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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.23 n.1 Brasília mar. 2003
ARTIGOS
“Está vazio”: desritualização e dispersão na oficina de rádio1
Abrahão de Oliveira Santos2
Uniararas
RESUMO
Este texto discute uma atividade grupal com pacientes, realizada no serviço psiquiátrico, a partir da qual se produziram experiências novas com o corpo, a fala, os afetos e os signos. Explora-se a questão da função do ritual e a dispersão a que nos submetemos no trabalho com a esquizofrenia e as dificuldades vivenciadas desse trabalho, inclusive a questão do vazio, tão presente nas psicoses. A organização ou estruturação de uma atividade grupal com psicóticos, embora pareça um progresso, pode significar a perda da potência produtiva e a expulsão da psicose.
Palavras-chave: Saúde mental, Psicose, Instituição, Grupo.
ABSTRACT
The present paper discusses a group activity with patients in a psychiatric service that resulted in new experiences with the body, language, affects and signs. It explores the purpose of the ritual and the dispersion of the work with schizophrenics and show the difficulties experimented in this work, including the question of emptiness that is present in schizophrenia. The organization or structuration of group activity with psychotic patients, though it may seem a progress, may indicate the loss of productive power and the expulsion of psychosis.
Keywords: Mental health, Psychosis, Institution, Group.
No Centro de Atenção Psicossocial Perdizes (CAPS) há várias oficinas terapêuticas: de argila, de papel reciclado, de tapeçaria, de horta, de vídeo, de eventos, de passeio, marcenaria etc. Oficina terapêutica é o nome que se dá, naquele estabelecimento do serviço psiquiátrico do Estado de São Paulo, a atividades grupais com usuários, sem adotar a dinâmica da `psicoterapia de grupo` nem propósito de obtenção de renda para o paciente. Algumas têm longa duração, outras duram o tempo dos estágios dos alunos das faculdades locais. Quase todas as oficinas têm um propósito terapêutico definido, como, por exemplo, socializar, melhorar as relações de convivência no grupo, melhorar a linguagem e a adequação à realidade, dar continência ao delírio ou à produção de associações.
O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Perdizes, Cidade de São Paulo, oferece atendimento psiquiátrico e psicoterápico ambulatorial e oferece o serviço de hospital-dia, para pacientes com transtornos mentais graves (psicose e neurose grave) que necessitam de cuidado intensivo. Nesse serviço, o usuário chega pela manhã, recebe atendimentos psiquiátrico, psicológico, de assistência social, enfermagem; participa de várias atividades individuais e grupais, recebe alimentação e retorna às suas famílias no final da tarde. O CAPS é um centro de saúde mental criado no Brasil a partir da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, que propõem a diversificação na oferta de serviços com o objetivo de superar a crença na consolidação do hospital psiquiátrico. Oficinas ou grupos terapêuticos visam a aumentar as possibilidades de engajamento terapêutico e multiplicar os níveis de ação do paciente. Há ainda os projetos de grupos de trabalhos em parceria com a associação de amigos, cuidando para que os pacientes desenvolvam uma atividade remunerada, como venda de cachorro-quente, salgados e sorvetes. “No dia-a-dia da instituição, procura-se proporcionar um número grande de projetos, uma circulação intensa de experiências”, comenta Jairo Goldberg (1996a, p. 42), articulando-se vários espaços de trocas, de falas, de relações transferenciais (Goldberg, 1996b). O CAPS dispõe de condições de tratamento para que os usuários possam aumentar seu poder contratual com a família, o campo do trabalho e a sociedade (Saraceno, 1996); dito de outro modo, ampliar os direitos das pessoas com transtornos mentais, ampliar, conseqüentemente, seu poder de ação.
