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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo jan./jun. 2022

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

Entre formigas e cupins

 

Between ants and termites

 

Entre hormigas y termitas

 

Entre fourmis et termites

 

 

Cristiane Mota Takata

Psicóloga filiada ao Instituto Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), e integrante da gestão 2021-2023 da Associação dos Membros Filiados (AMF). São Paulo / cris.takata@gmail.com

 

 


RESUMO

Utilizando aportes conceituais da sociologia de associações, conforme apresentada por Bruno Latour, em diálogo com conceitos psicanalíticos extraídos dos textos freudianos sobre a psicodinâmica dos grupos humanos, reflete-se sobre a constituição de um ponto de tensão entre a lógica do antropocentrismo e os modos de vida em tempos de consolidação de uma base tecnológica hiperconectada. A utilização de recursos digitais por analistas em formação é tomada como ilustração desse ponto de inflexão histórica.

Palavras-chave: hiperconectividade, sociologia de associações, crise do antropocentrismo, experiência estético-ética, recursos digitais na formação psicanalítica


ABSTRACT

Using conceptual contributions from the sociology of associations, as presented by Bruno Latour, in dialogue with psychoanalytic concepts extracted from Freudian texts on the psychodynamics of human groups, it reflects on the constitution of a point of tension between the logic of anthropocentrism and the modes of life in times of consolidation of a hyperconnected technological base. The use of digital resources by analysts in training is taken as an illustration of this historical inflection point.

Keywords: hyperconnectivity, sociology of associations, crisis of anthropocentrism, aesthetic-ethical experience, digital resources in psychoanalytic training


RESUMEN

Utilizando aportes conceptuales de la sociología de las asociaciones, tal como los presenta Bruno Latour, en diálogo con conceptos psicoanalíticos extraídos de textos freudianos sobre la psicodinámica de los grupos humanos, reflexiona sobre la constitución de un punto de tensión entre la lógica del antropocentrismo y los modos de vida en tiempos de consolidación de una base tecnológica hiperconectada. El uso de recursos digitales por parte de analistas en formación se toma como ilustración de este punto de inflexión histórico.

Palabras clave: hiperconectividad, sociología de las asociaciones, crisis del antropocentrismo, experiencia estético-ética, recursos digitales en la formación psicoanalítica


RÉSUMÉ

À partir des apports conceptuels de la sociologie des associations, tels que présentés par Bruno Latour, en dialogue avec des concepts psychanalytiques extraits des textes freudiens sur la psychodynamique des groupes humains, il s'interroge sur la constitution d'un point de tension entre la logique de l'anthropocentrisme et les modes de vie à l'heure de la consolidation d'un socle technologique hyperconnecté. L'utilisation des ressources numériques par les analystes en formation est prise comme une illustration de ce point d'inflexion historique.

Mots-clés: hyperconnectivité, sociologie des associations, crise de l'anthropocentrisme, expérience esthético-éthique, ressources numériques en formation psychanalytique


 

 

Perambulando... Preambulando...

"Por toda parte cupins cegos acumulam dados." Essa é a única menção que Bruno Latour faz a esses pequeninos insetos em todo o seu Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede (2005/2012), obra em que apresenta a sociologia de associações, um método de investigação dos fenômenos sociais que toma como objeto de estudo o vínculo e as mediações - horizontais e coinfluentes - entre elementos em conexão humanos ou não humanos, partindo do princípio de que nenhum deles exerce completa primazia sobre os outros e, por isso, se observados isoladamente, não bastam para explicar uma ação.

Diante da tarefa de escrever sobre o tema hiperconectividade, senti necessidade de buscar um caminho, para pensar a conexão humano-tecnologia, que não partisse do pressuposto de que as tecnologias sejam necessariamente uma perturbação ou ameaça à subjetividade, tentando, assim, escapar a uma abordagem antropocêntrica, sobretudo porque, como indica Latour, a conexão somente entre humanos, calcada em habilidades sociais, seria insuficiente para explicar e garantir o curso de qualquer ação. Em tempos de alta penetração da tecnologia no cotidiano, a subjetividade deveria ser tomada como atributo humano que participa de um coletivo heterogêneo, sem desprezar a influência de outros elementos sobre a formação de fenômenos sociais.

