Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista EPOS
versão On-line ISSN 2178-700X
Rev. Epos vol.4 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013
RESENHA
O sonho foi para o deserto do real
Simone Perelson
Psicanalista. Professora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica e da Escola de Comunicação (UFRJ). Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Université Paris 7)
Resenha do livro BIRMAN, Joel. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012.
A psicanálise, assim como a modernidade, tem no livro A interpretação de sonhos seu marco inaugural. Se ele marca o início da psicanálise é por indicar a reviravolta freudiana que faz da realidade psíquica, constituída pelos desejos, fantasias e sonhos, a realidade fundamental para o sujeito, realidade essencialmente transgressiva, que abre o sujeito para outros mundos, assim como para novas formas de linguagem e de temporalidade. E se ele marca o início da modernidade é porque o sujeito moderno é, sobretudo, aquele que, vivendo a era das revoluções, deseja mudar o mundo, sonha reinventá-lo em novas bases. Na virada do século XIX para o XX, portanto, o sonho ocupa uma posição privilegiada tanto nas formas de subjetivação quanto naquelas de laço social.
É a partir desta dupla função inaugural do sonho que em seu último livro, O sujeito na contemporaneidade, Joel Birman empreende uma cartografia do mal-estar na atualidade. Mas ao destacar esta função do sonho, ele trata, antes de tudo, de colocar em evidência a potência do desejo. De fato, é ele, o desejo - a possibilidade de desejar, e de realizar, pelo sonho, o desejo -, o primeiro elemento norteador do livro, sendo o seu segundo norte a indicação de que o grande pathos do sujeito contemporâneo é a impossibilidade de desejar e de sonhar.
Para empreender a cartografia do mal-estar na contemporaneidade, Birman sublinha os contrastes entre modernidade e contemporaneidade sem deixar, entretanto, de sublinhar a presença no discurso psicanalítico de noções - tais como a de trauma e da compulsão à repetição - que já apontam para a presença, na modernidade, de fendas nos sistemas de signos e códigos modernos ou, em outros termos, de esboços de novas modalidades de subjetivação.
Além de optar por revelar-nos o sujeito contemporâneo a partir da explicitação dos contrastes entre modernidade e contemporaneidade, o autor opta também por fazê-lo pela captação de suas formas de padecimento. Como ele próprio observa, as sua formas de estruturação se evidenciam melhor dessa forma. Portanto, não cabe ao leitor equivocar-se julgando que Birman expõe o mal-estar do sujeito contemporâneo para contrapô-lo nostalgicamente ao sujeito moderno, mas sim para distinguir as duas formas de mal-estar - a moderna, fundada no conflito subjetivo entre o desejo e as exigências sociais de sua repressão, e a contemporânea, não mais fundada nesse conflito, mas no imperativo de sua realização direta e imediata.
As peças fundamentais a partir das quais o contraste entre modernidade e contemporaneidade vai se revelar são: 1. O espaço e o tempo, 2. A dor e o sofrimento e 3. O desamparo e o desalento. Essas peças são como que dispostas por Birman em dois tabuleiros - o da modernidade e o da contemporaneidade - de maneira tal que a cada vez que o autor mexe com uma delas, vemos se deslocando as outras, revelando-se aqui as teias complexas próprias aos dois jogos de força singulares.
No capítulo "O tempo vai para o espaço" - título que revela, de forma literal e metafórica, uma das principais teses do livro -, Birman afirma que "a predominância do espaço sobre o tempo é a encruzilhada fundamental por onde se realiza e se operacionaliza a constituição das formas de subjetivação hoje" (p. 95). Contextualizando historicamente esse predomínio atual da categoria de espaço sobre aquela de tempo na estruturação da experiência do sujeito, cada vez mais congelado no eterno presente e na repetição do mesmo, o autor se refere às noções de fim da história de Fukuyama, de cultura do narcisismo de Lash e de sociedade do espetáculo de Debord.
Como observa Birman, a categoria de espaço está para a dor, assim como a de tempo está para a de sofrimento. O mal-estar atual evidencia-se, portanto, sobretudo, como dor, a qual se inscreve nos registros do excesso, do corpo e da ação. Eminentemente solipsista, a experiência da dor supõe a impossibilidade de apelo ao outro assim como a perda do pensamento e da linguagem como eixos ordenadores de suas descrições. Resultante da impossibilidade de antecipação do perigo devido à perda de eficácia dos mecanismos de proteção simbólica culturalmente instituídos, ela é traumática por excelência, mergulhando o sujeito da dor "inapelavelmente nas bordas da sensação de abismo" (p. 123).
O excesso, sustenta Birman, está no fundamento do mal-estar contemporâneo, e o sujeito, impossibilitado de simbolizá-lo, busca dele se livrar de forma direta e imediata. O corpo se oferece aqui como uma via privilegiada de descarga, e o estresse, o pânico e as síndromes de fadiga crônica são a esse respeito exemplares. Mas a principal via é o agir, meio de descarga por excelência do sujeito contemporâneo. Como observa o autor, "o agir é o imperativo categórico na contemporaneidade". Dentre as modalidades de agir destacam-se a violência, a criminalidade, a crueldade e as compulsões, tais como a compulsão pela comida, pelo consumo e pelas drogas. Cabe observar que, no que concerne a essa última compulsão, Birman a refere não apenas à compulsão pelas drogas ilegais oferecidas pelo narcotráfico, mas também às drogas legais, os psicotrópicos, prescritos de modo cada vez mais ostensivo e indiscriminadamente por médicos clínicos e psiquiatras aos sujeitos que não conseguem transformar sua dor em sofrimento, o que em grande medida se explica pelo modo como esta vem sendo cada vez mais tratada, a saber, de forma medicamentosa.
