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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.2 Belo Horizonte dez. 2008

 

ARTIGOS

 

A mulher é mãe por natureza? As técnicas de procriação medicalmente assistidas, à luz da psicanálise, no contexto francês

 

Is woman a mother by nature? Medically assisted procreation techniques, in the light of psychoanalysis, in the French context

 

La femme est-elle une mere par nature? Les techniques de procréation médicalement assistée au prisme de la psychanalyse en contexte français

 

¿La mujer es madre por naturaleza? Las técnicas de procreación médicamente asistida, a la luz del psicoanálisis, en el contexto francés

 

 

Marie Gaille*

Universidade Paris-Descartes

 

 


RESUMO

Este artigo pretende contribuir para a compreensão de uma questão específica, classicamente debatida nas ciências humanas, especialmente nos campos da psicologia, da psicanálise, da sociologia, da antropologia, da filosofia (política, moral ou das ciências): a mulher é mãe por natureza? O texto se situa na interseção da teoria com a prática. Seu objeto se refere à maneira pela qual a psicanálise foi convocada à cabeceira do paciente, a fim de ajudar a compreender o fenômeno da esterilidade, quando esta não se explica somente por razões fisiológicas. Ao mesmo tempo, discute-se o modo pelo qual as práticas de procriação medicalmente assistidas contribuem hoje para renovar as hipóteses teóricas da psicanálise relativas à experiência feminina da gravidez e da maternidade. Este artigo se centra, em especial, em uma das hipóteses elaboradas para se entender a esterilidade, ou seja, a relação da paciente com sua própria mãe e com sua “passividade”.

Palavras-chave: Maternidade, Desejo, Psicanálise, Esterilidade, Atividade/Passividade.


ABSTRACT

This article aims at contributing to the understanding of a specific issue, classically debated in humanities, especially in the fields of psychology, psychoanalysis, sociology, anthropology and (political, moral or scientific) philosophy: is woman a mother by nature? The text concerns the intersection between theory and practice. Its focus is the way psychoanalysis was summoned to the patient’s bedside to help understand the phenomenon of sterility, when it cannot be explained only by physiological reasons. At the same time, it discusses the way by which medically assisted procreation practice nowadays contributes to renew theoretical hypotheses of psychoanalysis related to the female experience of pregnancy and maternity. The article considers particularly one of the hypotheses elaborated to explain sterility, that is, the patient’s relation with her own mother and with her ‘passivity’.

Keywords: Maternity, Desire, Psychoanalysis, Sterility, Activity/Passivity.


RÉSUMÉ

Cet article se propose d’apporter un éclairage spécifique à une question classiquement débattue dans les sciences humaines, notamment par la psychologie, la psychanalyse, la sociologie, l’anthropologie, la philosophie (politique, morale ou des sciences): la femme est-elle une mère par nature? Il se situe au point de croisement de la théorie et de la pratique. Il a pour objet la manière dont la psychanalyse a été invitée au chevet du patient, à éclairer le phénomène de la stérilité, lorsque celle-ci ne s’explique pas seulement pour des raisons physiologiques et simultanément, la façon dont les pratiques de procréation médicalement assistée contribuent aujourd’hui à renouveler les hypothèses théoriques de la psychanalyse relative à l’expérience féminine de la grossesse et de la maternité. Cet article s’intéresse notamment à l’une des hypothèses élaborée pour rendre compte de la stérilité (relation de la patiente à sa propre mère et à la « passivité »).

Mots clé: Maternité, Désir, Psychanalyse, Stérilité, Activité/Passivité.


RESUMEN

Este artículo pretende contribuir a la comprensión de una cuestión específica, clásicamente debatida en las ciencias humanas, especialmente en los campos de la psicología, del psicoanálisis, de la sociología, de la antropología, de la filosofía (política, moral o de las ciencias):¿ La mujer es madre por naturaleza? El texto está en la intersección de la teoría con la práctica. Su objeto se refiere a la manera en que el psicoanálisis fue convocado a la cabecera del paciente, para ayudar a comprender el fenómeno de la esterilidad, cuando dicha esterilidad no se explica solamente por razones fisiológicas. Al mismo tiempo, se discute el modo en que las prácticas de procreación médicamente asistida contribuyen hoy para renovar las hipótesis teóricas del psicoanálisis relativas a la experiencia femenina del embarazo y de la maternidad. Este artículo se centra, especialmente, en una de las hipótesis elaboradas para entender la esterilidad, o sea, la relación de la paciente con su propia madre y con su “pasividad”.

Palabras clave: Maternidad, El deseo, El psicoanálisis, La esterilidad, La actividad/pasividad.


 

 

Em 2005, Henri Atlan publica L’utérus artificiel (O útero artificial). Ele fala, nesse texto, de um projeto ainda técnica e cientificamente incompleto:

Criar as condições para que embriões, de animais em primeiro lugar, se desenvolvam fora do ventre de sua mãe [...] desde uma fecundação in vitro até o nascimento, tudo deverá acontecer em uma espécie de incubadora que exerceria as funções normais de um útero, da placenta e do próprio organismo materno, na condição de aparelho nutritivo e excretor, bem como de fonte de estímulos diversos, cada vez mais estudados. (Atlan, 2005, p. 27-28)

Nos Estados Unidos, comenta o autor, discussões de ordem médica e ética começaram há alguns anos a esse respeito. Ele cita, por exemplo, uma conferência internacional que aconteceu na Oklahoma State University, em outubro de 2002, sobre o tema: The end of natural motherhood? The artifical womb and designer babies. De seu ponto de vista, existem razões sociais para proibir o uso dessa técnica, caso ela seja aperfeiçoada, mas elas não resistiriam por muito tempo, face ao desejo das mulheres de evitar a gravidez:

No entanto, muito rapidamente ocorrerá uma demanda por parte de mulheres que desejam procriar, poupando-se das limitações de uma gravidez. Desse ponto de vista, os desafios apresentados pelo útero artificial devem aproximar-se não daqueles inerentes à procriação medicalmente assistida, mas dos da pílula contraceptiva e da liberalização do aborto. Não será invocado um “direito à criança” mais ou menos contestável, mas o direito que as mulheres têm de dispor de seu corpo. Assim que for possível procriar, evitando uma gravidez, em nome de que se negará a reivindicação das mulheres em condições de escolher esse modo de gestação? (Atlan, 2005, p. 89-90)

Nos dois últimos capítulos dessa obra, Atlan volta a falar da escolha desse modo de gravidez pelas mulheres, interrogando-se sobre o alcance de tal potencial de gravidez: “mães desprovidas ou mulheres liberadas”?