Tentar escapar ao antropocentrismo implica uma reflexão peculiar, que escolhi exercitar a partir da brevíssima citação de Latour relativa aos cupins. Aprendi, então, que se estima que formigas e cupins coexistam há 100 milhões de anos aqui na Terra, sendo comum que as primeiras predem os segundos. Em seus longuíssimos caminhos evolutivos, desenvolveram habilidades impressionantes: operários e soldados cupins, por exemplo, tornaram-se cegos e passaram a "escutar" esplendidamente, isto é, a emitir sinais acústicos e, pela ressonância dessas ondas, a detectar predadores, permitindo-lhes escolher locais para instalação de ninhos e selecionar as melhores fontes de alimento (https://cupim.proec.ufabc.edu.br).

Soube também que formigas e cupins não vivem apenas em uma violenta batalha pela sobrevivência: a coabitação desses animais é mais frequente do que se imaginava. Em um fascinante experimento, Prestes e Cunha (2012) registraram como essas espécies são capazes de alterar seus comportamentos instintivos de ataque e fuga quando a coabitação é a alternativa mais adequada para a preservação de suas colônias.

Às formigas e aos cupins, juntam-se outros viventes, havendo registros de mais de 1.500 espécies, de fauna e flora, em coabitação interconectada... ou poderíamos dizer hiperconectada? A constatação é de que essa incrível coletividade desempenha serviços ecossistêmicos valorosos: movendo e enriquecendo grandes quantidades de terra, contribuem para a viabilidade de todas as formas de vida, inclusive as humanas (Bicudo, 2010).

Não se trata, porém, de construir uma fábula; afinal, até onde se sabe, formigas e cupins não vivem o mal-estar que resta do conflito entre tendências psíquicas de vida e morte, como aprendemos com Freud (1930/1976c).

Ao recorrer a esses pequenos viventes, aproveito a desconcertante impressão do descolamento dos humanos em relação a outras formas de existência para questionar: afinal, estamos hiperconectados a quê? Também, parto das evocativas imagens de sua bem-sucedida existência coletiva para refletir sobre as limitações da lógica antropocêntrica, diante dos desafios sociais da contemporaneidade.

 

Da base tecnológica ao modo de vida: o mal-estar na hiperconexão

Em seu sentido original, hiperconectividade descreve o estado de permanente disponibilidade dos humanos para interações comunicacionais digitais (Quan-Haase & Wellman, 2005). Quando os campos da indústria e da tecnologia da informação se apropriaram do termo, este passou a designar também toda a arquitetura de interação entre sistemas ciberfísicos, isto é, máquinas automatizadas por processos digitais, que prescindem de comandos diretos executados por humanos (www.bbc.com).

Antes que se pense tratar-se de um futuro distante, a tecnologia dos sistemas ciberfísicos já está em operação, não em sua escala máxima, como projetam seus entusiastas, mas, ainda assim, aplicada, por exemplo, a assistentes virtuais que operam equipamentos domésticos e públicos; sistemas que planejam e controlam tráfego e distribuição de eletricidade, água, temperatura, cargas, dinheiro; e até mesmo acoplados aos corpos humanos. Sem contar os algoritmos que "aprendem" como capturar nossas atenções e influenciar nossos hábitos de vida (www.hubi40.com.br).

É a esse conjunto, que extrapola uma aplicação restrita ao ambiente industrial ou às práticas de consumo, que prescinde de comandos humanos diretos para operar e que passa a participar do cotidiano social que chamo, aqui, de modo de vida hiperconectado.

Esse modo de vida está além da decisão individual de utilizar ou não algum dispositivo tecnológico: aquele que não usa um smartphone ou não tem um perfil em rede social não está menos conectado, porque a combinação de múltiplas tecnologias, mais do que formar uma arquitetura sociotécnica, estabeleceu-se também como um tipo de racionalidade a partir do qual são planejados e operados múltiplos acontecimentos sociais.

No campo da sociologia, há dois estudos paradigmáticos, publicados nos primórdios da base tecnológica digital, voltados para a reflexão sobre esse modo de vida: o primeiro deles, de Van Dijk (1999/2006), que cunhou a expressão sociedade em rede, apontava como a articulação entre sistemas de produção em massa, tecnologia de consumo e compartilhamento digital de conteúdo teria inaugurado um tempo de individualização da sociedade, multiplicando e segmentando os processos de filiação social.

