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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.76 São Paulo jun. 2009

 

ENTREVISTA

 

Entrevista com Sonia Azambuja* - Masculino/feminino: uma questão intrigante

 

Feminities/masculinities: revisitations

 

Femenilidades/masculinidades: relecturas

 

 

Como representantes1 do corpo editorial do Jornal de Psicanálise, tivemos um instigante encontro com Sonia, que nos recebeu afetivamente em sua casa. Foi um privilégio ouvi-la, e com ela trocar ideias por quase quatro horas. A partir de algumas perguntas-estímulo, enviadas antecipadamente, Sonia associou livremente, de forma pessoal e vibrante.

JP: Antes de mais nada, agradecemos muito a oportunidade desta entrevista, que iniciamos a partir da seguinte questão: em sua opinião, as teorizações psicanalíticas clássicas sobre o masculino e o feminino ainda contemplam as problemáticas de sexo e gênero da contemporaneidade?

Sonia: As perguntas que recebi estavam muito bem encadeadas, mas para que eu pudesse falar precisei deixá-las um pouco e proceder associativamente. Gostaria de responder essa primeira questão não pensando nas muitas teorizações feitas pela Psicanálise desde Freud. É mais estimulante conversar com vocês a partir de alguns filmes que vi, de alguns livros que tenho lido ultimamente e, eventualmente, lembrar até de algumas leituras psicanalíticas ou experiências clínicas.

Assisti há poucos dias um filme que teve muitas ressonâncias em mim: Foi apenas um sonho. Ele me remeteu aos anos 50 (o filme se passa em 1955). Então, eu própria era uma adolescente, fazendo o curso colegial, e algumas questões se impunham: quem eu era, o que faria da minha vida? Eu era uma mulher.

O discurso na minha casa seguia a linha de que as mulheres se casam, têm filhos e não usam seus estudos &– o que era um desperdício para uma família de classe média, na qual só o meu pai trabalhava, como era o costume, para proporcionar às filhas colégios caros e de bom padrão. Apesar de sujeita a essa ideologia, virei a mesa e fui estudar em um colégio estadual que, para minha sorte, era na época um ótimo colégio.

Podemos pensar já aqui numa questão fundamental da Psicanálise, preconizada por Freud, de que o corpo biológico é o destino. Contudo, gostaria de refinar esse conceito, como o faz Bollas, diferenciando destino dos fados. Para Bollas, segundo o magnífico estudo de Joyce McDougall, no livro As múltiplas faces de Eros, esse decreto familiar faz parte do que ele chama de fado. Somos sujeitos a fados que podem tanto ser os nossos pais, a nossa cultura, como o próprio corpo com o qual nascemos, com todo o seu florescer &– assim como com as doenças que, fatidicamente, estamos sujeitos no decorrer da vida. O destino é a maneira com que vamos lidar com os nossos fados. Mesmo a Psicanálise postulada por Freud já diferencia o corpo biológico do corpo psicanalítico, pois é no corpo pulsional da Psicanálise que vamos encontrar a fronteira onde se borram, se misturam o soma e o psíquico.

A partir daí, a Psicanálise focou a complexidade da questão de gênero e abriu a perspectiva para que as mulheres, as histéricas, pudessem ter voz e pudessem modificar os seus fados. E isso é muito interessante, como vemos na clínica: as transformações que ocorrem e como as imagos paterna e materna se modificam e se transformam. Há cruzamentos nos quais a imago materna pode estar mais no filho homem &– assim como a imago paterna pode estar mais numa filha mulher.

Acredito que há um caminhar na Psicanálise, um processo civilizatório, em que o narcisismo dos pais, tão comovedor e infantil, muda e nós nos tornamos nossos próprios pais.

Mas qual é o elemento transfigurador da Psicanálise? Acredito que é encontrar alguém que nos acolha e nos escute. Alguém que leve em consideração o que estamos dizendo. Alguém que leve a sério o sofrimento do paciente e com ele busque seu ponto de angústia. Na angústia, homens e mulheres sofrem igualmente.

Voltando ao filme que me inspirou para essa entrevista, Foi apenas um sonho, o que se vê é a solidão dos personagens: um homem e uma mulher, casados. Na verdade, eles não puderam expandir seus sonhos porque estavam profundamente sós, não puderam sonhar juntos. A cultura da época os separava inexoravelmente. Sabemos hoje que, logo após a Segunda Guerra, os homens, em seu regresso, foram convocados a reocupar o mercado de trabalho. As mulheres, que até então estavam se expandindo naquele mercado, foram remanejadas para uma volta ao lar. Surgiu, assim, toda uma publicidade, veiculada no cinema e nos meios de comunicação, de que a mulher em casa, cuidando tão somente dos filhos e das lides domésticas, seria muito feliz e tornaria sua família muito feliz. Foi uma época que registrou um grande número de suicídios de mulheres, as mulheres iam enlouquecendo.

Nesse filme, vemos a personagem feminina sem saída, tendo de interromper uma gravidez indesejada por ela e pelo marido, no maior abandono e precariedade. Na mesma trilha, lembro também do filme As horas, em que uma das personagens vai se psicotizando, pois só tem a companhia de um filho ainda muito pequeno, que só a olha com angústia, percebendo o sofrimento da mãe, que acaba por abandoná-lo. Na verdade, o título original do filme Foi apenas um sonho é Revolutionary road. Por que a revolução não foi possível? Porque o desejo da mulher de sair daquele padrão era tomado pelo marido, a princípio, com entusiasmo e, a seguir, com medo. Achei muitíssimo interessante a questão de gênero que aí se expõe. Na minha percepção, o homem personagem &– um homem sensível e que claramente ama a sua mulher &– não pode realizar os desejos que ela investe nele, pois em sua identidade masculina estão inscritos os fados pelos quais ele deve realizar os desejos de seu patrão, originalmente, de seu pai. Desejos estes implicados com o mundo dos negócios, das vendas, onde ilusoriamente é depositado o poder. Sabemos, nós analistas, como esse universo pode trazer sofrimento a homens e mulheres, indistintamente.

