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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2021v1p.41 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O vento, a voz, a velha: imagens que dialogam com a constituição do sujeito em psicanálise

 

The wind, the voice, the old woman: images that dialogue with the constitution of the subject in psychoanalysis

 

El viento, la voz, la vieja: imágenes que dialogan con la constitución del sujeto en psicoanálisis

 

 

Patrícia Simões de Almeida Justo da Silva WernerI; Ana Lúcia Mandelli de MarsillacII

IPsicanalista, Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGP/UFSC). E-mail: patriciasajs@gmail.com
IIPsicanalista. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: 2206ana@gmail.com

 

 


RESUMO

A arte e a psicanálise transitam pela linguagem, campo de imersão e de emergência do sujeito. Para pensarmos o encontro do sujeito com o significante e a forma com que ele adentra o campo do desejo a partir da voz, como objeto a, trouxemos obras de arte. Buscamos pensar "por imagens" e sendo as obras enigmas, partimos delas e dos significantes que elas nos dão a ver. Articulamos, assim, em uma sequência cinco imagens: a voz, o vento, o fantasma, a figura materna, o espelho sonoro e a morte, possibilitando uma trama entre psicanálise e arte.

Palavras-chave: PSICANÁLISE; ARTE; VOZ; CONSTITIUÇÃO DO SUJEITO.


ABSTRACT

Art and psychoanalysis are crossed by language, the subject's field of immersion and emergence. In order to think about the subject's encounter with the signifier and the way in which he enters the field of desire from the voice as object a, we brought works of art. We try to think "through images" and as the works are enigmas, we start from them and from the signifiers they give us to see. Thus, we articulate five images in a sequence: the voice, the wind, the phantasm, the maternal figure, the voiced mirror and death, relating psychoanalysis and art.

Keywords: PSYCHOANALYSIS; ART; VOICE; CONSTITUTION OF SUBJECT.


RESUMEN

El arte y el psicoanálisis están atravesados por el lenguaje, el campo de inmersión y emergencia del sujeto. Para pensar en el encuentro del sujeto con el significante y la forma en que ingresa al campo del deseo desde la voz como objeto a, trajimos obras de arte. Intentamos pensar "a través de imágenes" y siendo las obras, partimos de ellas y de los significantes que nos dan para ver. Así, articulamos en secuencia cinco imágenes la voz, el viento, el fantasma, la figura materna, el espejo sonoro y muerte, permitiendo una articulación entre psicoanálisis y arte.

Palabras Clave: PSICOANÁLISIS; ARTE; VOZ; CONSTITUCIÓN DEL SUJETO.


 

 

"Não quero a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada"
(Clarice Lispector)

 

Entre as obras, imagens e significantes

Este texto dá seguimento à ideia erigida inicialmente por Warbug e levada a sério por Didi-Huberman (2010), que se refere a colocar as imagens em um primeiro plano e a partir delas buscar aberturas, desdobramentos. "Pensar por imagens" e não "pensar a imagem" apenas. Semain (2014) argumenta que aqueles que se entregam a esse exercício, não se devem encaminhar unicamente pela via da descrição, ilustração, registro histórico, ainda que não sejam tarefas/etapas menos importantes; devem permanecer ocupados (preocupados) em "entender as pulsões e os sofrimentos do mundo, de transformá-los, de remontá-los em uma forma explicativa implicativa e alternativa", como afirmou Didi-Huberman (2010, p. 191). A ideia é que as imagens não são secundárias, ilustrações que embelezam um texto. Coli (2010) afirma que as imagens são nucleares, "porque carregam em si o próprio processo de raciocínio" (sem página).

Metodologicamente, pretendemos trazer para o campo da psicanálise, as inúmeras possibilidades a partir das obras de arte, considerando-as como um universo interrogador que comporta as dimensões do indizível, do irreal, do imaterial, inimaginável, não concreto. Entre a obra e o espectador, instala-se um abismo reflexivo no qual podemos encontrar a ambivalência do estatuto do sujeito no processo cognitivo da modernidade, mas esse espaço "entre" é o local por onde escapa, muitas vezes, o fruto da relação viva entre a obra e aquele que com ela se confronta. É um espaço de múltiplos dizeres, de produção de efeitos estéticos, de produção de experiências estéticas que marcam, afetam e constituem os sujeitos.

As obras de arte, no entanto, não podem ser compreendidas de um modo exclusivamente "artístico", no sentido apenas de suas características formais e de conteúdo, mas sim, como possuidora de várias camadas de significações, afinal, nela encontram-se mescladas diversas intensidades, elementos morais, políticos, religiosos, científicos. Cada obra produz e também carrega um efeito ético-político.

Ao longo do texto, tivemos presente em pensamento, a complexa discussão sobre o delicado equilíbrio entre os mundos visível e invisível em uma obra de arte, lembrando que apesar de as obras existirem por si só e não precisarem de complementos textuais ou contextuais, é importante mantê-las vivas pelo discurso, não as admitindo apenas como um objeto de informação, para que elas continuem a nos intrigar, esclarecer ou atormentar.