A partir da discussão sobre a clínica da psicose elaborada por Godberg (1996) e do questionamento de Saraceno (1996) a propósito da reabilitação psicossocial, foi pensada uma oficina que interessasse os usuários de tal forma que eles participassem espontaneamente, e não porque teríamos um objetivo terapêutico a alcançar. Seria uma oficina que tratasse das coisas da vida, em que os pacientes pudessem falar sobre os acontecimentos sociais de dentro e de fora do CAPS, falar das questões políticas; onde se pudesse falar da vida sem que estivéssemos previamente regulados pelos discursos terapêuticos da Psicologia ou da terapia ocupacional; cujas falas ou as manifestações dos usuários, pudessem se liberar do compromisso terapêutico estrito e pudéssemos constituir um espaço real de vida, isto é, em vez de nos preocuparmos em passar usuários de um estado de incapacidade para um estado de capacidade – objetivo defendido pelas terapêuticas psicológicas atuais –, proporcionar-lhes o exercício imediato de falar sobre suas famílias, sobre a comunidade ou a sociedade, sobre a política, sobre o esporte, a música e a cultura, sobre os acontecimentos da cidade e do mundo. Desse modo, surgiu a idéia de uma “oficina de rádio”3 e propusemos o encontro dos vários cenários (Saraceno, 1996) nos quais atuamos, de forma que o espaço familiar, o espaço do trabalho e da vida social repercutissem naquela atividade.
Já vem de longa data a crítica da “praxiterapia” com a utilização de atividades monótonas, “nas quais o doente não podia perceber qualquer sentido” como indica Resende (1987, p. 55). Muito embora atividades de hortas, papel reciclado e pintura, entre outras, não devam ser consideradas monótonas nem sem sentido por si mesmas, de acordo com o que pude notar, os pacientes têm pouca disposição para essas atividades, o que levava os técnicos a um exercício de convencimento para manter a participação dos usuários. Pela duração, pelo seu funcionamento, pela sua natureza ou pela questão dos transtornos mentais graves, não se pode falar de muito interesse dos pacientes em participar desses projetos. É preciso considerar que não é a atividade em si mesma que tem um efeito terapêutico, mas seu poder de vitalizar um espaço de experiência, um espaço de trocas; é necessário que uma oficina promova a retomada das conexões de linguagem e práticas do paciente com o mundo, com o espaço exterior da instituição. A vida não se articula para dentro, mas se articula expansivamente para fora. O que queremos chamar um espaço real de vida é um espaço que crie conexões com a vibração do mundo do qual o paciente psiquiátrico participa: o mundo da política da cidade, da violência, da alegria musical do brasileiro, e inúmeros outros aspectos que um paciente apresenta em algum momento, apesar dos efeitos da psicose.
A rádio, desde seu início, logo mostrou sua vocação. Tornou-se um espaço de alegria, de comunicação, do envio de mensagens, onde as pessoas se reuniam para debater futebol e política, para comentar os acontecimentos do CAPS, para cantar e dançar, para falar da loucura, da Psiquiatria, dos medicamentos, para estabelecer verdadeiras entrevistas-diálogos entre os pacientes e os funcionários, para reocupar com suas histórias o espaço do tratamento. Tornou-se um lugar de produção de signos e, como tal, um dispositivo que tinha a ver com a vida das pessoas.
Regina Benevides (1996) pensa o conceito de dispositivo a partir de Foucault e Deleuze. Dispositivos “são máquinas de fazer ver e falar” (Deleuze, apud Benevides, 1996, p. 100). Um dispositivo é aquilo que produz visibilidade, vale dizer, que ilumina certas variações dos emaranhados de histórias e de encontros entre os corpos, mostrando tendências e inclinações até então ainda não visíveis. O dispositivo abre um território de “dizibilidade”, isto é, cria regimes discursivos inauditos, variações de falas que produzem novos sujeitos à medida que tais falas se articulam. No vai-e-vem do ver e do falar, o dispositivo ativa linhas de ação alterando as configurações de força e, portanto, reconstitui os corpos com novos modos de poder-agir. Finalmente, podemos dizer que o dispositivo, ao fazer ver e falar altera as relações de força, inventa modos de existir. O dispositivo, como pensamos aqui, recria as condições daquilo que está bloqueado produzindo um “teor de liberdade em se desfazer dos códigos” (p. 104) que mantêm as coisas no seu lugar. É nesse sentido que o dispositivo é um lugar de produção de signos: signos que constituem ou designam novos atores e sujeitos, novos lugares, novas questões para o pensamento.
