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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.22 no.1 Brasília jan./mar. 2022
https://doi.org/10.5935/RPOT/2022.1.21287
10.5935/RPOT/2022.1.21287 ARTIGOS
Coming out e homofobia no trabalho: experiências em Montes Claros-MG
Coming out and homophobia at work: experiences in Montes Claros-MG
Coming out y homofobia en el trabajo: experiencias en Montes Claros-MG
Carlos Sérgio Rodrigues CardosoI; João Henrique Machado DelgadoII; Felipe Froés CoutoI; Alexandre de Pádua CarrieriII
IUniversidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), Brasil
IIUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
Informações sobre o autor principal
RESUMO
Neste trabalho, busca-se compreender as experiências de coming out e homofobia de homossexuais da cidade de Montes Claros (MG), Brasil. Optou-se por adotar uma abordagem qualitativa. Foram realizadas nove entrevistas semiestruturadas com profissionais gays do município, seguidas da análise de conteúdo. Sobre o coming out, destaca-se a dificuldade de separação entre a vida pública e privada no interior mineiro, o que levou a maioria dos entrevistados a revelar sua identidade sexual. Porém, isso não impediu que eles tenham sofrido com a homofobia no trabalho, que foi percebida em: comentários sarcásticos e ofensivos, barreiras impostas para o trabalho, dificuldade nos relacionamentos, intimidação e desestímulo à revelação da orientação sexual, desligamento da empresa. Por outro lado, os entrevistados percebem ganhos ao assumirem-se, como: sensação de satisfação profissional e de autoconfiança, fortalecimento de vínculos com colegas, melhoria do desempenho no trabalho, e conciliação da vida pessoal e profissional. Por último, destaca-se a importância de medidas que promovam, de fato, a visibilidade, inclusão e reconhecimento de sujeitos não heterossexuais.
Palavras-chave: coming out; homofobia; violência; relações de trabalho.
ABSTRACT
In this work, we seek to understand the experiences of coming out and homophobia in the city of Montes Claros-MG. We chose to adopt a qualitative approach. Nine semi-structured interviews were conducted with gay professionals in the municipality, followed by content analysis. Regarding coming out, the difficulty of separating public and private life in the interior of Minas Gerais stands out, which led most of the interviewees to reveal their sexual identity. However, this did not prevent them from suffering from homophobia at work, which was noticed in sarcastic and offensive comments, barriers imposed on work, difficulty in relationships, intimidation and discouragement from disclosure of sexual orientation, and being fired from the company. On the other hand, the interviewees perceive gains when they come out, such as a feeling of professional satisfaction and self-confidence, strengthening bonds with colleagues, improved work performance, and reconciling personal and professional life. Finally, the importance of measures that promote, in fact, the visibility, inclusion and recognition of non-heterosexual subjects is highlighted.
Keywords: coming out; homophobia; violence; labor relations.
RESUMEN
En este trabajo, se busca comprender las experiencias de coming out y la homofobia de los homosexuales en la ciudad de Montes Claros - MG, Brasil. Se adoptó para ello un abordaje cualitativo. Se realizaron nueve entrevistas semiestructuradas con profesionales gays en el municipio, seguidas de análisis de contenido. Sobre el coming out, se destaca la dificultad de separar la vida pública y privada en el interior de Minas Gerais, lo que llevó a que la mayoría de los entrevistados revelara su identidad sexual. Sin embargo, esto no impidió que sufrieran homofobia en el trabajo, lo cual se percibió en: comentarios sarcásticos y ofensivos, barreras impuestas en el trabajo, dificultad en las relaciones, intimidación y desestímulo de revelar la orientación sexual, despido de la empresa. Por otro lado, los entrevistados notan beneficios cuando se asumen, tales como: sentimiento de satisfacción profesional y autoconfianza, fortalecimiento de los lazos con colegas, mejora del desempeño laboral, y conciliación de vida personal y profesional. Finalmente, se destaca la importancia de las medidas que promueven, de hecho, la visibilidad, inclusión y reconocimiento de los sujetos no heterosexuales.
Palabras clave: coming out; homofobia; violencia; relaciones laborales.
No contexto da década de 1980, houve grande intensificação da luta política por maior diversidade nas organizações. A força de trabalho passou a integrar diferentes perfis individuais e, embora as temáticas de "raça" e "gênero" fossem cada vez mais discutidas nos países do Norte, as pesquisas envolvendo questões LGBT no trabalho eram comparativamente escassas (Ng & Rumens, 2017). Na última década, pesquisadores brasileiros têm demonstrado interesse em assuntos como a violência homofóbica (Siqueira, Saraiva, Carrieri, Lima, & Andrade, 2009), inclusão da diversidade sexual no ambiente de trabalho (Caproni Neto, Saraiva, & Bicalho, 2014) e estratégias de sobrevivência no mercado de trabalho (Irigaray & Freitas, 2013). Este estudo abordará em maior profundidade os dois primeiros tópicos, buscando avançar em discussões referentes ao processo de "sair do armário" nas organizações de uma cidade pequena.
A revelação da homossexualidade no ambiente de trabalho não pode ser desvinculada do debate acerca da homofobia, que ganhou espaço nos anos 70 por causa dos avanços no ativismo político norte-americano (Costa & Nardi, 2015). No Brasil, apesar das iniciativas precoces do jornal Lampião e do grupo Somos, a ampla organização do movimento LGBT só acontece em meados dos anos 80, em função do avanço da epidemia de AIDS no Brasil (Trevisan, 2017). Em Montes Claros, cidade onde foi realizada esse estudo, o marco inicial do movimento acontece em 2002, com um projeto do Grupo de Apoio e Prevenção aos Portadores de AIDS (GRAPPA) destinado a homens que fazem sexo com homens (Jesus, Santos, & Sales, 2015).
Nesse artigo, advoga-se a utilização do conceito de homofobia tal qual colocado por Junqueira (2007), referindo-se a "situações de preconceito, discriminação e violência contra pessoas (homossexuais ou não) cujas performances e ou expressões de gênero (gostos, estilos, comportamentos etc.) não se enquadram nos modelos hegemônicos postos por tais normas [de gênero]" (p. 8 e p.9). Aqui, compreende-se o preconceito como pré-julgamento com base no sistema de ideias dominantes, enquanto a discriminação seria a ação contra uma pessoa ou grupo motivada pelo próprio preconceito. Assim, a homofobia seria a discriminação baseada no preconceito contra a diversidade sexual e, mais especificamente, contra a identidade homossexual.