Ignoramos se a mulher é uma mãe por natureza, mas até hoje nunca houve maternidade sem mulher, de tal sorte que é na experiência da procriação que se percebe, de modo inflexível, desde que o mundo é mundo, a diferença dos sexos. (Atlan, 2005, p. 125)

Dessa maneira, o aperfeiçoamento da ectogênese dará um golpe definitivo e final na assimetria “imemorial”: homens e mulheres tornar-se-ão iguais “diante de todas as limitações impostas pela reprodução da espécie” (Atlan, 2005, p. 126). Uma revolução antropológica acompanhará, sem dúvida, esse aperfeiçoamento.

Nem todo mundo partilha esse ponto de vista sobre a ectogênese. Atlan cita longamente a feminista americana G. Corea que, longe de pensar que o aperfeiçoamento da ectogênese seria um passo a mais no estabelecimento da igualdade entre homens e mulheres, estima que as pesquisas científicas realizadas sobre essa técnica são destinadas a fundamentar ainda mais a dominação masculina.

Três anos mais tarde, o filósofo e jornalista científico Descamps publica L’utérus, la technique et l’amour (O útero, a técnica e o amor), obra que comenta e retoma determinados aspectos da escrita provocadora de Atlan. Entre outras questões, ele aborda, de maneira crítica, a da associação entre mulher e mãe e, mais precisamente, entre a mulher em sua figura de mãe e a gravidez, já que a ectogênese teria precisamente a função de fazer com que crianças nasçam sem gravidez no útero da mulher:

Por que, aliás, fazer da gravidez, ou de sua simples possibilidade, o elemento fundamental da definição da mulher? Não é esse tipo de redução que, no curso da longa história da dominação masculina, justificou a sujeição e a minoridade jurídica das mulheres? (Descamps, 2008, p. 14)

Descamps evoca também o debate feminista, citando, como Atlan, Corea (1985) e, do lado das feministas, para quem a ectogênese contribuiria à igualdade dos sexos, Firestone (1971). Nos anos 1970, esta última afirmava que a origem da desigualdade dos sexos deveria ser buscada na diferença dos papéis na reprodução, e que pretendia buscar os meios para liberar a mulher da tirania da reprodução.

Descamps se preocupa particularmente em destrinchar o discurso feminista diferencialista: de acordo com ele, esse discurso esconde a tese segundo a qual a mulher, seja ela mãe ou não, está mais apta a cuidar de recém-nascidos do que o homem. Entre outras razões apresentadas no debate contemporâneo, ele cita “o poder do desejo de ser mãe”, evocado por Habib (2004). A gravidez em si é, às vezes, percebida como criadora do laço mãe-filho, donde a expressão irônica de Descamps de utérus aimant 1 (Descamps, 2008, p. 135)

Ele critica essa perspectiva, observando que a aproximação existencialista entre a mulher, o filho e a natureza que a fundamenta esteve presente durante muito tempo nos discursos destinados a justificar a dominação masculina:

A diferença dos sexos, como elemento dessa ordem natural da geração, deveria, portanto, ser plenamente admitida pelo direito. Mas, além de assumir uma humanidade dividida em dois sexos, o discurso diferencialista insiste também na revalorização e na ênfase do caráter propriamente e exclusivamente feminino. Ora tal caráter, tal como descrito nesse discurso, tem por principal virtude o fato de ser mais natural do que o do homem, mais doce também, mais próximo do filho, mais maternante etc. E, como vimos, esse caráter mais natural e mais amante está ligado à gestação, não concebida como experiência vivida pelas mães que pariram, mas como atributo das mulheres em geral, em virtude somente de seu pertencimento ao sexo feminino. O raciocínio que preside essa extensão das qualidades morais, associadas ao fato da gestação, não é de um rigor extremo. Mas o fato é que, expresso ou não, ele está sempre presente nos postulados do discurso diferencialista. Ele consiste em mostrar que a gestação, como fato naturalmente feminino, é, ao mesmo tempo, causa da propensão à solicitude e uma das manifestações de caráter mais fundamental, propriamente pertencente ao sexo feminino. (Descamps, 2008, p. 146-147)

Essas duas obras colocam a questão: a mulher é mãe por natureza? Mas elas não fazem realmente essa pergunta, elas postulam determinados elementos de resposta sobre o tema, para discussão. Aqui, vamos propor a abordagem da pergunta, mas vamos fixar-nos, para o propósito deste artigo, uma ambição extremamente modesta a seu respeito.

Essa pergunta se impõe para nós por várias razões: em primeiro lugar, ela ecoa os vestígios de um discurso naturalista sobre a mulher como mãe, no contexto contemporâneo, por exemplo, no discurso feminista diferencialista; ela remete igualmente às diversas representações que ligam o sucesso do ser-mulher à maternidade.

A esse respeito, encontramos muitas referências na literatura sobre a procriação medicalmente assistida, sinal de que os profissionais da área de saúde, que se veem face às situações de incapacidade de procriar, são, sem dúvida, frequentemente confrontados a tais representações. O psicanalista G. Bonnet, por exemplo, começa sua análise indicando, a esse respeito, que

Na mentalidade africana, uma mulher não é considerada como tal enquanto não tiver procriado. Na Bíblia, tudo deve ser feito para curar a esterilidade; não somente para perpetuar a linhagem, como já se disse muitas vezes, mas porque se considera que a mulher sem descendência foi atingida por Deus, e, portanto, ela está em pecado. No Novo Testamento, a história de Isabel, a mãe de João Batista é exemplar por vários motivos: a cura de sua esterilidade significa que a salvação tão esperada chegou, trata-se de uma antecipação da cura total e definitiva, esperada pelo povo inteiro. (Bonnet, 2008, p. 104-105).

