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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

ARTIGOS

 

Entre sonho e memória – uma leitura do romance De Amor e Trevas1

 

Between dream and memory – a reading of the book De Amor e Trevas

 

 

Flavia Albergaria Raveli*

Doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é propor uma reflexão sobre a experiência de leitura/interpretação a partir da leitura por mim realizada da obra do escritor israelense Amós Oz, De Amor e Trevas. A experiência é entendida como um processo de afetação do sujeito que precede a interpretação e determina a construção de sentido da obra e do próprio sujeito.

Palavras-chave: Literatura, Interpretação, Experiência, Alteridade.


ABSTRACT

The aim of this paper is to propose a reflection on the experience of reading/interpretation from my reading of the work of Israeli writer Amós Oz, De Amor e Trevas. Experience is understood as an affectation of the subject that precedes the interpretation and determines the construction of the meaning of the work and of the subject itself.

Keywords: Literature, Interpretation, Experience, Alterity.


 

 

O objetivo do presente artigo é propor uma leitura do romance autobiográfico De Amor e Trevas do escritor israelense Amós Oz. A leitura é compreendida como experiência cujas afetações marcam o leitor e sua interpretação. Esta equivale, em última análise, à elaboração da experiência vivida, processo tributário da percepção.

Obra e leitura não estão dadas em princípio nem constituem esferas estanques. O texto converte-se em obra em função da leitura construída. Para esta concorrem não apenas elementos advindos da materialidade da escritura, mas daquilo que subjaz, silencioso, no texto e diz respeito à experiência.

A psicanálise comparece em questões que nortearam e desprenderam-se de minha leitura. Não como problemas a serem respondidos, mas como apoio ou ideia reguladora para a reflexão.

Em que medida lidar com a matéria-prima da memória – o que se passa no caso de um romance autobiográfico – é flertar com o não sentido? Por que o elemento autobiográfico estaria mais próximo do irredutível ao significado? Penso que se trata de uma diferença sutil, muito mais de quantidade do que de qualidade, já que a matéria-prima do escritor será sempre, em última instância, sua memória.

Essas são questões desdobradas da leitura que se transforma numa relação de mão dupla com o leitor. Esses elementos concorrem para emoldurar o foco central da leitura: o olhar do menino/escritor sobre a mãe, sua experiência com ela presentificada na forma desconstruída que o romance adquire na e para a construção da narrativa de Oz.

É o próprio texto que sugere: deixemo-nos guiar pelo movimento fluido e alternado dos narradores e discursos. Entre a primeira, a terceira e a pessoa que se distancia para dar a palavra às muitas vozes de que é feita a obra. O narrador cambiante converte-se em personagem para se distanciar e montar a cena polifônica. Como testemunha da própria história.

A indistinção entre realidade factual, sonho e memória não é um mecanismo de captura do leitor até que se resolva o grande mistério, o suicídio materno. Ainda que vejamos um aumento crescente da tensão na narrativa dos dias que antecedem a tragédia, não há conclusão para esta. Após o luto, período em que a comunidade deve lembrar e falar do morto, o que se configura impossível neste caso, pai e filho transformam o pequeno apartamento num chiqueiro. A louça se acumula na pia, roupas sujas e mal cheirosas espalham-se pela casa junto com restos de comida e a profusão de livros que ocupam todos os espaços. Uma silenciosa cumplicidade feita de ódio e remorso parece unir pai e filho.

Mais do que buscar palavras, paradoxalmente, Oz parece oferecer sua escuta para os personagens de sua tragédia familiar, nos quais ele está incluído como menino e escritor. As dissonâncias emergem na tensão inconclusa entre verdade e fantasia, nos detalhes que se convertem em apoio e ruptura para a leitura.

A abertura do texto deve-se, em grande medida, ao movimento heterodoxo do narrador que não se fixa na primeira pessoa – embora esta predomine –, mas alterna-se entre este lugar e a ausência ou distanciamento que nada tem de arbitrário. Trata-se, ao contrário, de uma construção que privilegia a polifonia e a tensão. Neste livro, os elementos formais combinam-se à narrativa conferindo-lhe seu traço desconstruído. As fronteiras entre realidade, ficção, história, passado, presente e fantasia são deliberadamente fugidias e opacas, aspecto que opera em favor da manutenção da referida abertura.

