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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.6 n.1 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS

 

O Eu é plural: grupos: a perspectiva psicanalítica

 

The Ego is plural (groups: the psychoanalytical perspective)

 

El Yo es plural: (grupos: La perspectiva psicoanalítica)

 

 

Lazslo Antonio Ávila1

Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho busca contribuir para construção das bases conceituais de uma teoria psicanalítica dos grupos humanos. Procedemos uma desmontagem da noção do Eu enquanto unidade primária e fundamental dos processos psicológicos e sociais. O Eu é questionado em sua representação unitária, mediante a discussão da necessária inter-relação entre o sujeito singular e os outros significativos com os quais convive desde seu nascimento. Utilizamos referenciais psicanalíticos, principalmente Freud, Käes e Bion para articular esta discussão, que também utiliza metáforas literárias. Concluímos com a acentuação do papel fundamental desempenhado pela relação inter-subjetiva na configuração tanto do indivíduo quanto dos grupos.

Palavras-chave: Grupos, Psicanálise, Indivíduo, Psicoterapia de Grupo.


ABSTRACT

This work aims to contribute to the construction of conceptual bases for a psychoanalytical theory of human groups. We developed a deconstruction of the notion of the Ego as the primary and fundamental unit of psychological and social processes. The Ego is challenged in its unitary representation and for this a discussion of the necessary inter-relationship between the singular individual and the significant others with whom he has shared his life since birth is made. We use psychoanalytical references, mainly Freud, Kaës and Bion, to articulate this discussion, which also makes use of literary metaphors. We conclude stressing the essential role that inter-subjective links play in the configuration of both the individual and the group.

Keywords: Groups, Psychoanalysis, Individual, Group psychotherapy.


RESUMEN

Ese articulo busca hacer una contribución para la construcción de las bases conceptuales de una teoría psicoanalítica de los grupos humanos. Nosotros procedemos a un desmontaje de la noción del Yo enguanto unidad primaria y fundamental de los procesos psicológicos y sociales. El Yo es cuestionado en su representación unitaria, con la discusión de la necesaria inter-relación entre el sujeto singular y los otros significativos con los cuales el convive desde su nacimiento. Nos utilizamos de los referenciales psicoanalíticos, principalmente Freud, Kaës y Bion para articular esa discusión, que tambien hace uso de metaforas literarias. Concluyemos con la acentuación del rol fundamental de la relación inter-subjectiva para la configuración del individuo asi como de los grupos.

Palabras clave: Grupos, Psicoanalisis, Individuo, Psicoterapia de Grupo.


 

 

O estudo científico sobre os grupos vem se delineando, a partir de diferentes pontos de vista, desde há dois séculos. Vinda da sociologia uma série consecutiva de estudos focalizou as multidões, e autores como Gustave Le Bon, Gabriel Tarde e Emile Durkheim fixaram as bases para desenvolvimentos posteriores que incluem autores tão diversos como Adorno & Horkheimer, Mauss, Sennet, Lipoveski. A Psicologia também se apresentou com diferentes enfoques, desde a Dinâmica de Grupo, trazida por Kurt Lewin, o Psicodrama de Jacob Levi Moreno, a Gestalt-terapia, a Análise Institucional de Lourau e Lapassade, e a moderna concepção sistêmica sobre Famílias. Na Psicanálise, desde o importantíssimo e seminal trabalho de Freud sobre a Psicologia das Massas, vieram as contribuições de W. R. Bion, de E. Pichon-Rivière, de S. H. Foulkes, de E. J. Anthony, de D. Anzieu, de R. Kaës. No Brasil e na Argentina, atualmente florescem os estudos da Psicanálise das Configurações Vinculares (FERNANDES, SVARTMAN e FERNANDES, 2003).

Estes múltiplos enfoques e distintas abordagens exigem o prosseguimento das investigações, com o delineamento de bases conceituais para a articulação de uma (ou várias) teoria(s) sobre a grupalidade, bem como para o desenvolvimento de diferentes abordagens técnicas para o estudo-transformação de estruturas grupais.

Na busca por contribuir com estes estudos, venho trabalhando a partir da concepção psicanalítica dos grupos. Após um primeiro esboço, publicado em 1995, seguido por estudo da questão do corpo grupal, aprofundado alguns anos depois (ÁVILA, 2000; 2006), e uma análise particularizada na questão da comunicação e da investigação da “mente grupal” (ÁVILA, 2005; 2007), vieram dois artigos publicados na Revista Vínculo, (ÁVILA, 2007, 2008), voltados para discutir os fundamentos desta concepção. Aqui, prosseguiremos com esta construção, apresentando o que se transforma nas representações do indivíduo e do grupo, quando a dimensão grupal é tomada em toda sua radicalidade.