Além disso, um dos interesses para se fazer tal pergunta, no contexto sociotécnico contemporâneo, é que ela hoje não faz mais sentido quando enunciada em um formato tão genérico: a mulher é mãe por natureza, no sentido em que ela seria naturalmente maternante? Na afirmativa, aquelas que seriam designadas como “mães” poderiam ser simplesmente adotivas. Elas poderiam desenvolver suas qualidades maternantes sem ter tido filhos. A ideia de maternidade implicaria então a gestação (maternidade uterina)? O recurso à barriga de aluguel suscita um questionamento neste aspecto: ele implicaria a transmissão do patrimônio genético (maternidade ovariana)? Aqui também o recurso à doação de ovócitos suscita uma questão. Ora, se ser mãe é natural para a mulher, é preciso saber de que maternidade se está falando, bem como qual noção permeia as diferentes experiências que podem se associar umas às outras, como viver de modo distinto e não acumulado. Como diz curiosamente a psicanalista Faure-Pragier, podemos hoje imaginar uma

Cena primitiva medicalmente assistida muito original, ao longo da qual a criança descobre que seus pais nunca tiveram relações sexuais, que sua mãe é virgem, que seu pai não é seu pai e que, para terminar, ele é o filho secreto de um “super-homem” cuja fecundidade é incomensurável. (Faure-Pragier, 1977, p. 212)

Há, portanto, um problema conceitual próprio à noção de maternidade, que torna nossa questão particularmente complexa. Enfim, todos aqueles que, de perto ou de longe, observam o uso das técnicas contemporâneas de procriação medicalmente assistida só podem ficar tocados pela força e a recorrência do desejo de ter filhos, manifestado pelas mulheres, desprezando-se a idade, o peso dos procedimentos de assistência, as estatísticas pouco encorajadoras, os riscos de transmissão de patologias etc. Podemos citar o caso de Maria Pirès, relatado por Surreau, que fez, em vão, sete tentativas de fecundação in vitro, entre 1984 e 1990 (Surreau, 2003).

Neste artigo, no entanto, a pergunta “a mulher é mãe por natureza” será vista de maneira bastante delimitada. Interessamo-nos aqui pelos discursos produzidos por psicanalistas, que encontram, em suas práticas profissionais, mulheres que recorreram à procriação medicalmente assistida. Esse interesse específico tem dois motivos. Em primeiro lugar, o discurso psicanalítico, seja ele enunciado pelo especialista ou retomado de modo difuso, no hospital, pela equipe de cuidados, ocupa efetivamente um lugar no dispositivo de procriação medicalmente assistida, na França, desde os anos 1980. Em contexto hospitalar e, talvez mais amplamente, social, ele tem seu papel na interpretação dada ao desejo de ter um filho, expresso por casais e, em especial, pelas mulheres que buscam beneficiar-se da assistência médica à procriação. Ora, contrariamente ao que sugere Fraisse, para quem “a psicanálise tem em comum com a literatura o pressuposto de uma imutabilidade da relação entre os sexos” (Fraisse, 2001, p. 15-16), estimamos que esses discursos formam um conjunto complexo e submetido a diversas tensões.

 

O quadro teórico freudiano

Uma literatura psicanalítica abundante destacou a relação complexa ou mesmo problemática que o pensamento freudiano mantém com a figura feminina e com a ideia de feminilidade. A esse respeito, ver, por exemplo, Assoun (1983), Barande (1977), Granoff (1976), Kofmann (1980). Para uma crítica dos usos públicos da psicanálise a respeito da diferença sexual, ver Prokhoris (2000). Nosso objetivo aqui não é entrar nessa discussão. Pelo contrário, queremos sair do debate exegético sobre o pensamento freudiano e ver como o pensamento psicanalítico se desloca quando se vê confrontado a uma situação de cuidado, como a procriação medicalizada. Por isso, julgamos pertinente apresentar o quadro teórico freudiano como ponto de partida para uma reflexão que é levada a modular-se diante de uma prática de cuidado.

 

A sexuação das identidades em Freud e a tese da primazia do falo

A questão das identidades sexuadas na psicanálise é extremamente complexa. E, de certa forma, podemos dizer que ela leva consigo o movimento de teorização da própria psicanálise. O Vocabulaire de la psychanalyse, de J. Laplanche e J.-B. Pontalis, insiste, antes de tudo, no breve verbete consagrado à “Masculinidade-Feminilidade”, no fato de que Freud pensava em diferentes significados para esses termos:

Freud sublinhou a variedade dos significados abrangidos pelos termos “masculino” e “feminino”: o significado biológico, que remete o sujeito a seus caracteres sexuais primários e secundários; os conceitos têm aqui um sentido muito definido, mas a psicanálise mostrou que esses dados biológicos não chegavam para explicar o comportamento psicossexual. Significado sociológico, variável segundo as funções reais e simbólicas atribuídas ao homem e à mulher na civilização considerada. Por fim, significado psicossexual, necessariamente implicado nos precedentes e especialmente no significado social. Isso mostra como são problemáticas essas noções e como devem ser vistas com prudência; assim, uma mulher que exerça uma atividade profissional que exija qualidades de autonomia, de caráter, de iniciativa etc., não é necessariamente mais masculina do que outra. De um modo geral, o que é decisivo na apreciação de um comportamento relativamente ao par masculinidade-feminilidade são os fantasmas subjacentes e que só a investigação psicanalítica pode descobrir. (Laplanche & Pontalis, 1997, p. 230).

