Eis aí o “bruxo zombeteiro” se deliciando, porque para ele o sal da vida é a imaginação, o mistério. Afinal, sua vida mesmo não é um mistério? O moleque do morro, mulato, pobre e sofrendo de epilepsia não acabou sendo o mais extraordinário escritor do Brasil? Conforme já disse lá atrás, ele atendeu ao chamado, vocare e com feroz paciência cumpriu bem-humorado o ofício da paixão. Afinal, “Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola”. E sempre ao lado da amada Carolina, a portuguesa que com ele caminhou de mãos dadas até a morte.
RBP A senhora fez o roteiro do filme Capitu e que acabou de ser publicado. Como foi esse trabalho?
Lygia Fagundes Telles Foi uma experiência extraordinária. Li o romance Dom Casmurro quando muito jovem, tinha acabado de prestar os vestibulares para a Faculdade de Direito e pensei no fim da leitura: “Mas esse Bentinho é um desvairado, um psicopata que o tempo todo atormentou a coitada da Capitu com o seu ciúme”. Na segunda leitura, alguns anos depois, eu fiquei na dúvida: espera aí, aquele amigo tão sedutor, tão envolvente e aquela Capitu “com olhos de cigana oblíqua e dissimulada”... Olhos de ressaca, quando o mar avança e com a mesma força recua, levando tudo o que encontrou lá para suas profundezas. Eis que na segunda leitura fiquei desconfiada: e se Capitu trouxesse realmente desde a infância a traição lá por dentro, assim como a semente dentro da fruta? Na terceira leitura, com o meu marido Paulo Emílio, ah! mudou tudo. Estávamos escrevendo um roteiro para cinema, encomenda para o filme baseado no romance. Com Paulo Emílio como parceiro, esse foi um trabalho pelo qual me apaixonei, lá estava finalmente a nossa Capitu como o mar, acima de qualquer suspeita. E não era isso que Machado de Assis queria? Foram dias e noites de muito trabalho em meio às discussões acaloradas com as xícaras de café e os copos de vinho. No toca discos, a música para animar, Chopin, Beethoven... No sofá, os nossos gatos próximos e distantes. Eu gostaria que vocês lessem esse roteiro publicado ano passado pela editora Cosac Naify. E não sei porque me lembrei agora de Freud, lá no século XIX, fazendo a famosa pergunta: “Mas afinal, o que querem as mulheres?!” Semana passada fui a um almoço no qual encontrei quatro desembargadoras e não sei quantas juízas e advogadas. Hoje, aqui estão vocês, competentes psicanalistas. O que querem as mulheres? Ele perguntou e a resposta está naquele almoço e aqui na minha frente: as mulheres querem a liberdade para seguir a vocação.
RBP Hoje as coisas ficaram mais fáceis?
Lygia Fagundes Telles Não mais fáceis; eu diria que as coisas ficaram possíveis. Possíveis na classe média e na classe alta, porque na periferia prossegue a miséria, o analfabetismo e o desamparo na saúde. O que às vezes me espanta é essa servidão da mulher em relação aos costureiros, essa servidão também aos estetas, é proibido envelhecer! Mas para não envelhecer a mulher teria que morrer jovem, o que no meu caso não me agradaria porque tinha que cumprir a minha trajetória, fazer o meu caminho. Então é cuidar da aparência para não assustar as criancinhas, mas isso sem a aflitiva servidão aos estetas, aos costureiros... A sorte é que na minha profissão não preciso seduzir com a aparência, mas com a palavra escrita. Posso ficar triste às vezes diante de um espelho, mas o sabiá que canta no alto da palmeira e que não tem espelho tem o canto triste... Certa tarde, lá em Paris, vi num antigo jardim um velho relógio com uma bela inscrição em latim no mostrador: Conto somente as horas felizes. Esse relógio eu gostaria de levar comigo dentro do meu bolso.
RBP Fale sobre seu conto “O moço do saxofone”.
Lygia Fagunde s Telles Esse conto que está no livro Antes do baile verde faz parte de uma antologia com os maiores contos do século XX. Durante algum tempo foi meu conto preferido, mas depois me voltei para o conto “Anão de Jardim” que está no livro A noite escura e mais eu. Outro dia um jovem me perguntou na rua qual dos meus livros é o meu preferido e eu respondi As meninas; veja que sou volúvel nas minhas escolhas. Esse romance foi escrito nos anos de chumbo, plena ditadura militar, 1970; sou, como escritora, uma testemunha desse nosso tempo e dessa nossa sociedade.
RBP A senhora poderia nos falar um pouco da sua experiência com a escrita como modalidade terapêutica?
Lygia Fagundes Telles A literatura já me ajudou a não enlouquecer. O livro Conspiração de nuvens me salvou da depressão e do desespero. Não quero dar às minhas netas um mau exemplo, que seria a culpa. Escrevendo me acalmo porque vivo a vida das minhas personagens que não fazem parte da minha vida real, ou fazem?! É no trabalho e na fé em Deus que recupero minha verdadeira força, a minha energia vital. Sempre me lembro de um episódio que me marcou muito e que responde bem a essa sua pergunta. Certa tarde, na sala de uma Universidade, eu fazia um depoimento para estudantes que estavam assim... barulhentos, desatentos. Embora bem-humorada eu me queixei de repente; afinal, era uma loucura ficar falando para jovens que só pensavam em balada, futebol, fazer amor... Quando já me despedia um rapaz se aproximou da minha mesa e deixou um pequeno bilhete que guardo até hoje: “Não é loucura, teus livros já me afastaram do desespero”. É dessa forma, através da criação que eu sigo vivendo. E agora me lembro de Emil Cioran: “Não quero a sabedoria da desilusão, mas quero a sabedoria da ilusão que é o sonho”
1 Entrevista realizada na residência de Lygia F. Telles, em 25.10.2008, com a participação de Thais Blucher, Sonia Terepins, Susana Muszkat, Lucia F. Telles e Maria Elisa Franchini Pirozzi.