O que diz uma obra de arte, como nos situou Gombrich (1986) em uma crítica à teoria estética de Freud, jamais poderá ser dito por palavras. Não buscamos a "verdade" da obra, ou do artista em seu ato criador, nem tentamos traduzir o seu conteúdo, como se a obra fosse um apanhado de formas que veiculasse um conteúdo pré-existente. A forma, colocou-nos Frayze-Pereira (1994), "não tem um significado, ela é um significado". Assim como o que uma obra de arte "diz" não poderá sem expresso por palavras que a concluam, a desvelem ou confiram a ela um sentido, também o dizer dos sonhos, como bem nos mostrou Freud, não é expressamente falado. Há nos sonhos, como nas obras, possibilidades múltiplas (porém não infinitas) de sentidos; sentidos que os sonhos criam, que por eles perpassam e que deles derivam. Se os sonhos têm uma relação com o inconsciente, é na medida em que mostram que ele não é um sentido ocultado, mas uma potência criadora de sentidos. Por meio de sua dimensão enigmática, eles trazem aquilo que o inconsciente fala transfigurado na sua possibilidade do dizer consciente. É certo que só sabemos do inconsciente por via do consciente que, recorrendo a artifícios próprios, permite nosso contato com o conteúdo que ele vincula. Os sonhos não têm, no entanto, um significado próprio nem um sentido fixo, e trazem algo da realidade (sempre fantasmática) do sonhador que, por meio da escuta psicanalítica, pode vir a ganhar novos contornos, a assumir novos sentidos, fugidios e não familiares. A psicanálise, assim como as obras de arte, pode oferecer um modo de pensar que busca transcender a familiaridade das formas culturais, apontando para os sentidos não são fixados em lugar algum, que o passado e o presente estão em permanente contato, e que sua característica enigmática é o que nos põe a trabalhar como espectadores, analistas.

Advertidas de que o mundo é orientado pelo princípio da indeterminação e consequentemente do inacabamento, como nos coloca Machado (2010), sabemos que o ponto de vista é apenas um diante de uma variedade de posicionamentos que excedem a visão de cada um. As relações que tecemos entre as obras respeitam a variância e a indeterminação do olhar sobre as mesmas, apontam para seu caráter polissêmico e também para as contradições inerentes a elas no campo discursivo. Não buscamos decifrar a obra como se nela houvesse um conteúdo essencial a ser descoberto e revelado (Pereira, 2012), mas propusemos um encontro que até então não existia, um efeito novo entre as obras, entre as obras e a teoria psicanalítica, com o "desinteresse" do qual fala Pereira (2012); desinteresse no sentido da suspensão de juízos explicativos, que abre para a disponibilidade do sujeito ao encontro, que não propõe a dominação da realidade (p.187) da obra, mas aposta no jogo de mútua interferência, de composição de possibilidades que constituem o campo da experiência. Pensamos, junto com Pereira (2012), que as obras são "instâncias de convocação dos sujeitos, situações de apelo ao jogo" que, assim como os livros, ao serem abertos, ultrapassam sua dimensão material e tornam-se "agências de novos sentidos que colocam em movimento o repertório e o universo daquele que lê" (p.189). Assim, a obra torna-se uma fonte inesgotável de possibilidades que abarca um infinito de sentidos (p.189), e junto a elas, há infinitas outras possibilidades de interpretação.

A dinâmica do método do presente texto, remete à ideia de repetição e diferença e busca realizar uma "constelação" de obras, ao relacioná-las segundo uma proposta de Deleuze e Guatarri, em "Diferença e Repetição", lembradas pelo curador Luiz Pérez-Oramas (Fetter, B., Pérez-Oramas, L., & Severo, 2013) da 30a Bienal de São Paulo, ano de 2012, em entrevista: "se as obras de arte produzem sentido por relações, o destino delas é se constelar, isto é, quando alguém entra em contato com a obra, imediatamente pensa em outra. Ninguém olha para ela sem criar relações" (sem página). Pérez-Oramas citando "Os Vínculos" de Giordano Bruno, importante referência para a teoria estética, afirma que tudo se relaciona com tudo, mas para fazer vínculos é necessário saber qual a oportunidade dessa vinculação, qual é a distância e a justificativa. Assim, o argumento e o raciocínio percorrido, são primordiais para justificar uma vinculação. Warburg propôs com o "Atlas de Imagens Mnemosyne" a ideia de tecer relações intuitivas e expressivas entre as obras devido a uma proximidade e disposição espacial, pensando que o peso das palavras nem sempre supera a força das imagens, contudo, pensamos que ao associarmos algumas letras, ainda que sejam "indicativas de intuições mudas" nas palavras de Coli (2010), podemos percorrer outras viagens, desdobrar o elaborado, abrir novas significações.