Sabemos, por outro lado, que o advento desses valores é historicamente ligado ao desenvolvimento da sociedade industrial. Na vida dos burgos, no início do capitalismo, as casas e as oficinas de trabalho estavam muito próximas. O interno do doméstico era ainda íntimo do externo do trabalho. As crianças não eram então criadas e cuidadas apenas por suas mães. Nesse filme, o que vemos é a total separação do mundo doméstico do mundo do trabalho e, particularmente, como essa divisão deleta qualquer sonho comunitário entre homens e mulheres.

Como é possível o homem e a mulher sonharem juntos? Há muitos anos essa questão me intriga. A mente humana é limitada. Criamos para nossas vidas poucos temas, que se repetem e que constituem o nosso percurso identitário. No meu próprio percurso, um tema que volta e meia se repete, dependendo dos meus fados, é a questão do corpo masculino e do corpo feminino e nas ressonâncias que eles têm em nossas almas. São dois universos, como se fossem dois sistemas estelares, mas que tentam desesperadamente se comunicar.

Como a chegada enigmática do outro é vivida por nós na tentativa de comunicação? O que ele traz de abalo para a nossa unidade narcísica, que é constitutivo do nosso eu mais profundo? Já me dediquei, no trabalho “Laio ou a fertilidade impossível”, a essa questão. E às vezes me canso dessas repetições. E temo que elas se tornem uma “compulsão à repetição”, que na conceituação freudiana pode estar mais ligada à pulsão de morte do que a serviço da vitalidade. Assim é que estou tentando colocar a questão de outra maneira, para não morrer de tédio de mim mesma.

Focando o corpo pulsional da Psicanálise, vamos em busca do corpo erótico, em que encontramos toda a fonte de vida, pois o corpo erótico contém inúmeras dimensões. É da natureza da pulsão não se acoplar num único objeto. O objeto da pulsão, diferentemente do instinto animal, é errante. Daí a natureza do desejo, que pode ser o nosso paraíso, mas que também pode ser nosso inferno. Por mais que o corpo biológico padeça, o corpo pulsional exige novas trilhas, novos caminhos como realização do corpo erótico que nos acompanha até o derradeiro instante. Há um descompasso entre o corpo biológico e o corpo erótico, pois as fantasias originais filtradas pelo corpo erótico nos acompanham sempre, dando a sexualidade humana um elemento trágico, traumático na sua errância, que os outros animais não trazem. Aqui, ainda, faço mais uma digressão associativa para tangenciar esse paradoxo. Porque o corpo erótico pode ser a nossa tirania, exigindo de nós o que o nosso real-biológico não pode mais dar, ao mesmo tempo em que pode ser o nosso guia e traçar novas trilhas de vitalidade na busca de nós mesmos. Há muitos anos, fiz um trabalho sobre a busca pelo adolescente de sua identidade. Uso num certo momento uma metáfora, lembrando um filme que assistira nos anos 70: Johnny vai à guerra.

Trata-se da história da formação de uma identidade, que só acontece quando Johnny está mutilado de braços e pernas num hospital: o corpo biológico, o real do corpo, está acabado. Só aí, nos seus sonhos e pensamentos, pode ele refazer toda sua vida psíquica: a relação com seu pai, um superego cruel e primitivo, que havia empurrado Johnny para a guerra. Também aí Johnny encontra a ternura de uma mulher, que cuida dele e o conduz à sexualidade, no seu sentido maior, que é conduzi-lo a si mesmo. O titulo em inglês é Johnny got his gun, e a direção do escritor Dalton Trumbo, uma das grandes vítimas do macarthismo. Há no revólver uma simbologia da própria identidade de Johnny, que integra certa violência necessária para fazer a cesura do domínio do pai ou de todas as tiranias que nos conduzem às guerras e à autodestruição. Vejo aí a ideia de que mesmo quando o corpo falha o desejo o leva adiante.

Ainda nessa linha associativa, li recentemente um livro de Philip Roth, O fantasma sai de cena, no qual, ao contrário do que acontece com Johnny, o desejo surge como um tirano, que não deixa o personagem ter paz para envelhecer tranquilo, mesmo tendo sido mutilado em uma cirurgia. Como viabilizar os nossos sonhos para que eles se tornem projetos? A mim me parece que isso só é possível quando o outro é considerado. A fertilidade só existe se podemos receber o estrangeiro e ele nos revelar o imigrante que somos de nós mesmos. A sexualidade nem sempre pode operar dessa maneira, porque ela própria pode trazer no seu desvario, na sua errância, a pulsão de morte. É o caso da paixão, como pudemos ver no livro O fantasma sai de cena, na qual o desejo não abandona um corpo envelhecido e o tiraniza. Voltando à pergunta que me foi feita: se as teorias psicanalíticas sobre o masculino e o feminino contemplam as problemáticas de sexo e gênero da contemporaneidade? Acredito que não é o caso, porque contemplar traz a ideia de aplacar, explicar, apaziguar &– e o ser humano não se apazigua nunca. Podemos tangenciar, mas novas configurações se colocam e novas gestalts se criam, deixando na periferia combates que antes eram centrais.

Por exemplo, estava lendo o livro Infiel, de Ayaan Hirsi Ali. É um livro documental importante sobre a questão de como a mulher é excluída, subjugada e mesmo mutilada nos rigores do fundamentalismo islâmico. A autora se mostra, no seu anseio de sobrevivência psíquica, uma combatente. É preciso, para ser fiel a si mesmo, ser infiel a esse continente opressivo, que obscurece toda possibilidade de vida para as mulheres. Ela mostra como por vezes é superficial a ideia de que os modos de vida de cada cultura devem ser preservados. Por muito tempo, os estudos da antropologia alertaram “vamos preservar os modos de vida das culturas”, mesmo levando em conta que alguns deles mutilam, ferem os direitos humanos mais elementares.