No mesmo período, Manuel Castells considerou que, na sociedade em rede, a concepção de um sujeito "separado, independente" seria subvertida, e a busca de identidade se tornaria a fonte primária de significado social, promovendo

ampla desestruturação das organizações, deslegitimação das instituições, enfraquecimento de importantes movimentos sociais [e, portanto, as sociedades seriam] cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar entre a Rede e o Ser [grifos da autora]. (Castells, 1999/2002, p. 41)

A partir dos diagnósticos de Van Dijk e Castells, muitos autores seguiram (e seguem) apontando os efeitos desse modo de vida nos humanos. Dentre eles estariam, por exemplo, o borramento entre as esferas privada e pública e as mudanças na percepção tempo-espaço, experimentadas na vivência em ambientes digitais, de modo a alterar a economia libidinal pela contínua oportunidade de microcatarses, em lugar de um tempo estendido para elaborações subjetivas (Alcântara et al., 2021; Alemany & Repollés-Llauradó, 2016; Mozzini, 2014).

Esses são apenas alguns exemplos de uma vasta produção de racionalidades que associa o modo de vida hiperconectado à produção de um mal-estar generalizado, na medida em que a autonomia humana é ameaçada pela ascendência das tecnologias. Ao mesmo tempo, a tecnologia permeia mais e mais o cotidiano, ao ponto de já não podermos restringir seus impactos por meio de decisões individuais, e, portanto, deslocando o humano do centro da organização social para a condição de mais um elemento em uma complexa rede de conexões.

Surge aí um ponto de tensão e impasse, sobre o qual, para lidarmos de forma mais criativa e efetiva, talvez seja necessário colocar em discussão a premissa antropocêntrica de que o humano ainda goza de elevados níveis de autonomia e superioridade na organização social contemporânea.

Por isso, seguindo Marras (2018), com as intensas e múltiplas crises que vivemos (econômicas, ambientais, existenciais) e diante de uma nova composição de modos de vida que evidencia cabalmente a codependência e a coinfluência entre humanos e não humanos, viventes ou digitais, talvez seja tempo de darmos atenção à prática do entre, ou, nas palavras desse antropólogo, às entreontologias, reconhecendo que nada se faz e se sustenta por si, deslocando-nos, então, de uma compreensão autorreferida para uma alter-referida.

 

Crise do antropocentrismo?

Quando aprendi sobre formigas, cupins e toda aquela coletividade que move e enriquece grandes quantidades de terra, não pude deixar de pensar como seres tão diminutos, em conexão, operam transformações massivas em seus modos de vida, a ponto de prestarem um serviço ecossistêmico que viabiliza toda uma cadeia de outros viventes, inclusive nós, humanos.

Enquanto isso, mesmo diante de demonstrações constantes da fragilidade de nossa organização social, seguimos apostando no isolamento humano, por meio do dualismo natureza-civilização. O jornalista, escritor e ativista Ailton Krenak chama esta atitude antropocêntrica de "abstração civilizatória [grifos da autora], que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos" (Krenak, 2020, p. 44).

Ao abandonar o teocentrismo, a porção europeia da humanidade pôde vislumbrar sua emancipação: pelo domínio da razão - materializado por meio do domínio sobre territórios, povos e tecnologias - se poderia alcançar um modo de vida superior, mais seguro, saudável e satisfatório. Ainda que essas promessas da modernidade não tenham se cumprido plenamente, e um amplo e diversificado conjunto de problemas se avolume - fome, pobreza, conflitos civis, políticos e militares, desastres ambientais, adoecimento generalizado, sofrimento crônico -, esse processo de abstração civilizatória segue, alimentando-se de nossa onipotência defensiva, ora nos oferecendo novos totens para adoração, ora elegendo e tentando dominar cada um dos novos inimigos da vez.