Propomos, como método de construção do presente artigo, uma espécie de "cadeia associativa de imagens", à similaridade que Freud propôs uma "cadeia associativa de palavras" por meio da técnica por ele criada, a associação livre. Considerada a "via régia" para o conteúdo inconsciente, a associação livre na clínica psicanalítica busca ser "livre" das resistências que operam no nível do Eu, buscando a ordenação, o enredamento e a linearidade da fala. Na clínica, Freud priorizava uma fala solta, sem preocupações com a continuidade, temporalidade e racionalidade do discurso, para que pudesse dali emergir, viabilizado pela transferência ao analista, algo do conteúdo inconsciente recalcado. No presente artigo, não propomos a sequência de imagens como uma "cadeia de associação livre" que pretende revelar algo do inconsciente das autoras, mas algo mais próximo ao que Lacan nomeou de deslizamento da "cadeia de significantes". De uma imagem surge um significante que, a partir de articulações e combinações, se liga a outros significantes e a outras imagens. É importante destacar ainda, que o significante é possuidor de uma materialidade que em si não quer dizer nada, sendo somente na relação com outros significantes que emerge a possibilidade da construção de uma significação. Um significante é articulado a outro e a outro, e somente no final da frase é possível designar o sentido do primeiro. Somente a posteriori, lembrando o que Freud falava de Nachträglichkeit. Se o discurso presentifica e engendra o significante dentro de um sentido, é no deslizar dessa cadeia que ele se dá, de acordo com as leis de linguagem, metafórica e metonimicamente. Assim, a "constelação das obras" que estamos propondo segue os passos dos significantes que nelas pudemos ver e que por sua vez, ligaram-se a outros significantes num deslizamento metafórico e metonímico. As obras ganham algum sentido na medida que se constelam, que se ligam por meio de significantes ali presentes em nossa leitura.

Sugerimos ainda uma espécie de "olhar flutuante", remetendo à "escuta flutuante" da qual falava Freud como sendo a contrapartida da associação livre. Uma escuta que preserva a postura de interrogação frente ao dito, que busca ir além daquilo que "já se sabe" (p.122), que suspende qualquer interpretação prévia e que permite que o analista se volte com maior receptividade àquilo que é dito. O "olhar flutuante", que propomos, não tem pretensões "educativas" ou "terapêuticas" (p.132), e pede uma "atenção uniformemente suspensa a tudo que se escuta" (p.125), a que se olha - completaríamos. Procedendo desse modo, acreditamos que uma aproximação outra das obras de arte possa ser efetuada e que, dessa experiência, possam surgir novos olhares, novos questionamentos, novas verdades fugidias.

Procedendo à forma de uma "mostração" como nos colocou Lacan, propomos uma aproximação do campo das artes ao da psicanálise, pensando nalguns conceitos psicanalíticos, especialmente o da "pulsão invocante" a partir de significantes que emergem de quarto obras de arte. Quatro pinturas de diferentes autores, movimentos, épocas e contextos, que surgem a partir do olhar sobre uma primeira imagem, a do artista catarinense Nilo Dias, intitulada "A velha e o vento". O olhar sobre essa imagem e os significantes que dela emergiram com nossa leitura, conduziram a uma imagem sequente "Vento sul com chuva", do também catarinense Hassis. Essa por sua vez, nos levou a Rubens com "Saturno devorando um filho", que igualmente nos trouxe a Van Gogh com "primeiros passos", chegando a Fussli com "Macbeth e Banquo com as Bruxas". Esse sequenciamento anacrônico, por vezes, privilegiou forma, outras vezes, o conteúdo, o exposto e o ausente.

É certo que a escolha das imagens que compõe a narrativa em torno da noção de pulsão invocante na constituição do sujeito em Lacan, se deu por serem elas familiares às autoras, por integrarem o acervo que Geraldo (2015) propôs discutir, a partir das ideias do escritor francês André Malraux, como o "museu imaginário de cada um". Esse "museu imaginário desenvolve, assim, uma história de similitudes (formais e retóricas), não de influências (Geraldo, 2015, p.10)". Seu sentido vai além da "difusão de conhecimento pelas imagens de arte, sendo um lugar mental, um espaço imaginário, sem fronteiras, que nos habita [...]. É como se as formas, enquanto magia, se apoderassem de nós e assim sobrevivessem em nós (Geraldo, 2015, p.22)". Assim, cada um possui um museu imaginário onde habitam um acervo de obras retidas pela rememoração, que dialoga com as regiões mais distantes e os mais variados estilos, sendo passível de uma "infinitude de relações possíveis e onde não cabe um saber único" (Geraldo, 2015, p.23).

Como uma espécie de montagem visual experimental, a presente construção em cima da importância da dimensão da voz na psicanálise, partiu da obra de Nilo Dias e encontrou nas demais quatro obras apresentadas, elementos para a argumentação em torno de constituição do sujeito em Jacques Lacan.

 

Imagens do vento: entre-lugares

"A velha e o vento" (Figura 1), do artista catarinense Nilo Dias, e "Vento sul com chuva", do também catarinense Hassis (Figura 2), são as primeiras imagens que nos convocam a escrever esse texto. Imagens enigmáticas, de figuras e fronteiras borradas, como se o vento carregasse com sua força: a tinta, as pinceladas, as imagens, as coisas e os sujeitos. Considerando suas contingências socio-históricas, as obras também podem remeter a uma preocupação com a transformação da antiga cidade de Desterro, transformada paulatinamente na moderna Florianópolis, ilha de Santa Catarina, eternamente sujeita à intempérie do vento que sopra do sul.