Chegamos a funcionar com oito `quadros` na programação, além das músicas. No debate sobre futebol, nas entrevistas, com a circulação de notícias sobre o CAPS, no tributo a Tim Maia, nas opiniões sobre as guerras nos Bálcãs, os usuários experimentaram uma alegria e um ânimo contagiantes; produziram-se falas e gestos, produziram-se novos quereres, novos desejos, novas esperanças. Um momento, ora curto ora longo, de se ocupar o mundo, de cumulá-lo de vida. Ali se produziram experiências novas com o corpo e com a fala, afetos e signos; produziu-se um modo diferente da relação de uma oficina com o espaço e com outros setores do CAPS, da relação de uma oficina com os pacientes do ambulatório, da relação com os pacientes do hospital-dia. Novas expressões sempre apareciam, brincando, transmitindo a referência da estação do ano em que entrávamos, do tempo, e invariavelmente mostrando o vigor da nossa alegria – “rádio CAPS Perdizes, as ondas poderosas do outono”, “hora certa, acerte o seu pelo nosso...” Signos inesperados. Aproveitávamos aí as reapropriações e fugas próprias da esquizofrenia e sua capacidade produtora.
A rádio era um convite à palavra e ao gesto, uma convocação à lembrança, à vibração da vontade; um momento de história para contar, de pedidos a fazer, de queixas, do prazer da voz ampliada e da volúpia da palavra. A música trazia amplos aspectos da experiência; a realização de uma musicalidade íntima, de um revigoramento do nosso “princípio musical”, como afirma Nunes (1999). Sentimentos difusos ganham alguma expressão, experiências vivificadoras do passado se atualizam. “Essa música tocava quando eu era criança” – V., ouvinte-participante da Rádio CAPS Perdizes, 980 Khz, ouve e testemunha sua lembrança, o passado que, vivo, o atravessa e faz o corpo pulsar. Essa expansão da voz, essa liberação do movimento e do corpo fez da oficina um momento de êxtase coletivo. Aquele coletivo, conectado à rede elétrica e ao espaço distante, aquele encontro de pessoas, máquinas, músicas e eletricidade agitava o corpo e a lembrança.
Em sua reflexão sobre a voz construtora do espaço simbólico e imaginário da produção radiofônica na atualidade, Nunes (1999) lança-se à escuta da “informação informe” dos programas de rádio, em vez da transmissão instantânea de informações ao alcance de todos. De acordo com as pesquisas de Nunes, já o feto envolto no líquido amniótico é banhado por uma música uterina, composta por sensações rítmicas mecânico-vibratórias, certas freqüências da voz materna, cargas de tensão e repouso, contração e distensão dos batimentos cardíacos da mãe. No nascimento, a ritmicidade do grito e do choro infantil “formatam o lugar em que o bebê irá individualizar-se” (Nunes, 1999, p. 22). Os corpos, a voz, o tempo, o espaço, tudo é som analógico, objeto musical. É o `princípio musical` do ser humano. Talvez aí esteja uma das razões do alto interesse que a oficina de rádio despertou nos usuários e nos funcionários do CAPS; a revitalização da lembrança e da vida, a atualização e a produção de signos míticos, a retomada de nossa condição pulsional, produtiva, desejante.
A doação de um aparelho de som com caixas acústicas potentes livrou-me da tarefa enfadonha de levar de casa para o CAPS um micro-sistem, o equipamento de audiofrequência que ampliava nossa voz, e da preocupação em não danificá-lo. O novo equipamento trouxe para a oficina mudanças importantes. Os pacientes se sentiram mais à vontade para reclamar o manuseio do aparelho e interferir no volume de som. O registro da programação da rádio nas fichas e a função de locutor circularam. Passaram também a trazer alguns CDs. Há uma incorporação do processo de organização e funcionamento da oficina. A oficina torna-se familiar. Com esses visíveis avanços, os usuários da rádio puderam ousar fazê-la funcionar mesmo na ausência dos coordenadores.