Amós Oz constrói suas memórias/ficção como um cenário para os personagens, ambiente de escuta e acolhimento para uma reparação. A origem de sua escrita parece se localizar no intervalo entre a memória da tragédia do suicídio materno – sobre a qual ele nunca falou – e a possibilidade da escrita. Sua matéria são os destroços e vestígios de si mesmo, de sua mãe, seu pai, sua família, da língua e de modo indireto, do país no qual o escritor nasceu e cuja língua ajudou a reformular. Trevas que o escritor ilumina e converte em matéria literária, convertendo a si mesmo em autor de sua história.

Trata-se da dialética entre o universal e o particular própria do gênero autobiográfico, cujo cunho universalista refere-se ao movimento de inserção do eu no mundo, do qual a autobiografia é simultaneamente documento de memória e obra criativa. Em última instância, é possível considerar que este é o movimento de constituição do próprio sujeito, entre as contingências de sua narrativa e as possibilidades criativas de sua existência. Residiria aí o traço universalista do romance autobiográfico? Aquele que possibilitaria a identificação do leitor com uma realidade tão propriamente definida pelo escritor?

Minha leitura privilegia a relação do menino com sua mãe, vista por ele, tantos anos depois. Do lugar da criança observando a mãe e a si mesmo, movimento através do qual o menino se torna autor do próprio texto.

 

A leitura, propriamente

"De novo e de novo minha própria mãe" (Oz, 2005, p. 30). Nesta frase que irrompe no texto não há narrador. Trata-se do próprio fluxo da consciência do menino. É sua voz que pontua um intertexto intermitente com a escrita, trazendo à cena o medo e a angústia da criança que sabe sem poder saber. A ausência de mediação amplifica a voz infantil que fala por si. Como uma voz que ecoa diretamente do fundo da memória. Nela, não há escritor nem narrador, apenas o medo, intransitivo, do menino que pressente a tragédia. Parece mesmo uma mãe insepulta, aquela para quem ele não cessa de perguntar, sabendo e não sabendo a resposta, numa interrupção que ao mesmo tempo transita entre o passado e o presente e parece estar fora do tempo. "Mamãe, você está bem?" (Oz, 2005, p. 30).

Não se trata, diz o escritor, de reconstituir a verdade dos fatos, mas de fazer falar a memória tal como se apresenta: marcada pelos afetos, pelo infantil, misturada aos desejos e fantasias, inserida num tempo mais épico que diacrônico. Narrador que assume lugar de personagem, deslocando-se e alternando os lugares e as distâncias entre o leitor e o escritor, entre este e seus personagens. Afastando-se, explicitando a distância, o modo indireto, próprio da escritura, sem responder às perguntas que se desdobram em muitas e em uma só ao longo do texto.

Entre o menino e o escritor, entre este e os personagens, no intervalo entre o escritor e a escritura. Vão no qual o leitor é convidado a se instalar com suas lembranças, sua memória, num intertexto tecido no encontro com o texto.

(...) Certa vez, de dentro da caverna dos quarenta ladrões que eu tinha no vão entre o armário e a parede, (...) eu a vi gritar e agredir terrivelmente minha mãe, sacudindo perto do seu rosto o ferro de passar, os olhos em brasa, e despejar palavras terríveis sobre ela em russo ou em polonês misturado com ídiche. (...) Minha mãe não respondeu às ofensas gritadas por sua mãe, mas permaneceu sentada na cadeira dura (...). Seu silêncio obstinado levava sua mãe a se enfurecer ainda mais, e, de repente, como se estivesse completamente fora de si, os olhos lançando faíscas furiosas, a face desvairada com um fio de espuma aparecendo nos cantos da boca entreaberta, os dentes pontiagudos à mostra, minha avó atirou com toda a força o ferro de passar, que foi se espatifar na parede, e ela chutou e derrubou a tábua de passar, saiu batendo a porta com um estrondo que fez tilintarem todos os vidros das janelas e todos os copos e louças. (...) E minha mãe, sem saber que eu assistia à cena, levantou-se então da cadeira e começou a se flagelar, arranhou a face, puxou o cabelo com violência, pegou um cabide e golpeou a cabeça e as costas até chorar em desespero, e também eu, de dentro da minha caverna, (...) comecei a chorar em silêncio e a morder minhas mãos, morder e morder até aparecerem relógios doloridos. (Oz, 2005, pp. 285-286)