Para constituir uma concepção psicanalítica dos grupos deve-se demonstrar a necessidade de uma nova concepção do EU individual. A teoria dos grupos entende que o indivíduo é composto por seus relacionamentos, ou seja, pelas relações que ele tem desde antes de nascer e que se somam a todas as que ele realiza ao longo de sua existência. Estas relações o constituem em seu próprio aparelho psíquico, em sua identidade, em suas ações, em tudo o que o caracteriza enquanto sujeito concreto. Estas são articulações da teoria psicanalítica que as teorias voltadas aos estudos de grupo confirmam e fundamentam.

 

Os grupos e a psicanálise

Em 1912 Freud inicia uma investigação de caráter antropológico que lhe permitirá estabelecer a universalidade do complexo de Édipo. Em Totem e Tabu (FREUD, 1912/ 1973), com base nas pesquisas etnológicas de James Frazer e na hipótese darwiniana da horda primeva, Freud vai sustentar que em cada indivíduo singular existem estruturas trans-individuais que se manifestam nos contextos grupais e coletivos:

A massa se apresenta, pois, como ressurreição da horda primitiva. Assim como o homem primitivo sobrevive virtualmente em cada indivíduo, também toda a massa humana pode reconstruir a horda primitiva." E, mais adiante: "Haveremos, pois, de deduzir que a psicologia coletiva é a psicologia humana mais antiga. Aquele conjunto de elementos - que isolamos de todo o referente à massa para construir) a psicologia individual - não se diferenciou da antiga psicologia coletiva senão mais tarde, muito pouco a pouco, e ainda hoje em dia, só parcialmente (Freud, 1912/ 1973, p. 2596).

Observe-se como se acentua o surgimento da psicologia individual a partir da psicologia da massa. Esta representação Freud ampliará em 1921, afirmando, com todas as letras, que a psicologia individual não se distingue da psicologia social ou coletiva. Na trilha aberta por Freud, em sua breve, mas imprescindível contribuição para uma compreensão psicanalítica dos grupos, W. R. Bion afirma: “A proposição que desejo demonstrar é a de que o grupo é essencial para a realização da vida mental de um homem.” (Bion, 1970, p. 46). Seu “Experiências com Grupos” forneceu a base para gerações de grupanalistas, permitindo articulações entre a dimensão individual e a grupal da mente humana:

No grupo, o indivíduo dá-se conta de capacidades que são apenas potenciais enquanto se encontra em comparativo isolamento. O grupo, dessa maneira, é mais que um conjunto de indivíduos, porque um indivíduo num grupo é mais que um indivíduo em isolamento. (...) Um dos problemas da terapêutica de grupo, então, reside no fato de ser o grupo freqüentemente utilizado para a obtenção de uma sensação de vitalidade pela submersão total no grupo ou de uma sensação de independência individual pelo repúdio total dele. Essa parte da vida mental do indivíduo, que é incessantemente estimulada e ativada por seu grupo é a sua herança inalienável como animal de grupo. (Bion, 1970, p. 81)

Evidentemente, Bion recorre aqui às idéias que Freud sustentava já em 1912. Mas, foi com Bion que a psicanálise pode dar prosseguimento a esta forma de apreensão da realidade psíquica que não é redutível apenas ao indivíduo. Bion dirá: “Na verdade, nenhum indivíduo, por mais isolado que esteja no tempo e no espaço, deve ser encarado como externo a um grupo ou não possuidor de manifestações ativas de psicologia de grupo.” (Bion, 1970, p. 156)

Tomando por base estes fundamentos, desenvolvemos as formulações a seguir, que encontrarão outras justificativas teóricas em passagens de René Käes que apontaremos.

 

O indivíduo não existe

O indivíduo não existe por si mesmo. Ele não é a unidade última e nem é integralmente autônomo. O Eu, base de nossas auto-representações, elabora uma referencia de si próprio, e a isso denominamos Individuo. Com base neste engano, ou ilusão, pensamos que cada um de nós seja uma unidade independente, e não uma expressão singularizada de um conjunto, o coletivo humano.