Com a psicanálise, aprendemos que nosso ingresso e nossa permanência em agrupamentos sociais implica uma complexa economia pulsional porque, para nos protegermos de ameaças, que nunca nos deixam esquecer nosso desamparo original, é preciso adiarmos as satisfações imediatas de nossa libido, deslocá-la de laços erótico-sexuais para vínculos comunais-fraternos e ainda redistribuir nossas pulsões agressivas, sempre prontas a atacar os mesmos vínculos que nos garantem alguma segurança no interior de grupos (Freud, 1930/1976c).

Assim, "a construção identitária e o investimento narcísico a ela inerente forçam os grupos a se constituírem enfatizando uma diferença" (Silveira et al., 2020, p. 42), rechaçando o que é tomado como externo a eles. Em outras palavras, nosso narcisismo pede modelos de identificação para nossos laços, bem como representações para as quais possamos direcionar parte de nossa inerente agressividade.

De uma perspectiva antropocêntrica, as tecnologias, observadas como elemento isolado, podem servir como modelo idealizado, passível de admiração, crítica e manipulação pelo humano, a partir de um lócus de autonomia e superioridade. Ao mesmo tempo, podem ser tomadas como representação de inimigo da vez, quando nos damos conta de que essa arquitetura sociotécnica ameaça nossa onipotência, arrastando-nos para uma rede de mediações técnicas que independe de nossa escolha e de nosso comando diretos.

Assim, ao assumir que a Rede se oponha e ameace o Ser, como vimos com Castells, tendemos a lidar com a angústia dessa perturbação recrudescendo nossas defesas, que tão bem servem à lógica antropocêntrica, isto é, tendemos ao individualismo, restringimos o acesso a nossos grupos de pertença e atacamos inimigos, até quando são nossas próprias criações, como é o caso da base tecnológica hiperconectada.

Como restos dessa batalha onipotente, tornamo-nos cada vez mais descrentes da viabilidade de ações coletivas para a mudança dos sistemas que organizam nossos modos de vida, limitando a subjetividade à possibilidade de transgressões resignadas, isto é, microações, micropolíticas, desconstruções e ressignificações, como pequenas convulsões ou espasmos, ora criativos, ora destrutivos, num contexto social artificializado, espetacularizado, fluido, fragmentado, necropolitizado e, nem poderia ser de outro modo, exaustivo.1

Contudo, se com a psicanálise estamos prontos a reconhecer que restará sempre um índice de mal-estar como preço a ser pago por nosso narcisismo, confrontado no seio do laço social, Freud também apontou aos humanos uma fresta de possibilidade para algum trabalho criativo: "concentrando todas as energias liberadas em sua vida na Terra, provavelmente conseguirão alcançar um estado de coisas em que a vida se tornará tolerável para todos e a civilização não mais será opressiva para ninguém" (Freud, 1927/1976a, p. 64).

Sabemos que Freud tratou essa passagem como esperanças confessadas e não negou que pudesse soar como uma ilusão, mas, podemos nos servir dela como estímulo à reflexão, sobretudo quando parece haver, pela via antropocêntrica, um esgotamento de nossas potências de mitigação de graves problemas sociais. Portanto, ainda que não haja consenso sobre uma crise do antropocentrismo, também não há impedimentos definitivos para exercitar um pensamento que tome elementos não humanos como coinfluentes em nossos modos de organização social.

Conforme apontado anteriormente, é vasta a produção dedicada a investigar possíveis efeitos do modo de vida hiperconectado, tanto sobre indivíduos quanto sobre grupos e a sociedade em geral. Aqui, portanto, o objetivo não é refletir sobre esse aspecto da conexão humano-tecnologia, mas iniciar uma discussão sobre como a premissa antropocêntrica, de separação, autonomia e superioridade humanas, acaba por servir a um recrudescimento defensivo, afeta nossa capacidade criativa para construção de mundos comuns e nos influencia a um estado subjetivo de isolamento, ameaça e resignação.

Com esses aportes sociológicos e psicanalíticos podemos pensar a relação entre recursos digitais e transmissão da psicanálise não em oposição, mas exercitando uma abordagem que favoreça observarmos e agirmos sobre os atributos determinantes de uma organização criativa em meio ao modo de vida hiperconectado.

