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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.25 no.3 São Paulo maio/dez. 2020
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i3p358-361
10.11606/issn.1981-1624.v25i3 p358-361
EDITORIAL
Psicanálise e laço social: democratização e segregação na educação
Isael de Jesus SenaI; Leandro de LajonquièreII
IPós-doutorando, CIRCEFT EA 4384, Université Paris 8 Vincennes Saint-Denis, Saint Denis, França. E- mail: senaisael@gmail.com
IIMembro fundador do LEPSI, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: ldelajon@usp.br
Quando a injustiça, a exploração e a repressão são moeda corrente, a vida cotidiana é um pesadelo. No Brasil, a experiência cotidiana de uma interminável "hostilidade" social (Freud, 1930, p. 3047) faz da "cidadania" uma ideia natimorta. Ficamos à deriva, simplesmente fixados no slogan: "Brasil, o país do futuro". Essa afirmação não pode ser falseada, tal como um postulado religioso. A promessa contida no enunciado suspende a necessária implicação subjetiva de cada um para fazer vingar a Pólis em ato. A vida social é um contínuo de acontecimentos, não há "pontos de capitonê" num devir histórico, instituintes de uma diferença produtora de um tempo revoluto. As injustiças praticadas ainda hoje não viram liberdades celebradas, uma e outra vez, todos os dias. A justiça não constitui um sonho performativo de nossa vida social. Ela não passa de um teatral acerto de contas entre chefões de diversos calibres, fait-divers televisivo. Assim, nosso slogan imaginário usurpa a potestade do sonho de justiça, funcionando como uma simples miragem anestésica no deserto da exploração cotidiana. Os sonhos não devem ser confundidos com a vida ordinária. Sempre falta "algo" para a vida ser ideal. De fato, não há vida humana sem "rivalidade" (Freud, 1930, p. 3047). O problemático não é viver e sonhar, mas renunciar ao desejo que anima todo sonhar. A Pólis vira precisamente um deserto quando cessa o sonho de justiça social. Ademais, intensifica-se a rivalidade para justificar o estado de hostilidade social generalizado (Freud, 1930), à medida que ficamos entregues, passivamente, à eterna espera de "um país de verdade".
Os sonhos não só necessitam de um empreendedor que os execute, mas também de um capital para se arcar com o gasto de tamanho empreendimento. "O capitalista que fornece o desembolso psíquico para o sonho é, invariável e indiscutivelmente, um desejo do inconsciente" (Freud, 1901/1996, p. 87). Nessa mesma direção, Lacan (1992) afirma que "para que um sonho se sustente...o empreendedor da decisão", justamente aquele que dispõe do "capital da libido", deve decidir "passar em ato" (Lacan, 1992, p. 104).
Nesse sentido, a política implica uma aposta em fazer vingar um sonho. Os sonhos sonhados em conjunto podem suscitar a adesão de um ato necessário, embora imediatamente desagradável, pois implica cortar a própria carne, como costumamos dizer. Edouard Balladur conhecido político liberal francês, primeiro ministro do ex-presidente socialista François Mitterrand alertava sobre o perigo de se empregar no governar "muitas palavras, travestindo a realidade, exagerando quanto à possibilidade de melhora, resultando inevitavelmente na produção de decepção e, depois, de cólera naqueles que se sentem enganados". (Balladur, 1992, p. 252). Assim, a potência da vida democrática pode ficar comprometida ou, nas palavras de Etchegoyen (1993), tornar-se doente de mentiras. Em suma, não podemos perder de vista que, uma coisa são os sonhos que possibilitam a Pólis e, uma outra, o véu imaginário da retórica cínica a serviço da inibição do ato de aprofundamento de uma vida tomada em sonhos.
O debate sobre as vicissitudes e os impasses na vida societária reclamam que retomemos ao operador lógico organizador proposto por Freud, isto é, à operação de se produzir uma e outra vez après-coup o Pai-morto, como ideia diretriz do laço social tomado em sonho de justiça.