A cena em que a mãe maltrata e ameaça a filha, mãe de Oz, é vista pelo menino e pelo leitor – ao lado dele na sua caverna – numa sucessão de violência e ódio que cresce nas frases longas, ao mesmo tempo em que a avó transmuta-se em fera. Os olhos em brasa, a saliva escorrendo no canto da boca, a brutalidade do gesto de chutar longe a tábua de passar. O ferro atirado na direção de Fânia, quase acertando seu rosto. Após a saída da avó, a mãe de Oz, que permanecera calada durante o ataque de sua mãe, açoita a si própria, e o menino, do fundo de seu esconderijo, também se flagela. Aqui, o sofrimento parece não permitir que a palavra seja dada, diretamente, a nenhum dos personagens. Não há palavra possível para a mãe e para o menino. Fânia não consegue enfrentar a mãe, a criança depara-se com algo maior do que sua capacidade de elaboração. Restam as marcas no corpo – os "relógios doloridos" – os arranhões no rosto, o choro desesperado e inominável.

A narrativa não se pretende explicativa. Sua opacidade produz dúvidas e incertezas no leitor. Ora no lugar de testemunha e ouvinte, ora distante da trama, como alguém que observa de fora. O escritor parece confundir deliberadamente o leitor, não porque queira enganá-lo ou produzir suspense, mas porque ele próprio flutua e transita entre o sonho, a memória e a história. Às vezes, falando com o leitor, outras, com seus pais. Outras, ainda, sozinho como num solilóquio.

Podemos nos perguntar, então: a que serve a forma indefinível e livre do romance de Oz? Creio que ela está a serviço do movimento e da fluidez da escrita, como um imperativo ético que possibilita ao leitor e ao escritor ocupar o lugar do outro e construir interpretações.

A narrativa de sua infância em Jerusalém é marcada por uma tensão permanente. Na descrição do apartamento afundado e escuro, na tensa conjuntura política dos anos 40 e nas relações familiares. No período que antecedeu ao suicídio materno, quando o escritor tinha doze anos. O que parece, no entanto, ser o termo da tensão – a morte da mãe – revela-se ilusório. Trata-se, de fato, de algo anterior que o menino pressentia, sabia sem saber. Algo que o suicídio materno parece comprovar, atualizando uma tragédia precedente e anunciando outras que lhe rodeiam e sucedem. Segredos, murmúrios e presságios expressos numa afirmação e numa pergunta que interrompem e irrompem na narrativa. Os ruídos da memória realizam um excurso em outros textos e constroem um diálogo intertextual em que os tempos da narrativa, da história e dos afetos se sobrepõem.

A narrativa de sua infância em Jerusalém é marcada por uma tensão permanente. Na descrição do apartamento afundado e escuro, na tensa conjuntura política dos anos 40 e nas relações familiares. No período que antecedeu ao suicídio materno, quando o escritor tinha doze anos. O que parece, no entanto, ser o termo da tensão – a morte da mãe – revela-se ilusório. Trata-se, de fato, de algo anterior que o menino pressentia, sabia sem saber. Algo que o suicídio materno parece comprovar, atualizando uma tragédia precedente e anunciando outras que lhe rodeiam e sucedem. Segredos, murmúrios e presságios expressos numa afirmação e numa pergunta que interrompem e irrompem na narrativa. Os ruídos da memória realizam um excurso em outros textos e constroem um diálogo intertextual em que os tempos da narrativa, da história e dos afetos se sobrepõem.

Muitos anos depois de ter escrito Meu Michel, Oz confessa:

Eu o matei [o pai] principalmente ao trocar o sobrenome. Por muitos anos a vida de meu pai foi toldada pela sombra poderosa de seu tio erudito, "de renome mundial" (...).
Como se fosse uma brincadeira permanente, como se fizesse comigo sempre a mesma gracinha, pelo afeto que sentia por mim, meu pai me chamava, desde muito pequeno, de sua alteza, vossa excelência, vossa senhoria. Só muitos anos depois, na noite seguinte à sua morte, foi que percebi, de repente, que disfarçada em gracinha estavam ocultos nessa brincadeira permanente, irritante, quase odiosa, seus sonhos de grandeza frustrados e também a mágoa de constatar sua própria mediocridade e o dever secreto de me designar para a missão de conquista para ele dos objetivos que lhe tinham sido negados. (Oz, 2005, pp. 525-526)

Quando imaginamos que o romance se fecha na confissão, a testemunha converte-se em personagem. Volta a ser o narrador e novamente assume seu lugar na ficção.