A rádio organizou-se. Houve uma incorporação do seu modo de funcionamento pelos participantes. Paradoxalmente, notamos uma retração/diminuição dos fatos inusitados, da nossa alegria, como se nos aproximássemos de um funcionamento mais burocrático. Talvez, uma vez estabelecida a formalização e incorporação dos processos da oficina, poderíamos ser vítimas de uma estandardização da expressão, uma hipertrofia, e o elemento esquizo que nos envolvia poderia estar sendo expulso da oficina, em prol de uma organização mais neurotizada, vale dizer, calcada na boa comunicação, na adequação ou pertinência das opiniões, no bom contato com a realidade, enfim, num entorno social que tão-somente desvaloriza, como diz Goldberg (1996), e produz recalcamento dos interesses, das preocupações, do sentido dos gestos e das falas dos pacientes psiquiátricos. Tive receio de que a rádio ficasse hiperestruturada ou sobrecodificada e isso tivesse como efeito o desaparecimento do inesperado. Um olhar voltado para o centro, para o estabelecido, para as funções de locutor, enfim, para tudo aquilo que pudéssemos considerar posto, cairia na compartimentação e cristalização dos processos que queríamos deixar fluir. Se isso acontece, é a psicose que é novamente expulsa do espaço que propiciou e produziu. E é preciso olhar para as fronteiras da oficina, para aquilo que a atravessa, mas foge dos lugares estabelecidos. Talvez coubesse à coordenação – agora com a função de organização questionada e talvez dispensável – evitar a hiperestruturação, promovendo uma `escuta` dos produtos da periferia, das margens da oficina de rádio, renovando as conexões com os fenômenos que se multiplicavam ao redor, fazendo com que tais produtos intervissem na estrutura, atravessando e furando o centro onde o funcionamento estava assegurado, fazendo com que o conjunto maior da organização da atividade não impedisse a produção precária dos signos que de repente se anunciavam. Continuaríamos acolhendo assim as visões fragmentadas e inadequadas, os limites da linguagem e, sobretudo, manteríamos um espaço de expressão para modos peculiares de vida. Decidi então prestar ainda mais atenção nas margens e, uma vez considerada estabelecida e relativamente dominada por todos, a organização da programação foi relegada a um certo voluntarismo.
Nunes analisou o efeito da repetição de elementos pouco importantes da programação das rádios, o que ela chama de “desimportâncias” ou “informações informes” (Nunes, 1999, p. 16). Para ela, “a repetição exaustiva do nome da emissora, das horas e dos minutos oralizados nas estações de rádio” (p. 29) – aos quais poderíamos acrescentar a repetição dos quadros como as entrevistas, placar de futebol, mesa redonda, notícias, karaokê, slogans, tal como acontecia em nossa atividade – marcam um ritual comunicativo calendarizado. Tal recurso tem um caráter organizador do tempo, do espaço, das atividades cotidianas, dos gestos. A repetição e a valorização dos signos regulam a vida social e produzem os ritos que instauram e estabelecem laços, processos e rupturas do incomum. “A repetição, explica Nunes, de um elemento dentro de uma constelação simbólica engendra um ritual” (p. 34) e a ritualização garante-nos uma confiança no signo e abre-nos a possibilidade da participação. Garantir a presença dos signos e manter, ou ainda sustentar sua arrumação, contribui para renovar o espaço e o tempo, para reocupar o espaço e o tempo e renovar a si mesmo, isto é, as próprias forças. Os signos da participação ritualizada do ouvinte (no nosso caso um ouvinte-participante) mobilizam, seguindo a conclusão de Nunes (p. 41), a renovação sígnica e a emergência de novos signos.
A repetição dos signos, ou, na nomenclatura de Nunes, dos ritos de calendário (mudança de estação, hora certa, festas nacionais), o uso marcante do calendário na radiodifusão – no nosso caso, difusão de audiofrequência que designamos `rádio` – confirma a presença de poderes de coesão e coerção (Pross, apud Nunes, 1999). O ritual na oficina de rádio, entretanto, não mobiliza, como ocorre nos programas de rádio, o relaxamento da consciência, a perda da vigília, o automatismo, a eliminação da vida cotidiana. Nossa oficina desperta o cotidiano, histórias de vida são comentadas, as distâncias e os trajetos de casa para o CAPS são falados, aparecem as dificuldades comuns no trabalho etc.
Guiando-nos pelas opiniões de Nunes, esse ritual possibilita não apenas a consecução de um processo de comunicação e produção de um coletivo, mas sobretudo a expressão dos efeitos desse coletivo, na forma do inesperado, das pessoas que participam daquele encontro, naquele lugar de passagem e entre elas e o aparelho de audiofrequência. A ritualização marca o tempo e o espaço e abre-nos lugares de ação e intervenção, lugares de fala e gestos. O corte do tempo nos abre um tempo para existir, para experimentar a alegria e a potência desejante. A ritualização funda a promessa da experimentação do estranho e do diferente, de que o estranho pode retornar de modo suportável. Tendo as marcas do igual, o diferente pode para ali fluir, pois há “confiança originária em que o signo é algo, em que não há vazios que escapam ao desejo do homem de designação” (Pross, apud Nunes, p. 35).