 

 

 

 

Tal articulação, já realizada pela crítica de arte e profunda entusiasta da arte catarinense, Sandra Makowiecky (2012) a partir das obras "Panorama de Florianópolis" (1975), de Martinho de Haro; "Sem título" (1914), de Eduardo Dias; "Vento sul com chuva" (Figura 2) (1957), de Hassis; "Vento velho", do poeta Cruz e Souza, e "A uma passante", de Charles Baudelaire, versa, entre outras coisas, sobre o impacto que o peculiar vento sul tem na cidade e no comportamento das pessoas. Makowiecky (2012) destacou que a obra de Martinho, fala de um tempo da cidade de Florianópolis que não existe mais, em que os antigos casarios perdem espaço para arranha-céus, as ruas do centro da cidade se descaracterizam e as carroças puxadas por cavalos já não são mais comuns. Nilo Dias assim como Martinho (que lhe ensinou muito sobre arte junto a seu tio, Eduardo Dias), talvez também estivesse ocupado com as questões da modernização de Florianópolis, do mesmo modo que estava preocupado com as rupturas que o Modernismo propunha para as artes. O elemento que podemos ler como um veículo azul com uma escura e grande roda de madeira, poderia ao mesmo representar uma carroça, cujos cavalos estão sendo engolidos por uma espécie de fantasma da modernidade, ou ainda, que seja um automóvel cujo motor, símbolo da substituição da força animal para a maquinal está enuviado por uma figura amedrontadora que resiste a essa passagem.

Podemos apreender ainda do texto de Makowiecky (2012), como a conexão de tempos distintos, passado e pressente, enlaçados pelas imagens atravessadas por temporalidades outras oferecem um leque de conexões e permite que questões sejam retomadas ou ainda, criadas. É nesse sentido que propomos a imagem de Nilo Dias, como uma possibilidade outra para reflexão sobre o vento que transforma a cidade, mas também as pessoas, talvez por seu caráter de uma força dinâmica, que desacomoda e que permeia as metáforas poéticas, como aquilo que convoca à mudança. Trata-se de uma construção possível, a partir da leitura do significante e do olhar para as imagens, certamente as intensões do artista são ainda mais vastas. Tensionamos, assim, o campo da realidade, ao limite das possibilidades, de algo que pode vir a ser, uma pequena diferença que faz avançar nossas interlocuções entre os campos da psicanálise e da arte.

Aceitamos o desafio de desprendimento da atitude estruturalista a voar por outros espaços. E assim começamos: o vento proporciona os voos, conduz as nuvens. Traz a chuva, mas também a manda embora, faz a chuva e a areia encontrarem o corpo. O vento traz e leva recados, o vento bate na janela e depois vai embora. Ele propicia encontros, foi Zéfiros, quem levou Psiqué adormecida até o encontro de Eros em seu magnífico palácio. O vento permeia os encontros, os desencontros, os potenciais encontros tal como mostrou Hassis em "Vento sul com chuva". O vento pode desfazer a forma.

O vento também leva a vida em potencial, em semente. O vento insufla as velas das embarcações, oferece-lhes um rumo. Ele traz, mas também leva vidas. Ele é alimento, move as marés, trazendo o peixe. Ele é movimento, faz as árvores dançarem allegros e adagios, mas também cria agitação e tormenta. O vento bate no rosto e remexe os cabelos. Mas também apanha, depois de dar um susto nas folhas. O vento é energia, faz girar as pás dos moinhos. Traz novos ares, boas esperanças. O vento refresca, mas também pode aquecer. O vento sopra, o vento canta, o vento silva, o vento lamuria. Ele fala ou se cala, silencia. E não se deixa ver, a não ser por seus efeitos.

O vento é voz. A velha, de Nilo Dias, é vento. E pensamos que também pode ser voz. Em volta disso se deu a construção do presente texto.

"O vento e a velha" (Figura 1), tela de Nilo Dias produzida na década de 60, tem cor, tem corpo e tem forma, mas, sobretudo, tem peso. Tem peso de expressão, de tensão. As pinceladas ásperas criam um dinamismo inesperado, deixam o espectador a pensar se estamos no campo do sonho ou da realidade psíquica, seja pelo dramatismo exagerado, ou, pelas manchas de cores, que se esvanecem rapidamente como na passagem de uma cena à outra. Uma criatura parece se aproximar de alguém estatelado, desfalecido, exaurido e indefeso para dele se apoderar. Tal dramaticidade, pode ser vista também na sombria e trágica tela de Rubens "Saturno devorando um filho" onde a pequena criança, em uma posição semelhante à do sujeito na tela de Nilo Dias, sem alternativas, seja por estar desacordada ou pela sua inerente condição vulnerável, situa-se frente a essa figura ameaçadora, fantasmática (no sentido mesmo do que Freud colocou como o fantasma de devoramento) que ameaça incorporá-los, apoderar-se de sua carne.

Saturno, tal como a "velha" curvam-se sobre esses sujeitos aos quais só resta aguardar. Como se não tivesse escolha, ou ainda, que fosse uma escolha forçada, como a que Lacan (1964/1995) descreveu pela metáfora do assaltante que cerca a vítima e lhe diz: "[...] a bolsa ou a vida!", ao que o autor argumenta: "se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada" (p. 201). Escolha mesma do sujeito na operação de alienação, como veremos a seguir.