Tanto o preconceito quanto a discriminação estão fundamentalmente vinculadas à manutenção de normas de gênero. Essas normas podem ser compreendidas como padrões relacionais que, quando naturalizados e duráveis no tempo, tornam-se estruturas (Connell & Pearse, 2015). Para não cair em determinismos sociais, as autoras reconhecem as estruturas como condicionantes da prática da prática de gênero, atentando-se para a dinâmica das mudanças sociais e para os conflitos de diferentes interesses.
Em uma análise sobre a democracia brasileira, Biroli (2018) contextualiza a noção de gênero como uma das principais disputas envolvendo setores reacionários. As conquistas obtidas pelos movimentos sociais passam a enfrentar expressiva oposição do conservadorismo, que ganha espaço entre aqueles que buscam a manutenção das relações sociais tais quais prescritas por padrões de conduta e moralidade hegemônicas. No Brasil, a Igreja católica e, mais recentemente, o pentecostalismo contribuem significativamente para inflexões conservadoras, comprometendo um pilar "incompleto e frágil" da democracia: a laicidade do Estado (Biroli, 2018, p. 130).
Em Montes Claros, somente a parcela da população que se declara católica e evangélica é equivalente a mais de 90% do total (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010), mostrando que a matriz cristã é bastante influente na região do semiárido mineiro. Nela, a tradição religiosa e o patriarcalismo se constituem como dois grandes sistemas normativos, cuja produção discursiva não atua em favor da diversidade sexual. Em seus estudos, Brandão, Nogueira e Almeida (2017) analisam o entrelaçamento entre religião e homofobia em Montes Claros, apontando a Igreja e a família como espaços pouco acolhedores da diversidade sexual. A organização da vida em torno da família patriarcal e da dogmática cristã limitam o debate sobre sexualidade, condenam dissidências à heterossexualidade e perpetuam discursos e práticas homofóbicas.
Montes Claros, entre os anos de 2012 e 2019, município com 409 mil habitantes, registrou 57 ocorrências policiais relacionadas a preconceitos por orientação sexual, sendo o oitavo município do Estado em quantidade nominal de casos de violência contra a população LGBT. Houve um aumento expressivo da quantidade de ocorrências desde 2015, com um aumento de 75% das ocorrências em 2016, 14% em 2017 e 63% em 2018. No ano de 2019, em um contexto político distinto dos anteriores, foi registrada uma queda de 23% nas ocorrências relacionadas ao tema, seguindo a tendência geral do Estado de Minas Gerais.
A violência homofóbica em Montes Claros ganha visibilidade por dois casos extremos: 1) o do bailarino Igor Xavier, assassinado em 2002 por razões homofóbicas; 2) o caso do Professor da UFOP André Felipe Vieira Colares, membro da Sociedade Brasileira de Estudos Organizacionais, brutalmente assassinado em 2016. O crime de ódio ocorreu em 2016, quando causou comoção nacional e deu origem a um manifesto anti-LGBTfobia na Farol -Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade (Saraiva, 2016).
A primeira lacuna identificada foi a escassez de estudos brasileiros sobre o processo de sair do armário nas organizações. Uma busca pela palavra "armário" no site SPELL identificou somente cinco artigos, sendo somente três deles referentes ao debate sobre a revelação da orientação sexual nas organizações. Uma nova busca pelo termo "coming out" localizou mais um trabalho aderente à temática no Brasil. A segunda lacuna refere-se ao posicionamento do conhecimento produzido sobre o assunto: nenhum deles diz respeito a experiências de trabalhadores LGBTs em cidades do interior. Até mesmo quando somados estudos sobre a homofobia, a maioria retrata experiências em grandes centros urbanos (Gomes & Felix, 2019; Siqueira et al., 2009) ou sequer mencionam o contexto específico de produção do conhecimento (Caproni Neto et al., 2014; Rabelo & Nunes, 2017; Souza & Pereira, 2013).
Nesse sentido, essa pesquisa contribui para deslocar o olhar para realidades particulares. Em pequenas cidades, a possibilidade de ocultação de informações pessoais é potencialmente reduzida, o que se torna uma questão relevante para analisar o coming out. A ênfase em narrativas que partem da grande metrópole pode reduzir o escopo de análise para as experiências que se dão em comunidades menores, onde a separação da vida pública e da intimidade é desafiada pela proximidade das relações sociais.
Assim, chega-se à seguinte pergunta norteadora deste estudo: como se articulam as experiências do coming out com as manifestações de homofobia para trabalhadores homossexuais no município de Montes Claros? Para responder essa pergunta, buscou-se compreender: a experiência da revelação ou não da identidade sexual, suas consequências, de que forma os entrevistados percebem e reagem à homofobia e como as organizações lida com as manifestações do preconceito. Embora focados na vida profissional dos entrevistados, os relatos também trazem experiências da vida pessoal associadas à família e à religião.
Homofobia e o Preconceito nas Organizações
Compreende-se a homofobia como "dispositivo de vigilância das fronteiras de gênero" (Borrillo, p.8, 2010), assumindo que a discriminação contra pessoas LGBT é um dos mecanismos de preservação de hierarquias sexuais e de um regime binário de sexualidades. A criação da categoria homossexualidade é marcada pelo estigma e pela noção de dissidência à norma heterossexual, que ganha status de experiência universal (Caproni Neto et al., 2014). Nesse sentido, a caracterização de uma sociedade heteronormativa é dada pela estigmatização de comportamentos que desviem de padrões heterossexuais (Souza & Pereira, 2013).
Seguindo o raciocínio, a heteronormatividade, opera com base no binarismo de gênero e rejeita masculinidades, feminilidades e expressões sexuais que fogem do pacto heterossexual. Assim, ela representa o conjunto discursivo que "produz privilégios para pessoas que seguem as normas heterossexuais e exclui aquelas que não seguem" (Souza & Pereira, 2013, p. 84). No cotidiano, a categorização dos corpos (homossexual/heterossexual) é significativamente orientada pelas expressões de gênero, fazendo com que a coerência entre sexo-gênero-sexualidade (macho, masculino e heterossexual) seja valorizada e percebida como normal (Borrillo, 2010). A homofobia seria, portanto, uma violência expressa em defesa da heteronormatividade e da legitimidade desse padrão de normalidade.