Freud propõe, em Totem e Tabu (1914), a existência, nos alvores da história, de um chefe gozador que reservava para si os bens preciosos do momento: todas as fêmeas disponíveis. Qualquer oposição ao tirânico custava aos sem-fêmeas a morte. Porém, em um belo dia, em vez de consumirem o tempo odiando em silêncio o chefão ou fazendo-lhe bajulações em público, eles comungam em um ato que se revelará performativo. Em um conclave, todos, após terem assassinado o chefe, comeram-no, passando a experimentar remorso e culpabilidade pela ação realizada. Na esteira da emergência desse novo sentimento, os sem-fêmeas passam a se proibir daquilo que antes eram impotentes para realizar, cada um por seu lado. Eles se tornam irmãos na autoproibição de usufruir das fêmeas, agora convertidas em mães e irmãs, bem como passam a se referir, simbolicamente, à vida societária a partir de um totem herdeiro da outrora potência do chefão. Entretanto, essa história não acaba aqui; é nesse momento que, de fato, ela começa. A lembrança do crime primordial é psiquicamente indelével e, portanto, insufla uma interminável expiação sempre mais ou menos fracassada. O retorno do recalcado é sempre disfarçado. Em outras palavras, não lembramos do assassinato coletivo de um chefe-privador arbitrário, tampouco do pacto de renúncia da ocupação do lugar vacante do chefão. A outrora admiração à potência do chefe, correlativa à impotência solipsista dos primevos sem-fêmeas, retorna sob a forma de um culto culposo ao Pai. Dessa forma, os filhos-irmãos não só se iludem acreditando terem morto um Pai e não um chefão, como também assumem que a culpa é suscetível de ser expiada, seja pela via religiosa, seja pela inibição em aprofundar a aliança fraterna.
A culpa reduz a impossibilidade auto-imposta dos filhos-irmãos de cada um vir a bancar o chefão à impotência para agir de forma fraterna, guiados por um sonho de justiça. Em suma, a dupla recalque do crime/culpa possibilita a emergência do social e corrói a contratual interdição do incesto, pilar necessário à Pólis. Nesse sentido, o "teatro fraternal" (Assoun, 2003) abre margem para a recaída no despotismo entre os homens, isto é, para a reiteração ad-infinitum da dominação primeva na qual filiação e fraternidade são impossíveis.
No entanto, Freud aposta na possibilidade de uma vida na Pólis ciente de sua imanente fragilidade, em vez de uma vida condenada a renunciar ao desejo em nome da transcendência divina qualquer alicerçada na culpa. Essa aposta em uma vida societária não "hipócrita" acorde "à verdade psicológica" (Freud, 1915/1973, p. 2107). Diferentemente dos retornos idealizados à horda primeva que são, por exemplo, os exércitos e as igrejas, implica uma vida cotidiana regida por uma "ideia diretriz", isto é, nem por chefões de plantão nem pelo culto a um totem qualquer (Freud, 1921/1973, p. 2579). De que ideia se trata?
Lajonquière (2000, 2020) lembra que Freud retoma, em Moisés e a religião monoteísta (1939), o crime primordial e acrescenta um elemento no raciocínio de Totem e Tabu. Os preceitos de não danificar o totem, de renunciar à mãe e às irmãs da "aliança fraterna", bem como a igualdade de direitos entre os membros da aliança obedecem a razões diferentes. As "duas primeiras proibições ajustam-se ao espírito do pai eliminado, perpetuando, em certo modo, a sua vontade", mas "o terceiro preceito, ao contrário, aquele de iguais direitos para os filhos-irmãos, prescinde da vontade paterna e só justifica-se pela necessidade de manter-se a nova ordem estabelecida" (Freud, 1939/1973, p. 3290, p. 3313). Ou seja, a formulação desse preceito, diferentemente dos dois primeiros, não responde à economia da culpa. Para Freud, a "aliança fraterna" é tanto ruptura quanto pura novidade em relação à horda primeva; a sua dinâmica passa a animar o devir histórico.
A aliança fraterna é o mesmíssimo contrato de iguais direitos para todos os filhos-irmãos. Trata-se de duas faces de uma mesma moeda ou, se preferirmos, de duas dimensões da iteração ilimitada de um mesmo e único ato, aquele produtor da ideia diretriz do Pai-morto. É impossível separarmos as ideias do Pai-morto e da aliança fraterna e igualitária de direitos. A invenção da fraternidade nem religiosa nem culposa transforma homens bastardos sem-fêmeas em uma Pólis de filhos-irmãos. Ela vinga na proporção da lembrança de que a barbárie primeva e a Pólis são dois pólos que se repelem, assim como Joaquim Nabuco dissera a respeito de a senzala e a escola. Elas tencionam o laço social. Os homens são condenados a escolher, na hora "h" da vida societária, aproximar-se de um ou de outro pólo.
