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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo jan./jun. 2018

 

RESENHAS

 

Amor e fidelidade no século XXI

 

 

Renata Udler Cromberg

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae, pós-doutora pelo Instituto de Psicologia (IP-USP), autora dos livros Cena incestuosa e Paranoia, da coleção Clínica Psicanalítica, e de Sabina Spielrein – vida e obra de uma pioneira da psicanálise (Vol. I)

Endereço para correspondência

 

 

Haddad, Gisela. Amor e fidelidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. 187 p.

Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz.
Consta no Google, no Twitter, no face, no Tinder, no WhatsApp,
no Instagram, no Snapchat, no Orkut, no Skype.

(Chico Buarque e Clara Buarque interpretam "Dueto", com um acréscimo feito em 2017 à letra original)

O livro de Gisela Haddad antecipa uma discussão nevrálgica em tempos tecnológicos e de todas as mudanças que as redes sociais e os novos meios de comunicação estão trazendo desde os anos 2000 no campo dos afetos e dos comportamentos sexuais de todas as idades. Ele fala das vicissitudes das relações entre sexo, amor e fidelidade. Sua questão central, em torno da qual muitas espirais se abrirão, é que o amor e a fidelidade não são verdades sagradas e eternas nem sinônimos, mas são construções culturais que mudam ao longo da história humana.

Recentemente realizado, o filme A vigilante do amanhã (Ghost Shelter, 2017) expressa uma distopia futura que pode tornar a dúvida freudiana - se a sexualidade ainda permaneceria no futuro - uma afirmação plausível. No filme, a personagem principal tem corpo sintético, escultural e belo, mas sem orifícios. A sexualidade genital é algo remoto, aludido a um passado. Os personagens se relacionam com muita disputa guerreira através de longas línguas tecnológicas que sugam os cérebros uns dos outros, regressão primária oral espantosa. De humano resta o cérebro extraído de uma moça morta cuja trajetória de vida a heroína tenta remontar e recordar a partir de flashes e encontros, mostrando que a necessidade de uma origem e uma história é o que ainda dá a possibilidade de sentido e um toque final não desumano, num mundo em que a guerra e a disputa de poder predominam.

Com uma escrita fluida e de agradável leitura, com epígrafes de composições musicais de Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso e Ed Motta, que trazem uma divertida poesia aos temas, Haddad reflete sobre as razões da insistência do ideal mítico do amor romântico nas uniões amorosas e sexuais no nosso imaginário cultural e em sua insistência, mesmo na era do individualismo radical da contemporaneidade. Entendo que esse individualismo se expressa no campo amoroso e sexual de várias formas em uma exposição desmedida e sem controle de imagens sexuais nos meios midiáticos, acessível a todas as idades e formas de sexualidade em todas as manifestações possíveis: bi, hetero, trans, e nos 75 gêneros já catalogados, em poliamor ou monogamicamente, em relações longas ou breves, nas quais a singularidade de cada organização fantasiosa é o que rege os arranjos e acordos sexuais.

É insólita essa persistência porque, na própria definição de amor romântico, está implícita uma união conjugal duradoura e exclusiva, que implica um sentimento de completude amorosa e sexual. O objeto escolhido deve ser único e insubstituível, pois para o sujeito do amor romântico seu objeto é permanente e exclusivo, fazendo com que ele não tenha de sentir desejo por outro objeto, o que o torna fiel sem necessidade de imposições externas. É mantendo-se como o único que poderá verdadeiramente produzir uma satisfação sexual plena. A fidelidade faz parte dessa idealização amorosa e é causa recorrente das dores de amor.

As pesquisas de Miriam Goldenberg e Maria Luiza Heilborn, ambas de 2004, parecem confirmar à autora que a maioria dos homens e mulheres aspira a uma relação mais duradoura com um único parceiro. Mas, segundo as pesquisas, a relação deveria preservar a individualidade, o respeito à privacidade e a independência financeira das duas partes.

Gisela Haddad cerca-se de bons companheiros no percurso de desdobramento de sua questão. Muitas leituras de psicanalistas, filósofos, músicos e escritores. O Banquete, de Platão, e seus sete discursos sobre os diferentes tipos de amor, aparecem como referência-mor de literatura sobre o amor no Ocidente. Foucault ajuda a pensar a naturalização e a normatização da sexualidade pela Igreja. Jurandir Freire Costa, em Sem fraude nem favor (1998), aponta a naturalização do ideal do amor romântico impedindo a percepção de que ele é produzido culturalmente, o que o torna um ideal inalcançável. Inês Loureiro traz sua cuidadosa e exaustiva pesquisa sobre as relações da psicanálise com o romantismo e teorizações freudianas sobre o campo amoroso e sexual. Stendhal, Balzac, Flaubert e Tolstói trazem as formas nas quais a literatura figurou, no século XIX, o ideário do amor romântico.