Em sua origem, na década de 80, a homofobia era compreendida como uma manifestação individual de aversão, medo ou repulsa ao homossexual (Costa & Nardi, 2015). Mais do que uma violência física, o movimento LGBT evidenciou a homofobia em manifestações menos grosseiras, que se configuram como violências sutis e invisíveis, mas que naturalizam desigualdades sociais entre hétero e homossexuais (Borrillo, 2010). A luta democrática por direitos e pela plena cidadania desmascaram a dimensão coletiva da homofobia (Biroli, 2018), lastreada em discursos heteronormativos produzidos e reproduzidos nos arranjos sociais. Portanto, pensar na homofobia somente como um problema individual esconde uma "análise do preconceito como um problema enraizado na estrutura da sociedade" (Costa & Nardi, 2015, p. 718).
Enquanto arranjos sociais, as organizações também produzem e reproduzem os padrões hegemônicos de sexualidade (Caproni Neto et al., 2014). A heteronormatividade, ao estabelecer o alinhamento das identidades sexuais e de gênero, produz implicações para trabalhadores homossexuais e heterossexuais (Barnard & Dainty, 2018), fazendo com que haja uma expectativa sobre o ser homem e ser mulher no trabalho. Siqueira et al. (2009) evidenciam de que formas o homossexual masculino efeminado se torna mais suscetível ao assédio moral e à exclusão no ambiente de trabalho, mostrando que a identificação com características atribuídas ao feminino é percebida como uma desvantagem no ambiente organizacional. Inclusive, ele se torna alvo de discriminação por outros homossexuais que deslegitimam o gay efeminado (Siqueira et al., 2009; Souza & Pereira, 2013), indicando haver uma hierarquização dentro da própria categoria de minorias sexuais.
As organizações são local de expressão de violência homofóbica mais comumente percebida em vias indiretas e informais (Souza & Pereira, 2013). Seriam elas: brincadeiras, piadas, fofocas e outras agressões discursivas (Siqueira et al., 2009); excluir o homossexual de convívios informais (Souza & Pereira, 2013); e sabotagens (Caproni Neto & Fonseca, 2014). Nesse sentido, a omissão gerencial (Siqueira et al., 2009) e a escassez de políticas voltadas para a inclusão da diversidade (Neto & Fonseca, 2014; Ng & Rumens, 2017) tornam a organização formal conivente com essas manifestações de homofobia no trabalho. Para sobreviver no âmbito organizacional, são desenvolvidas estratégias de sobrevivência, que vão desde a explicitação da orientação sexual em todas as dimensões sociais, apenas em algumas, ou a sua ocultação (Irigaray & Freitas, 2013).
Coming Out nas Organizações
O coming out (forma abreviada de coming out of the closet que na língua portuguesa corresponde a "sair do armário") é tratado, aqui, como uma forma de assumir-se não heterossexual em público. O "sair do armário" é um processo de construção da identidade homossexual refletida na aceitação e na revelação de um status social estigmatizado (Pereira, 2009) para familiares, amigos, colegas de trabalho ou estranhos. Alguns autores enfatizam as maneiras como o coming out pode acontecer para gays, lésbicas e bissexuais (Manning, 2015), mas ele também precisa ser compreendido como parte de um processo coletivo que mobiliza discursos sobre esses sujeitos.
A estigmatização está intimamente ligada a uma produção discursiva que silencia e invisibiliza o desejo homossexual por sua vinculação ao status de doença, perversão ou pecado (Caproni Neto & Fonseca, 2014; Simões, 2010). Não só. Souza e Pereira (2013) entendem que a afeminação é identificada como uma característica universal dos homossexuais masculinos e, portanto, o estigma seria um reflexo da inferiorização da feminilidade. Assim, expressões de gênero que fogem dos papéis atribuídos ao homem e à mulher são alvos de violência (Caproni Neto & Fonseca, 2014). Em espaços públicos, espera-se que o homossexual não seja reconhecido como tal, o que significa que sua aceitação social está associada à manutenção de uma heterossexualidade presumida (Miskolci, 2015). Nesse sentido, a vida pública exerce pressão para permanência no armário e para o alinhamento com comportamentos discretos e masculinos.
Sedgwick (2007) classifica a narrativa do armário como "elástica e produtiva" (p.22), apontando para a constante reiteração e renovação na produção discursiva sobre o sigilo. Mesmo com as recentes garantias em termos de direitos para a população LGBT, o armário nunca deixou de agir como dispositivo de regulação da vida e de manutenção da heteronormatividade no Ocidente, criando, a cada novo convívio social, demandas de sigilo ou exposição (Sedgwick, 2007). Aqui, o armário é apresentado como uma barganha, isto é, uma negociação do grau de visibilidade da homossexualidade "de forma a maximizar a segurança e evitar retaliações morais e materiais" (Miskolci, 2015, p. ???). Cabe destacar que negociar não implica em uma previsão racional e mensurável dos riscos e ganhos percebidos ao assumir-se em um cenário onde as reações são desconhecidas. Ao contrário, é um processo atravessado por situações que afetam inconscientemente o sujeito e, por isso, a abordagem racional e calculativa se torna limitada (Gomes & Felix, 2019).
Revelar a orientação sexual é uma decisão que exige o entendimento de que isso impactaria negativamente na carreira e nas relações interpessoais no ambiente de trabalho (Caproni Neto et al., 2014). Assim, a ocultação aconteceria por uma antecipação do preconceito, visando reduzir a possibilidade de experienciá-lo (Costa & Nardi, 2015; Solomon, McAbee, Åsberg, & McGee, 2015), e por uma tentativa de evitar perdas, violências, restrição de direitos, estereótipos, insultos e até mesmo uma "interpretação forçada de seu produto corporal" (Sedgwick, 2007, p. 22). Em um estudo sobre o silêncio de gays e lésbicas no ambiente de trabalho, Gomes e Felix (2019) investigam elementos intra e intersubjetivos que influenciam na percepção de segurança/hostilidade e na criação de condições menos danosas para a revelação da orientação sexual.