 

Entre o corpo e a cultura: constituição do sujeito

Em seu Seminário: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, livro 11, Lacan (1964/1995) define a alienação como sendo a primeira operação significante. Ele afirma que ela advém do efeito produzido pela linguagem sobre o humano, e localiza esse momento como sendo aquele do encontro entre o significante e a carne (da cultura com o corpo). Esse encontro é transformador, pois, ao mortificar a carne, o significante abre o corpo para as inscrições pulsionais, para a inscrição do sujeito no campo do desejo. Trata-se de um encontro um tanto quanto forçado, como falamos anteriormente, pois, se a linguagem na sua dimensão simbólica antecede logicamente o sujeito, ele não pode dela se esquivar.

A alienação é uma operação psíquica que ocorre dentro do que Lacan chamou de "Estádio do Espelho", e que se localiza no primeiro tempo do Édipo. A inscrição da lógica simbólico-imaginária no corpo do bebê, compete inicialmente à figura materna, na condição de Outro primordial. Ela o situa no lugar daquele que irá preencher tudo aquilo que falta a ela (lugar de falo imaginário), como objeto de seu desejo. O sentimento de completude, da satisfação do desejo da mãe é fundamental para o bebê, ainda que seja da ordem da ficção, pois funciona como um espelhamento psíquico no qual um completa o outro. A organização do esquema corporal dependerá desta relação de espelhamento que faz laço com a mãe (Molina, 2002). Observamos aí dois aspectos paradoxais, porém constituintes: se, por um lado, temos no estádio do espelho uma pré-formação do Eu, este eu aparece numa condição de alienação. É nessa condição de assujeitado ao desejo do Outro primordial, que ele poderá a vir a se constituir como sujeito, a partir da instalação, posteriormente, do Nome-do-Pai.

O agente materno ao localizar simbolicamente a criança realiza como que um convite, uma sedução a existir como sujeito idealizado (tal qual descreveremos posteriormente no "mito da sereia" de Homero). Quando tenta traduzir as manifestações da criança, supõe que ali há um sujeito, há alguém que deseja algo. Toma o grito como um apelo, e ao acolher o bebê, diz "o que o ser é" (sujeito do enunciado) antes de ele poder dizer "eu sou" (sujeito da enunciação), como disse Lacan (1985/1998). A mãe de frente ao "espelho" (Lacan utilizou o espelho como uma metáfora, como algo que reflete uma imagem) junto da criança aponta: "olha, esse é você" ou "olha, é você ali", e é no e pelo olhar da mãe, que a criança se reflete e se reconhece (Duque-Estrada, 2011).

É verdade que nem toda a estruturação psíquica do futuro sujeito está, a bem dizer, do lado da mãe. Há também um movimento próprio do bebê para que a antecipação imaginária da mãe se dê. Na obra "Primeiros Passos" de Van Gogh, podemos ver que, apesar de a mãe sustentar (no real, simbólico e imaginário) o corpo do bebê que se está prestes a se lançar ao pai que o aguarda a uma certa distância, há uma implicação desse pequeno sujeito no gesto que o convoca.

Para que ele se lance, a mãe precisa soltá-lo e o pai estar no lugar desse endereçamento, e, se não houver uma produção do bebê, a cena não se dá. O artista holandês mostra-nos que o pai espera de braços abertos a pequena criança que agita seus bracinhos em sua direção, e que ele próprio se apoia sobre um dos joelhos para também poder sustentar-se. O pai chama o bebê, e nessa distância real que lhe propõe percorrer, coloca-se em cena o intervalo simbólico entre o que o bebê é e o que deveria se tornar. O pai é a figura em primeiro plano, é ele o principal ator da cena, ou ainda, é ele que entra em cena, que rouba a cena. Cena que girava apenas em torno da dupla primordial mãe e bebê, e onde o pai pode vir a entrar como terceiro. Há uma tensão no ar, Van Gogh mostra com cores vibrantes e pinceladas agitadas, esse tempo sempre é repleto de angústias para os pais. Eles anteveem os riscos, mas também se angustiam por verem juntos, que o pequeno bebê começa a dar seus primeiros passos sozinho. Fica em um lugar entre, intervalar. Não está junto a um nem ao outro, está no mundo, sujeito às intempéries do espaço, aos desvios, ao erro, ao tropeço, às quedas, às dores... Isso atinge a ambos, visivelmente à mãe, que olha baixo, temerosa, ressabiada mas ainda assim, auxilia na sustentação daquilo que será um "passo importante" para a pequena criança na direção de sua liberdade, de seu desejo. O bebê só poderá dar esse passo de liberdade quando sustentado pela certeza antecipada do Outro, como coloca Jerusalinsky (2002): "É este Outro encarnado que implica o seu desejo, que aposta em sua capacidade de efetuar uma nova realização, e o bebê se lança a fazê-la sustentado em tal aposta" (p.161).

Podemos ver no estádio do espelho que a dimensão do olhar e da voz, desempenham um papel fundamental na constituição psíquica; estão imbricados, coexistem muitas vezes. Também podemos observar isso a partir da obra de Nilo Dias, onde, além da "velha" encarnada como voz, podemos ver formar o contorno de um olho a partir da junção de certas folhas de palmeira pelo vento que as sacode, ao fundo da composição.

É a partir do olhar da mãe, que o bebê vê seu a sua imagem corporal refletida. É preciso dizer que se trata de um olhar libidizinado, onde há um investimento emocional no corpo do bebê. O olhar funda a possibilidade da constituição da imagem do corpo, a partir do momento em que o bebê é capturado por uma imagem que se forma no olho do Outro primordial e que ele toma para si, reconhecendo-se com o auxílio das palavras de júbilo emitidas por esse Outro. O jogo de ver e ser visto é uma troca prazerosa em que "voz e visão, escutar e olhar entrelaçam-se no funcionamento pulsional" (Pesaro, 2011, p.149).