Para construir o conceito de grupo, desde as referências da psicanálise, propomos cinco passos:

1 - o indivíduo não existe

2 - o eu é feito de relações

3 - o eu é múltiplo

4 - o eu é eu - outro

5 - o eu é plural

A família é o modelo em que primeiro temos experiência direta do que é um grupo. Na origem da família temos o casal que formam um vínculo e estabelecem um conjunto de trocas onde se podem atualizar suas experiências de desejo e fantasia. Dirigir-se ao outro do ponto de vista intra-psíquico significa que cada um internaliza o outro como objeto. Cria-se uma circulação de representações e de afetos e há uma mútua entrada do mundo pessoal de cada um no outro, expressão do vínculo. Eu internalizo eu e o outro dentro de mim, ou seja, internalizo tanto o outro como a minha relação com o outro. Essa internalização faz com que, do ponto de vista psíquico, objetos internos do outro vivam também em mim.

O filho já existe antes de nascer. Quando ele nasce recebe imediatamente como herança os objetos internos de seus pais (objeto interno que é o pai, a mãe, o objeto interno que é ele para seus pais, e mais todos os vínculos de grupos de relações entre seus pais, com as histórias pessoais de cada um em suas respectivas famílias), então recebe uma grupalidade interna. Recebe uma espécie de núcleo inicial, onde ele é um outro para seus pais e estes são para ele seus outros. Esse vínculo essencial da identidade vem de fora e nasce do olhar dos pais. O filho é significado a partir do que representa para esses sujeitos, seus pais. Estes partem da sua história de relações e edipiana. Nós recebemos uma vida psíquica dos nossos pais e isso é suficiente para começarmos a ser. A partir desse vínculo fundamental é que constituímos esse núcleo primário da identidade. Então a primeira constituição do EU é relação, mediada pelos pais. Por isso o psiquismo não pode ser pensado sem o outro. “Fazer grupo”, ou seja, criar um dispositivo clínico grupal é por pessoas em conjunto para que a sua intersubjetividade inerente se revele o mais claramente possível, demonstrando sua articulação e sua composição.

 

O Eu é múltiplo

Freud nos deu muitos suportes para sustentar a idéia de que o EU é múltiplo. Uma excelente exposição das antecipações freudianas para uma teoria dos grupos é realizada por René Käes (KÄES, 1997). Freud usou a expressão grupo desde quando descreveu o psiquismo pela primeira vez, em 1893, ao dizer que na mente se formam grupos psíquicos: representações que se agrupam de acordo com seus conteúdos. Ao propor a separação dos conteúdos conscientes e inconscientes pela barreira da repressão, Freud salienta que eles não permanecem dispersos, mas aglutinados e relacionados entre si, ou seja, com uma dinâmica de interações.

Ao investigar os sonhos, Freud diz que o sonhador está sempre presente, mas raramente é representado com a sua identidade, sua cara própria. Freqüentemente o Eu é substituído por algum outro personagem e isso implica, o que é bastante importante em termos clínicos, que posso fazer com que o meu eu seja representado ou substituído pelo eu alheio. Por exemplo, o eu do sonhador pode ser representado como um velho, uma mulher, uma criança. Às vezes produzo por condensação uma pessoa que nunca vi e faço em meu sonho um EU múltiplo/grupal. Isso pode ser efetuado com o meu próprio eu ou o de qualquer outra pessoa que eu vise representar. Faço em sonhos pessoas coletivas. Às vezes ao invés de somar várias pessoas numa só, faço a descondensação, pois sonho com dez pessoas e todas são diferentes de mim, e, no entanto são eu, representações de mim... Nos mecanismos de elaboração dos sonhos, Freud demonstrou como podem ser infinitas as atribuições que podemos fazer tanto de nós mesmos, quanto de nossos relacionamentos. Através dos sonhos, podemos constatar um mecanismo básico de representação que é importantíssimo para compreendermos os processos grupais, pois se temos a chance de sonhar que somos outro, podemos facilmente entender que um outro possa ser eu. Nos grupos terapêuticos nos utilizaremos destas representações cruzadas para conhecer a cada eu em suas interações com os outros, e em sua produção contínua; o eu se fazendo nos vínculos.

 

O Eu - outro

O eu é sempre eu - outro(s), pois o EU é uma entidade plural. A concepção dos grupos se torna mais ampla, quando não vemos no grupo apenas uma soma e sim a articulação de dois padrões de unidade. Cada sujeito carrega uma grupalidade antes de vir para o grupo e uma vez em grupo ele, interagindo, gera uma nova totalidade. Esta é a realidade psíquica grupal. Na psicanálise encontramos toda a base necessária para pensar este aparelho psíquico grupal: grupo de grupos.