A relevância desse debate reside no entendimento de que permanecer no armário não é uma escolha isenta de ônus, uma vez que o homossexual ainda sofre com a vigilância constante, com o desejo de terceiros em descobrir e revelar sua homossexualidade (Siqueira et al., 2009), com os danos psíquicos de não poder expressar plenamente sua identidade no ambiente de trabalho (Gomes & Felix, 2019) e com o próprio preconceito internalizado (Solomon et al., 2015). No campo dos estudos organizacionais, tem-se dado mais atenção ao bem-estar mental de trabalhadores LGBTs, de forma que ambientes inclusivos e políticas formais contribuam para a garantia de direitos, proteção e reconhecimento (Ng & Rumens, 2017).
Por outro lado, Siqueira et al., 2009) criticam a aposta única em políticas de promoção da diversidade como tentativa de favorecer o coming out, uma vez que nem sempre os regulamentos se convertem em práticas de aceitação da não heterossexualidade. Nesse sentido, Gomes e Felix (2019) sugerem um modelo integrativo a ser utilizado gerencialmente para reconhecer a percepção de segurança como uma combinação de fatores individuais e contextuais. Pensando na geração de confiança para sair do armário, Caproni Neto et al. (2014) apostam na cultura organizacional e sugerem que comportamentos sejam difundidos desde a alta administração até a base.
Método
Esta pesquisa, de cunho qualitativo, demandou grande abertura dos pesquisadores em relação à complexidade existente nas relações sociais nas organizações e da grande complexidade da sexualidade humana, muitas vezes ignorada. Segundo Goldenberg (1999), a pesquisa qualitativa busca se aprofundar sobre um determinado grupo social ou organização, não se preocupando numericamente, mas sim, com a qualidade das informações obtidas.
Quanto à pesquisa de campo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, que se caracterizam por combinarem perguntas abertas, onde o informante teve a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto. Nas entrevistas, foram perguntados aspectos relacionados à identidade sexual dos entrevistados; a percepção dessa identidade e como lidar com isso; sobre o coming out em casa, no âmbito educacional e no trabalho; sobre a experiência de se assumir e se assumir no trabalho ou não; as táticas de sobrevivência dentro das organizações; discriminação; políticas de diversidade dentro das empresas; barreiras profissionais devido a homossexualidade e o papel das organizações na inclusão da diversidade sexual.
As exigências para "seleção" dos entrevistados foram duas: (1) Pessoa não heterossexual; (2) Pessoa cisgênero. Ao total, foram nove entrevistados de diferentes empresas da cidade de Montes Claros. A escolha dos primeiros participantes se deu por meio de contatos pessoais, a partir daí foi utilizando a técnica metodológica snowball ("bola de neve") (World Health Association, 1994). As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas, com a autorização dos participantes do estudo por meio de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Pela grande resistência dentro da cultura de Montes Claros, foi difícil achar sujeitos de pesquisa que se disponibilizaram a falar sobre o fenômeno. Dessa forma, não foi possível fazer mais do que essas nove entrevistas. Nesse cenário, a escolha dos sujeitos de pesquisa foi feita por acessibilidade, visto que em sua maioria, os entrevistados são universitários entre 18 e 30 anos e com pouca experiência profissional, isto é, estão a pelo menos entre dois a três anos no mercado de trabalho. Com relação a sexualidade, todos os entrevistados se identificaram como homossexuais para o entrevistador, embora alguns não sejam assumidos ou parcialmente assumidos no trabalho.
Foram realizadas perguntas acerca: a) da descoberta da orientação sexual; b) percepção sobre a própria identidade LGBT; c) Experiência de assumir-se gay para a família; d) experiência de assumir-se gay no ambiente de trabalho; e) dificuldades encontradas ao longo do processo de assumir-se homossexual; f) percepções sobre o tratamento dispensado a homossexuais no ambiente de trabalho. As categorias utilizadas (não assumido/parcialmente assumido/totalmente assumido) foram extraídas do estudo de Irigaray e Pereira (2013).
Estas subcategorias representam: aqueles que são abertamente homossexuais no trabalho, ou que só se assumiram para alguns colegas e até mesmo aqueles que não se assumiram. Após a explicação dessas categorias para os entrevistados, estes se enquadraram em uma delas para o entrevistador. Na tabela 1, é possível encontrar informações adicionais sobre os entrevistados, que são relevantes para a realização da pesquisa:
Em seguida, a sistematização de ideias ocorre por meio da construção de categorias, o que permite compreender e explicar as questões teórico-metodológicas norteadoras da investigação (Colbari, 2014). Nesse sentido, as categorias foram construídas a posteriori com o intuito de melhor abranger os objetivos propostos. Assim, após a realização da pesquisa, foram definidas duas categorias chave: (1) Homofobia nas organizações e (2) Coming out nas organizações.
Homofobia nas organizações. Buscou-se compreender de que maneiras os entrevistados percebem e reagem à homofobia, de que forma isso os afeta e como a organização lida com as manifestações de preconceito;
Coming out nas organizações. Aqui, foram abordados temas como o coming out no local de trabalho, a experiência ao revelar, as dificuldades e vantagens percebidas e como a revelação da orientação sexual influencia na qualidade de vida no trabalho.
Cabe destacar que as duas aparecem concomitantemente na fala dos entrevistados, impossibilitando uma análise separada dessas categorias. As categorias propostas são com o intuito de melhor organizar as análises e o texto, mas ambas as temáticas (homofobia e coming out) se atravessam. Por fim, buscou-se verificar se as empresas possuíam algum tipo de política de diversidade que prevenisse a discriminação e qual o pensamento dos entrevistados acerca das ações que as empresas poderiam tomar para ajudar na integração social do público LGBT.
Resultados e Discussão
Coming Out nas Organizações
O coming out no trabalho foi compreendido como um processo amplo que envolve outras dimensões da vida, como relacionamentos na família e relações sociais relevantes para cada entrevistado. A única entrevistada que não assumiu sua orientação sexual no trabalho relaciona essa decisão com elementos que envolvem sua família e religião.