Não há mais filiação cidadã quando participantes da aliança fraterna renunciam a interrogar- se sobre o que é ou deixa de ser justo: a ideia do Pai-morto desmancha-se no ar. Assim, para a ideia diretriz da vida societária não virar letra morta, os homens devem aprofundar uma e outra vez a justiça do pacto fraterno que os transforma em filhos-irmãos.
As ditas malezas da vida societária no Brasil não são desvios em um processo evolutivo escrito de antemão. Não são efeitos de uma genética particular nem constituem a prova de uma potente penitência divina. Elas continuam o retorno mais ou menos disfarçado do gozo escravocrata em um cenário societário amarrado à culpa e ao culto religioso a totens e impostores paternos de todo tipo.
A nossa típica segregação escolar público/privada amarra os diferentes registros de nossa vida societária. As nossas instituições de educação e formação perpetuam, além da reformitis pedagógica aguda, sempre mais ou menos cosmética e mercantil, a barbárie primeva supostamente revoluta. A escravidão foi abolida, porém seu fantasma continua a nos assombrar com cada uma de nossas malezas societárias. Insistimos em nada querer saber, pois "sem o sonho justo de uma escola para todos não há escola para ninguém, embora possa haver simulacro para uns poucos" (Lajonquière, 2018, p. 67). Essa paixão nacional por ignorar que a senzala e o sonho de uma escola para todos se repelem é a marca indelével de nossa inibição em aprofundar a aliança igualitária de direitos.
Os textos dos colegas convidados a compor este dossiê dizem, cada um à sua maneira singular, o seguinte fato: quando renunciamos aos sonhos, a vida vira um pesadelo sem fim.
Referências
Assoun, P-L. (2001). Fréres et soeurs : Leçons de Psychanalyse. Paris: Anthropos. [ Links ]
Balladur, E. (1992). Dictionnaire de la réforme. Paris: Fayard. [ Links ]
de Lajonquière, L. (2000). Psicanálise, Modernidade e Fraternidade. Notas introdutórias. In M. R. Kehl (Org.). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará [ Links ].
de Lajonquière, L. (2018). As ilusões (psico)pedagógicas e o sonho de uma escola para todos. In M. E. Arreguy, M. B. Coelho & S. Cabral (Orgs.). Racismo, capitalismo e subjetividade: Leituras psicanalíticas e filosóficas. Rio de Janeiro: EDUFF. [ Links ]
de Lajonquière, L. (2020). L'invention bien humaine de la haine. Analyse Freudienne Presse, 27, 53-68. doi: https://doi.org/10.3917/afp.027.0053 [ Links ]
Freud, S. (1973). La interpretación de los sueños. In S. Freud, Obras completas (Vol. 1, L. Lopez-Ballesteros, trad., pp. 343-720). Madri: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1900). [ Links ]
Freud, S. (1973). Tótem y tabú. In S. Freud, Obras completas (Vol. 2, L. Lopez-Ballesteros, trad., pp. 1745-1850). Madri: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1912). [ Links ]
Freud, S. (1973). Consideraciones de actualidad sobre la guerra y la muerte. In S. Freud, Obras completas (Vol. 2, L. Lopez-Ballesteros, trad., pp. 2101-2117). Madri: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1915). [ Links ]
Freud, S. (1973). Psicología de las masas y análisis del yo. In S. Freud, Obras completas (Vol. 3, L. Lopez-Ballesteros, trad., pp. 2563-2610). Madri: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1921). [ Links ]
Freud, S. (1973). Moisés y la religión monoteísta. In S. Freud, Obras completas (Vol. 3, L. Lopez-Ballesteros, trad., pp. 3241-3324). Madri: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1939). [ Links ]
Lacan, J. J. (1992). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. (Ary Roitman, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Apresentação oral em 1969-1970, publicação original em 1991). [ Links ]
Nabuco, J. (2012). O abolicionismo. Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1883). [ Links ]
Recebido em dezembro de 2020 Aceito em dezembro de 2020.
Revisão gramatical: Aline Carvalho Cerqueira Fonseca (mestra em Letras pela UESC).
E-mail: alinecarvace@outlook.com