René Käes, por exemplo, sustenta: “a hipótese da psique de grupo supõe que formações e processos psíquicos são inerentes aos conjuntos intersubjetivos; a realidade psíquica não está inteiramente localizada no sujeito, considerando-se sua singularidade.” (Kaës, 1997, p. 40). Para este autor, o grupo não é uma realidade “externa”: “O grupo é o lugar de uma realidade psíquica própria e talvez, é minha opinião, o aparelho da formação de uma parte da realidade psíquica de seus sujeitos.” (Kaës, 1997, p. 79)

Mas existe um grande obstáculo epistemofílico a ser superado: nosso narcisismo não permite que abdiquemos da idéia de que cada um de nós é único e insubstituível. È difícil ver uma realidade psíquica múltipla, onde o Eu individual possa ser representado enquanto realmente partilhando com outros Eus um todo maior. Nós somos a humanidade e a humanidade somos nós. Esse trânsito do eu para o múltiplo é que nos constitui. Sujeitos singulares, constituídos a partir das complexas vinculações à totalidade da dimensão humana: história, cultura, sociedade.

Recorremos novamente a Käes:

O grupo é o paradigma do conjunto intersubjetivo no qual se constitui essa parte de cada um que o faz tornar-se sujeito de uma malha de outros. Esclareço: de mais de um outro e de mais de um semelhante. O grupo cumpre funções fundamentais na estruturação da psique e na posição subjetiva de todas as pessoas. Nascemos para o mundo já como membros de um grupo, ele próprio encaixado em outros grupos e com eles conectado. Nascemos elos no mundo, herdeiros, servidores e beneficiários de uma cadeia de subjetividades que nos precedem e de que nos tornamos contemporâneos: seus discursos, sonhos, seus recalcados que herdamos, a que servimos e de que nos servimos, fazem de cada um de nós os sujeitos do inconsciente submetidos a esses conjuntos, partes constituídas e constituintes desses conjuntos. (Kaës, 1997, p. 106)

A concepção psicanalítica de grupo também deve ser construída a partir de uma desmontagem ideológica. Grupo não é o que parece. Muitas coisas podem ser chamadas de grupos: grupos de lápis, de cadeiras, de lojas, de pessoas. A palavra grupo é polissêmica, e por isso é pobre para sustentar o conceito. Precisamos de teoria para forjar esta noção. A partir dela podemos vislumbrar o que está mais além da aparência dos grupos, sua fachada, composta de indivíduos independentes, autônomos. O Grupo é invisível. O que realmente interessa do grupo é invisível, como sugerido pela Hidra de Lerna mitológica - sete cabeças num animal só. O grupo é uma entidade distinta do simples fato de termos sete pessoas andando juntas. A dimensão invisível, latente, inconsciente, é a dimensão real do grupo.

De um grupo fazem parte tais e tais pessoas, fenomenicamente. Eu vejo as pessoas, mas o grupo real é algo formado a partir das relações entre as pessoas. A psicanálise vem nos mostrando, a partir da psicologia dos vínculos, que as relações vêm antes do indivíduo. Bion dizia que a unidade biológica é o dois. O um é o dois.

 

O náufrago

O indivíduo não existe por si mesmo, em si mesmo, para si mesmo. Ele não existe como as mônadas de Leibniz (aquilo que basta a si próprio, existe por si mesmo). O ser humano tem a pretensão narcísica de ser uma mônada. Isto é ideológico e falso. Se colocarmos a idéia de Indivíduo frente ao contexto histórico, constatamos que o que hoje consideramos como unidade autônoma, já foi visto e reconhecido como parte dependente e determinada pelo entorno (HORKHEIMER & ADORNO, 1978).

Os gregos antigos (séculos VIII a IV a.C), quando queriam punir os crimes mais graves, condenavam os indivíduos que os praticavam ao ostracismo, ou seja, tiravam o individuo de sua cidade e o baniam, deixando-o isolado dos seus amigos, parentes e concidadãos. Isso equivalia à pena de morte e na verdade era pior do que ela porque o individuo exilado já não podia ser, sem os outros que constituíam o que e quem ele era.