No primeiro capítulo, Haddad traça um panorama histórico dos caminhos do amor e da idealização romântica do amor e sua articulação com o nascimento da psicanálise e da subjetividade moderna. A concepção de amor moderna e ocidental é uma invenção recente e diz respeito a uma relação exclusiva entre um homem e uma mulher que aspiram a se unir na busca de uma completude feliz. Se a relação amorosa e o casamento existiam desde a Antiguidade, foi no século burguês que a conjunção amor, casamento e sexo deu origem ao amor romântico. Entre o final da Idade Média e o começo da modernidade teria havido uma produção da intimidade subjetiva do amor. Ao cindir de um lado o amor e de outro o amor de si e o sexo, a Igreja Católica produziu uma literatura importante sobre a luta íntima que cada um travava pela necessidade de renunciar aos apelos das paixões sexuais e agressivas e aos desejos de ser amado e reconhecido por seus semelhantes a fim de se sentir digno do amor divino. A partir das reformas cristãs propostas por Lutero, a relação do homem com Deus passa a ser individual e não mais hierarquicamente determinada, e ele começa a buscar a verdade dentro de si, corroborando a produção de uma interioridade que será valorizada na modernidade. Freud viveu o apogeu do amor romântico e é a valorização da interioridade que fará com que a experiência amorosa ocupe um lugar privilegiado na sua obra bem como a renúncia das paixões humanas ou a interdição de um gozo, imprescindível enquanto base para os pactos sociais que fundam ou mantêm as civilizações. O amor cortês valorizou a figura da mulher através dos trovadores e a inacessibilidade idealizada da mulher foi a herança do amor romântico nos tormentos, dores e frustrações do sujeito do amor. O estilo romântico das produções literárias oitocentistas revelam de maneira inédita os anseios amorosos de cada indivíduo em busca de completude, inaugurando um novo mito do amor, cuja meta é a plenitude conseguida por meio da união de dois corpos e duas almas. Agora o sentimento amoroso está num patamar elevado e passa a ser visto como fonte de felicidade e destino pessoal de homens e mulheres. A subjetividade amorosa toma um espaço central na vida de homens e mulheres. A interioridade passa a ser alimentada em suas fantasias humanas e ideais amorosos pela literatura romântica nascente. Aos poucos, as mulheres passam a ser sujeitos de uma escolha amorosa. A revolução que Freud trouxe, indo atrás dos percalços do inconsciente, exigia um confronto com a hipocrisia da época, que impunha silêncio sobre o tema tabu da sexualidade, enquanto reivindicava a inclusão da sexualidade na vida cotidiana.

No segundo capítulo, a autora realiza um recenseamento histórico da fidelidade entre dois imperativos culturais em épocas distintas: o da pressão sexual e o do gozo sexual. As qualidades morais de lealdade, firmeza e constância nas afeições e nos sentimentos nem sempre foram associadas à exclusividade sexual num par amoroso e se deu apenas na Era Moderna, em que compôs uma complexa e intricada faceta do amor romântico na constituição dos pares conjugais. A exclusividade sexual passa à manutenção da família tradicional, regulando a obrigação moral da monogamia e reinando como norma para acasalamento no mundo ocidental por séculos. No entanto, segundo Foucault, ela já estava presente na ética dos comportamentos do casal homem e mulher na Grécia Antiga, num casamento que privilegiava seu objetivo de descendência, cujo ethos será preservado pelo cristianismo. Neste momento, se a fidelidade masculina dizia respeito a um fator de delicadeza, de uma conduta hábil e afetuosa, cujos deslizes deveriam ser tolerados pelas mulheres, a fidelidade feminina era delegada a um cuidado legislado pelos homens, que precisavam manter sob controle a reprodução da espécie e, por extensão, o corpo da mulher. A autora se aprofunda na análise das transformações ocorridas a partir da modernidade. Os debates sobre a sexualidade feminina nos séculos XIX e XX tiveram efeitos decisivos sobre a vida das mulheres e de homens e iriam desembocar em mudanças importantes no casamento como célula da família burguesa, na relação entre os sexos e no lugar da fidelidade sexual. Nos manuais sobre casamento na era vitoriana já não se conseguia esconder a inquietação sobre o erotismo feminino em erupção. É nesse caldeirão que surge Freud, no final do século XIX, ao apontar que por trás da máscara cultural da vergonha, da reticência e da frigidez paralisante, estava a sexualidade humana e em especial a feminina. A autora aprofunda-se então nas considerações sobre a fidelidade sexual e o enigmático feminino, bem como no reinado da infidelidade sexual masculina e nos laços entre fidelidade e conjugalidade, traçando toda a complexidade do par amor e sexo. Ao se tornar o eixo da vida dos indivíduos, o amor inaugura uma nova maneira de existir, mais centrada na tarefa amorosa de cuidado com as crianças e na ânsia de ser amado e reconhecido pelos pares. "Os sujeitos contemporâneos se definem pelo romance que tecem sobre si desde sua infância e que se destina a responder sobre o quantum de amor que lhes cabe" (p. 94).