01: Como eu te falei, eu trabalho com meu pai desde sempre. É uma escola e ele é o diretor. E eu sou secretaria dele, secretaria da escola. E todas as pessoas... Todas não. Vamos dizer, assim, uns 70% dos funcionários da escola são também pessoas da igreja, da minha igreja, a igreja que meu pai é pastor. E, como eu sempre pretendi preservar a imagem do meu pai, [...] eu nunca falei com alguém do trabalho [sobre sua orientação sexual] (Entrevistada E1, grifo nosso).
Aqui, a dimensão intersubjetiva torna-se influente para percepção de hostilidade em revelar sua orientação sexual (Gomes & Felix, 2019), considerando dois relacionamentos: o da entrevistada com a família e o da família com os funcionários. Trabalho e família se misturam, assim como as imagens do pai diretor da escola e líder religioso, que podem ser potencialmente prejudicadas por um ataque homofóbico à filha. Assim, relações de trabalho e de parentesco encontram-se imbricadas e impossibilitam uma separação entre experiências pública e privada.
Essa impossibilidade também foi mencionada pelos outros entrevistados, o que parece apontar para uma dificuldade de estabelecer um equilíbrio entre proximidade e distância social em Montes Claros. Ainda mais para a temática da sexualidade, reitera-se a colocação de Sedgwick (2007): "Para as antenas finas da atenção pública, o frescor de cada drama de revelação gay (especialmente involuntária) parece algo ainda mais acentuado em surpresa e prazer" (p. 21). Esse é o caso do entrevistado 3, que, embora totalmente assumido, afirma não ter sido responsável pela revelação: "[...] a maioria das pessoas sabem. [...] porque, minha gerente é amiga de um rapaz que eu fiquei. Eles são muito amigos. [...] Então eu já fui inserido nessa organização onde eu estou [...] já com pessoas sabendo." (E3, 2018).
Principalmente no interior, onde as relações sociais são mais estreitas, esconder informações íntimas torna-se um desafio e qualquer laço de amizade vira prerrogativa para saber da vida alheia. Assim, a vivência de um relacionamento homossexual dificilmente se mantém em segredo e é alvo de exposição. Nesse sentido, aponta-se o controle da própria intimidade como um duplo privilégio: da heterossexualidade presumida e da possibilidade de separar a vida pública e privada. Contraditoriamente, quando a identidade homossexual é reivindicada como identidade política, há o convite imediato para voltar ao armário e desfrutar do benefício da privacidade:
02: Eu recebi alguns conselhos logo de cara. Nesse sentido: de que ninguém precisa saber, o que você faz da sua vida pessoal, ninguém presa obter essa informação e quase uma recomendação para não sair do armário [...]. Mas, para uma outra [colega], eu tive que falar mais claramente [sobre sua orientação sexual]. E aí recebi, mais ou menos a mesma resposta assim, do tipo: "a que legal que você me contou, mas aqui as pessoas não precisam saber. Cuidado!". (Entrevistado E9)
O entrevistado 9, totalmente assumido e engajado em ações de visibilidade LGBT, já não se torna alvo das tentativas sair do armário involuntariamente, mas de intimidações. Quando os colegas reforçam a negatividade de se assumir publicamente enquanto homossexual, não há uma preocupação exclusiva com o bem-estar do entrevistado, mas com a estabilidade do regime heteronormativo. Ao desorganizar noções cristalizadas de gênero e sexualidade, o homossexual é alvo de homofobia, mesmo que de maneira sutil e disfarçada de conselho.
Quando perguntado sobre o coming out no trabalho, o entrevistado 8 não relatou qualquer tipo de conflito.
03: No trabalho, também, a recepção foi bem tranquila, muito tranquila mesmo. Eu não sei se isso está associado a questão de todo o quadro de funcionários ser um pessoal de fora, por exemplo, é tanto que eu acho que a pessoa mais do interior que tem lá, sou eu. O restante é tudo de BH, Sete Lagoas, Juiz de Fora. (Entrevistado E8)
A suspeita de que a aceitação da homossexualidade esteja vinculada ao convívio com colegas de fora levanta algumas questões. A primeira delas é que, caso fossem de Montes Claros, talvez não fosse uma recepção tranquila. A segunda é que ele cita colegas oriundos da Região Metropolitana e da Zona da Mata, que são grandes polos econômicos do Estado. Embora Montes Claros seja um grande polo regional, o entrevistado parece inserir-se em uma relação centro-periferia diante das demais cidades, caracterizando a si próprio como o "mais do interior que tem lá". Ainda que isso evidencie a colonialidade dessas relações geográficas, como se Montes Claros fosse uma cidade atrasada em relação ao centro desenvolvido, o relato aponta certo endurecimento com discussões sobre diversidade sexual na cidade, o que corrobora os estudos de Brandão et al. (2017).
Apesar das dificuldades percebidas ao assumir-se, a maior parte dos entrevistados não permaneceu no armário, indicando que o sigilo também pode trazer danos psicológicos. Com relação às vantagens, a revelação da orientação sexual pode influenciar positivamente na satisfação profissional e na convivência com os colegas, como relatado pelos entrevistados a seguir:
04: [...] eu acho assim: quando você sente que a pessoa é sincera com você, você acaba que tem uma maior facilidade de entender, de estar junto, de querer ajudar. E eu usava isso muito a meu favor, então sempre joguei muito limpo com as minhas equipes [...] então eu tinha esse retorno positivo no sentido de ser parceiro mesmo, de estar junto. E isso sempre me ajudou. Então, eu nunca tive problema em relação a isso [sexualidade]. (Entrevistado E4).
05: [...] eu tenho a impressão... Não sei se é verdade, mas eu tenho a impressão de que, hoje, eu sou muito mais no meu serviço por minha postura, do que antes (Entrevistado E3).
O entrevistado 4 aposta na comunicação aberta e sincera com sua equipe, sentindo uma resposta positiva dos envolvidos. Assim, a saída do armário está associada a criação de laços de confiança e fortalecimento dos vínculos organizacionais. Já o entrevistado 3 relata a impressão de "ser muito mais" no serviço, indicando que a revelação da homossexualidade contribui para o sentimento de autoconfiança, essencial para a motivação com o trabalho e satisfação pessoal. Nesse aspecto, o entrevistado 4 chega a mencionar: "Eu acho que ajuda na minha produtividade sim. É uma forma de mostrar que tem outras maneiras de conquistar o respeito, de conquistar a confiança da equipe" (E4, 2018). Aqui, parece que a conquista do respeito e confiança da equipe está ligada ao maior empenho no trabalho. Assim, o aumento de produtividade teria como possíveis efeitos o reconhecimento e a legitimação do profissional homossexual, respeitado por um bom desempenho.