No trecho acima trava-se um diálogo de muitas vozes entre o escritor e seus personagens. Entre ele, no lugar de Hana e seus pais, entre o escritor e sua obra. O narrador transitório não se fixa por muito tempo num mesmo lugar, distancia-se da primeira pessoa para retornar como personagem.

Seria o romance – toda sua obra – uma forma de responder à pergunta que o menino fazia a mãe, pressentindo a tragédia que estava por vir? E que, sozinho no kibutz2, tentava adivinhar? Onde buscar seu fio, como encontrar as pistas, os sinais que não puderam ser interpretados? Nas histórias estranhas contadas pela mãe, "que não começavam no começo e não acabavam bem?" (Oz, 2005, p. 250). Naquelas de sua infância rica em Rovno, como a da vizinha que, após noites e noites sendo perdida pelo marido no jogo de cartas, despeja querosene sobre seu corpo e ateia-se fogo? Como uma mulher que se desdobra em muitas e em uma só, na história dela mesma, envolta numa "aura de solidão e melancolia" (Oz, 2005, p. 250).

Ou na monotonia da vida em Jerusalém que Oz descreve como moldura para a tragédia. Entre uma solidão abismal e

(...) os pepinos em conserva, (...) cercada dia e noite pelo cheiro de couve, roupa suja, peixe cozido e urina seca (...). Talvez ainda pudesse agüentar firme, os dentes cerrados, em face da desgraça e da perda. Em face da miséria. Em face das decepções do casamento. Porém, assim me parece, de modo algum poderia enfrentar a falta de gosto, a vulgaridade. (...)
É possível que minha mãe tenha sonhado viver em Israel uma vida de professora culta e criativa numa escola do interior, que nas horas vagas escrevesse poemas líricos e talvez até contos repassados de sutilezas e sentimentos. (Oz, 2005, p. 292)

Como a morá3 Zelda, personagem real das memórias? Ela também envolta em delicadeza e melancolia, sussurrando segredos para o menino numa língua particular. Iniciando-o no mundo das palavras e do amor entre murmúrios e pressentimentos que o atraíam e assustavam. Quando eclode o cerco à Jerusalém, pouco antes da formação de Israel, o menino abandona as visitas diárias à casa da professora, para onde retorna, anos depois, já adulto.

A Morá-Zelda também me revelou um hebraico que eu nunca tinha ouvido, nem na casa do professor Klausner, nem na nossa casa, nem na rua, nem nos livros que eu havia lido. Um hebraico estranho, anárquico, um hebraico de contos assustadores, histórias hassídicas e parábolas, dessas com "moral da história". Um hebraico saturado de ídiche, desobediente a todas as regras, misturando masculino e feminino, passado e presente, adjetivos e advérbios, um hebraico lasso e confuso. Mas que vitalidade tinham aquelas histórias! Quando me contava sobre a neve, parecia que a própria história tinha sido escrita com palavras de neve, e quando me contava sobre incêndios, era como se as próprias palavras queimassem. E que doçura estranha, hipnótica, havia em suas histórias sobre milagres e revelações! Como se as letras houvessem sido impregnadas de vinho. As palavras deliravam vertiginosas na boca. (Oz, 2005, p. 340)

Não apenas fazendo falar os objetos e decifrando sua língua, como Fânia, mas amalgamando-se a eles, transitando entre o tangível e o intangível. Numa língua vívida e fraturada, profundamente feminina.

O contexto histórico – o Holocausto, a formação do Estado de Israel – embora plenamente inserido na narrativa, aparece, por vezes, como contexto para o drama familiar que o menino/escritor anuncia. Este sim, o foco do romance. A tragédia coletiva operaria assim, como lembrança encobridora, polo de atração para outros traumas, outras tragédias – a familiar e individual?

Num ir e vir constante, entre passado e presente, na intersecção das temporalidades da escrita e do inconsciente a narrativa se constrói. O menino/escritor refaz sua história sem a pretensão de encontrar a verdade, mas deixando que as verdades possíveis apareçam entre os desvãos da escrita. Constitui-se, de modo quase paradoxal, um texto formalmente coeso e íntegro numa tensão inconclusa que desliza metaforicamente entre sonho e memória, fato e verdade.