O outro aspecto que esse artigo destaca é o seguinte: para Freud, a oposição e até mesmo a diferença entre o masculino e o feminino não são dadas a priori. Particularmente no desenvolvimento do indivíduo, elas são precedidas, na infância, por fases em que as oposições ativo/passivo e fálico/castrada têm uma função prevalente. Além disso, a cisão radical entre identidade feminina e identidade masculina permanece até certo ponto problemática. Podemos observar essa dimensão de seu pensamento na maneira pela qual Freud busca situar-se, relativamente à hipótese da bissexualidade, proposta por Fliess, segundo a qual todo ser humano teria constitucionalmente disposições sexuais ao mesmo tempo masculinas e femininas, que se encontram nos conflitos que o sujeito enfrenta para assumir seu próprio sexo. Freud, em 1930, não se mostra muito convencido da teoria da bissexualidade, entre outras coisas, porque, segundo ele, o conceito de bissexualidade exige uma clara apreensão das noções de masculinidade e de feminilidade. Ora, como acabamos de ver, para ele, os significados biológicos, sociológicos e psicossexuais, muitas vezes misturados desses dois termos (masculino/feminino) impedem tal clareza. Mas, ao mesmo tempo, ele aceita a ideia de que “existe em indivíduos dos dois sexos moções pulsionais, tanto masculinas quanto femininas, que podem tornar-se todas elas inconscientes, através do recalque” (Laplanche & Pontalis, 1997, p. 224).

Laplanche e Pontalis comentam, nesse sentido, a evolução do pensamento de Freud, relativamente à ideia da bissexualidade: se Freud, em Análise terminável e intermiável (1937), parece apesar de tudo aproximar-se da concepção de Fliess, admitindo que é “... o que vai ao encontro do sexo do sujeito que sofre o recalque” (inveja do pênis na mulher, atitude feminina no homem), ele o faz em um texto que insiste na importância do complexo de castração, que não se explica somente pelos dados biológicos.

Concebemos que há para Freud uma grande dificuldade em acordar a ideia de bissexualidade biológica com a ideia que se afirma sempre mais claramente em sua obra, a da prevalência do falo para ambos os sexos (Laplanche & Pontalis, 1997, p. 51).

Aqui nos aproximamos de nosso objeto, ao investigar o lugar ocupado pela organização fálica. Em primeiro lugar, um ponto de terminologia: a psicanálise contemporânea designa por pênis o órgão masculino, em sua realidade corpórea, e por falo o valor simbólico deste. Freud estabeleceu progressivamente a tese da primazia do falo para os dois sexos. A menina não teria consciência de sua vagina e perceberia sua diferença anatômica com o menino como uma espécie de falta, de ausência. A tese da primazia do falo parece ter uma incidência direta no desejo de procriação: pelo menos uma parte desse desejo equivale ao desejo de ser completado, a fim de preencher a falta (de pênis). Lembremos que o estágio fálico designa a fase da sexualidade infantil entre 3 e 6 anos, na qual, para os dois sexos, as pulsões se organizam em torno do falo.

 

Um corpo estranho no corpo da mulher: abertura à alteridade ou efração traumática?

Schneider propôs uma leitura da obra de Freud que constitui um primeiro passo para uma representação mais ambivalente da mulher como mãe por natureza. O paradigma feminino lembra, para começar, que “seria vão negar a prevalência das referências masculinas na construção, por Freud, da psicanálise. Quando questionamos os textos teóricos de alcance sintético, a referência fálica engloba tanto o destino masculino quanto a abordagem da feminilidade. No entanto, essa perspectiva interpretativa da diferença dos sexos, observa ela, está associada a um questionamento específico, centrado no aparecimento, no menino, do complexo de castração, baseado, segundo Freud, em uma ameaça da mãe, relativa à proibição da masturbação. O complexo nasceria do fato de que o menino pôde ver que o pedaço “estava faltando” na mãe: ela teria sido castrada; a ameaça deveria, portanto, ser levada a sério. Nesse texto, Freud evoca o fascínio da menina pelo pênis. Ao não conseguir satisfazer-se com a masturbação, a menina atribuiria sua derrota à falta de pênis. O gozo masculino aparece aqui como sendo a medida-ouro do gozo feminino. Por isso, a menina se distanciaria da mãe, já que, a seus olhos, a mãe a fez maldotada. O seio, que poderia eventualmente aparecer como uma especificidade do feminino e preencher a falta, a ausência, não é apresentado como parte do corpo da mulher: ele se encontra na boca da criança.

No entanto, essa prevalência da falta e da ausência, como marca do feminino, não é evidente na teoria freudiana: M. Schneider evoca Françoise Héritier (1994) quando esta afirma que O homem dos lobos destaca a falta masculina, além de observar que

A diferença dos sexos está na possibilidade, presente ou ausente – “o infringível, escreve ela, é o engendramento feminino” – de conceber, já que algumas mulheres passam a ter acesso aos privilégios sociais reservados ao sexo masculino, após a menopausa. Se seguirmos essa indicação, é o sexo masculino que se vê afetado pela falta... (Schneider, 2006, p. 12)

Voltando a Freud, Schneider propõe que sua obra seja vista não como “um espaço de um único dono, mas um lugar marcado por fissuras, por desabamentos de terra, por superposições de lógicas heterogêneas” (Schneider, 2006, p. 19), o que vai permitir que apareçam outras linhas de força teóricas, outros “nichos de germinação” (p. 35). Ora, entre estes, emerge uma teorização da relação com a maternidade, que dá uma imagem problemática da relação da mulher com sua capacidade de conceber. Com efeito, Freud parece nutrir uma visão ambivalente, com relação à assimilação da mulher à esfera doméstica e ao desenvolvimento familiar. Tanto para a maternidade quanto para a sexualidade, ele denuncia vigorosamente, mas, às vezes, também avaliza códigos sociais:

A atenção dada a essas profissões de fé permite medir a distância existente entre as diversas declarações freudianas. Há sinais de parentesco evidentes: o tema da mulher como “entrave ao progresso” será retomado tal e qual em O mal-estar na civilização; o corte entre a “vida”, campo reservado às mulheres, e a intelectualidade, se encontra tanto no poema paródico enviado por Freud a Fliess quanto em uma das teses centrais de Moisés e o monoteísmo. O autor da “moral sexual civilizada” adota um ponto de vista radicalmente contestatório: a fragilidade nervosa da mulher não faz parte da porção da mulher intelectual ou emancipada; é o destino tradicionalmente imposto à mulher que produz, ao mesmo tempo, uma intimidação quanto à intelectualidade e um enfraquecimento da vida pulsional. (Schneider, 2006, p. 64)

