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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009
TEMÁTICOS
Tradução: testemunho de uma experiência1
Traducción: testimonio de una experiencia
Translation: the testemony of an experience
Betty Bernardo Fuks,2 Rio de Janeiro
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Universidade Veiga de Almeida
Resumo
O artigo apresenta algumas reflexões sobre o conceito de tradução, a partir da própria experiência da autora. As contribuições de Jacques Derrida ao tema servem de base à escrita do texto.
Palavras-chave: Tradução; Psicanálise; Desconstrução; Judeidade.
Resumen
El artículo presenta algunas reflexiones sobre la traducción, a partir de la propia experiencia de la autora. Las contribuciones de Jacques Derrida al tema, sirven de base a la escritura del texto.
Palabras clave: Traducción; Psicoanálisis; Desconstrucción; Judeidad.
Abstract
The article presents ideas on translation, based on an experience lived by the author. Jacques Derrida contributions on the theme are used in the writing of the text.
Keywords: Translation; Psychoanalysis; Deconstruction; Jewishness.
A tradução é uma escritura, não é simplesmente uma tradução no sentido de transcrição, é uma escritura produtiva predestinada pelo texto original.
Jacques Derrida
Três anos haviam se passado desde o lançamento da edição brasileira do livro Freud e a judeidade, a vocação do exílio (Fuks, 2000), quando colegas do Aprés-Coup, Psychoanalytic Association, demonstraram interesse de publicá-lo em inglês. Naquele momento, não poderia imaginar que tamanha hospitalidade imporia a árdua tarefa de aprender a suportar a alteridade do meu texto em terra estrangeira. De fato, a recepção dada à obra pelo leitor brasileiro provocara forte sentimento de estranheza no interior de minha própria língua, o que me obrigava a retornar às hipóteses iniciais para dizer melhor o que havia escrito ou enunciar o que até então não havia enunciado. Quando da edição do livro nos Estados Unidos, juntou-se a estes movimentos o questionamento incessante em torno da tradução e estilos de edição.
Escrever sobre esta experiência exige combinar confissão e reflexão teórica. É que a questão primordial que aqui quero levantar – a tradução – só adquire sentido se puder fazer presente a absoluta diferença do outro que me convoca a partir do desconhecido outro em mim mesma e, ao mesmo tempo, cumprir o trabalho de rastrear determinado pensamento em seu conjunto de diferenças.
Reconheço que durante todo o processo de tradução e edição do livro em inglês pude melhor apreender o que Derrida descreveu como relações de endividamento recíproco entre o escritor e o tradutor. Se o tradutor é devedor para com o texto original, à medida que aceita a tarefa de traduzi-lo e dela necessita se desvencilhar; o original assume, também, uma dívida para com o tradutor, de quem depende para sua própria sobrevivência (Derrida, 1987, p. 175). Quando escolhi como tradutor o poeta Paulo Henriques Britto, me dei conta de estar, antecipadamente, contraindo tal dívida. Ler e reler o texto, impondo-se o trabalho de traduzir e retraduzi-lo para além dos parâmetros de um simples transporte de significados estáveis, fez parte integrante da responsabilidade que esse poeta assumiu em transmitir ao leitor, com absoluta liberdade, o indecidível de minha escrita. Registro aqui minha dívida para com Britto que, em se deixando conquistar pelo meu texto, teceu palavras na língua inglesa de modo a compor uma tradução-escritura de forma poética e original.
A tradução como escritura produz, inevitavelmente, restos. Restos constitutivos da língua que não se transportam de uma língua para outra língua, inviabilizando a total tradução do texto. Paulo Ottoni, citando Derrida, comenta que restos são impurezas de cada língua, o que faz com que traduzir seja a um só tempo possível e impossível. “Uma boa tradução nos diz simplesmente isto: há língua, é por isso que se pode traduzir e que não se pode traduzir porque há alguma coisa como língua” (Derrida apud Ottoni, 2008, p. 4). Derrida usou a história bíblica de Babel para ilustrar o double bind da tradução – possibilidade/ impossibilidade da escritura como leitura tradutora. Conta o Gênese que a tribo de Shem (palavra que significa nome em hebraico) quis impor uma única língua a todas as tribos da terra, edificando uma torre. Gritando um de seus nomes Bavel ou Babel, confusamente parecido com a palavra hebraica que significa “confusão”, Javé destrói a torre, estabelece a diferenciação entre línguas, a dispersão dos povos sobre a terra e condena todos os homens à confusão e à impossibilidade de tradução. Dessa maldição adveio a “necessidade de se entretraduzir, sem jamais conseguir alcançar a tradução perfeita; o que significaria a imposição de uma língua única” (Bennington, 1996, p. 125). Em meio às múltiplas interpretações que se pode fazer deste episódio sobressai a ideia de que ao enunciar confusamente o tetragrama impronunciável – IHVH – que diz seu nome, Deus deixou o homem condenado à incompletude do trabalho de tradução.