Existem situações e culturas em que podem estar sendo feridos os direitos universais das pessoas. Como respeitar isso? Como dizer “isso é problema deles”? A autora trata muito bem essa situação quando ela está na Holanda, onde exerce atividade política. Havia a questão das mulheres dos imigrantes, que às vezes eram muito maltratadas, espancadas. Ocasionalmente, os vizinhos chamavam a polícia, que não podia interferir, porque se tratava de costumes das famílias. Ayaan Hirsi mostra que isso é um equívoco, um erro, não está tudo bem só porque faz parte da cultura.

A leitura dos massacres que são feitos das meninas pode tamponar, no seu horror, dimensões que nós, psicanalistas, podemos vislumbrar nas frestas do discurso da autora. Apesar de ser um livro documental, em que se constata tudo isso, é interessante também o olhar psicanalítico sobre o que ocorre com essa personagem. Aí vemos como a mulher-vítima dessa cultura é a que melhor se instrumenta para executar a opressão sobre outra mulher. Pensamos no ódio entre as mulheres e no ódio de si mesma de cada mulher.

JP: Sonia, você considera que haja uma relação estreita entre masoquismo e feminilidade e entre narcisismo e feminino?

Sonia: Quando Freud concebeu o masoquismo, ele já se aproximava do conceito de pulsão de morte. A pulsão de morte é um divisor de águas, quando Freud considera que a grande divisão da mente humana não é entre a pulsão de conservação e a pulsão sexual. As duas até se ligam nos investimentos libidinais. É a pulsão de morte, Tânatos, que introduz um outro desejo humano, que é o de se dissolver. O caminhar para a morte é também o nosso desejo. O desejo do nada volta ao nirvana em busca de repouso. Max Schur, no seu Freud: vida e agonia, deixou claro para mim como o câncer, e as várias vezes que ele recrudesceu em Freud, foi fazendo com que o conceito de pulsão de morte tomasse em Freud uma virulência que não existia nos seus albores, em 1920. Também a barbárie do nazismo e das guerras que devastaram a Europa culmina no Mal-estar na civilização, no qual o conceito de pulsão de morte já expressa a potência destrutiva do ser humano.

É importante observar como Freud liga sempre o interno da subjetividade e o externo do mundo em nós. Nesse sentido, podemos cruzar o percurso feito por Freud com Walter Benjamin. Para Benjamin, se existe uma identidade, ela passa por caminhos internalizados da alteridade, aquela que assimilamos e que também nos assimila. Assim, há uma mimese entre masculino-feminino. Em vez da fratura entre homens e mulheres, como nos fala Olgária Matos, no seu precioso livro Discretas esperanças, Eros pode então servir à intersubjetividade “mestiça”, em que os papéis sociais fixos e intolerantes já não encontram razão de ser. E, no entanto, inúmeras vezes, vemos com tristeza a nossa intolerância ao outro.

Ainda, voltando ao livro Infiel, podemos ver o ódio às mulheres da cultura ser vivenciado pelo ódio entre as mulheres. Podemos pensar nas Erínias,2 na mãe má, cúmplice da morte. Pois também a mulher pode oprimir a mulher que ela trás em si usando o homem.

Uma vez, falei para Virgínia Bicudo, numa supervisão, que ficava tão desapontada quando via uma cliente minha se submetendo a maltratos e violência. Isso me remetia àquele dito de Nelson Rodrigues, de que mulher gosta de apanhar. Virgínia, sempre determinada a pegar o melhor de nós mesmas, disse que também podia tomar esse dito como a tolerância da mulher ao sofrimento. E que essa tolerância pode estar a serviço da criatividade. Mas a nossa autora do Infiel também nos leva a ver como no seu desenvolvimento foi mais fácil emocionalmente para ela se discriminar de sua mãe, bem mais primitiva do que seu pai, em que ela depositava muitas esperanças de acolhimento amoroso. Somente quando seu pai a atraiçoa, entregando-a para um casamento arranjado nos padrões dessa cultura opressiva, ela consegue fugir e se discriminar dele. Ela tem que fugir literalmente. Está na Alemanha para ir ao Canadá e deve se casar com o homem escolhido pelo pai, mas consegue passar para a Holanda, sob a alegação de ser uma exilada política. Ela mente, porque se dissesse a verdade seria obrigada a casar pela cultura dela, eles não a aceitariam como exilada, para não ter de dar asilo a todos que, na cultura islâmica, se encontram nessa situação. Então, com muita sagacidade, ela diz ser uma exilada política e a deixam entrar na Holanda. Lá passa a estudar, viver. É muito impressionante porque quem faz a abscisão do clitóris é a avó. O pai é contra e, nesse sentido, ele era mais livre &– mas ainda estava preso. Ela e a irmã são submetidas a essa operação. Ela consegue sobreviver; a irmã enlouquece.

JP: O que nos chamou a atenção no livro é que Ayaan também acreditava que as mulheres que não se submetiam à retirada do clitóris eram impuras. Não percebia naquele momento que tal prática era uma violência.

Sonia: A cultura é tão forte que as meninas que não se submetem são consideradas impuras. Aquilo é um cinto de castidade, feito com a própria carne. Elas são costuradas literalmente. Muitas delas mal conseguem urinar. É uma coisa horrorosa. Quando casam, elas são pura e simplesmente violentadas. O feminino tem de ser estirpado como um objeto mal, numa projeção paranoica.