O texto freudiano Um caso de cura hipnótica enuncia observações decisivas sobre o aparecimento de sintomas histéricos pela “contravontade”. Freud cita nessa obra o caso de uma mulher, pela qual ele evoca as “dores” e o “fardo” (Beschwerden) que A interpretação dos sonhos associará ao destino da maternidade. Ele usa o termo Aufnahme (admissão, acolhimento), que será regularmente retomado, quando leva em conta a operação feminina. Num primeiro movimento de teorização, no desenvolvimento dos Estudos sobre a histeria, o que parece ser marcante é a necessidade de “jogar para fora, proteger seu próprio recinto para vigiar o eventual aparecimento de um estrangeiro que venha se abrigar lá dentro” (Schneider, 2006, p. 77). Um corpo estranho penetra na mulher: ele comete uma efração e essa penetração é um trauma. Eis o que os fenômenos histéricos revelam, segundo Freud. A mulher aparece essencialmente caracterizada pela possibilidade, própria de seu corpo, de oferecer uma entrada. E isso é apresentado, antes de tudo, num elo com a inquietude: a mulher como ventre, matriz, angustiada pelo fato de que uma outra vida está se instalando dentro dela. O outro lado positivo dessa visão é, em nível simbólico, a concepção da feminilidade como uma abertura à alteridade.

Nessa perspectiva, alguns interpretarão a menopausa como uma libertação, como o faz Simone de Beauvoir, em Le deuxième sexe (O segundo sexo). Já Huston (1990), ao mesmo tempo em que critica essa visão, destaca, em seu Journal de la création (Diário da criação), a experiência particular da relação com o corpo, induzida pela gravidez: a mulher se encontra diante do desafio do reconhecimento de si; a soberania do Eu é questionada, pois não há nada a fazer no processo, a criança cresce sozinha. Algumas mulheres, diz Schneider, retomariam de bom grado para si o propósito implorante de Lady MacBeth (I, 5): “unsex me here”.

 

A procriação medicalmente assistida: um deslocamento do questionamento psicanalítico sobre a mulher como mãe

Minha hipótese é a de que o questionamento psicanalítico sobre a mulher como mãe por natureza, tal como apresentado nesse quadro teórico complexo, passa por uma significativa inflexão em seu confronto com a procriação medicalmente assistida. Confronto do material teórico com casos práticos e cuja particularidade é a de tomar pelo avesso o objeto privilegiado nesse material, a maternidade em sua realização, já que se trata, na prática, de casos de esterilidade.

Deve-se ressaltar, em primeiro lugar, que a presença de um questionamento psicológico relativo à procriação com ajuda médica não é percebida pela profissão médica como uma esquisitice, ainda que ela não aceite sua pertinência de modo uniforme. Com efeito, a hipótese de causas psíquicas suscetíveis de dar conta, pelo menos em parte, da esterilidade feminina, vem sendo formulada, há mais de um século, tendo, pois, se tornado relativamente familiar 2.É difícil avaliar com exatidão seu grau de difusão, mas é preciso notar que, quando tal hipótese é aventada, o fator psíquico não é, na maior parte das vezes, concebido como um concorrente do fator fisiológico. Ao que parece, eles se adicionam ou se intrincam um ao outro conforme modalidades complexas. De maneira exemplar, o dossiê consagrado pelo Journal Gynécologie Biologie Reproduction (2005, n. 34) à procriação medicalmente assistida testemunha isso.

Como nos lembra M. Bidlowski (2003), essa hipótese é declinada no plural, do ponto de vista ao mesmo tempo histórico e teórico: o processo de atribuição de uma origem psicogênica da infertilidade data do início do século XX e dos primeiros conhecimentos sobre o psiquismo humano. Deutsch (1955) considerava a esterilidade muitas vezes como um distúrbio funcional, portanto relativo e reversível. Com os fundadores da medicina psicossomática, ela já notava o impacto de sentimento hostil da jovem mulher estéril para com sua mãe.

Na verdade, a infertilidade pode coexistir com todas as configurações psicológicas, sem especificidade, e o acontecimento de uma gravidez espontânea inesperada, em mulheres até então estéreis e que adotam uma criança, é conhecido desde muito tempo.

Nos trabalhos modernos, o estresse, a doença do século, é muitas vezes incriminado, mas esse conceito, clinicamente sugestivo, é vago. Mais recentemente, alguns autores trouxeram sua contribuição no campo do psiquismo. Alguns estudos relatam uma taxa de gravidez análoga e superior à das AMP (procriações medicalmente assistidas) para uma população de mulheres estéreis tratadas por métodos simples de psicorrelaxamento. Outros mostram o fracasso, nas mulheres ansiosas, das tentativas de fecundação in vitro. S. Faure-Pragier (1997) observa que um medo inconsciente, identificável nas mulheres estéreis de seu estudo, pode ser o resultado de conflitos recalcados ao longo de três gerações de mulheres.

Nós mesmos, fazendo um trabalho no campo da obstetrícia, insistimos sobre um fato clínico singular que traz um elemento explicativo ao aspecto psicogênico da infertilidade: para muitas mulheres, a data involuntariamente prevista para o nascimento de uma criança não será puro fruto do acaso, mas será comemorativa de um evento do passado (gravidez anterior perdida, data de nascimento ou de morte de um parente muito próximo, mãe ou pai). (Bydlowski, 2003, p. 246-251)

Meu objetivo aqui não é estudar o conjunto do discurso de ordem psicológica relativo à infertilidade, mas de concentrar-me na teoriapsicanalítica. Mais precisamente, trata-se de considerar a maneira pela qual um psicanalista, profissionalmente investido na procriação médica, pensa os casos de infertilidade, com base no material teórico do qual dispõe a respeito da identidade feminina e da maternidade, além de observar o impacto desses casos sobre o material.

A valorização do inconsciente procriador: uma reação profissional contra uma psicanálise “encantadora” e supostamente garantidora da ordem simbólica.