Desde o nosso primeiro suspiro estamos envoltos na musicalidade da voz. O primeiro banho que recebemos, enganamo-nos se pensamos que se dá após nosso nascimento, geralmente na maternidade; já nascemos banhados, inundados pela linguagem. Dão-nos um nome, dizem com quem iremos nos parecer, como iremos nos portar, do que iremos gostar. Já existimos antes mesmo de existirmos, pois o discurso do Outro atesta simbolicamente o nosso ser por vir, oferece-nos um lugar para virmos a ocupá-lo. A voz do Outro fala em nós. Fala que um determinado choro indica fome, que outro choro representa a dor ou o desconforto, que o choro pausado é manha, que o choro baixinho é sono... Atribui-se a nós algo que ainda não é nosso, mas somente assim, com esse empréstimo da fala, é que pode vir a sê-lo.

Catão (2009), a partir de Lacan, afirma que a mãe, através de sua fala implicada de desejo nomeia, organiza e oferta sentido ao mundo da criança. Ela é o "espelho sonoro", que devolve para o bebê a resposta da pergunta sobre o seu ser: "A criança é fisgada pela voz materna e capta a noção de linguagem. Isso está bem porque há um jogo de gozo na relação com a voz da mãe, na qual a voz é incorporada. A voz é uma espécie de anzol que a criança engole e que a fisga, mantendo-a ao lado da linguagem" (Vivès, 2013, p.22).

O mito das sereias, a partir do relato de Homero, no XII canto da Odisseia, delineia essa dupla dimensão da voz. Diz Homero que essas figuras meio pássaros, meio monstruosas, mas femininas e com uma voz encantadora, levavam à morte os marujos capturados pelas redes de sua voz. Ulisses, em sua viagem pelos mares rumo ao encontro de sua esposa e filho, precisou desenvolver uma estratégia para poder passar pela ilha onde as sereias hipnotizavam os marujos que se deixavam levar pelo seu canto e acabavam enfim, por naufragarem no choque contra um rochedo. Amarrou-se ele junto ao mastro de seu barco, encheu com cera os ouvidos de seus colegas e pôde resistir à voz das sereias quando diziam "venha aqui, venha até nós!... (...) Venha escutar nossas vozes!" (Homère, -800, p.716).

A voz veicula uma promessa de gozo (Vivès, 2009), de retorno a um tempo antes da Lei. Devemos lembrar que a relação com a Lei é salutar para o desejo humano pois sustenta que se dê a corrida desejante, o encontro com a coisa perdida. Tal encontro nunca ocorrerá, mas impulsiona o sujeito à vida, a eterna busca pelo encontro impossível. Impossível porque esse momento de satisfação plena nunca existiu, como mesmo Freud já deixou claro. Assim, a Lei, a ordem simbólica não deixa o sujeito perder-se em encontros ilusórios, tal qual seria o encontro com a sereia, o encontro com o gozo mortífero, o "desejo de não desejo" como disse Vivès (2009, p.333). O encontro com o gozo mortífero estaria no campo da psicose, onde o sujeito se deixa "engolir" pela promessa de gozo do Outro, ficando preso ao seu desejo e aos seus caprichos. No autismo, a voz da sereia parece não fisgar o corpo da pequena criança que parece "naturalmente" surdo ao chamado. Dentro da neurose, por outro lado, poderíamos pensar em uma atitude análoga à de Ulisses, de renunciar ao gozo prometido, apagar-se, sair do campo do desejo do Outro para poder existir, assumir o seu próprio desejo a partir de uma interdição.

Quando os cientistas com ânsia de concretude se dão à tarefa de explicar a poesia (mais ou menos como se explica uma piada a quem não a compreendeu), surgem comentários como os de que a origem do mito das sereias advém do som que os ventos faziam quando batiam nas pedras escarpadas de algumas ilhas do Mediterrâneo. Os ventos uivantes que batiam nessas rochas reverberavam por conta das águas e tal sonoridade era confundida com o canto de mulheres pelos marujos sedentos e carentes de amor durante suas longas jornadas. Seja como for a realidade fática do mito, o que podemos daí concluir é que o vento está presente no mito da sereia, seja por conduzir as embarcações, por levar a voz da sereia até o ouvido dos marujos, ou, como querem os mais evidentes, por ser ele que "produz" essa voz do engano.

A articulação que gostaríamos de concretizar refere-se a essa dupla dimensão da voz. Ao mesmo tempo que ela é condição para a o aparecimento do sujeito (no entendimento da psicanálise, enquanto sujeito do inconsciente) ela também porta uma dimensão mortífera. Nesse sentido, aparece-nos também a obra de François La Rochefoucauld quando discorre sobre a distância. A voz, assim como a distância (quem sabe também o vento?), apaga as velas e acende as grandes fogueiras.