Nesse cenário, a potência do ser se esvai; ele se torna cinzento. Dionisio vê-se desencantado. A existência mostra-se deserta. Estamos no universo do desalento e os autores a quem Birman recorre aqui para completar a descrição desse cenário são Sennett, com a sua noção de corrosão de caráter, e Eheremberg, com a noção de fadiga de si mesmo.
Esse não é o universo do sonho, que se impôs como o símbolo fundador da psicanálise e da modernidade. Esse é o universo do pesadelo, do sonho traumático, da compulsão à repetição, universo que se impôs a Freud a partir de 1920 anunciando as novas modalidades de subjetivação e de mal-estar que estavam por se desenhar e que hoje se multiplicam no que Birman se refere como o deserto do real.
No capítulo que tem por título justamente "No deserto do real", o autor empreende uma interpretação psicanalítica de um filme lançado em 1999, um século, portanto, após o lançamento de Interpretação de Sonhos. Trata-se do filme De olhos bem fechados, realizado por Stanley Kubrick a partir de um romance de 1926, Breve romance de sonho, de Arthur Schnitzler, autor por quem, como observa Birman, Freud tinha grande admiração.
Se Schnitzler teria conseguido, ao ver de Freud, como obseva Birman, com a sua simplicidade poética, enunciar proposições teóricas da psicanálise que haviam exigido dele árduo trabalho científico, o filme de Kubrick permite agora ao autor de O sujeito na contemporaneidade nos fazer ver como se revela artisticamente a complexa trama conceitual que se desdobra ao longo de seu próprio livro. Trama que delimita os campos do desejo e da impossibilidade de desejar; da modernidade e da contemporaneidade; da vida e da morte.
Segundo Birman, toda a narrativa do filme se constrói a partir da oposição entre a possibilidade e a impossibilidade da experiência de sonhar que revelam, respectivamente, a mulher e o homem de um casal. O filme parte de um sonho, e mais precisamente da narrativa que faz uma mulher ao seu marido do sonho erótico que teve e que foi provocado pelo desejo de um outro homem por ela. A escuta do sonho, assim como a impossibilidade de responder à interpelação a respeito de seu próprio desejo, tem um efeito traumático no marido e o faz mergulhar no pesadelo real que constituirá a essência do filme.
O homem passa a sua existência de olhos bem fechados para o seu desejo e para o desejo do outro. Impossibilitado de pensar, portanto, sobre o desejo, o homem age. Incapaz de fantasmar, persegue o desejo no campo da realidade. Fracassa ao buscar encontrar Eros num ato sexual com uma prostituta. Confunde Eros e ato sexual. Fracassa também ao buscar penetrar numa festa erótica que tinha por exigência a vestimenta de uma fantasia: aqui seu engano é achar que alugar uma fantasia, que é o que ele efetivamente faz, é o mesmo que ser habitado por uma fantasia, incorporá-la em seu ser, o que ele é incapaz de fazer. E a série sucessiva de enganos a que seus olhos bem fechados o conduzem o faz penetrar numa zona obscura onde o pior - a dor e uma série de mortes - sempre aparece sem que ele possa antecipá-lo.
Nessa interpretação do filme, encontramos inter-relacionados praticamente todas as noções e conceitos que Birman desenvolve ao longo deste livro e de alguns de seus últimos livros para descrever as diferenças entre as modalidades de subjetivação e de sofrimento modernos e pós modernos, mas a explicitação dessa complexa trama através da interpretação extremamente sutil do filme faz, a meu ver, deste capítulo do livro um marco na trajetória do pensamento de Birman, se não do próprio pensamento psicanalítico. Não é à toa que o filme em questão é um filme da virada do século, não mais do século XIX para o XX, como foi o caso da Interpretação de sonhos, mas da virada do século XX para o século XXI. Não é tampouco à toa que Birman dirige sua análise a uma releitura contemporânea de um romance moderno. Não é à toa que ambos, filme e romance, giram em torno do sonho, cuja proposta de interpretação marcará o início da psicanálise. Não é à toa que sobre o filme Birman empreenda o método interpretativo, próprio à psicanálise, e que nele revele sobretudo o poder vital do desejo e de sua interpretação - ofício propriamente da psicanálise - e o poder mortífero da impossibilidade de desejar e de interpretar o desejo - ofício próprio à psiquiatria biológica -, impossibilidade que marca de modo cada vez mais assustador o nosso tempo.
Mas não apenas isso. Através de sua interpretação do filme, Birman também indica em que medida é a possibilidade de nos mantermos com os olhos bem abertos para o desejo do outro - o que implica ao mesmo tempo desejar interpretar o desejo do outro e interpelar a si mesmo a respeito do desejo que o outro nos causa - que permite que, ao fechar os nossos olhos, não deixemos de sonhar. E mais ainda, reunindo simplicidade poética e rigor teórico, o autor de O sujeito na contemporaneidade nos faz ver, através dessa interpretação do filme, em que medida a psicanálise, a qual, como sabemos, se sustenta justamente nesse duplo desejo, continua ainda hoje, e talvez mais do que nunca, a apresentar-se como um oásis no deserto do real.