Ainda que ele não fale da procriação artificial, a partir de uma prática profissional direta, Michel Tort constitui, a meu ver, um bom guia para introduzir-se ao questionamento iniciado a partir dos anos 1980, baseado em encontros com mulheres que procuraram assistência médica à procriação. Sua obra, Le désir froid, procréation artificielle et crise des repères symboliques (O desejo frio, procriação artificial e crise das referências simbólicas), é reticente diante da divulgação de determinado papel da psicanálise, encontrado tanto nos psicanalistas quanto nos médicos. Face ao que ele descreve como “uma transformação considerável e estranha das identidades”, ligada às condições de procriação, às formas de parentesco e de filiação, e mais especificamente à criação de um dispositivo técnico que busca fazer da árvore genealógica das famílias um projeto concertado e não mais um fruto do acaso, o psicanalista seria chamado por alguns para fazer um papel religioso, o do padre que enuncia a ordem natural das coisas. Esse apelo tem dois sentidos contraditórios, já que a psicanálise cauciona para alguns uma argumentação do domínio das pulsões, enquanto, para outros, ela legitima o liberalismo e a fantasia de onipotência do sujeito (Tort, 1992, p. 14-15)

Distanciando-se explicitamente dessa divulgação, ele vê nas questões relativas às identidades, no quadro específico da procriação medicalmente assistida, um questionamento do quadro freudiano clássico, do qual ele oferece um panorama menos detalhado que Schneider, marcado, antes de tudo, pela prevalência fálica. Em primeiro lugar, ele lembra que um dos pilares do pensamento freudiano do sexual é a separação da sexualidade e da reprodução. Vejamos o que ele diz, para melhor destacar um primeiro corolário que diz respeito mais diretamente ao nosso assunto:

O alcance da separação afirmada é limitado, na teoria freudiana, pela reintrodução de uma finalidade, nos objetivos da reprodução biológica. Acrescenta-se a isso uma vasta concepção filogenética que, segundo a sutileza analítica com que seja interpretada, faz derivar a construção freudiana para um certo biologismo. O efeito mais marcante disso é a naturalização persistente da “sexualidade feminina”: a teoria da diferença dos sexos e de suas consequências psíquicas equivale a reconduzir, na teoria analítica, o lugar da mulher no discurso tradicional da dominação masculina. (Tort, 1992, p. 14-15)

No entanto, um segundo corolário deve, segundo ele, ser destacado. Ora, como veremos, ele contradiz os efeitos do primeiro no quadro da procriação medicalmente assistida:

A separação da sexualidade e da reprodução abre caminho para uma interpretação do biológico – daquilo que lhe é imputado de psíquico – a partir do inconsciente. Esse ponto é fundamental na perspectiva de um exame dos desenvolvimentos atuais da biologia, de suas incidências na identidade. Em outras palavras, o desenvolvimento da biologia não é biológico; sendo em parte racional, ele também toma de empréstimo do inconsciente uma parte de suas determinações. (Tort, 1992, p. 14-15).

Esse segundo corolário contradiz os efeitos do primeiro, no sentido em que ele faz da procriação o objeto de um desejo ligado à sexualidade feminina, mas o que está em jogo é um conflito sexual, e, por isso mesmo, um objeto de “estratégias inconscientes, singulares ou coletivas” (Tort, 1992, p. 20). Tort explicita essa hipótese mais adiante, ao comentar a natureza do desejo de gravidez no homem:

A onipotência feminina e materna certamente ocupa um lugar considerável no imaginário masculino. Assim, não se trata de “fundá-la” simetricamente na “realidade da onipotência feminina” que, a seu turno, a explicaria, mas de reconhecer que a procriação mobiliza nos dois sexos questões de onipotência que assumem, por excelência, a forma de uma atribuição desta [a onipotência] àquela [a procriação]. Nesse sentido, o lugar atribuído à gravidez masculina e, mais amplamente, ao desejo de maternidade no homem, é muito característico. (Tort, 1992, p. 138)

Tort sugere aqui que se a mulher é mãe por natureza, não é por razões biológicas, mas por causa de um nó complexo que liga, sem dúvida, fatores biológicos a determinações inconscientes, no seio de um conjunto de práticas destinadas a tomar posição relativamente ao conflito sexual.

 

Um psicanalista da “esterilidade”

Já começamos a perceber, na obra de Tort, o deslocamento operado com relação ao quadro freudiano, em sua versão mais clássica. Esse movimento é fortemente acentuado quando os psicanalistas são levados a interessar-se, em suas práticas profissionais, à questão da “esterilidade”, que hoje é definida da seguinte maneira: dois anos de relações sexuais sem contracepção e sem concepção. Mulheres acometidas de “esterilidade” gostariam de procriar, mas não conseguem fazê-lo. Elas não engravidam ou multiplicam os abortos espontâneos. Uma explicação estritamente fisiológica não dá conta, de maneira satisfatória, de sua “esterilidade”. As psicanalistas confrontadas a tais situações encontram-se, na realidade, diante de um duplo fenômeno: uma infecundidade não explicada (ou não inteiramente explicada) por causas fisiológicas; um desejo manifesto e tão forte de ter filhos, levando as mulheres a demandar assistência médica à procriação.

Faure-Pragier trabalhou no hospital Necker com o professor Mauvais-Jarvis, durante os anos 1980-1990, como psicanalista confrontada a casos de esterilidade. Ela retomou e remanejou um conjunto de publicações, editadas entre 1985 e 1995, nas quais analisa suas experiências clínicas. O contexto geral de seu trabalho é mostrar uma espécie de paradoxo, ou seja, é justamente no momento em que os médicos fazem intervenções extraordinárias, no sentido de curar ou resolver casos de esterilidade, que os psicanalistas são solicitados. Estes tentam compreender os problemas psicológicos ligados às estimulações hormonais, à inseminação artificial por doador, à Fivete (fecundação in vitro com transferência de embrião), às doações de ovócitos e aos “empréstimos de úteros”: toda uma “procreática” que faz milagres, mas que tropeça em resistências inexplicáveis do corpo.