Concomitantemente à retração do inesperado, percebemos depois, alguns quadros foram desaparecendo. Deixou de haver a mesa redonda sobre futebol, houve redução da participação; deixamos de dar as notícias do mundo, as entrevistas não foram mais feitas ou foram feitas apressadamente, com certo descaso, e reduziu-se a freqüência com que alguma coisa vinha nos surpreender-nos, trazer-nos algo diferente. Não apenas as falas inesperadas e as gagueiras da loucura passaram a ocorrer menos. O tempo de funcionamento da oficina também diminuiu. A oficina parecia começar para terminar, para tão logo quanto possível chegar ao fim. Ocorreu de terminarmos a programação em menos de uma hora, quando dispúnhamos de uma hora e meia e ainda chegávamos a avançar sobre esse tempo. “A rádio ficou jururu”, constatou um funcionário.
Ocorreu-me, num determinado dia, não convidar as pessoas para a oficina, muito embora confirmasse, para um e outro que me perguntava, que a rádio iria funcionar. Eu pensava na possibilidade de não mais realizar a oficina; questionava a continuidade da atividade. Quando dei por mim, lá estava tudo pronto, dois usuários montaram o equipamento de som e fizeram a programação. A rádio tinha vida própria. Não obstante, era clara uma desarticulação, uma decomposição ou uma redução da pulsação da rádio. Teria perdido seu frescor? Teria a rádio envelhecido?
Num outro dia, o locutor se esforçou em convidar as pessoas para falarem, para não deixar lacunas entre uma cena e outra. Esforço vão: o vazio crescia. O encontro com o vazio, a falta de participação, a dispersão total dos quadros e das pessoas. Vazio não apenas das pessoas que se evadiram, mas também de sentido, de linguagem, de gesto, de alegria. Na programação, só haviam restado os quadros do placar do futebol, do karaokê e os blocos musicais, o que era realizado em 35 minutos, quando tínhamos uma hora e meia. A separação entre a preparação, a execução do programa e os comentários tornou-se imprecisa. Até mesmo os bordões da rádio – `acerte o seu pelo nosso...`; `rádio CAPS, a força total da comunicação` –, as marcas que diferenciavam/escalonavam o tempo, os sinais que nos guiavam, já não eram repetidos pelo locutor. Uma das primeiras intervenções da rádio foi cortar, marcar o fluxo do tempo no vão espaço. Sem cortes, o tempo informe retorna. O tempo encurtou ou se dissipou, tornou-se liso, sem marcas nem dobras. No momento dos comentários o locutor declarou: “está vazio, hoje”. Anotei no meu diário: “a rádio hoje foi triste”.
O potencial criativo minguou e os velhos signos não ecoavam mais. Agora se diluíam, se dispersavam, fugiam. A dispersão e as intervenções fortuitas esvaziavam o sentido das falas, dos gestos e da própria organização da oficina. Durante o karaokê, por exemplo, deu-se notícias sobre outras oficinas – tornando aquele quadro ainda mais sem contornos – porém, ninguém prestava atenção. A dispersão consumia tudo. A rádio se aproximava mais da aparência dos gritos e frases inarticulados de uma paciente ao microfone; apesar das batidas da música, experimentávamos o amorfo e o indiferenciado, os fluxos borrados. A música não nos preenchia; eram batidas vazias de sintetizadores programados de última hora. Até mesmo a abertura e o encerramento, sempre razoavelmente bem marcados – o bom-dia, o comentário sobre o frio, o dia chuvoso e o sol brilhante, os agradecimentos e o convite para o próximo programa – ficaram perdidos, sem referência clara, sem ênfase, sem lugar algum.
Ali estávamos nós, termos, personagens ou atores – tanto faz – coagulados, em sua derrisão, depreciados, sem a vitalidade do encontro. As pessoas estavam ali, sozinhas, por si sós; entre elas havia ainda algum vínculo, mas sem vigor. Os termos separados são como cadáveres em busca de vida, lívidos à procura da potência animal.