Nas frestas de uma situação terrível como essa, você vê o Édipo dela; vê a esperança dela no pai. É o pai que vai salvá-la dessa coisa primitiva. Mas o pai é ausente. Na verdade, o pai não dá o que ela quer: esse olhar. Isso faz lembrar outro livro muito interessante, Os filhos de Jocasta, de Christiane Olivier, em que a autora mostra isso muito bem: a grande questão da menina, que está primitivamente ligada com a mãe e vai para o Édipo, com o pai, mas vai em busca do olhar do pai. O que acontece, em geral, é que o olhar do pai para a menina não é tão generoso quanto o olhar da mãe para o menino, na opinião dessa autora. Nisso residiria a grande mutilação da mulher, a castração. Não se trata só de mutilação física, mas de mutilação mental também. A narcisização que a mãe tem com o filho homem, ela não tem, segundo essa autora, com a filha mulher, tem menos. Então, a menina vai em busca do olhar do pai. Isso poderia ser muito bom, ótimo. Mas Olivier afirma que culturalmente isso não ocorre. É bom vermos que não é só a cultura islâmica. É interessante a gente pensar no islamismo como um padrão, como um modelo de algo muito primitivo que existe em todos nós. 

Freud, em um trabalho de 1933 sobre o feminino, enfoca de forma brilhante a relação da menina com sua mãe nos primeiros anos de vida e as mazelas dessa relação. Diz ele que a menina se apaixona pelo pai, mas casa-se com a mãe. E assim acompanhamos na clínica as mulheres meninas brigando com suas mães por muitos anos e depois brigando com seus maridos. Ambos os objetos fontes de frustração. Daí, talvez, possamos pensar na especificidade que pode tomar o narcisismo feminino. Vemos, por vezes, a paranoia se instalando nessa relação com a mãe, não permitindo o recalcamento originário, no qual o mundo pulsional pode ser contido, gestando o aparelho mental. Percebemos aí tão somente a censura.

A mãe má, no imaginário humano, é a mãe invasiva. É a mãe que não pode discretamente ser. Ela não se contém e antecipa qualquer desejo pessoal do filho ou filha. E aí, acredito, o pai pode, com sua palavra ou sua presença, conter essa convivência enlouquecida. O pai de Ayaan Hirsi Ali não pôde ser essa presença, esse olhar.

JP: Essa questão da presença dos pais nos parece bastante relevante. Aparece com frequência na clínica. O pai impiedoso ante a irrupção da feminilidade da filha, que ou desqualifica as tentativas da menina de se tornar mulher, proibindo o uso de batom, de certas roupas de interesses mais juvenis, ou a infantiliza quando a vê arrumada de um jeito mais crescido, dizendo: “Olha como a filhinha do papai está bonitinha”. Pensamos que também por parte da mãe pode existir uma dificuldade em relação à transformação da filha em mulher. O que nos faz pensar no medo da sexualidade. Nós, humanos, tememos a violência da sexualidade que podemos viver.

Sonia: É a mãe que teme a própria sexualidade e rejeita muito o seu feminino. Nem diria que caminhe por terrenos de homossexualismo, mas sim identitários. Quando você, Silvia, fez aquele trabalho sobre a mãe má, a ideia que me ocorreu foi a de que a mãe que não consegue libidinizar a filha é a mãe que, ela própria, não consegue se libidinizar. Ela se rejeita. Elas não entraram na situação edípica, não têm um homem efetivo em sua subjetividade. Aí voltamos para a história do filme, a questão de gênero. O que se via no filme é que havia uma divisão inexorável. Quando aparece o homem indo para o trabalho, a imagem do filme é impressionante. Ele, numa estação de trem, e homens e mais homens: só se vê chapéus. E as mulheres em casa, naqueles lugares, naqueles subúrbios, no estilo dos Estados Unidos, com árvores, passarinhos, gramados. Se você ficar ali, se suicida. É de uma solidão brutal. Tudo bonito e tudo solitário. Parece que em algumas culturas que separam muito o casal &– “o homem vai ser isso, a mulher, aquilo” &– não há comunicação possível: criam-se mulheres enlouquecidas. E também homens enlouquecidos. O rapaz do filme teria ficado muito mais feliz se tivesse saído do mundo dos negócios. E podemos até pensar que o jeito por ela imaginado para poder sair daquela vida pasteurizada seria ir para Paris. Em 1940-50, para uma determinada classe de americanos, ir para Paris era uma coisa muito importante. Muitos artistas e escritores fizeram isso.

JP: É interessante que no projeto sonhado é ela que vai trabalhar e é ele que vai ficar em casa. Eles vão trocar os papéis.

Sonia: Sim, muito interessante. Se voltarmos à ideia de Walter Benjamin, de que a identidade passa por caminhos internalizados da alteridade. É na mimese do masculino-feminino que homens e mulheres podem se desenvolver. E assim não há papéis fixos.

JP: Sonia, como você se coloca em relação à questão de que a diferença de gênero traria na clínica psicanalítica um viés adicional nas relações do analista homem e da analista mulher com seus pacientes, a partir de sua fratria e de seus objetos internos?

Sonia: Por que canais nós, analistas, nos conectamos com nossos pacientes? O fato de sermos homens ou mulheres sensibiliza essa relação de maneira diversa? Eu não sei. Tenho dúvidas. Por muitos anos, tenho vivido na clínica uma liberdade de ser não vivida em nenhum outro lugar. Ali, eu vivi a transfiguração dos meus fados, de ser mulher num destino que eu traçara com muita energia, tornando-me capaz de escutar meus pacientes por outros canais do inconsciente, dos pensamentos oníricos, em que ser homem ou mulher não tem relevância. Ali, a sintaxe que nos serve de bússola obedece à outra lógica. Talvez essa seja uma forma muito fértil de trazer à tona minha reserva mais profunda que, segundo Freud, é a sexualidade infantil, cujo pano de fundo é a bissexualidade, na qual posso me mover por diferentes lugares que meus pacientes me colocam na transferência.