Para contribuir nesta empreitada, farei um apontamento inicial sobre o caráter de experiência estético-ética da transmissão da psicanálise: a organização em pequenos grupos cumpriria uma função organizativa, calcada em uma experiência sensível, e, talvez, esteja aí um elemento essencial a ser preservado em qualquer modelo de formação que se estabeleça, inclusive aqueles que, eventualmente, decidam incorporar recursos digitais.

 

Experiência estético-ética na formação psicanalítica

O distanciamento social, adotado como uma das medidas sanitárias de enfrentamento à pandemia de covid-19, obrigou a uma rápida e maciça migração de todas as atividades da formação psicanalítica, pelo Instituto Durval Marcondes, para o ambiente digital, trazendo a manifestação do modo de vida hiperconectado ao campo de uma vivência institucional compartilhada, em escala diminuta, mas ilustrativa.

Com o objetivo de reunir informações para auxiliar nas reflexões sobre essa experiência, a Associação de Membros Filiados (amf)2 conduziu uma consulta junto aos membros filiados,3 na qual investigou cada um dos eixos do modelo de formação adotado pelo Instituto - seminários teóricos, clínicos e eletivos, análise pessoal (ap) e supervisão - em duas seções: uma dedicada à experiência com o uso de recursos digitais, durante os primeiros 15 meses de pandemia, e outra dedicada às expectativas sobre o uso de tais recursos num cenário pós-pandemia.

Os dados da consulta mostraram que a maior parte dos membros filiados deu continuidade ao seu percurso de formação mesmo com a migração para a modalidade online e, em termos gerais, 94,7% deles gostaria que o Instituto incorporasse, definitivamente, a modalidade online como uma das possibilidades para a realização de seminários, análise pessoal e supervisão, sinalizando que esses primeiros momentos de inserção dos recursos digitais no processo de formação não foram sentidos como prejudiciais à experiência dos analistas em formação.

No mesmo período em que a amf apresentava esses resultados aos membros filiados e ao Instituto, um centro universitário brasileiro anunciava a abertura de um curso de graduação em psicanálise, 100% em ead (educação a distância). Destacou em publicidade seu registro junto ao Ministério da Educação, podendo, a depender do seguimento dos fatos, instalar o precedente para um novo modelo de estudo dessa disciplina em massa em nosso país.

Esses eventos não são equivalentes, porque não se trata somente da decisão sobre o uso ou não de recursos digitais na formação psicanalítica; afinal, no segundo caso, também se abre a importante discussão sobre os aspectos técnicos, éticos e institucionais da transmissão de conhecimentos da área por entidades alheias à história do movimento psicanalítico. Porém, tomados em conjunto, são pequenas ilustrações da grande capacidade das tecnologias digitais de penetrarem nosso cotidiano, mesmo em direção a fronteiras bem delimitadas, como as dos modelos de formação adotados por entidades filiadas à IPA (International Psychoanalytical Association).

Com essas experiências recentes, temos a oportunidade de investigar não apenas os possíveis efeitos dos recursos digitais no processo de formação psicanalítica, mas também quais alternativas teremos para organizar um novo modo de coexistência com esses elementos, reconhecendo que o modo de vida hiperconectado ultrapassa o âmbito das decisões isoladas e aprendendo a lidar com ele criativamente.

Na história da transmissão da psicanálise, vemos emergir um modelo organizativo da experiência coletiva de formação logo após a publicação de A interpretação dos sonhos: entre 1902 e 1908, nas noites de quarta-feira, a sala de espera do consultório de Freud se transformava no espaço de reunião de um pequeno grupo interessado no estudo da psicanálise. Para acomodar todos, bastavam um sofá e duas ou três cadeiras, em torno de uma pequena e baixa mesa. Lá fora, a penumbra da noite e a ambígua reação, entre indiferente e hostil, às proposições da psicanálise. Dentro, circulando na sala fechada, além da névoa de charutos e cigarros, o entusiasmo pelo aprendizado, a admiração pelo mestre e as inescapáveis rivalidades e disputas humanas (www.freud-museum.at; Gay, 1988/1989; Nick, 2014/2015/2016).