A ocultação de informações sobre a vida pessoal não é tão simples, pois afeta a qualidade dos relacionamentos no local de trabalho. Isso contribui para a sensação de isolamento, tristeza e depressão, exigindo que todo o convívio social na empresa seja marcado pela dissimulação de identidades. Quando perguntado se sentia que permanecer no armário influenciava sua vida profissional e pessoal, o entrevistado 9 afirma:
06: Influencia, porque, de fato, eu estava um pouco chateado, assim, de estar no armário [...] Era uma coisa que me entristecia. Então, porque eu sou uma pessoa... eu sou muito sincero, até demais. Então eu gosto muito de falar e eu gosto muito de falar sobre mim. E gosto de falar diretamente o que eu estou pensando e o que eu estou sentindo. E isso ia muito contra a minha natureza, entre aspas, sabe? Que era fingir ser algo que eu não sou. Fingir que eu penso as coisas que eu não penso e isso para mim é terrível (Entrevistado E9).
Não poder ser honesto consigo e com os outros no trabalho é um sentimento despertado pela simulação de uma personalidade. O entrevistado chega a falar que "ficava exausto de ter que fingir que eu era hétero" (E9, 2018). "Fingir" é um verbo bastante usado, justamente porque se tornou ação reiterada cotidianamente, responsável não só pela insatisfação profissional, como também por danos psicológicos associados à tristeza. A ênfase discursiva no fingimento evidencia que o entrevistado sempre esteve ciente dos limites do regime de representação e, mesmo se passando por heterossexual em seu trabalho, sabia que aquilo não condizia com sua "natureza". Assim, a decisão de sair do armário leva em consideração a tentativa de conciliar a vida profissional e a vida afetiva. De alguma forma, todos os entrevistados associaram a saída do armário ao sentimento de satisfação profissional pelo fato de sentirem mais autênticos, confiantes, respeitados ou até mesmo produtivos.
Homofobia nas Organizações
As vivências dos entrevistados tornam mais evidentes a restrição do debate sobre sexualidade no trabalho.
07: Eu não me sentia confortável por causa das coisas que eu ouvia essas pessoas falando, sobre os gays, sobre qualquer coisa desse tipo. Então a carga de preconceito era muito mais forte nesse lugar onde eu trabalhava. [...] Eu, com certeza, seria discriminada. E o medo de ser discriminada ou não saber lidar com essa discriminação é que me fez optar por não falar nada. (Entrevistada E1).
Aqui, a entrevistada 1 preza pela própria integridade e, apesar de não ter sofrido discriminação, reconhece que o preconceito existe na organização onde trabalhou. A ocultação da orientação sexual aparece, portanto, como uma estratégia para impedir que o preconceito não se convertesse em uma ação dirigida a si própria. Os comentários ofensivos, ora disfarçados de piadinhas, funcionam como sanções normalizadoras para desmoralizar aqueles que se tornam alvo da homofobia.
08: Teve uma época lá, que a gente estava fazendo os pedidos das blusas para trabalhar, entendeu? E lá, desde quando abriu essa empresa, [...] sempre quem optava pelas blusas rosas eram as mulheres, entendeu? Aí um belo dia eu falei assim: não, vou querer uma blusa rosa. [...] Aí essa bendita blusa rosa chega, tipo, depois de um mês. [...] Eu pedi uma blusa P, eles me deram uma blusa M. Eu falei, essa M não serve em mim, essa M é grande. Eu escutei, "mas além de você estar usando rosa, você ainda está querendo tamanho P?". [...] Um colega meu de trabalho chegou, virou e falou: uai, desse jeito, você está querendo essa blusa tão apertada, faz dela um cropped. (Entrevistado E6).
Aqui, fica explícito como as vestimentas delimitam o gênero e estão culturalmente associadas ao feminino ou ao masculino. Não só a cor rosa, mas a roupa apertada também compõe a representação estética dos homossexuais, sendo reconhecida como um dos elementos dos efeminados. A ridicularização promovida pelo colega configura-se como um episódio de homofobia e fundamenta-se em noções fixas de masculinidade e feminilidade heteronormativas. Nesse sentido, ocorre a inferiorização do gay efeminado no ambiente de trabalho (Souza & Pereira 2013) e uma pressão para que, mesmo assumido, o homossexual consiga se enquadrar em uma heterossexualidade presumida (Miskolci, 2015).
A valorização de uma estética masculina é outro caminho para a conformação do corpo homossexual em padrões da heteronormatividade. O relato do entrevistado 9 mostra que nem sempre a homofobia opera por meio da negatividade da ofensa:
09: [...] foi que na época eu tinha o cabelo comprido. E ela [chefe] insistia e insistia para eu cortar. E só ficou feliz quando eu cortei o cabelo. Eu acho que tinha alguma relação com isso, assim, com parecer mais masculino. (Entrevistado E9).
Na percepção do entrevistado, a insistência da gestora não funciona como uma recomendação de cunho profissional, mas, sim, como questionamento de suas identidades. Operando como controles dos limites de gênero e sexualidade (Borrillo, 2010), a homofobia e o machismo estão estritamente interligados a partir do momento que as características são generificadas. O cabelo comprido, por ser socialmente atribuído à mulher, gera um desconforto que é externalizado no ambiente de trabalho por meio de comentários como este. Cortar o cabelo significa enquadrar-se no padrão estético atribuído ao homem, respeitar as fronteiras e gênero e corresponder ao ideal de normalidade.
Em outro relato, a homofobia aparece em uma entrevista de desligamento. O entrevistado 3 frustra-se com os motivos que levaram a sua demissão, vista por ele e por alguns colegas de trabalho como uma postura motivada por discriminação sexual.