Esta idéia, de que nós não podemos viver se formos retirados do contexto que nos formou, foi se perdendo num processo complexo de 20 séculos. A modernidade (desde 1600) trouxe a concepção muito forte de que existe um eu do indivíduo, distinto de todos os demais, e que a sociedade é a soma de todos os indivíduos. O século XVII é a época do apogeu do teatro de Shakespeare e do aparecimento do romance imortal de Miguel Cervantes, o Dom Quixote. Ambos são expressões de uma nova representação de existência social: indivíduos vivendo e afirmando sua identidade apesar e contra a sociedade que os cerca. Outro romance do século XVII que fez muito sucesso foi o “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoë. A história, sobejamente conhecida, relata como esse inglês viveu vinte anos em uma ilha deserta, depois que seu navio naufragou. Na ilha, Robinson re-cria a civilização, vive como um inglês, sem perder nada dos hábitos ou da mentalidade de sua sociedade, pois ele se basta enquanto ser civilizado. Sem duvida sofre, e recebe com grande alivio a chegada de Sexta-feira, o selvagem aborígine que lhe vem fazer companhia, até seu retorno a Londres. Essa é a idéia do eu autônomo, que a modernidade propõe: Robinson Crusoé é como cada um de nós, cada homem é uma ilha. Ele é ele, mesmo após vinte anos de vida selvagem, com base nesta visão ideológica: o eu basta a si próprio. O outro, os outros, são mera contingência.

O filme “Náufrago” relança esta questão. Tom Hanks faz o executivo que despenca em uma ilha deserta e aí tem que sobreviver por alguns anos. Desesperado pela solidão, ele cria um outro, é "Wilson" (uma bola na qual ele imprimiu com sangue uma “face”), que é crucial para ele não enlouquecer. Se o náufrago fica totalmente sozinho é que ele naufraga. No “Robinson Crusoé” o individuo é autônomo e independente. No “Náufrago” não, pelo menos uma representação simbólica do outro precisa existir, ou o individuo enquanto tal já não pode mais se manter.

 

O Eu – outro

Na teoria dos grupos o eu não é considerado autônomo, eu sou eu, mas o que sou é o que sou juntamente com outras pessoas com quem me relaciono, tanto presentemente, quanto simbolicamente. A partir da filosofia, da sociologia e da psicanálise, esta representação ideológica triunfante na modernidade passou a ser questionada em seus fundamentos. A sociedade não é mera soma de indivíduos e indivíduos não são átomos independentes e auto-sustentados.

Contudo, apesar destas críticas, o indivíduo moderno ainda pensa que é recortado dos demais e isso se realiza mediante um corte mental e cultural. Cada indivíduo se pensa como unidade isolada e a cultura contemporânea fornece contínuas representações para que esta construção se mantenha. A teoria dos grupos é recente: Freud e Lewin (décadas de 1920-30), Bion e Pichon-Rivière (década de 1950) e, mais recentemente Anzieu, Käes e a psicanálise das configurações vinculares.

A teoria psicanalítica dos grupos considera que o indivíduo tem planos, dimensões, uma realidade psíquica profunda e algo inerentemente trans-individual (além do indivíduo), as relações inter-subjetivas, a história humana. No núcleo do indivíduo encontramos o outro. A cebola é uma representação metafórica adequada, onde as cascas são comparadas com as relações e no centro também estão o eu e os outros. O grupo é aquilo que está no miolo do indivíduo. Por isso é fácil “fazer grupo”, pois as pessoas sempre e necessariamente se relacionam. No nosso interior já está sempre o outro. Somos seres sociais, como Aristóteles afirmava, pois precisamos dos outros, muito além do que supomos: precisamos para ser.

 

O indivíduo forma o grupo e o grupo forma o indivíduo

É mediante um pensamento dialético que consideramos o indivíduo e o grupo como as duas faces da mesma moeda. Os processos humanos são processos de participação. Um ato agressivo, por exemplo, tem que ser entendido a partir das relações em que o individuo está imerso, quando se forma esse ato. A agressividade, embora expressa no indivíduo, manifesta-se enquanto fenômeno interacional, produto do contexto, ato superdeterminado pela história do seu autor e dos co-participantes. Grupo e indivíduo são, então, fenômenos imbricados.

As escolhas individuais são outro exemplo: não posso escolher nada autonomamente, pois o meu mundo mental é referenciado aos outros. Meus atos são referentes aos outros que vou encontrar, e aos outros que já me habitam. O outro me rege. Aquilo que eu chamo de “minha história pessoal” é a minha versão do modo como participei de uma realidade compartilhada, intersubjetiva.