JP: Voltando à sua última reflexão sobre a sexualidade do analista na clínica, acrescentaríamos uma preocupação que temos tido que é a sexualidade do paciente. Não se trata só do analista poder transitar com maturidade e generosidade nas imagos masculinas e femininas constitutivas. Ficamos pensando na ‘lua’, sobre a qual você falou, no seu trabalho de 1976, quando faz uma analogia entre o corpo da mulher com suas inúmeras fases. A trajetória das mulheres é permeada pelo sangue: a menstruação é um desafio, considerando as limitações que as meninas enfrentam quando menstruam e o medo que isso pode desencadear. Temos um exemplo clínico de uma menina psicótica, que começou a menstruar e, aflita, punha a mãozinha na vagina e a mostrava para a analista. Esta, por sua vez, se perguntava como nomear o que se passava e assim conter o desespero que, ao sangrar, a menina expressava. Com toda a convicção que lhe foi possível, afirmou e repetiu que aquele sangramento não a faria morrer. Essa problemática da morte nas mulheres permeia a gravidez e a experiência da menopausa, que vem muitas vezes acompanhada do temor da infertilidade psíquica e da falência sexual. Talvez seja difícil para muitos analistas, transitar entre os gêneros. Talvez o paciente, conforme busque um analista homem ou mulher, não entregue seu inconsciente ou não se aproxime da mesma maneira. Talvez quando exista algo mais sério, relativo à estrutura, pode acontecer de uma pessoa do mesmo sexo dar conta melhor. Não é uma questão simples. Temos a impressão de que há algumas coisas muito específicas.

Sonia: É uma grata lembrança. Tal como comecei esta entrevista, dizendo que há uma diferença tão profunda entre homem e mulher que é como se tratasse de dois corpos estelares, tentando se comunicar. No entanto, nós, analistas, temos que tomar cuidado para não fazer da questão uma questão ideológica. Aqui, faço uma autorreferência ao meu fado e ao meu destino. Eu tive uma analista mulher &– a Lygia, que foi muito legal, me ensinou o que é o inconsciente &–, e tive o Ferrari. Acho que muitas vezes o Ferrari me dizia com todas as letras que eu seria capaz. É muito interessante que ele, sendo homem, legitimou, na condição de analista, minhas percepções e os meus desejos como ser humano que quer se desenvolver, mas tem conflitos com aquilo que o crescimento demanda. Foram dois analistas com uma fina escuta analítica, independentemente de gênero. Certa vez em que eu me encontrava muito ambivalente entre ficar com minha filha pequena e ir para as aulas no Instituto de Psicanálise, Ferrari propôs: “Você quer que eu mande a lancheira e a perua para levá-la para a escola?”. Realmente, só eu podia me assenhorear do desejo de me tornar analista &– mas senti, naquela eloquência, a de um bom pai, me incentivando para um destino que eu mesmo traçara.

JP: Talvez em relação à questão de gênero do analista, a melhor coisa seja o ‘não sei’, que você coloca: a dúvida. Porque é perigoso quando a Psicanálise é muito conceitual e assertiva ao dizer que transitamos tranquilamente pelos gêneros e que o gênero não tem importância.

Sonia: Sim, acho melhor preservarmos o terreno do paradoxo, que é mais fértil. O mesmo acontece com o homossexualismo. Uma vez perguntei para a Lygia, que depois foi minha supervisora: “Você não acha que hoje em dia existem muito mais homossexuais do que antigamente?”. Respondeu ela: “É a mesma coisa, mas antes estavam enrustidos”. Hoje há uma liberdade maior e a sexualidade pode ser expressa mais genuinamente. Eu tive muitos pacientes homossexuais com os quais aprendi muito. Um dia, conversei com a Virgínia, que também foi minha supervisora. Perguntei-lhe também: “Você não acha que hoje o mundo dos homossexuais é maior?”. Ela disse: “Acho que sim. Acho até que isso tem a ver com a preservação da espécie. Como a terra está superpovoada, pode chegar um momento em que a espécie humana encontrará dificuldade em sobreviver. Então, o que está acontecendo é que o homossexualismo é um anticoncepcional perfeito. A espécie está se defendendo e está havendo mais homossexualismo”. A Virgínia tinha um foco que transcendia a coisa menor, o senso comum. A Virgínia e a Lygia foram um luxo na minha vida.

JP: Sonia, um dos lutos da adolescência é transformar a bissexualidade psíquica em uma identidade definitiva de gênero. Como você vê a questão da sexualidade genital e a homossexualidade?

Sonia: Definitiva é forte, mas vamos lá. O adolescente, de algum modo, renuncia à bissexualidade. Como vejo isso? Muitas vezes, fazendo análise de adolescentes, aconteceu, por exemplo, de uma menina me dizer que estava grávida. Ela estava muito deprimida e até perguntou se eu podia lhe dar algum dinheiro para a ‘vaquinha’ que os amigos estavam fazendo para que ela pudesse fazer um aborto. Eu conversei com ela, para instrumentá-la a não enfrentar aquela situação sozinha. Disse-lhe que devia conversar com seus pais. O que importa assinalar aqui é que me pareceu que, ao ficar grávida, ela viu que era mulher. Ela não tinha muita noção disso. O adolescente está ligado ao prazer, mas não tem muita noção de que pode ficar grávida ou engravidar alguém, não tem noção das possibilidades de doenças venéreas ou mesmo da aids. É muita coisa para ele processar. Muitas vezes, ele está pensando só no prazer e na sexualidade, que nesse período é bastante forte e importante. Nesse sentido, talvez as meninas fiquem mais deprimidas do que os meninos, com o abandono da bissexualidade, uma vez que sendo ela a que engravida, é ela que tem de dar conta de uma limitação: como vai ter prazer e, ao mesmo tempo, não ter uma gravidez precoce?