E assim, aos catorze anos e meio, dois anos após a morte de minha mãe, matei meu pai e matei toda a Jerusalém, troquei o meu sobrenome e fui sozinho para o kibutz Hulda para viver, também eu, sobre ruínas. (Oz, 2005, p. 525)

Amós Oz parece tentar pinçar de sua memória o inexprimível, retirando – e não colocando, como sugere o crítico literário James Wood – do exprimível, do representado, do excesso, do nomeado demais – uma outra fala, sua própria palavra transformada pelo outro. Memória, ilusão?

Neste sentido, a pergunta que o menino faz à mãe "mamãe, você está bem?" parece se deslocar, como metáfora, para além da narrativa, para um outro tempo e espaço que, como pergunta, nunca se conclui. Ele pergunta já conhecendo – e temendo – a resposta. Herança que a morte da mãe atualiza tragicamente.

Comecei a ler quase sozinho. Quando ainda era bem pequeno. O que mais havia para fazer? Naquele tempo as noites eram muito mais longas, pois a Terra girava muito mais devagar, pois a gravidade em Jerusalém era muito mais forte do que é hoje em dia. As lâmpadas irradiavam uma luz amarela pálida, e essa luz era apagada muitas vezes pelas quedas de energia.
(...) meus pais trocavam as lâmpadas de quarenta watts por outras de vinte e cinco. Não só pelo preço, mas porque luz intensa é sinal de desperdício, e o desperdício é imoral. Em nosso pequeno apartamento, a parcela sofredora da espécie humana estava sempre amontoada num canto: as crianças famintas da Índia, e por causa delas eu tinha de raspar o prato, os sobreviventes do inferno hitlerista (...). Papai trabalhava em sua máquina de escrever até as duas da madrugada sob uma lâmpada anêmica de vinte e cinco watts. Estragava os olhos, mas usar uma lâmpada mais potente não ficaria bem, pois os pioneiros nos kibutzim4 da Galiléia passavam noites a fio em barracas (...). Ficar aí refestelado, feito um Rothschild, sob a luz feérica de uma lâmpada de quarenta watts? E o que dirão os vizinhos ao ver de repente nossa casa iluminada como para uma festa de gala?
(...) Vergonha! Vergonha e humilhação! De um jeito ou de outro, vergonha, humilhação!
A vida estava toda cheia de vergonhas e humilhações como essa. (Oz, 2005, pp. 28-29)

O narrador em primeira pessoa transita entre o discurso indireto e o direto alternando os tempos, tornando presente o sentimento de vergonha que dava o tom da existência para aqueles que haviam sobrevivido. "Vergonha! Vergonha e humilhação" (Oz, 2005, pp. 28-9) na luz fraca, nos olhos cansados, na humilhação e culpa que o grupo social parece atualizar.

Quando a mãe se suicida, o menino diz a uma amiga da família:

Eu nunca vou ser escritor, nem poeta, nem literato. De jeito nenhum, pois não tenho sentimentos. Os sentimentos me enojam. Vou ser agricultor, vou viver no kibutz. Ou quem sabe vou ser envenenador de cachorros. Com uma injeção cheia de arsênico. (Oz, 2005, p. 463)

Como se o suicídio materno houvesse encerrado o mistério da vida e destruído a expectativa do paraíso que os livros prometiam. Ruptura brutal da infância, da inocência e do ideal. Parece não haver intervalo entre este e a realidade para o menino enlutado.

Para Fânia, a delicada, amorosa e culta mãe de Oz, conhecedora e amante da literatura europeia, a experiência de expulsão da Europa, as notícias do holocausto e o casamento infeliz parecem atualizar algo de sua subjetividade, sua tragédia pessoal. Algo indiscernível que lhe conferia uma dose de fragilidade e delicadeza incompatíveis com o mundo real ao qual ela tentava adaptar-se, sempre deslocada e estranha. A melancolia e a angústia que o menino percebe na mãe são descritas de forma poética e delicada, bem ao estilo dela.