Passados 120 anos, os psicólogos João Sales e Emília Ramos contam como reuniram seus pequenos grupos de psicólogos, trabalhadores do serviço social, a princípio, em suas próprias residências, para estudar psicanálise e fundar seus coletivos de formação e atendimento clínicos, em bairros economicamente empobrecidos, na cidade de São Paulo. Lá fora, "o baronato" (sic) da psicanálise, inacessível. Dentro, uma jornada de reflexão crítica e luta pela democratização desse ofício, em lugar de sua mera popularização.4

Distantes no tempo, no espaço, nas posições socioeconômicas e políticas, as duas cenas, no entanto, partilham uma experiência do campo do sensível: desde Freud, foi sob a afetação estético-ética do convívio íntimo em pequenos grupos de artesania que a preservação do "ouro puro da análise" (Freud, 1919[1918]/1976b), tomada como tarefa primária do movimento psicanalítico, tornou-se herança das mais preciosas.

O domínio do homem sobre as forças da natureza e a habilidade de criar instrumentos talvez tenham cooperado para a inscrição, em nosso psiquismo, das matrizes estético-éticas do convívio íntimo. Em outras palavras, no núcleo de pequenos grupos, quando passamos a habitar territórios fixos e desenvolvemos técnicas e instrumentos para garantir nossa sobrevivência, o processo de regulação da economia libidinal, para transformar os destinos de nossas pulsões, deu-se sob os afetos suscitados por coabitação e produção coletiva, enlaçando-se a isso uma experiência ética, pelo exercício da criação de valores e modos de vida comuns (Chaves & Goergen, 2017).

Não precisamos, porém, ir tão longe: iniciamos a vida no interior de um outro corpo, e nossos primeiros momentos, aqueles que nos permitem ser gestados, paridos, nutridos e acolhidos, dão-se em uma dinâmica de intimidade, na continência recebida e percebida, e de artesania, com o trabalho de transformação simbólica que só pode ocorrer na experiência compartilhada, quando investimos e somos investidos por objetos de amor (Levy, 2017).

Os modelos de formação psicanalítica, quando assim organizados, permitem a todo e cada analista repetir os mesmos trajetos desde Freud (análise pessoal, desenvolvimento da pesquisa teórica indissociável da clínica, afetação pela experiência íntima do pequeno grupo de artesania - a começar pelo próprio modelo das duplas analítica e de supervisão). Além de autorizar a prática, divulgação e produção de racionalidades a partir de nossa tradição de pensamento psicanalítico, ao mesmo tempo que aprimoramos nossa disciplina e a protegemos de ataques epistêmicos, técnicos ou institucionais, preservamos as condições para a experiência estético-ética sobre a qual se funda toda essa construção.

Desse modo, parte significativa da formação analítica ocorre num âmbito para além da razão: nosso psiquismo se põe a trabalhar, colocando em movimento o desejo de conhecimento e fazendo surgir o pensamento criativo, como "esforço para dar representação simbólica à intensa experiência emocional desencadeada pela presença do Outro e pelo enigmático de seu interior intangível" (Levy, 2017, p. 18), porque seu caráter de intimidade carrega a marca do que é compartilhado, daquilo que já não pertence nem ao sujeito, nem ao objeto, mas só pode dar-se à existência no encontro entre eles.

É inegável que a materialidade do corpo físico, marcado, desde os primeiros momentos de existência, pelo registro da experiência estético-ética da intimidade, participa de forma única de como nos lançamos ao mundo: com desejo de conhecimento. Até este momento, o modo de vida hiperconectado, mesmo com seus componentes de inteligência artificial, robótica e sensores, ainda não foi capaz de reproduzir tal experiência.

Porém, se a vivência em ambiente digital não é igual à material, isso não implica ser melhor ou pior. Para afastar-nos dessa discussão que nega a realidade do modo de vida hiperconectado e, por isso, impede-nos uma observação acurada de sua participação em nossos processos de transformação simbólica, seguimos Gondar (2020), reconhecendo que são experiências diferentes, com um aspecto relevante: no ambiente digital, as relações tendem a ser mais horizontais, levando-nos para fora de nossos territórios habituais de exercício de controle e poder.

Nesse ponto, encontramo-nos, novamente, com a possibilidade de questionamento das premissas antropocêntricas e, em lugar de uma ameaça, o modo de vida hiperconectado surge como uma arquitetura que nos convoca a rever nossas práticas de hierarquização social e como um aliado ao exercício democrático nos mais diversos âmbitos dos fenômenos sociais.