JP: No filme Juno, a adolescente diz “Estou lidando com questões que são muito avançadas para minha idade”.

Sonia: Nesse filme, os pais são maravilhosos e levam a coisa adiante. Ela resolveu ter o filho, mas é muito complicado ter um filho na adolescência. Nas classes pobres, sabemos que às vezes engravidar se torna um projeto. Como há poucas esperanças de vir a fazer uma universidade, de seguir uma carreira, ficar grávida e ter um filho torna-se, então, um projeto de vida. Em classes sociais em que isso não ocorre e a menina pode estudar como o menino, é uma encrenca, é uma sinuca de bico. Na minha adolescência, era muito claro que as meninas não tinham relações sexuais para não engravidar. Não havia métodos contraceptivos seguros e por isso havia um cuidado muito grande. Já com minhas filhas tive grandes conversas, porque eu não tinha a menor vontade de ser avó nessas condições.

JP: A complexidade que as mulheres enfrentam é maior. Por isso amadurecem mais cedo.

Sonia: Como se lida com essa situação? Hoje é mais fácil, temos anticoncepcionais mais potentes, mas, para isso tudo, precisa de uma mãe, de um pai. Em Juno, a madrasta e o pai é que levam a coisa adiante. Ela não tem condições, ela é criança. Isso cria uma situação de depressão, de limite.

JP: Sonia, no seu modo de ver, por que a sexualidade é traumática?

Sonia: A sexualidade não é uma coisa de ‘papai-mamãe’, com tudo resolvido, ‘todos caminhamos para a genitalidade’. Ela é disruptiva. Na questão da paixão, que abordei ao falar do Philip Roth, a sexualidade nem sempre se acopla só ao amor. Muitas vezes ela está acoplada à pulsão de morte. Há situações mortíferas. É algo extremamente disruptivo e traumático. O desejo, que vejo existir nos analistas e nas pessoas, a ideia de que tudo caminha para uma coisa finalista, todos no fim se encontrando, homens e mulheres, tem a ver com o ficar tudo bem, tudo em paz. Também é meu idílio. Pela ideia que tenho da sexualidade, ela não traz só isso. Traz essa possibilidade de comunicação, de amor, vitalidade, mas muitas vezes traz muita angústia, tumulto. Como bem nota Laplanche, a sexualidade adulta já é apreendida pelo bebê quando cuidado como um “estranho enigmático”, de ordem traumática, muitas vezes.

JP: Quanto à homossexualidade há algo que chama a atenção. Quem atende jovens nota o crescimento das experiências homossexuais entre as meninas. Entre a população masculina também, mas principalmente na feminina, talvez porque estivesse mais encoberta. Temos um exemplo recente. Um paciente jovem transou com uma menina também jovem e ouviu dela: “Você foi a primeira pessoa com quem eu transei depois daquela experiência tão boa com a minha amiga!”. Ele ficou chocado. Ela falara com muita naturalidade. Ele nem sabia que ela tinha tido outras parceiras mulheres. Até no laboratório de adolescentes as pessoas têm trazido o fato de ter se tornado muito comum as meninas ‘ficarem’ entre elas, porque isso agrada aos meninos. Elas até dizem isso: “A gente se beija porque os meninos gostam”. Ou até ‘ficam’ e transam.

Sonia: Sim. Interessante. Não sei que hipóteses conjecturar sobre essa dinâmica que pode ser observada em grupos adolescentes. Talvez sejam comportamentos ligados a uma sexualidade perverso-polimorfa, uma espécie de troca-troca de jogos infantis. Certa vez, num trabalho meu, “Avatares da sexualidade”, assinalei que o homossexualismo na mulher é mais estruturado, sendo diferente do homossexualismo masculino. Exatamente, no homossexualismo masculino encontramos uma dinâmica promíscua, com inúmeras trocas de parceiros. No feminino, há uma ligação mais casta na parceria, quase um voto de fidelidade absoluta, tal como certas ligações muito primitivas de mãe e filha. Nesses casos, não pode haver, com disse anteriormente, o recalcamento originário em que cada uma se discrimina da outra, só pode haver censura e recriminações recíprocas, eivadas de paranoia. Todas essas texturas que encontramos nos avatares da sexualidade se interpenetram e é difícil generalizar.

JP: Em um texto de 1986, você dizia que a mulher vivia uma situação trágica devido a um conflito insolúvel: uma vez que a sociedade a pressiona pelo crescimento profissional e, ao mesmo tempo, lhe diz que seja uma mãe totalmente disponível. É uma situação sem saída?

Sonia: É a tragédia. Não sei se nesse trabalho ou em outro, assinalo que a tragédia, para mim, não tem um sentido ruim. Isso quando se fica na mitologia, que é, de alguma maneira, um sonho coletivo. A tragédia é quando os deuses não são mais responsáveis pelo nosso destino. Você é que cria o seu destino. Na Grécia, nesse momento é que surge a tragédia. É quando os deuses não estão mais lá resolvendo as questões. Na tragédia, acaba o idílio e surge o conflito. Os homens deixam de se alienar nos deuses e passam a assumir seu próprio destino. Quando a mulher, então, deixa de ser alienada &– não tem mais o pai, os filhos (muitas mulheres usam os filhos como biombo para não fazer as coisas) &–, pois não é o destino que elas querem, elas querem participar. Elas também estão no processo cultural. Aquilo que a cultura está pedindo, elas também querem. No movimento do crescimento, é preciso sustentar situações de conflito.