(...) na zona crepuscular entre o sublime, o atormentado, o sonho e a desolação, todo o espectro das luzes traiçoeiras de "anseio e saudade" que rondaram minha mãe impiedosamente a maior parte de sua vida e a seduziram, até ela ceder à sedução e se suicidar em 1952. Estava então com trinta e oito anos. E eu com doze anos e meio. (Oz, 2005, p. 246)

As mulheres quase não participavam da conversa. Naqueles tempos era costume elogiar as mulheres por prestarem atenção de maneira tão primorosa, e também pelos quitutes e pelo ambiente agradável que elas sabiam criar, mas não por sua contribuição à conversa.
Somente minha mãe às vezes subvertia essa regra. Aproveitando um silêncio passageiro, ela fazia uma observação, ou colocava uma nova idéia, como se fosse um aparte que à primeira vista não tinha nada a ver com o tema da conversa, e poderia até demonstrar, a rigor, certa desatenção embaraçosa, para logo depois se constatar que o centro de gravidade da conversa tinha sido sutilmente alterado: sem se desviar do tema e sem discordar dos demais convidados, era como se ela tivesse aberto uma porta numa parede lateral do tema, uma parede que até então parecia não ter porta nenhuma.
Depois de ter colocado sua observação e se calado, ela sorria satisfeita e olhava triunfante, não para os convidados, nem para meu pai, mas para mim. (Oz, 2005, pp. 450-451)

Aqui, parece não haver dúvida: é o menino que fala, não o narrador. É ele que observa e recebe, agradecido, o olhar cúmplice e amoroso da mãe.

(...) durante a manhã preparava, cortava, cozinhava, assava, comprava, limpava, enxugava, lavava, estendia, passava a ferro, dobrava, arrumava, até toda a casa ficar brilhando. Depois do almoço, sentava-se em sua cadeira e lia. Era estranha sua postura ao ler: o livro estava sempre aberto sobre os joelhos; as costas e os ombros, curvados na sua direção. Como uma menininha tímida com os olhos cravados nos joelhos, assim me parecia minha mãe ao ler. (Oz, 2005, p. 318)

Fânia se dividia, parecia viver no intervalo entre o dever e o desejo, entre o mundo real e a literatura. As tarefas da manhã se sucedem num movimento mecânico, concluem-se no seu fazer, separadas, definidas, acabadas. À tarde, porém, a frase curta e simples, o corpo ensimesmado, suscita uma continuidade da ação da leitura que parece transcender o gesto, ao mesmo tempo em que o corpo expressa o gesto: a mulher voltada sobre si mesma. De volta às brumas do século XIX, às quais a literatura lhe enviava, tocando paisagens estranhas ao menino nascido em Jerusalém, pedras, plantas, bichos e objetos inanimados, e fazendo-os falar. Desdobrando-os numa interpretação quase infinita.

Os baús eram feitos de madeira grossa e lustrosa, que nunca havíamos visto em Jerusalém; mamãe me explicou que era pinho-de-riga e me disse para tocá-los com a ponta dos dedos e sentir a textura com a mão. Ela foi sempre de opinião que não bastava saber o nome das coisas, mas que devíamos conhecê-las cheirando com o nariz, com um leve tocar da ponta da língua, com o tato da ponta dos dedos, conhecer sua textura e calor, sua aspereza e sua rigidez, o ruído que faziam quando se batia com o nó dos dedos, tudo o que mamãe costumava chamar de "condescendência" e "resistência" das coisas. Cada material, assim dizia ela, seja ele roupa, móvel ou talher, cada objeto tem diferentes teores de "condescendência" e "resistência", e esses teores não são constantes, mas podem variar de acordo com as estações do ano, as horas do dia (pois há a condescendência e a resistência do dia, e há as da noite), o toque, a luz e a sombra, e de acordo com fatores intrínsecos do objeto, que não temos meios de compreender, porém sabemos que existem. Não é por acidente, ela disse, que o hebraico usa a mesma palavra para designar objeto inanimado e desejo. Não somos apenas nós que temos desejo por uma coisa ou outra, objetos inanimados e plantas também têm seu senso interno de desejo, de vontade, e somente alguém que sabe sentir, ouvir, saborear e cheirar sem avidez pode às vezes discernir isso.
Então meu pai interveio brincando:
Sua mãe supera o próprio rei Salomão. Diz o Midrash que ele conhecia as linguagens de todos os seres vivos, de cada animal ou pássaro, mas sua mãe faz ainda melhor, ela também entende a língua da toalha, da panela e da escova. (Oz, 2005, p. 430)