Num cenário virtual, se não temos mais os tempos estendidos de deslocamento entre os locais físicos das atividades de formação, também não temos os cafezinhos do intervalo, os abraços calorosos, os toques de conforto, os cochichos ao pé do ouvido. Talvez seja exatamente por essa ausência que o aspecto artesanal da formação ganhe ainda mais importância: se não nos conectamos pelo aparato físico, é a conexão por ideias, valores e compromissos compartilhados que fortalece os laços.

Nos primeiros 15 meses de utilização de recursos digitais, vimos um aumento significativo da participação de analistas em formação nos eventos promovidos pela comunidade psicanalítica. O intercâmbio envolvendo filiados de diferentes localidades geográficas foi facilitado imensamente; com isso, uma inspiradora pluralidade de interesses e ideias emergiu no cotidiano das atividades de formação, e parcerias até então inexistentes vêm sendo fomentadas.

Grupos de conversa, concentrados em aplicativos de mensagem, tornaram-se ponto de encontro para auxílio mútuo e discussões sobre os mais variados temas, num fórum muito mais amplo do que as pequenas rodinhas do café, convocando a um exercício contínuo de reconhecimento da diversidade de ideias e opiniões, bem como desvelando a rica heterogeneidade dos analistas em formação.

Finalmente, a própria amf viveu uma experiência inédita e paradigmática: atravessou todo o processo que levou à sua eleição tendo como único recurso de articulação as plataformas digitais. Embora parte dos integrantes dessa diretoria não tenha tido nenhum contato físico anterior, foi o trabalho artesanal, de produção coletiva de um ideário, alimentado pelo desejo de contribuir para a representação da pluralidade dos membros filiados, que uniu esse grupo com intenso engajamento.

Como dito anteriormente, abre-se um amplo campo para investigações, com destaque para o aspecto de horizontalização nas interações digitais e os fenômenos específicos que dela podem surgir, sobretudo em relação às experiências transferenciais/contratransferenciais. No entanto, por ora, destaco que a artesania da psicanálise, com seu caráter de experiência estético-ética, oferece possibilidades potentes não só para lidarmos com os fenômenos específicos que surgem no modo de vida hiperconectado, mas também para transitarmos criativamente com ele. A realização desse potencial depende, em ampla medida, de nos deixarmos convocar e buscar responder às pluralidades dos modos de vida, que incluem uma cadeia de conexões e mediações com não humanos.

Nessa condição, o estético pode emergir junto ao estranho, ao plural, ao que ainda não se deixou apreender pelas normalizações e normatizações, ao que escapa ao universalismo, convocando à infindável construção ética, não como conceito moralizante, mas como par dialético (Hermann, 2004).

Nem na abstração civilizatória de uma ânsia antropocêntrica, violenta e injusta, nem no pesadelo distópico das transgressões resignadas, desacreditados de qualquer possibilidade de mudança e recrudescidos em nossas defesas, será possível caminharmos entre formigas, cupins, dispositivos digitais e quaisquer outros entes, disponíveis para a tarefa, sempre instável e inacabada, de construção coletiva de mundos comuns?

Se seremos capazes de criar novas configurações de intimidade, sob a afetação estético-ética, que incluam os recursos digitais nos pequenos grupos de artesania psicanalítica, e se seremos capazes de abandonar o antropocentrismo, coletivamente, tudo isso ainda não passa de apostas. Contudo, com os aportes psicanalíticos, podemos pensar que temos pelo menos uma sólida razão para apoiar essas possibilidades. Afinal, uma particularidade do humano e, portanto, a sua parcela de contribuição para mover e enriquecer grandes quantidades de terra é a incrível dinâmica inconsciente que não se dobra às racionalidades rígidas e, por isso, sempre pode criar novas formas de estar no mundo.

 

Referências

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Recebido em: 13/3/2022
Aceito em: 6/4/2022

 

 

1 A. Lovatto (comunicação pessoal, 2 de fevereiro de 2021).
2 Entidade responsável pela representação de analistas em formação perante o Instituto Durval Marcondes e a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
3 Uma compilação dos resultados foi anexada a este texto.
4 J. Sales e E. Ramos (comunicação pessoal, 9 de fevereiro de 2022).