Voltamos à história do Ferrari que, ao fazer suas observações para mim, foi como se me dissesse: “Deixa de ser criança, você é uma mulher adulta, tem duas filhas. Acha que é fácil? Claro que não. O que está querendo que eu seja? Aquele que aplaca o conflito que você está vivendo? O conflito é seu. A responsabilidade é sua. O problema é seu”. Isso é fundamental. A mulher pode ter mesmo o desejo de trabalhar, de fazer alguma coisa, mas muitas vezes, é porque todo mundo está indo. Temos às vezes pacientes que preferem ficar em casa, preferem criar filhos, preferem fazer um trabalho em que todas essas coisas fiquem mais harmoniosas. Muitas vezes, não vejo como uma mulher executiva, trabalhando numa multinacional, possa estar muito feliz. É extremamente complicado. É muito difícil, dependendo do trabalho, conciliar o desejo de crescer no espaço público e no espaço privado. Sabemos que não somos uma unidade. Por vezes, somos estrangeiros de nós mesmos.

JP: Em um de seus trabalhos, “Feminismo e feminilidade”, você evoca um interessante relato do candomblé na Bahia, feito por uma antropóloga americana, no livro Cidade das mulheres. Poderia falar algo a respeito?

Sonia: É muito curioso esse livro. É da Ruth Landes. Trata-se de uma investigação de como os negros escravizados chegaram ao Brasil e da decorrente quebra causada em sua identidade. E quem lidou melhor com essa quebra não foi o negro, foi a negra. É o que essa antropóloga mostra. A mulher se torna sacerdotisa do candomblé e tem um poder enorme. Então, os homens e toda a comunidade vão ao centro, em que elas são mães de santo, para se aconselhar. Ela conta toda uma vida que o candomblé oferecia naquela comunidade negra. Isso foi no tempo de Getúlio Vargas, na década de 30. Depois, com a decadência do candomblé, os homossexuais também passam a ser pais de santo. Mas, inicialmente, eram só as mulheres. Fui, depois, em um congresso sobre sexualidade no qual estava presente o antropólogo inglês que fez um trabalho sobre como o homossexualismo foi entrando no candomblé. Não tinha o vigor, o brilho das mães de santo. O que eu queria mostrar naquele trabalho &– que fiz no final da minha análise &– tem muito a ver com a minha própria identidade. Foi em 1976. Discuti muito isso com o Ferrari. Depois, mandei para ele, que já estava na Itália. Ele escreveu dizendo que gostara muito do trabalho e da linguagem que eu usava. A minha ideia era: por que as mulheres, em tempos de crise, quando o grupo pode, de alguma maneira, não sobreviver, e está passando por uma situação mortífera, vão sempre para a vanguarda? Falo dessa situação do candomblé, na qual as mulheres são vanguardistas, e sobre a guerra na Argélia. As mulheres árabes, numa cultura com papéis tão definidos, naquele momento, lutam. Lutam como homens. Pegam nas metralhadoras. Ajudam a expulsar os franceses. Depois, quando termina a luta, elas voltam. Voltam para os véus e para a retaguarda. Lembro de ter comentado isso com a Lygia, que era minha supervisora na época. Perguntei: em sua opinião, o que pode ter ocorrido? Estava curiosa com esse eterno avanço e recuo das mulheres. Por que vão para a vanguarda e depois voltam para a retaguarda? Ela disse: “É uma questão de sagacidade da mulher, porque os homens são tão centralizadores que têm dificuldade com essa verdade”. Na leitura que vocês podem fazer desse trabalho é possível ver que o meu tom é de perplexidade, de interrogação. Talvez eu também queira nele manter a sagacidade a que Lygia se referia. Piera Aulagnier diz que aquilo que é considerado o enigma feminino é, na verdade, o silêncio das mulheres.

JP: Fala-se muito hoje da crise na Psicanálise, sugerindo-se mesmo a possibilidade de sua morte. Do seu ponto de vista, seria possível pensarmos que, talvez, na atualidade, a Psicanálise esteja, como nos primeiros tempos, confinada a um grupo de pessoas que se sentem inadaptadas diante de uma cultura na qual a vida mental perde a vez? Sendo assim, a Psicanálise seria procurada como uma espécie de reduto e/ou de resistência?

Sonia: Sim. A psicanálise é uma resistência à banalização da vida. É a ideia que sempre tive, a de que a Psicanálise é ‘marginal’. Sempre foi e sempre será. Trabalha com o marginal, com o que fica à margem. Ainda, se nós tomarmos Freud, como nossa maior inspiração, sabemos que o mundo inconsciente, com todos os elementos que nos chegam dele, é a sexualidade marcada pela polimorfia que nos conduz a ultrapassar a questão de gênero, de que falamos anteriormente. É na transferência que vamos viver uma novela psíquica com nossos pacientes para chegar à cura. Contudo, também sabemos que, quando focamos as questões através da consciência &– e a consciência não é pouca coisa &–, somos levados a considerar o horizonte maior da vida das pessoas com quem nos envolvemos numa análise. A Psicanálise pode se tornar uma adição como outra qualquer, nesse envolvimento. É preciso que possamos ser tomados pela vivência com nosso paciente ao experimentar com ele uma historia única, mas é preciso também nos exilarmos e, na solidão de nós mesmos, tomar contato do que de real ocorre. Pois o princípio do prazer no trabalho nos inspira, mas também nos desorienta, por vezes. Não é por acaso que, inicialmente, Freud o denomina princípio do prazer-desprazer.

Nessa situação, a realidade clama por um lugar. Eticamente, estamos imbricados &– e o dilema, essência da ética, se impõe à reflexão. Pensamos, nessa dimensão, o quanto a sexualidade pode ser vital e inspiradora, instinto epistemofílico, fonte de todo conhecimento. Mas que também pode ser alienante e mortífera. Na angústia da servidão humana, como tentamos ver na análise de filmes e livros, o sofrimento se expressa no masculino e no feminino. A ficção é guia de muitas possibilidades de reflexão para mim, enquanto analista, porque nela trabalho muito mais perto do conflito, coração da análise. E o dilema próprio do Eu avança com mais clareza nesse emaranhado, não deixando que enredos fáceis da novela transferencial me ofusquem ilusoriamente. No jogo do amor e paixão, que a sexualidade nos leva em nosso percurso identitário, muitas vezes nos vemos capturados pela paixão, que é o motor da vida. É uma paixão, habitada, apropriada, como me disse Homero Vetorazzo, numa conversa: “Numa paixão apropriada, uma pessoa provavelmente se revela no mais íntimo e não no que quer mostrar”. A paixão, aí, cumpre um papel vital, penso eu.