Portanto, não será preciso justificar por que os restos produzidos pela tradução do livro do português para o inglês exigiram dos editores americanos sua imediata tradução suplementar. Foram cinco anos de trabalho e expectativa ansiosa pela “tradução da tradução”, da qual dependia a edição final. Os editores e colegas Paola Miele e Mark Stafford, não pouparam esforços em reler e retraduzir a tradução-escritura de Britto. Aos poucos ratificaram, em ato, a ideia de que toda tradução-escritura inevitavelmente “deflagra a existência de diferentes línguas, numa só língua” (Ottoni, 2002, p. 6). Todo o empenho dos colegas girou em torno do fazer com que a ideia original pudesse ser dita, mais ainda, na edição em língua inglesa. É importante ressaltar que comentários e sugestões feitos (eventuais cortes, mudanças de parágrafos de um capítulo a outro) foram exaustivamente debatidos, o que assegurou uma prática de leitura que é passagem em direção ao outro.
Neste sentido, o título da obra em inglês – Freud and the Invention of Jewishness (Fuks, 2008), é exemplar: nomeia a ideia que estava predestinada em minha Tese de Doutorado, logo transformada em livro, mas que só pôde ser enunciada após as várias retraduções produtivas. Durante todo o processo de edição foi possível manter com os editores o princípio de fidelidade à insuperável diferença e complementaridade das línguas e culturas. Atribuo este ganho à forte transferência de trabalho sustentada pelo desejo de todos em transmitir a hipótese freudiana do inconsciente, o Unbewusste, termo que em alemão pode ser traduzido por insabível.3
Efetivadas, agora, as edições do livro em inglês e em espanhol (Editora Siglo XXI), posso dizer, a posteriori, que uma das razões do êxito do livro, que se desloca por diversos países, por diversas línguas, está ligada ao modo como emprego o conceito de judeidade. Por judeidade (judéite em francês) entende-se a expressão que funda um outro. Trata-se de um conceito que diz respeito ao que será definido e sempre construído, jamais terminado; mesmo que o judaísmo enquanto religião não conte para o sujeito. Portanto, contra o que se costuma designar, a psicanálise não é uma metáfora do judaísmo e sim o oposto: a judeidade pode ser uma metáfora da psicanálise. Bem diz da experiência de diferença que leva o sujeito em análise buscar, através da palavra, uma designação para aquilo que vindo de fora, está nele mesmo, embora lhe seja estranho.
Mas atenção: se toda metáfora é parcial, isto é, produz um resto de significação, a judeidade não pode esgotar a função e o campo do analítico, embora seja uma belíssima e privilegiada representante. Estimula o analista a pensar, como inseparáveis, a origem e o devir da psicanálise e, com isso, assegurar sua transmissão de modo criativo e original.
Freud definiu a psicanálise como algo inacabado voltado ao devir, portanto sujeita às operações de continuidade e descontinuidade do tempo do reinventar. Recordemos que no artigo “Dois artigos de enciclopédia” (Freud, 1923/1976), declara que o saber psicanalítico é tributário exclusivamente da experiência clínica, sempre inacabada, pronta a deslocar as ênfases de suas teorias ou a reinventá-las com precisão nos resultados de trabalhos futuros. Nesta mesma linha, no prefácio à segunda edição de “Três ensaios sobre teoria da sexualidade”, o criador da psicanálise afirma seu desejo ardente de que o livro envelheça rapidamente “que o que nele uma vez foi novidade, possa tornar-se geralmente aceito, e o que nele estiver imperfeito possa ser substituído por algo melhor” (Freud, 1905/1976, p. 117).
Judeidade e psicanálise e, também, judeidade e tradução. Porque no devir outro da judeidade e no próprio devir da psicanálise encarnam-se certas ideias fundamentais expressadas no conceito de tradução como ato de produção e transformação de significados. Com efeito, a psicanálise como prática de diferença através da linguagem, não pode conceber a tradução como transporte de significados de um sistema para outro de maneira estável e consciente. Freud insistia em que o inconsciente apresenta uma pluralidade de sentidos e de vozes que testemunham sobredeterminação de suas formações. Na verdade, esta é a tese defendida em A interpretação dos sonhos, livro inaugural da psicanálise, onde o autor faz uma severa crítica ao colega Wilhelm Stekel pelo fato de pretender reduzir a interpretação psicanalítica a um trabalho meramente exegético, limitando-a à tradução de símbolos oníricos em detrimento das associações do sonhador (Freud, 1900/1976, p. 356). De extrema relevância à reflexão sobre o dispositivo da interpretação no processo analítico, essa crítica envolve a linguagem como tradução; o que faz com que justamente muitos autores considerem Freud um dos mais importantes teóricos da tradução (Cf. Ottoni, 2002, p. 2).