Funcionando apenas com o placar de futebol e o karaokê, esses quadros perderam a definição que tinham no processo, e não apenas suas características se dissolveram, mas também a capacidade de diferenciação. Talvez a relativa definição dos quadros, dos lugares, dos fluxos, dos slogans que se perderam, oferecia abrigo aos acontecimentos inesperados, promovia a emergência de falas singulares, disruptivas, um abrigo ou um lugar que servisse como referência, como anuncia Goldberg (1996, p. 36). Talvez tenha ocorrido um abandono ou uma desorganização dos elementos da rádio: a participação aleatória, sem um momento definido para o karaokê, para as entrevistas com os funcionários, para a música, perdeu em qualidade, perdeu sua capacidade de intensificar a potência das falas e dos gestos e afetar as pessoas. O aumento do volume de som proporcionado pelo aparelho não correspondia mais a uma “ampliação da nossa voz”. Em vez do temido imobilismo proveniente de uma estandardização da oficina, a rádio poderia ter-se decomposto não por excesso de estruturação, tampouco por uma formalização rígida do espaço e do tempo, mas por uma desestruturação, um desordenamento do seu funcionamento, que nos impedia – qual um corpo dilacerado – de aproveitar a convergência e, simultaneamente, a divergência dos fluxos humanos que atravessavam a praça?
Ocorreu uma desritualização do nosso funcio-namento, desse aparelho que produzimos, que nos conectou de um certo modo e no qual nos conec-tamos. A perda das referências que a oficina tinha instalado desritualizava nosso processo, nos deixava confusos e esvaziava o sentido do que fazíamos. Sem o ritual, também o inusitado não aparecia, até mesmo por não ter o que atravessar para se mostrar, para se diferenciar. Assim era a oficina de rádio, que esquizofrenicamente se desmembrava. A oficina estava ali na experiência limite com o vazio, à semelhança da esquizofrenia – sem uma lembrança marcante em volta da qual girar, sem hierarquia de idéias nem de gestos, diante de um tempo e de um espaço sem estrias, sem entrada nem saída, sem curvas de nível. Não havia agrupamento nem não-agrupamento. Enquanto antes havia uma intensificação da vida coletiva, agora o registro mais intenso da desmontagem da rádio, tão próximo à esquizofrenia, era a decomposição do espaço coletivo ali deflagrado (Deleuze & Guattari, 1968, 39).
Era necessário repensarmos os rumos da oficina; repensar a programação musical, a participação, os quadros, a dispersão. Pensar pela questão da produção do ritual e da sua relação com o incomum seria um caminho para recompor o processo produtivo da oficina? Essa reflexão sobre a oficina favoreceu e fez parte de um esforço de recompor, de retomar a potência anteriormente experimentada.
Muito antes de a rádio chegar nesse estágio de decomposição, eu me angustiava quando senti os reflexos do esvaziamento que, por fim, tomou a forma descrita e se instalou na oficina de rádio. Verdadeiramente, pensar o problema da oficina a partir de uma desritualização do seu processo de execução trouxe um nível de avaliação que possibilitou a tentativa de retomar o fôlego da atividade através da retomada dos ritos, da repetição dos signos que já havíamos produzido. A retomada desse ritual proporcionou uma retomada da atividade, de modo que ela mostrou algum sentido, alguma ordem, alguma estrutura.
A rádio, porém, ou melhor, a oficina, definitivamente, já não era a mesma. Havia se produzido ali outra oficina. Uma atividade muito mais oficina do que rádio, vale dizer, muito mais pautada no modelo da instituição, como um produto no supermercado das oficinas psicoterapêuticas da saúde mental. Antes havia mais rádio. Nós nos comportávamos como se nossa voz, ampliada, potencializada, pudesse chegar longe, atingir alhures, a outrem muito além de nós. Que nossas emanações sonoras pudessem chegar num outro lugar, e que esse outro lugar recebesse nosso contato através daquele aparelho-rádio. Daí virem as mensagens de pacientes que foram internados em regime fechado e, de intensidade ainda maior, o envio de mensagens tanto para os vivos como para os mortos. Recados para pessoas ou coisas que não estavam presentes, ou tinham existência virtual. A atividade, então, tornou-se mais oficina terapêutica e menos rádio. Perdeu-se a dimensão do além e passamos a fazer as coisas para nós mesmos, muito mais voltados para o pequeno auditório do que para o mundo aberto, o vasto universo. Daí, talvez, o esvaziamento, a perda de sentido e a desritualização. Enquanto a rádio se colocou como o canal para nos ligar ao longínquo, ao estranho, a estranhos potenciais afetantes habitando mundos muito além de nós, ela criou uma potência que fez vibrar o cotidiano do hospital-dia, agitou a pulsão dos corpos.