 

 

Anexo

Compilação dos resultados de consulta aos membros filiados ao Instituto Durval Marcondes sobre o uso de tecnologias digitais para realização de seminários, análise pessoal (AP) e supervisão

Período de coleta de dados: maio a julho de 2021

Respondentes:

• 52% dos membros filiados responderam à consulta;

• 58,8% residentes em São Paulo, capital;

• 41,2% residentes fora da cidade de São Paulo.

Parte I - Percepção sobre as vivências das atividades de formação em ambiente digital, durante os primeiros 15 meses de pandemia (abril de 2020 a julho 2021)

Sobre os seminários (percentuais médios das avaliações sobre os módulos obrigatórios, clínicos e eletivos)

• 70,8% participaram de seminários online.

· 57,6% classificaram o aproveitamento como inalterado.

· 21,3% consideraram o aproveitamento pior.

· 21,1% classificaram o aproveitamento como melhor.

· 29,2% não participaram de nenhum seminário no período investigado.

Sobre a Análise Pessoal (ap)

• 31% já haviam concluído o período obrigatório de ap antes de março de 2020.

· 69% mantiveram-se em ap durante o período de atividades online.

· 86% realizaram ap exclusivamente online.

· 12,4% realizaram ap em regime híbrido (sessões online e presenciais).

• 1,6% realizaram ap somente com sessões presenciais.

• 77,1% classificaram a experiência online como boa ou ótima.

Sobre a supervisão

• 59,4% realizaram supervisão durante o período de atividades online.

· 90,1% realizaram supervisões exclusivamente online.

· 9% realizaram supervisões em regime híbrido (sessões online e presenciais).

· 0,9% realizaram supervisões somente com sessões presenciais.

• 40,6% não realizaram supervisão no período investigado (este percentual inclui os membros filiados que estão nos anos iniciais da formação e ainda não se apresentaram às supervisões).

Parte II - Opiniões sobre a regulamentação do uso de recursos digitais na formação psicanalítica em um cenário pós-pandemia

Sobre os seminários

• 72,2% consideraram que deveriam ser oferecidos seminários online e presenciais e que os membros filiados deveriam ter a liberdade de escolher a melhor composição de seus percursos, usufruindo de ambas as modalidades.

• 25,1% consideraram que deveriam ser oferecidos semináriosonline e presenciais e que caberia ao Instituto definir um padrão percentual mínimo a ser cumprido presencialmente.

• 2,7% consideraram que os seminários deveriam voltar a ser exclusivamente presenciais.

Sobre a Análise Pessoal (ap)

• 61,1% gostariam de realizar ap em regime híbrido.

• 21,4%, havendo a possibilidade, optariam por realizar sua ap exclusivamente online.

• 17,5% gostariam de realizar sua ap exclusivamente de modo presencial.

Sobre a regulamentação do tema, por parte do Instituto

• 60,5% consideraram que o par analítico deveria ter autonomia para definir a modalidade de atendimento, sendo possível realizá-la exclusivamente online.

• 33,3% consideraram que o Instituto deveria estipular um número-padrão mínimo de sessões presenciais.

• 6,2% consideraram que a ap deveria ser exclusivamente presencial.

Sobre a supervisão

• 51,2% gostariam de realizar supervisão em regime híbrido.

• 40% gostariam de realizar supervisão exclusivamente online.

• 8,8% gostariam de realizar supervisão exclusivamente presencial.

Sobre a regulamentação do tema, por parte do Instituto

• 76,1% consideraram que a dupla de trabalho deveria ter autonomia para definir a modalidade de atendimento, sendo possível realizar supervisões exclusivamente online.

• 22,2% consideraram que o Instituto deveria estipular um percentual-padrão mínimo de supervisões presenciais.

• 1,7% consideraram que a supervisão deveria ser exclusivamente presencial.

Visão geral

• 94,7% consideraram que o Instituto deveria incorporar, definitivamente, a modalidade online como uma das possibilidades para a realização da formação psicanalítica.

• 5,3% consideraram que todas as atividades da formação psicanalítica deveriam voltar a ser exclusivamente presenciais e que as adaptações realizadas foram impostas somente devido à excepcionalidade da pandemia.

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