Observa-se que esta é a posição que Derrida assume quando baseia suas ideias sobre a dimensão descontrutivista da tradução no modelo freudiano da escritura psíquica – rede de traços e letras que se movem a partir de um não-inscritível. Para o filósofo, o texto do inconsciente é formado por arquivos que, em si mesmo, já são transcrições. O que se encontra em jogo na desconstrução derridariana não é troca de significados, mas uma passagem em direção a um “antes” ou “aquém” do sentido. Escutemos diretamente Derrida (1987):
Passar da palavra prazer na língua corrente para “prazer”, do discurso fenomenológico, e depois ao “Prazer” na teoria psicanalítica, é proceder a traduções insólitas. Trata-se de traduções de fato, uma vez que se passa de uma língua para outra e que há certa identidade (ou não alteração semântica) que efetua este trajeto, deixa-se transpor ou transportar. (p. 149)
E no próprio discurso da psicanálise, sublinha Bennigton (1996), leitor de Derrida, “a palavra ‘prazer’ seria ‘traduzida’ por alguma coisa totalmente diferente, ao ponto de se tornar possível falar de um prazer que sente como desprazer” (p. 123).
Aquilo que a judeidade encarna do conceito de tradução é a possibilidade do vir a ser da linguagem. Ao identificar a judeidade como expressão de um devir, Derrida (1971) insiste em que na não-coincidência de si consigo mesmo “o judeu acaba por se fazer mais judeu e menos judeu do que o Judeu”. E acrescenta: “Judeu seria o outro nome dessa impossibilidade dele ser ele próprio” (p. 55). Impossibilidade encetada pela transposição de um traço que jamais pode ser anunciado como verdade imutável e sem perdas. Sobre isto, nada mais exemplar do que o modo como Freud rebatia as questões que lhe endereçavam acerca de sua identidade judaica. Tratava de usar a lógica da produção de sentidos múltiplos e plurais, o que o levou a responder pela retórica do incontido da significação (Fuks, 2000, p. 73-75).
Ora, se traduzir é uma atividade de transposição, resta reiterar que durante todo o processo registrado neste pequeno artigo, optei pela riqueza do encontro com o outro desconhecido para melhor transmitir o legado freudiano. Hoje, entrelaçada ao tema da judeidade – a impossibilidade de definir uma identidade fixa – e às vicissitudes da invenção freudiana – o inconsciente, a terra estrangeira em nós mesmos –, esta experiência faz com que continue buscando a errância inscrita no subtítulo do original – “a vocação do exílio” –, como possibilidade de sustentar o devir da psicanálise.
Referências
Bennington, G. (1996). Jacques Derrida por Geoffey Bennigtton e Jacques Derrida [Jacques Derrida]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
Derrida, J. (1971). A escritura e a diferença [Lécriture et la différence]. São Paulo: Perspectiva.
_____ (1987). Psyché. Inventions de lautre. Paris: Galilée.
Freud, S. (1976). Interpretación de los sueños. In Obras Completas. Tradução José Luiz Etcheverry. Vol. 7, p. 109-223. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1900)
_____ (1976). Tres ensayos de teoría sexual. In Obras Completas. Tradução José Luiz Etcheverry. Vol. 7, p. 109-223. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1905)
_____ (1976). Dos artículos de enciclopédia: Psicoanálisis y Teoria de la libido. In Obras Completas. Tradução José Luiz Etcheverry. Vol. 18, p. 227-230. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1923)
Fuks, B.B. (2000). Freud e a judeidade: vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_____ (2008). Freud and the Invention of Jewishness. Nova York: Agincourt Press.
Ottoni, P. (2002). Tradução: reflexões sobre desconstrução e psicanálise. Pulsional Revista de Psicanálise, n. 158. Disponível em: http://www.editoraescuta.com.br/pulsional. Acesso em: 8 nov. 2008.
Endereço para correspondência
Betty Bernardo Fuks
Av. Rui Barbosa, 500 ap 602 Flamengo
22250-020 Rio de Janeiro, RJ
Tels: 21 2553-0180 e 21 9919-0646
E-mail: betty.fuks@gmail.com
Recebido em 2.2.2009
Aceito em 2.3.2009
1 O Presente trabalho deriva de uma experiência pessoal e da pesquisa sobre “Escrita e Psicanálise” que venho desenvolvendo com alunos.
2 Psicanalista. Doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ). Professora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (Rio de Janeiro). Membro do Colégio de Psicanálise da Bahia. Autora de Freud e a judeidade, a vocação do exílio (Zahar) e Freud e a Cultura (Zahar)
3 Costuma-se traduzir o termo Unbewusste por insabível. De fato esta não seria a tradução mais correta, pois falta à palavra alemã o sufixo bar ou lich como em unerkennbar, unmöglich ou sichtlich, respectivamente irreconhecível, impossível e invisível. Entretanto, a palavra insabível (aquilo que não pode ser sabido) que é diferente do não sabido, presta-se mais à definição do inconsciente freudiano