Com base no estudo dos fracassos ou das complicações dessas técnicas, os analistas retornam aos conflitos psíquicos presentes nessas esterilidades, tenham elas ou não causas orgânicas conhecidas. As crianças não nascem tão facilmente da biologia: sem dúvida é preciso também o aparelho psíquico para gerá-las! Se não levarmos em conta essa participação do psíquico, que os pacientes e muitos ginecologistas tentam negar, o inconsciente retorna e se impõe, diante do triunfalismo biológico. Enquanto alguns médicos afirmam sua vontade de entender ainda mais a fisiologia, para melhor dominar o corpo, outros contemporizam e se dispõem a uma colaboração com psicanalistas. (Faure-Pragier, 1997, p. 11-12)

No quadro dessa colaboração, ela desenvolve a ideia segundo a qual quaisquer que sejam as causas orgânicas da esterilidade feminina, o fracasso em engravidar ou em manter a gravidez remete a uma organização psíquica na qual a relação da mulher com sua própria mãe tem papel determinante:

Diante da escalada das tecnociências, o analista afirma que a esterilidade, qualquer que seja sua origem, tem um sentido. Essa inibição do corpo exprime a dificuldade em adquirir a autonomia, da parte da mulher que conserva um laço estreito demais com sua própria mãe, que o nega e se esforça, com sua vontade, em adotar um modo de vida normal, atrás do qual ela esconde sua depressão. Essa mulher infecunda se sente profundamente incapaz de desempenhar seu papel de adulta, ela “faz de conta”, distanciando-se de seu vivido de incapacidade, e tenta driblar sua esterilidade, com a certeza de que a criança resolverá todos os seus problemas. Ela a espera como “objeto transformacional” que a tornaria diferente. Ela acredita que, ao tornar-se mãe, ela ficará livre da imagem de sua própria mãe dominadora, conhecendo e tendo sucesso em tudo, melhor do que ela. Por isso, ela está pronta “a fazer de tudo para ter um filho”, e faz de sua esterilidade totalmente a causa – e não a consequência dessa depressão, fruto de sua inferioridade latente. (Faure-Pragier, 1997, p. 19-20)

A ideia de uma ambivalência do desejo da mulher, com relação à procriação fundada na relação com a mãe, não é completamente nova. Encontramos uma formulação interessante em uma observação clínica feita por Groddeck em Le Livre du Ça. No entanto, o trabalho de Faure-Pragier permite fundamentar essa intuição, com base em um sério trabalho clínico. Após introduzir sua hipótese, ao evocar uma consulta hospitalar com Myriam, uma paciente cuja história de esterilidade apresenta uma clara ligação com sua mãe, ela propõe uma leitura dos “raros trabalhos de Freud a respeito da esterilidade feminina” (Faure-Pragier, 1997, p. 33). Segundo essa autora, “não podemos dizer que Freud omite o assunto, mas ele restringe seu tratamento aos comentários que consagra à criação literária, ‘Macbeth’ de Shakespeare e ‘Rosmersholm’ de Ibsen” (Faure-Pragier, 1997, p. 40). Depois de Freud, foram desenvolvidas outras hipóteses a respeito da esterilidade. Faure-Pragier as passa em revista, sem as confirmar nem anular. O que ela recusa com vigor é a ideia de “esterilidade psicogênica”, para privilegiar a ideia de “circularidade entre psicogênese e organogênese da esterilidade” (Faure-Pragier, 1997, p. 72). Após ter colocado essas referências, ela introduz o termo “inconcepção” para designar a vertente psíquica de um processo biológico, no qual o laço com a mãe tem um papel de primeiro plano, notadamente quando esta parece ser poderosa, independente e exigir a submissão de sua filha, segundo modalidades diversas, em função das histórias familiares:

O duplo sentido do termo “inconcepção” se aplica, portanto, inteiramente. Conceber uma criança, como conceber um pensamento, supõe a capacidade de abrir mão do controle, dos princípios conhecidos e do funcionamento ordenado do corpo fisiológico, para deixar que se produza dentro de si uma perturbação desconhecida, da qual emergirá algo novo: pensamento, obra ou filho. Na inconcepção, a criança que vai nascer aparece como de impossível representação – caos aterrorizante – ou como reprodução do conhecido, uma cópia de si mesma, inaceitável da mesma forma. (Faure-Pragier, 1997, p. 75)

Essa hipótese explicativa leva Faure-Pragier, após o exame de diversos casos clínicos, a voltar “aos últimos textos de Freud sobre a feminilidade para fazer sua crítica” e relativizar “o papel da inveja do pênis, para insistir no papel essencial da identificação” (Faure-Pragier, 1997, p. 105). O quadro de análise proposto por ela é muito sutil e sua posição não é irredutível (ela própria expõe um caso que contradiz sua teoria e faz questão de mostrar a variabilidade possível das situações potenciais nesse contexto, expondo vários casos clínicos). Apesar de tudo, esse quadro coloca no centro da atenção a questão da passividade e de sua aceitação.

A passagem ao papel essencial da identificação se explica, num primeiro momento, pela lembrança de uma passividade primeira, que seria própria ao polo feminino, presente nos dois sexos.

A esse respeito, lembremos: a ideia segundo a qual toda pessoa humana é, ao mesmo tempo, homem e mulher, qualquer que seja seu sexo e o sexo ao qual ela se identifica, é frequentemente formulada nos meios psicanalíticos, à época de Freud. Por exemplo, por Groddeck:

Ora, o ser humano é composto ao mesmo tempo do homem e da mulher, é uma verdade cientificamente reconhecida, ainda que alguém se recuse a levar isso em conta, pelo pensamento ou pela palavra, como muitas vezes acontece quando tratamos de verdades primeiras. Assim, portanto, no ser chamado homem, há uma mulher; na mulher, encontra-se um homem, e a única estranheza que identificamos na ideia de que um homem pode desejar colocar uma criança no mundo é que isso seja negado com tanta teimosia. (Groddek, 1973, p. 46).

Esta idéia não é objeto de um consenso teórico total e recebe várias significações, conforme os autores que a apresentam. Apesar de tudo, ela é familiar a qualquer psicanalista.