Fânia parecia viver num mundo paralelo, num outro lugar, onde os objetos têm vida, no intertexto que subjaz, silenciosamente, ou na fala que irrompe desconcertante e muda o rumo da conversa. Como se, à sua presença, se desprendessem dos objetos não apenas odores, mas um outro tempo, uma outra vida (sonhada?). Algo do maravilhoso ecoa no seu gesto elegante e contido, na sua fala certeira e civilizada que aparece na escritura de forma tão vigorosa, como se trouxesse, de fato, a experiência do menino. Sua percepção da mãe, os olhares por eles trocados, a presença viva deles, filho e mãe.

Quando estava na casa de conhecidos, costumava observar atentamente os estofados, cortinas, sofás, os suvenires e bibelôs espalhados pelos peitoris das janelas e os vasinhos de plantas (...) enquanto todos os outros estavam ocupados em conversar (...). Os segredos das pessoas sempre a apaixonaram, mas quando a conversa passava para o diz-que-diz, em geral a ouvia com um leve sorriso, um sorriso hesitante, como se tentasse anular o próprio sorriso, e permanecia silenciosa. Um silêncio muito longo. Mas quando o rompia para dizer algumas poucas frases, a conversa não seria mais a mesma de antes.
Quando meu pai falava com ela, por vezes se notava na voz dele uma mistura de temor, distância, afeto e respeito: como se tivesse em casa uma adivinha disfarçada, ou uma vidente. (Oz, 2005, pp. 317-318)

Após o suicídio da mãe, o menino rejeita a herança paterna de palavras e palidez e escolhe seu destino: ser um kibutznik5, tornar-se moreno e forte, arar os campos, construir uma nação, e se dá conta, lá chegando, de que também ali, "mesmo os agricultores mais convictos liam livros à noite e conversavam sobre eles o dia inteiro" (Oz, 2005, p. 550).

Narrando os últimos dias da vida de sua mãe, a pergunta se repete, insistente como um pressentimento que interrompe o tempo da narrativa e interpela o próprio leitor – outro – num imperativo ético de escuta. Dentro e fora do texto, como a fala do menino/escritor. Pergunta dirigida à mãe que não só transcende o tempo histórico, mas que permanece, intransitiva, para além desta categoria. Fala eminentemente infantil, de um outro tempo, não linear, fragmentado, falho – tempo do trauma? – interpondo-se à narrativa, lembrando que esta só pode representar a experiência traumática nos silêncios e interrupções. Explicitando, assim, o incomunicável, por definição, dessa experiência. O narrador se desloca entre a cena do menino que pergunta, pressentindo, e o escritor que relembra e constrói sua memória. "Mamãe, você está bem?"

E essa era a minha fantasia – era bem assim que eu iria encontrar o meu amor: ela estará desesperada e solitária no parapeito de uma ponte, triste e abandonada numa noite de tempestade, e eu chegarei no último instante para salvá-la de si própria, e por ela matar o dragão (...). Ainda não havia percebido que a mulher desesperada junto ao parapeito daquela ponte era, mais uma vez, e de novo, e de novo, minha própria mãe, morta. Ela e seu desespero. Ela e seu dragão. (Oz, 2005, p. 552)
De novo e de novo, minha própria mãe. (Oz, 2005, p. 552)

A mãe real, fictícia e fabular confundem-se na ficção, o estatuto da verdade e do real está longe de ser algo fixo, definitivo. A realidade psíquica impõe-se à factual, ambas se misturam e ganham contornos de fantasia no trabalho de integração e construção da narrativa.

Poucos dias antes da morte da mãe, o menino pressente (e tem certeza):

Nem mesmo suspeitava, mas no máximo sentia-não-sentia, como um desconforto leve e estranho em minha pele. Como um menino sente às vezes certas coisas sem senti-las, por estarem fora do alcance da sua compreensão. Mas sente, e tem medo, sem saber de quê. Mamãe, você está bem?
Ela pediu uma xícara de café preto, forte. E para mim uma xícara de café com leite, apesar de nunca terem me deixado tomar – café não é para criança. Pediu também, para mim, um sorvete de chocolate, apesar de sabermos muito bem que sorvete causa inflamação na garganta, ainda mais num dia frio de inverno como aquele. E antes do almoço. (...) Orgulho e responsabilidade e temor enchiam meu coração. Era como se enquanto permanecêssemos ali, (...) ela fosse a menina desamparada, carente da ajuda de um amigo generoso, e eu fosse o seu chevalier. Ou seu pai. (Oz, 2005, pp. 570-571)

Como cavalheiro fracassado, o menino se converte em escritor para refazer sua história. A pergunta "Mamãe, você está bem?" acompanha-o, desdobrando-se, ao longo de sua vida, em escrita. Dissonância e alteridade adquirem contornos próprios na possibilidade da criação e transformação da trágica herança parental.