Partamos de um ponto para tentar traçar as linhas de produção e de mutação da oficina de rádio. A doação do equipamento de som marca, talvez, um momento crucial, a passagem do estranhamento para a incorporação da oficina de rádio por todos aqueles que dela participavam. O equipamento utilizado, eu o levava todas as segundas-feiras para o CAPS, pois a instituição não tinha aparelho de som que nos permitisse a agilidade e a potência de som necessárias para a execução da nossa idéia. Era um equipamento que vinha de fora da instituição e não tinha vínculo formal, oficial, com o CAPS - Perdizes. O mesmo ocorria com a minha presença na instituição. Eu não era funcionário do CAPS, e isso provocava um desequilíbrio não somente nos pacientes que sempre perguntavam o que eu fazia ali, mas também com funcionários de apoio e técnicos, que estranhavam quando descobriam e redescobriam minha singular situação – eu não recebia salário pelo que fazia. Eu e o equipamento de som éramos, portanto, elementos estrangeiros na instituição, fazíamos parte de um `fora` da instituição? A própria oficina de rádio era um elemento de fora, era construída pela convergência de materiais, de forças provenientes de fora?.
Quando a oficina de rádio passou a acontecer, ela se desvinculou de nós todos e ninguém parecia dominá-la. Talvez todos nós procurássemos um lugar firme dentro dela. Isso apareceu muito claramente com minha parceira de coordenação da oficina: volta e meia estávamos discutindo sobre sua função na coordenação, na produção da atividade. Isso parecia inesgotável e só deixou de ocorrer quando se deu a “desritualização” considerada acima.
Como já foi dito, a doação do equipamento de som dispara uma incorporação da oficina de rádio por todo o grupo. Produz-se uma familiaridade e domesticação dos processos da oficina e a atividade é incorporada ao funcionamento da instituição. A rádio ganhou uma estrutura e qual a estrutura disponível senão a da instituição? A oficina de rádio vira uma `oficina`, e não mais uma atividade sustentada por uma presença exterior; ela é, finalmente, incorporada no funcionamento da instituição como uma oficina. Quando a presença do elemento estranho é neutralizado, a oficina entra na lógica da instituição; o estranho foi expulso ou foi incorporado. Com essa incorporação, a pulsão foi neutralizada e o desejo foi tolhido, as linhas de fuga que atravessam a oficina deixam de agir. Ocorreu então uma fuga do que antes encontrava voz ali.
Trata-se, então, de nos realojarmos numa estrutura de funcionamento que funciona como ritualização? Talvez agora esteja situada melhor a angústia que senti ao perceber os movimentos de recomposição do espaço e do tempo que tínhamos conseguido desalojar ao instalar o funcionamento da oficina de rádio. Talvez não seja a estrutura, a ritualização aquilo que nos faz produzir. A estrutura é uma produção, mas uma produção improdutiva, enclausurante, ela não nos libera para produzir mais; ao contrário. A retomada da ritualização pela repetição dos signos leva, no máximo, à reprodução de si mesmo. A oficina de rádio enquanto estruturada só se reproduz, no sentido de um aparelho burocrático.
Resta-nos, talvez, não o abandono da atividade de rádio, nem a busca de uma outra atividade por onde o desejo passe... Resta-nos, talvez, provocar fugas nessa oficina mesma, e, de um tal modo que nos conduza à produção de uma nova oficina nela própria. Produzir mais aquilo que escapa, e realizar, assim, o propósito maior da reabilitação psicossocial: reabilitar a potência da vida enquanto produtora de variações, de sentido, de diferenciações.
Referências bibliográficas
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Endereço para correspondência
Abrahão de Oliveira Santos
Av Alfonso Bovero, 336, ap. 31 Sumaré
01254-000, São Paulo, SP, Brasil.
Tel.:(11) 3675-3015
Recebido 19/04/01
Aprovado 22/11/02
1 Este texto faz parte das pesquisas de doutoramento do autor, que agradece o apoio financeiro da CAPS, na forma de bolsa flexível tipo demanda social.
2 Psicólogo clínico institucional. professor da Uniararas, Araras-SP. Doutor em Psicologia Clínica/ PUC-SP.
3 A oficina de rádio foi coordenada em parceria com a psicodramatista Isabel Abrahão, a quem agradeço a oportunidade do encontro e sua imensa generosidade.