10: Eu tenho quase certeza. Sabe? Porque as especulações foram muito fortes. E eu sou um bom profissional. Eu sei disso. E, o tempo que eu fiquei lá na empresa, eu fui muito produtivo. E eu fui mandado embora por razões ilógicas. Fúteis, sabe? As justificativas que me deram foram... sabe? Eu não engoli até hoje. (Entrevistado E3)
No trecho, questiona-se a isonomia das decisões gerenciais. A demissão é encarada como uma medida desproporcional e que não leva em consideração as competências e a produtividade do entrevistado, criando a especulação de que o real motivo para a demissão tenha sido a homossexualidade. Assim, evidencia-se que o processo de sair do armário nem sempre é percebido como vantajoso para os entrevistados, uma vez que eles são mais expostos a manifestações de homofobia.
O não alinhamento com a norma heterossexual também impôs sanções ao entrevistado 2. Como supervisor, ele sentiu que a revelação da homossexualidade afetou a forma como seus colegas o tratavam, ilustrando uma manifestação de discriminação no trabalho.
11: [...] na minha última experiência de trabalho, quando descobriram que eu era homossexual, o poder que eu tinha eu perdi. [...] a partir do momento que um deles descobriu que eu era homossexual, eles simplesmente pararam de fazer o que eu pedia. [...] Então assim, [...] a próxima eu vou manter ainda mais longe a minha vida afetiva, porque homossexual não tem credibilidade (Entrevistado E2).
A desconsideração dos colegas com os pedidos do entrevistado caracteriza uma forma de sabotagem no ambiente de trabalho, mostrando como o estigma da homossexualidade se configura como uma desvantagem no contexto organizacional. Em uma passagem, o entrevistado comenta: "eu acho que assunto pessoal tem que ficar de casa para dentro" (E2, 2018), em que o "assunto pessoal" remete à orientação sexual e a "casa para dentro" faz alusão à esfera da privacidade. Nesse sentido, o entrevistado incorpora, em seu discurso, a crença de que ambientes públicos, como o local de trabalho, não devem ser permeados de discussões compreendidas como íntimas, como a sexualidade, reforçando a concepção das organizações como entidades assexuadas (Irigaray & Freitas, 2013).
Contudo, a proximidade das relações no interior parece limitar as possibilidades de separar a vida íntima dos espaços de convivência pública, como mostrado pelos relatos do coming out. A vigilância funciona tanto para ocultar a sexualidade dissidente na vida pública quanto para, no limite, eliminá-la do convívio social. Quando o preconceito se torna motivo para demissão, sabotagem e outras formas de prejudicar o trabalho realizado por homossexuais, ele opera sob a lógica de apagamento dos sujeitos que carregam a marca da anormalidade.
12: [...] eu comecei a apresentar projetos com temática LGBT e isso começou a criar um desconforto, porque eu vi que grande parte das pessoas que trabalham comigo são pessoas muito religiosas e um tanto quanto conservadoras. E eu vi que meus projetos começaram a ser boicotados. Então, eu estou com uma dificuldade, nesse momento, de conseguir fazer com que meus projetos realmente aconteçam (Entrevistado E9, grifo nosso).
A resistência aos projetos profissionais é justificada pelo perfil conservador e pela tradição religiosa no sertão mineiro. Em se tratando de experiências vinculadas à escola (entrevistados 1 e 9), a força do discurso religioso é relevante para as análises tanto do coming out quanto da homofobia. Isso reforça as visões de que, recentemente, o Brasil se encontra em uma disputa no campo da educação, principalmente após as polêmicas envolvendo a ideologia de gênero, em 2014 (Biroli, 2018). Particularmente no caso de Montes Claros, onde a população é quase inteiramente dominada pela matriz cristã, as disputas se acirram e o conservadorismo exerce forte pressão contra a secularização da vida pública.
Esse relato chama a atenção para o imbricamento entre a inflexão conservadora e a religião, que representam embargos para os projetos do entrevistado. Biroli (2018) analisa as recentes investidas conservadoras como parte dos ataques à democracia ao romper com o pilar da laicidade do Estado. Ao fazer isso, a autor fornece subsídio teórico para compreender contextos locais, mais afastadas das dinâmicas globais e dos imperativos da racionalidade moderna (Connell & Pearse, 2015). E Montes Claros, outras racionalidades motivadas por uma moralidade cristã parecem ganhar força e influenciar mais expressivamente a caracterização do que se entende como norma, principalmente no que diz respeito à educação.
Por fim, os entrevistados lançam olhares para a forma como as organizações lidam com a homofobia. Um dado importante é que nenhum deles identificou alguma política organizacional que previna a discriminação no seu local de trabalho. Apesar das organizações serem vistas como cada vez mais diversas (Ng & Rumens, 2017), os relatos indicam negligência no que concerne a adoção de políticas de promoção da diversidade sexual. "Não. Não tinha nenhuma política voltada a isso não. Só tinha alguns POP's, alguns princípios inegociáveis que falavam muito de respeito. Mudaram essa questão toda, mas nenhum... nada que fosse voltado para o lado do homossexual, homoafetivos". (E4, 2018). Somente procedimentos operacionais padronizados que se refiram ao respeito no ambiente de trabalho não são suficientes para combater a homofobia, uma vez que ela opera silenciosamente por meio de preconceitos velados. Nesse sentido, é necessário que a homofobia seja diferenciada de outras manifestações de preconceito para que as organizações consigam tomar medidas mais eficazes em cada uma das situações.
Quando perguntados se as empresas deveriam implementar políticas de diversidade, dois entrevistados avaliam que elas podem ser ainda mais excludentes e criar uma diferenciação entre os funcionários. Afirmam que um ambiente diverso, por si só, já é suficiente para a superação dos estigmas relacionados à orientação sexual.
13: Eu acho que só o fato da empresa exigir que deva existir respeito mútuo entre todos os colaboradores dela [...] porque, tipo assim, quando você estabelece, os funcionários todos devem respeitar uns aos outros. Não é porque ele é gay, ela é mulher, que eles têm que ser tratado como, tipo assim, destaque (Entrevistado E8).
14: Para os homossexuais até que não. Agora, os transexuais, sim. [...] eu falo os homossexuais não, porque o processo de aceitação do homossexual, ele é mais leve que o do transexual. Então, por exemplo, homossexual, ele pode esconder, ele pode ficar mais heteronormativo para entrar na empresa. [...] E só. E deixar que a própria cultura da empresa faça com que essas pessoas conversem entre si (Entrevistado E2).