E assim, aos catorze anos e meio, dois anos após a morte de minha mãe, matei meu pai e matei toda a Jerusalém, troquei o meu sobrenome e fui sozinho para o kibutz Hulda para viver, também eu, sobre ruínas. (Oz, 2005, p. 525)

No acerto de contas com sua história e suas ruínas, Amós Oz constata que após anos fugindo da herança paterna, acossado por um "sentimento de estar à margem, longe da vida" (Oz, 2005), tentando integrar seu mundo e sua história, ele reencontra o pai numa herança de livros e palavras.

Algo subjaz na afirmação "também eu" (Oz, 2005, p. 525), que parece dialogar com outro texto. A que ruínas – quantas – se refere o adolescente/escritor que deixa a casa paterna após um homicídio coletivo simbólico? Podemos pensar que se trata das ruínas dele, o menino, cuja transição para a adolescência foi marcada pelo suicídio da mãe. Trata-se também das ruínas da mãe – que cedeu enfim à tentação – e do pai, não obstante sua aparente e obsessiva organização. Trata-se, ainda, das ruínas do passado recente, dos "resíduos dos campos de concentração" (Oz, 2005) e trata-se, enfim, das ruínas da língua.

Pai e mãe ocultam algo do menino, murmúrio sussurrado em palavras que ele adivinha nas muitas línguas faladas pelos pais. Mas a ele, só ensinaram hebraico, que não era a língua materna da mãe nem do pai. O hebraico aprendido por eles nas escolas sionistas europeias era erudito e guardava certa rigidez dos tempos de língua reservada à liturgia. Embora compreensível sob um ponto de vista, não deixa de suscitar estranheza a escolha da mãe por uma língua nova – ainda não completamente apropriada para a fala cotidiana – para a comunicação com seu filho.

Uma outra língua parece ter se insinuado desde sempre para o menino no intervalo entre as línguas faladas pelos pais e o silêncio. Entre o hebraico formal e a língua materna que ecoava na lida com a criança. As palavras parecem, assim, carregadas de outras falas, outros textos e outras línguas plenas de sentidos que o menino intui. Assombrado, comovido, atordoado e apavorado, como se elas trouxessem consigo a experiência do horror que encerravam. Do terror coletivo e daquele que as palavras murmuradas pela mãe ao filho ou ditas pela metade numa reunião social anunciavam.

Aquilo que o menino sabia sem saber. E que não podia ser de outra forma.

Mas afinal, como o narrador e personagem Prófi do livro Pantera no porão, podemos nos perguntar:

E o que é o oposto daquilo que realmente aconteceu? (...) Será que por ter contado a história traí mais uma vez a eles todos? Ou pelo contrário: não contar seria traí-los? (Oz, 1999, pp. 143-144)

Talvez esta seja a pergunta que atravessa a obra de Amós Oz costurando seus fios de forma intertextual. O menino/escritor procura uma resposta que se converte em uma pergunta, e outra e outra, indefinidamente.

 

Referências

Oz, A. (1998). Meu Michel. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Oz, A. (1999). Pantera no porão. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Oz, A. (2005). De Amor e Trevas. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Waldman, B. (2004). Linhas de força: escritos sobre literatura hebraica. São Paulo: Humanitas.         [ Links ]

Wood, J. (2011). Como funciona a ficção? São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

 

 

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Recebido: 16/03/2012
Aceito: 26/04/2012

 

 

* Mestre em História pela USP e doutoranda no IPUSP.
1 Este artigo é derivado do trabalho de doutorado da autora no IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo) sob orientação de Luís Claudio Figueiredo.
2 Nome dado em hebraico às fazendas coletivas de inspiração socialista.
3 Professora, em hebraico.
4 Em hebraico, plural de kibutz.
5 Morador do kibutz.