Mas voltemos à questão da passividade primeira: ela se refere à situação da criança, nos primeiros tempos de sua vida, quando esta é objeto de cuidados, e por isso de repetidos toques que estimulam sua libido. A criança está em uma situação de “sedução originária” que, aliás, pode ser percebida como medonha, já que

O bebê se encontra confrontado a várias mensagens, palavras, gestos, maneiras de segurá-lo etc., que emanam do ambiente em que vive. Além disso, esse mundo é infiltrado por significações inconscientes, inclusive para o adulto que desconhece, em parte, o sentido do desejo que o leva até seu filho. (Faure-Pragier, 1997, p. 157)

Mais tarde, essa “feminilidade originária” dá lugar ao “monismo fálico”, a uma fase ativa. Para se tornar mãe, segundo Faure-Pragier, é preciso voltar à passividade originária, mas de um modo que não seja vivido como perigoso:

Quando a identificação feminina é possível, graças ao apoio representado por uma mãe que reconhece o papel do pai, a passividade pode se integrar com sucesso. Se o pai não é reconhecido e, por sua vez, não reconhece sua filha como mulher, mais adiante, a passividade se torna ameaçadora, pois a filha a retornaria à mãe. (Faure-Pragier, 1997, p. 157)

 

Conclusão

A mulher é mãe por natureza? As duas reflexões psicanalíticas aqui lembradas, e sobretudo a de Faure-Pragier, constituem, a nosso ver, uma maneira de contornar a questão, no sentido de apontar que há nela uma armadilha, ou, pelo menos, uma maneira de dizer que não se pode responder a esta pergunta de modo direto, seja qualquer for o modo de fazê-lo. A mulher é uma mãe por natureza, do ponto de vista anatômico e fisiológico, mas mesmo isso não se pode afirmar sem certa precaução. Podemos afirmá-lo somente no sentido de uma capacidade de procriar, de transmitir seu patrimônio genético e levar a termo uma gravidez. E também se olharmos essa capacidade do ponto de vista da normalidade estatística, já que a infecundidade realmente existe por motivos anatômicos ou fisiológicos.

Além desse aspecto, o percurso psicanalítico, diante dos casos clínicos de esterilidade, evidencia o caráter central do desejo de ter um filho, a complexidade de sua significação e sua ambivalência. O caso mais simples para nós acontece quando uma mulher decide renunciar a esse poder de procriar. Mas ele é mais tortuoso do que parece, pois tal mulher pode não querer procriar e, no entanto, querer tornar-se “mãe” e desenvolver suas qualidades “maternas”, “maternantes”, ao adotar uma criança. Isso nos leva diretamente à questão do sentido a ser dado à noção de maternidade, objeto de uma pesquisa a ser feita.

O caso de figura sobre o qual nos concentramos aqui é o das mulheres que procuram o hospital para dizer que desejam ter um filho e não conseguem engravidar sem assistência médica. Há um desejo que não consegue ser realizado. A questão inicial parece então ser: a mulher deseja, por natureza, ser mãe? Se retomarmos nossa discussão, a resposta é negativa, porque a mulher só se torna psiquicamente capaz de maternidade em função de seu percurso autobiográfico e, singularmente, de sua relação com sua própria mãe. Assim, a interrogação a ser feita talvez não se refira tanto à naturalidade da maternidade para as mulheres, mas ao “desejo” expresso, no quadro da procriação medicalmente assistida: é um desejo de ter um filho? De carregar um filho, de parir? De ter feito de tudo para tentar tornar-se mãe? Sob que condições (biológicas, psíquicas, sociais) esse desejo é expresso? Podemos lhe atribuir uma origem? E, finalmente, quais são o sentido e a função dessa busca da origem do desejo de maternidade?

Nesse percurso, vemos que a clínica psicanalítica não se desembaraça da questão das identidades sexuadas. Com efeito, a capacidade de maternidade está ligada à “feminilidade” própria aos dois sexos, entendida como aceitação da passividade. Um laço está, portanto, bem estabelecido entre a mulher e a mãe. Do ponto de vista teórico, ele deve ser compreendido unicamente no quadro metapsicológico da sexualidade feminina. Nos casos concretos, a clínica evidencia toda sua fragilidade e sua não-necessidade. Se os fatos nem sempre seguem a teoria a esse respeito, podemos, no entanto, questionar o estatuto desse quadro metapsicológico: como entender a correlação estabelecida entre feminilidade e passividade? Ela revela uma forma de necessidade biológica ou preferencialmente simbólica? Quais representações sociais da mulher ela nutre e vice-versa?

 

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*Texto recebido em novembro de 2008
Aprovado para publicação em dezembro de 2008.

 

 

*Doutora em Filosofia, pesquisadora no CERSES (Centre de Recherche Sens, Éthique et Société, CNRS/Universidade Paris-Descartes), e-mail: mariegaille@yahoo.fr
1A palavra aimant tem dois sentidos: é o particípio presente do verbo aimer (amar) e, como substantivo, quer dizer ímã. A expressão, portanto, refere-se ao útero que ama e ao útero-ímã.
2A base de pesquisa de dados Medline vem colhendo, desde 1963, trabalhos sobre essa hipótese, que são cada vez mais numerosos a partir dos anos 1990: K. Imielinski, “Psychic factors in sterility”, Pol Tyg Lek, 3 jun. 1963, 18:8181-21; L. Aresin, “The childless marriage from the psychological and psychiatric viewpoint”, Dtscg Gesundheitsw, 16 nov. 1972, 46, 2181-4; PD. Mozley, “Psychophysiologic infertility: an overview”, 19 jun. 1976, Clin Obstet Gynecol, 2, 407-17; M. Bydlowksi, “Psycho-medical approach to infertility. Suffering from sterility”, Gynecol. Obstet. Biol, 1983, 12, 3, 269-76; P. Knorre et F. Hernichel, “Psychological factors in isthmic tubal occlusion”, Zentralbl Gynakol, 1985, 107, 5, 288-93; Gl. Christie, “Some socio-cultural and psychological aspects of infertility”, Hum. Reprod., 13 jan. 1998, 1, 232-41; T. Wischmann et al., “Psychosocial characteristics of infertile couples: a study by the Heidelberg Fertility Consultation Service, Hum. Reprod., 16 ago. 2001, 8, 1753-61; M. Bydlowski, “Psychic factors in female unexplained infertility”, Gynecol Obstet. Fertil., 31 mar. 2003, 3, 246-51.

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