A garantia de direitos ao LGBT é confundida com um tratamento de destaque, ou seja, um privilégio. Apesar de serem acometidos desproporcionalmente por violências no trabalho, a negação de direitos é naturalizada mesmo entre os próprios homossexuais, que incorporam o discurso meritocrático e acrítico.
No mesmo sentido, o discurso do entrevistado 2 relega a política de diversidade para homossexuais, assumindo que a permanência no armário é uma alternativa para a inclusão nas organizações. Além disso, deixa implícito que a discriminação só acontece quando há um estigma visível e, por isso, somente a classificação de transexualidade seria merecedora de uma política de seleção específica.
Contudo, há de se destacar a necessidade de políticas voltadas para qualquer diversidade, dado que, no cotidiano das organizações, as manifestações de preconceito também são sutis e invisíveis, não sendo facilmente detectáveis e reproduzindo o heterossexismo. Portanto, apostar somente na cultura da empresa para a superação da homofobia é uma alternativa pouco eficaz. Há de se lembrar, a todo momento, que a inexistência de regulamentos, políticas e práticas voltadas para a proteção da diversidade corrobora esse preconceito e inviabiliza o reconhecimento de LGBTs enquanto sujeitos de direitos, dificultando ainda mais a consolidação de uma gestão engajada e inclusiva.
Considerações Finais
A complexidade do coming out não permite sua redução em classificações absolutas como benéfico/prejudicial para o sujeito. Os relatos aqui analisados trazem aspectos positivos e negativos, considerando que a decisão de permanecer em sigilo, ou não, é uma negociação de identidade cujo processo é permeado mais por suposições do que certezas. Sair do armário é renunciar aos privilégios da heterossexualidade presumida. Contudo, permanecer no armário é carregar o fardo de uma vida em segredo. Assim, o grau de visibilidade dado à homossexualidade é analisado em seus ganhos e renúncias, em suas oscilações entre não assumir, assumir parcial ou totalmente. Em Montes Claros, os entrevistados relataram dificuldade em controlar esse grau de visibilidade devido à proximidade das relações sociais.
Uma das lacunas que esse estudo buscou trazer para o debate foi a realidade de experiências de gays e lésbicas em cidades do interior. Frequentemente, as pesquisas escondem contextos de menor visibilidade e produzem resultados sob a pretensão de mostrar uma verdade universal: a da cidade grande, a de regiões globais e fundamentadas na experiência do Norte (Jesus et al., 2015).
O estudo também levou em consideração as características culturais da cidade de Montes Claros, hegemonicamente cristã e conservadora. Os entrevistados queixaram-se de aspectos repressores da vida no sertão mineiro, em que a religião, o patriarcado e as instituições de trabalho não aparecem como elementos separados. Aqui, outra questão apresentada foi fragilidade da secularização das instituições em contextos predominantemente religiosos. Apesar do recente fortalecimento de setores religiosos e conservadores no país, ainda é considerável a expressão de uma oposição que valoriza a laicidade do Estado. Contudo, essa não parece ser a realidade para os contextos organizacionais envolvidos na educação no interior mineiro. Em geral, as interfaces entre trabalho, Igreja, família e sexualidade ainda foram pouco exploradas nesse estudo, o que foi provocado pela restrição do escopo de pesquisa. Para estudos futuros, sugere-se que essas dimensões sejam aprofundadas para melhor compreender as disputas de interesses que comprometem a democracia e a cidadania da população LGBT nas cidades do interior.
Dentre as vantagens de se assumir no trabalho, os entrevistados destacam: sensação de satisfação profissional e de autoconfiança; fortalecimento de vínculos com colegas; melhoria do desempenho no trabalho; e conciliação da vida pessoal e profissional. Já com relação às percepções de homofobia, foram observados: comentários sarcásticos e ofensivos; barreiras impostas para o trabalho; dificuldade nos relacionamentos; intimidação e desestímulo à revelação da orientação sexual; e desligamento da empresa
Apesar de alguns entrevistados enfatizarem a possibilidade de distinguir entre uma vida pública (trabalho) e uma vida privada (afetiva e sexual), isso não é visto na prática. Até mesmo aqueles que defendem a manutenção da homossexualidade na esfera da intimidade relataram sofrer com a homofobia no ambiente de trabalho. Para o homossexual, somente a suspeição já aciona os alarmes do regime de vigilância, justificando discriminações homofóbicas que vão desde pequenas humilhações à exclusão de determinados espaços. Contudo, a maioria dessas práticas é naturalizada e invisibilizada nas organizações, o que acaba restringindo as possibilidades de atuação da gestão. Nesse sentido, o desvelamento da homofobia pode ser encarado como a primeira medida organizacional voltada para inclusão da diversidade sexual.
A manifestação pública da homossexualidade não acaba com o regime da heteronormatividade. Embora o momento do coming out apareça como uma libertação, no sentido de acabar com a clandestinidade do desejo, todas as narrativas aqui colocadas reforçam um pedido de autorização: assumir-se gay é "prevenir os 'normais' de sua entrada em um território que não é naturalmente destinado a ele" (Borrillo, 2010, p. 103). As organizações públicas e privadas normalmente são esse território. Para que o modelo heteronormativo seja, de fato, superado, o coming out precisa ser encarado como um ato político e reivindicatório, e não somente como uma justificação social para colegas heterossexuais. Assim, essa discussão não pode ser separada do debate sobre a responsabilidade social das organizações em garantir o pleno acesso a direitos.
Em geral, assumir-se gay no ambiente de trabalho ainda é um desafio em função do medo da exposição, da violência e da exclusão e, mesmo assim, as políticas de diversidade ainda foram percebidas como privilégios. Essa percepção precisa ser coletivamente revista, dado que, sem tais políticas, não há respaldo regulamentar para a ação gerencial que responda a práticas preconceituosas, colocando as não heterossexualidades em condição de desamparo. Entender as organizações como locais de produção e reprodução de desigualdades implica em continuar cobrando de sua direção medidas que promovam, de fato, a inclusão da diversidade.
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Informações sobre os autores:
Alexandre de Pádua Carrieri
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Ciências Econômicas
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Carlos Sérgio Rodrigues Cardoso Junior
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João Henrique Machado Delgado
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Felipe Froés Couto
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Submissão: 31/07/2020
Primeira Decisão Editorial: 04/11/2021
Versão Final: 04/11/2021
Aceito em: 04/11/2021