A segunda "etapa" do estádio do espelho, segundo Lacan, se dá com a instauração da operação de separação. Nela, como o nome já aponta, um terceiro elemento vem separar aquilo anteriormente que estava alienado, fundido. Esse elemento, que se impõe entre a mãe e a criança, é o falo. O falo como objeto a é a causa de desejo da mãe para além da criança. A operação de separação permite a incidência do intervalo entre significantes, entre dois termos, no qual reside o desejo. Ela vai permitir a função da fala e o aparecimento do sujeito dividido (dividido entre os dois significantes), sujeito barrado do desejo do Outro. Para tal, no entanto, é necessário que a esse alguém que ocupa a função materna, falte algo, ou seja, que esteja instaurada a dimensão fálica (faltante). Para haver desejo, é preciso existir falta, pois o desejo surge sustentado na falta. De acordo com Lacan (1964/1995), "[...] é no que seu desejo está para além ou para aquém no que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é desconhecido, é neste ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito" (p. 207).

Isso quer dizer que o Nome-do-Pai ao barrar o gozo primordial do Outro, engendra a cadeia significante, produzindo a significação fálica. Sua função é a de unir o desejo à lei simbólica, possibilitando o reconhecimento do Outro como castrado, como faltante. Quando isso não ocorre, vemos efeitos devastadores sobre o sujeito, como o é na psicose. Por não conseguir situar o desejo do Outro (porque nada lhe falta), o sujeito fica à mercê do gozo do Outro, a serviço dele. Com efeito, trata-se, nesse momento, de um Outro gozador, ditando sua lei cega e insensata, como aparece na tela de Nilo Dias: parece que estamos diante dessa mãe engolidora, absoluta, e o sujeito, identificado com o objeto a, imerso em uma angústia aterrorizante. Passivo, pois é justamente a separação que surge como única possibilidade da construção de um desejo próprio. O sujeito fica assujeitada ao desejo do Outro, preso à operação alienação. O desejo fica aplacado, inoperante, desfalecido, inerte, morto, tal qual também sugere a obra do artista catarinense. Sobre ele, impõe-se o desejo do Outro, ou seja, se, por um lado, é a partir da voz do Outro que o sujeito pode vir a constituir-se, é nela também que pode vir a aprisionar-se e sucumbir.

 

Entre a voz, a velha e o desejo

Lacan situou a voz e o olhar enquanto objetos parciais de satisfação da pulsão, objetos causa de desejo, designando-os pela letra a. Ao lado do seio, das fezes e do falo, já descritos por Freud, Lacan afirmou que a voz e o olhar também possuem a característica de se desprenderem do corpo e serem objetos perdidos: "pedaço carnal de nós mesmos" (Lacan, 1962-63/2005, p.237). Não que um dia eles tivessem existido e que se perderam posteriormente, mas objetos desde sempre perdidos. Nesse sentido, a voz não é o som propriamente dito, não se trata exclusivamente da materialidade fônica, embora esta não precise estar necessariamente descartada. A voz (sonora ou não) é um objeto em falta, e por isso, um objeto causa de desejo. Alguns psicanalistas millerianos acreditam que a voz seja inclusive a-fônica, o que seria um paradoxo. Sustentam tal hipótese afirmando que os objetos a só se podem afirmar com o sujeito do significante se perderem toda substancialidade, se estiverem centrados por um vazio que é a castração: enquanto são oral, anal, escópico, vocal, os objetos situam-se em torno de um vazio e é nessa condição que diversamente o encarnam. Não situamos a voz dentro de um campo a-fônico, ainda que por vezes ela não tenha som. Por um lado, ela bordeia o real, onde o simbólico e os seus efeitos subjetivantes devem advir, e aí ela precisa se calar para o sujeito falar; por outro lado, ela é o substrato da fala, serve a ela de veículo para que esta possa engendrar a lei simbólica (Maliska, 2015). O som é como uma forma para a voz, mas não uma substância. Assim também vemos a "velha" na já mencionada obra de Nilo Dias. Ela assume a forma do vento, mas não se apresenta enquanto substância. Ela é um elemento da composição, mas um elemento multifacetado, sua face aparece de maneira múltipla. Apresenta-se de modo evanescente, como algo que toma uma forma e depois desaparece, se perde, deixando apenas seus efeitos sobre o sujeito. Nos perguntamos se também não poderíamos pensar a velha como a voz rígida do Supereu, que "sai" do sujeito (como talvez pode "sair" daquele debruçado sobre o veículo da obra de Nilo Dias), a que castra, a que lhe impõe condições, ou ainda, a voz do delírio paranoico, onde aquilo que não faz sintoma, está foracluído do simbólico, retorna pela via do Real. Somos conduzidas, no entanto, de alguma forma, a ver a "velha" como um fantasma, uma bruxa que impõe a sua vontade, que se apodera desse sujeito que, desmaiado, se apresenta aos seus caprichos e desejos. Ela se curva sobre o sujeito, como se fosse engoli-lo, incorporá-lo. A bruxa sabe o que quer, e também tem as respostas para aquilo que o sujeito quer. Tal qual o bebê que "pergunta" para mãe sobre o seu desejo, "o que queres de mim?" - diz-nos Lacan, à bruxa não falta nada, tem todas as respostas sobre o sujeito e seu futuro. Nesse sentido, trazemos a imagem de Johann Heinrich Fussli, "Macbeth e Banquo com as Bruxas" (Figura 3), na qual o artista representa os momentos em que as bruxas oferecem pistas para Macbeth sobre o seu destino. Aconselham-no, orientam-no não quanto aos seus desejos, mas quanto ao desejo dele mesmo, de se tornar o rei da Escócia. Elas, a exemplo da obra de Nilo Dias, também são três (as três faces da velha) e conferem um caráter sombrio à cena. Com cores fulgentes, que se destacam na composição, "as velhas", "as bruxas" ou ainda "bruxas velhas" vão em direção do outro. Os braços estendidos atacam, não são como os do pai que aguarda os primeiros passos do filho em Van Gogh. Parecem surgir de um outro lugar, serem trazidas pelo vento e se dirigirem ao sujeito para em seguida, desaparecem noutro sopro. Na tela de Nilo Dias, a "velha" parece dirigir-se ao sujeito para levá-lo dali, ou talvez para o lembrar da fugacidade da vida. A vida é um sopro, como costumamos ouvir. Também Saturno nos mostra que estamos inevitavelmente sujeitos à sua condição, a condição do tempo.