Já na paixão mortífera, muito estudada por Piera Aulagnier, a paixão está no registro da alienação do Eu, portanto, da compulsão do jogo e da adição. Nesse sentido, Piera, numa conferência em São Paulo, nos falou da sorte que é nos libertarmos da paixão narcísica e alienante. Já o amor, para essa autora, é a possibilidade de troca, de parceria. Quando a parceria ocorre, o feminino ganha uma força aglutinadora, como quis expressar no meu trabalho, de 1977, para a revista IDE. Ao mesmo tempo, o fálus masculino se legitima no amor das mulheres, como dizia Freud em Totem e tabu, tornando-se protetor.

...E a civilização pode nascer entre homens e mulheres. É a minha utopia.

JP: Sonia, ficamos encantadas com o encadeamento das suas ideias. Você nos trouxe uma Psicanálise viva, que respira. Quando ouvimos que iria recorrer a filmes e livros, pensamos com alegria que assim nossas perguntas não ficariam restritas. E foi o que de fato aconteceu: você nos falou de um eclético elenco de autores, alguns ligados à Psicanálise, outros não; femininos e masculinos; das suas conversas com a Virgínia e com a Lygia; do analista homem e da analista mulher. Foi um jeito aberto e generoso de abordar as questões. Por isso, nos despedimos fazendo uso das expressões que aprendemos hoje com você, desejando que, na condição de “imigrantes de nós mesmos”, possamos ir aprendendo e ensinando a transformar “fados” em “destinos”.

 

 

* Sonia Curvo de Azambuja nasceu num vilarejo rodeado de fazendas de gado, na Serra de Maracaju, no atual Estado de Mato Grosso do Sul. Descendente de uma linhagem de fazendeiros, seu pai foi exceção: formou-se em Odontologia no Rio de Janeiro. Em 1942, ainda pequena, mudou-se com a família para São Paulo, onde a maior parte de seus parentes maternos se achava estabelecida. (O cosmopolitismo da capital paulista &– cruzamento de imigrantes, amálgama de raças &– sempre a fascinou.). Em 1957, após ingressar na Filosofia da USP, passou concomitantemente a trabalhar no Setor de Psicologia da Secretaria de Educação e Cultura de São Paulo. O convívio, nos parques infantis, com crianças que apresentavam dificuldades psíquicas despertou seu interesse pela Psicanálise. Não havia na época o curso de Psicologia. A USP, no entanto, oferecia uma pós-graduação inteiramente focada na Psicanálise. Os professores eram os mesmos fundadores da SBPSP: Virgínia Bicudo, Durval Marcondes, Lygia Amaral, Judith Andreucci. Frisa Sonia: “A maneira como esses professores analistas estruturaram aquele curso foi de uma generosidade rara. Ao lado das aulas teóricas e seminários clínicos, cada um deles se encarregava de fazer a psicoterapia de um grupo de alunos. Assim nos iniciávamos também na analise pessoal, sem custo. Tudo era vivido de uma maneira encarnada. Lembro-me do consultório da Lygia Amaral, na Barão de Itapetininga. Vivi ali minha primeira análise, e tudo era tão surpreendente para mim, nada era abstrato, não dava para intelectualizar. Descobri, então, o que é o inconsciente. Às vezes penso como nossos formadores compraram a causa psicanalítica. Sua amizade com as jovens gerações, sua aposta no futuro. Poderemos manter o mesmo entusiasmo?”. Tendo concluído a Universidade, trabalhou como professora de Psicologia no Centro Regional de Pesquisa da USP até 1964, quando, desejosa de trabalhar com a clínica de Psicoterapia, transferiu-se para a área de Higiene Mental do Estado. Em 1970, entra para o Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Faz sua análise de formação com o professor Armando Ferrari, eloquente e entusiasmado pensador da Psicanálise. Em 1976, termina o Instituto e, em 1977, é admitida na Sociedade de Psicanálise, como membro associado. Na década de 80, torna-se membro efetivo, passando a ministrar cursos, assim como fazer análises de formação, na condição de analista didata. Como Diretora do Instituto, sua atuação na Comissão de Ensino buscou a flexibilização do currículo e a criação de uma área eletiva para que novas temáticas e novos autores pudessem vir a contribuir na reflexão das interrogações enfrentadas pela Psicanálise ante o pensamento contemporâneo. Nos últimos nove anos tem participado da Comissão de Ética da SBPSP. Em todo seu percurso, manteve Sonia Azambuja uma dedicada militância visando o desenvolvimento da Psicanálise, sobretudo na dimensão de sua liberdade, no diálogo com seus pares e no contato com a vida cultural de outras áreas do conhecimento. Uma das fundadoras da revista IDE, é autora de inúmeros trabalhos, na forma de livros e artigos em revistas especializadas. Um apanhado de seu pensamento e de seus caminhos na Psicanálise encontra-se em Presenças e ausências, parceiras na simbolização (Hepsyche), obra que reúne trabalhos escritos por ela entre 1976 e 2006.
1 Cândida Sé Holovko, Miriam Malzyner e Silvia Lobo.
2 Erinyes, em grego; Furiæ, em latim, as Erínias eram entidades punitivas, comumente representadas como mulheres aladas, cercadas de serpentes e portando açoites e tochas. Seu número foi fixado em três: Alectó, Megera e Tisifone. (N. do E.)

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