É no terceiro capítulo que as teses freudianas sobre a vida amorosa de homens e mulheres de seu tempo são apresentadas. Haddad traça um roteiro completo e cronológico dos escritos em que Freud contribuiu para pensar sua questão mestra. A fidelidade em Freud está ligada ao sentimento de exclusividade na idealização amorosa vivida na relação originária com a mãe, a memória fantasiada de um tempo de plenitude que se deseja repetir.

Mas ela indica também o sofrimento produzido pela perda dos objetos amados originários. Tanto a perda amorosa originária como a edipiana serão responsáveis pelos sentimentos de ciúmes e rivalidade na luta por essa exclusividade, compondo a novela familiar do intrincado mundo afetivo infantil até alcançar o lugar de sujeito apto a compartilhar e buscar na cultura seu futuro. Desde os primeiros textos Freud marcava tanto a impossibilidade de se manter um vínculo amoroso e sexual eterno sem as tentações contínuas de infidelidade como o fato de a exigência de fidelidade criar um impasse nas uniões conjugais, ao lembrá-las de sua existência precária e sem garantias.

De um lado, uma fidelidade amorosa a um objeto original, buscando o retorno a uma perfeição narcísica; de outro, a infidelidade do desejo diante dos objetos impessoais da pulsão. A fidelidade e as infidelidades ainda irão se articular à figura do terceiro, responsável pela constituição da alteridade, delineando mapas diferentes para cada gênero, assim como condições singulares para cada sujeito. (p. 118)

No quarto capítulo, sugestivamente denominado "Perto demais ninguém é fiel", a análise do filme Closer (Perto demais) funciona aqui como um estudo de caso do paradigma dos amores contemporâneos em que as infidelidades detonam dores e sofrimento provocados pelas experiências de perdas ou pelas vicissitudes que rondam as expectativas de fidelidade sexual. As narrativas dos sentimentos dos quatro personagens, entre 30 e 40 anos, de classe média de uma grande metrópole, que compõem casais alternados, são traçadas do ponto de vista de quem traiu e de quem trai e apontam essa experiência não de acordo com seu rompimento com as convenções sociais, o que indicaria seu valor moral, mas do ponto de vista de um individualismo radical e, portanto, na esfera exclusiva do foro íntimo. A narrativa da autora dá um retrato ficcional à faixa de população das pesquisas sobre amor e fidelidade que ela utiliza nos capítulos anteriores. Ela conclui que não é fácil renunciar à promessa de completude e exclusividade que se mantém através do ideal amoroso romântico.

A expectativa de fidelidade entre os pares parece comungar na tentativa de encobrir a verdade sobre a necessidade de aceitar a atenuação do prazer absoluto, assim como as infidelidades desvendam essa ilusão. O jogo amoroso pressupõe mediação, recalque e aceitação da impossibilidade do gozo pleno, ou tentativas de se esquivar e velar sua impossibilidade, ainda que nós e a cultura optemos por manter estampado em algum lugar de nossos futuros os letreiros que acenam com o amor verdadeiro. (p. 174)

Nas conclusões, Gisela Haddad refaz sua questão: seria o paradoxo do amor manter-se indefinidamente alimentado pela ilusão apontada por Freud de uma unidade imaginada plena ou da promessa de uma indenização amorosa alhures a que em geral se acredita de direito?

Embora a transitoriedade do amor seja mais aceita e a fidelidade não esteja mais do lado da convenção social, já que o proibido e o permitido convivem e estão mais nuançados, Haddad nos diz que o amor faz parte, mais do que nunca, das grandes ilusões humanas ocidentais. Seu reiterado fracasso não parece fazer com que se abdique de buscá-lo assim como de se esperar a fidelidade do amado e uma união mítica ancorada em acordos mútuos que possam fornecer uma certeza mínima de um compromisso de preservação deste desejo de união amorosa.

Acrescento à sua renovada questão a minha questão a partir da leitura deste estimulante e inquietante livro: como construir uma intimidade que possa preservar a alteridade de cada um no amor e uma união que saia de um pacto mortífero que transforma a fusão amorosa na destruição da alteridade e, portanto, na morte do desejo e do outro e do Outro para cada um? Como construir um íntimo entre dois que seja esteio para a criação singular de cada um e que, com isso, alimente a invenção e reinvenção constante do amor?

Os tempos tecnológicos contemporâneos oferecem facilmente os meios de realização do perverso polimorfo da sexualidade, na consumação instantânea, ao sabor das fantasias ou dos actings out "no Google, no Twitter, no face, no Tinder, no WhatsApp, no Instagram, no Snapchat, no Orkut, no Skype", conforme a epígrafe que escolhi para esta resenha.

Mas eles também podem ser novos veículos de transposição de todos os obstáculos que se renovam para a promessa em devir de que "Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz", para além da guerra e da morte, alimentando o devir do mar dos "Futuros amantes", lindamente poetado por Chico Buarque de Holanda, tão homenageado pelo livro de Gisela Haddad.

 

 

Endereço para correspondência:
RENATA UDLER CROMBERG
Rua Inhambu, 873/203
04520-013 – São Paulo – SP
tel.: 11 99279-0487
renatauc@uol.com.br

Recebido 09.11.2017
Aceito 12.05.2018

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