 

 

Numa passagem de Macbeth, ao surgimento das três bruxas sob o som de trovões em uma caverna, o aspirante a rei da Escócia pergunta: "o que fazem as três?" "Feitos inomináveis" respondem-lhe.

Eu vos conjuro, pela arte que professam (não imporá como a aprenderam), respondam-me: vocês, que desamarram os ventos e deixam que eles combatam as igrejas, ventos que vão fermentar as ondas do mar para que elas confundam e engulam as embarcações, os mesmos ventos que arrancaram do pé o milho que ainda nem é espiga, ventos que derrubam árvores inteiras, que fazem tombar os castelos sobre as cabeças de suas sentinelas; vocês, que desamarram esses ventos que fazem escorregar até o chão os topos de palácios e pirâmides, ventos que embolam tudo junto, os tesouros de função germinal da Natureza, a ponto de ficar nauseada a própria destruição; vocês, que desamarram esses ventos, deem-me respostas para aquilo que lhes venho perguntar" (Shakespeare 2006, p.86).

As bruxas desamarram os ventos, são capazes de alterar seu rumo. Conduzem-no a fazer benfeitorias ou cruéis malvadezas; elas por vezes se unem a ele, utilizam-se dele. Vão e vêm com ele, trazem o medo, assim como referida obra de Nilo Dias. O vento, o medo, a voz que não sabe o que diz, também não sabe o que quer, ou sabe demais; o vento que fala, que se cala, que cala o outro, que ensurdece, que acorda, que cria formas, que enforma, que informa, que traz a mudança; o vento que leva, que traz, que sustenta o movimento, é vida, é morte. E que vai embora.

 

Tempo de finalizar

Assim vamos também embora, finalizamos o nosso caminhar pelas imagens que nos permitiram olhar retrospectivamente e repetidamente para a pintura inicial, de Nilo Dias, pensando a psicanálise. No movimento de ir e vir à obra do pintor catarinense, pudemos fazer articulações sobre aquilo que da pintura para nós se desprendeu: que a dimensão vociferante permite encarnar o sujeito ao mesmo tempo que desempenha nele uma função mortificante. Utilizando-nos de saltos de significantes impulsionados pelo aparecimento de deslizamentos permitidos pelas imagens, buscamos fazer ver a possibilidade do encontro da arte com a psicanálise, apontado para o visível que ali já estava.

O campo das artes interessa e ensina ao psicanalista. Manter-se aberto à alteridade que interroga o saber sobre a singularidade do sujeito por meio de obras de arte não constitui, no entanto, tarefa fácil. Se a arte mantém alguma similaridade com a psicanálise, é na tentativa de tratar o Real pelo Simbólico, seguindo a lógica da impossibilidade de uma representação e de um dizer não-todo, sustentado pela pluralidade das tentativas para abarcá-lo. Acreditamos que a proposta de uma "montagem visual", que partiu das obras em direção aos conceitos e não o contrário, representou o método psicanalítico tanto no que se refere à clínica quanto no que se refere ao seu encontro com as artes. No intervalo entre esses dois saberes, vimos possibilidades de surgimento de novas articulações.

Do lugar de psicanalistas em que nos situamos, sustentamos a especificidade de nosso campo e a relevância de produzirmos articulações no "entre" a psicanálise e a arte. Deixamos ver as injunções e descontinuidades entre esses dois campos distintos, mas apontamos para o rico intervalo entre eles, viabilizador de algumas palavras que podem ampliar e aprofundar a metapsicologia. Ao situarmo-nos nesse encontro faltoso da psicanálise e a arte, lugar ético onde o dizer é pela metade e o Real aparece em nossas reiteradas tentativas de abarcá-lo, pudemos experimentar um modo não convencional, porém tão frutífero, prazeroso e fortuito, um pensar original acerca de conceitos que nos interpelam no cotidiano da clínica e que se fazem ver no âmbito da produção da cultura.

 

Referências

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Recebido em: 22/05/2020
Aprovado em: 27/03/2021

 

 

NOTAS

(1) A tela foi premiada na Bienal de 1961 em São Paulo e pertencente ao acervo pessoal da família do artista. A imagem da tela está disponível no CD-ROM organizado por Makowiecky & Cherem (2010).

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