Bion nos mostrou que os indivíduos contribuem anonimamente para produzir o grupo e que o grupo tem experiências emocionais através do indivíduo. A realidade do indivíduo é grupal e o que é grupal é gerado pelos indivíduos em suas inter-relações. Em um grupo existem indivíduos com as suas mentes, emoções e capacidades, mas a partir do momento que estão em grupo passam a ter experiências que os coletivizam.

Nesse ponto podemos concluir que a teoria dos grupos é uma teoria da relação humana e também uma teoria do indivíduo. O indivíduo é não apenas parte do grupo - o indivíduo é grupo.

Uma nova analogia, ou modelo, nos traz outra representação do que pretendemos dizer. Quando se pega um holograma vê-se, em três dimensões, a imagem de um objeto, digamos a Torre Eiffel. Se recortarmos esse holograma em pedacinhos e mandarmos revelar novamente, de cada um dos pedaços surgirá novamente a Torre Eiffel completa. Isto é exatamente igual ao que acontece com nosso código genético: dentro do núcleo de cada uma de nossas células existe o DNA do nosso corpo completo.

Em termos psicológicos: eu tomo o indivíduo e na mente desse indivíduo encontro os outros indivíduos, ou seja, dentro de cada indivíduo existe a humanidade inteira. Temos em nós o potencial de ser qualquer ser humano, como dizia um antigo poeta latino na frase que Freud sempre recordava: “Nada do que é humano me é alheio.”

 

Literatura

O grande ensaísta Otávio Paz (PAZ, 1993) aplica a mesma regra à Literatura e afirma: todos os livros do mundo são um único livro, que é o livro do homem. Um bom exemplo literário das questões que aqui nos ocuparam encontra-se em um conto de João Guimarães Rosa: “O Espelho”:

Um matuto entra na estação ferroviária, olha no espelho e espantado não encontra sua cara refletida nele, mas o rosto de um desconhecido. Ele olha novamente no espelho e se vê, com sua velha e familiar face. Desconfiado, passa a elaborar uma teoria própria, a de que os espelhos mentem. Com rigor quase cientifico ele passa a se utilizar de várias estratégias para tentar surpreender os espelhos. Inicialmente procura o relance, o golpe de vista, a abertura súbita das portas, em busca de uma imagem que reflita o seu verdadeiro rosto, que só o espelho conheceria. Depois, já convencido de que são muitas as diferentes versões que seu rosto pode apresentar nos espelhos, ele passa a conduzir um experimento de “descamação”. Observa o espelho e busca ver o que no seu rosto não é dele e vêm dos seus pais, avós e todas as gerações anteriores. Desse modo vai desbastando o seu rosto, mas não encontra seu rosto verdadeiro. Quem está por trás dessa máscara que é o seu rosto? Para mais além das gerações ele passa a buscar o animal que ele já foi, em outras perdidas encarnações. E além do animal para as formas de vida mais primitivas, até que exausto, um dia ele se cansa da procura. Então subitamente, ele bate os olhos no espelho e ele mesmo sumiu. Não há nada, não há reflexo, ele se foi. Desesperado, busca por si, e afinal, vê lá no fundo, brilhar uma luzinha...

Quando estou diante do espelho, descubro que sou EU e sou o outro. Encontro algo da minha natureza e presença. Encontro em mim o outro em todos os planos e dimensões. O que me é próprio existe, e é reconfortante, mas o que me é mais essencialmente próprio, aquilo que de fato me constitui, isso é a Relação.

Assim, aquilo que é uma experiência individual, por mais singular que ela seja (por exemplo, um surto psicótico), por mais estranha ou extraordinária que ela seja, podemos sentir que aquela experiência é de um semelhante a nós. Qualquer experiência humana vivida vai para o conjunto da humanidade e se torna algo comum, parte do acervo coletivo humano. Em nosso inconsciente vive este tesouro, formado da totalidade das experiências já vividas pelos outros seres humanos. E é por isso que somos capazes de nos comunicarmos com qualquer ser humano, e tanto podemos nos emocionar com Platão, com um místico sufi do século XI, ou com um poeta cambojano do século XXI.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: lazslo@terra.com.br

Recebido: 25.11.2008
Aceito: 17.03.2009

 

 

1 Psicólogo, professor adjunto da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, SP. Autor de: Doenças do Corpo e Doenças da Alma. 3ª. ed. São Paulo: Escuta, 2002; Isso é Groddeck, São Paulo: EDUSP, 1998 e O Eu e o Corpo. São Paulo: Escuta, 2004.

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