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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál v.42 n.3 São Paulo set. 2008
DIÁLOGO
Professor e artista plástico: comentário à entrevista
Profesor y artista plástico: comentario a la entrevista
Teacher and plastic artist: comment to the interview
Miguel Calmon du Pin e Almeida1
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro
RESUMO
Em torno das ponderações de Carlos Fajardo sobre sua própria história e sobre a arte contemporânea, o autor destaca a presença do professor e suas aproximações entre a arte e os processos de subjetivação do homem do século xxi.
Palavras-chave: Arte; Sujeito; Contemporaneidade.
RESUMEN
Alrededor de las ponderaciones de Carlos Fajardo sobre su propia historia y sobre el arte contemporáneo, el autor destaca la presencia del profesor y de sus correspondencias entre el arte y los procesos de la subjetividad humana del siglo xxi.
Palabras clave: Arte; Contemporaneidad; Sujeto.
ABSTRACT
Around the weightings of Carlos Fajardo on its own history and about contemporary art, the author highlights the presence of the teacher and his correspondences between the art and the processes of the human subjectivity of the xxi century.
Keywords: Art; Contemporaneity;Subject.
Que enorme prazer nos causa escutar um professor! Eles têm a surpreendente capacidade de nos fazer a todos inteligentes. Ao ouvi-los, temos a sensação de estar compreendendo o que jamais compreendemos, e, se ao sair dali, alguém nos pede para contar o que nos aconteceu, ficamos embaraçados e nos desdobramos em elogios e mais elogios, sem conseguir dizer uma só palavra sobre o que julgamos ter compreendido tão bem e claramente enquanto os ouvíamos, aos professores. Necessitamos de um certo tempo para nos descolar do fascínio de sua palavra, até conseguir dizer do nosso próprio jeito o que aprendemos. É que neles há uma generosidade nem sempre presente no mais comum de todos nós. Há neles o prazer de se fazer compreender. Há neles a consciência de que estão nos ensinando a ler e inventar o mundo.
Até hoje gosto muito de considerar que a próxima aula será em função da que eu estou dando, meu curso não tem programa.
Conheci alguns assim. Por alguns anos segui os seminários do professor Cláudio Ulpiano aqui no Rio de Janeiro. Uma vez lhe pedimos que falasse sobre Sade. Ele acendeu um cigarro no outro, como de hábito; tomou um gole de café (não saberia dizer quantos bules ele tomava por dia), tossiu, sempre preocupantemente para aqueles que o seguiam nos seminários, e disparou um começo que, confesso, superou todas as minhas expectativas. Ele disse: “Para falar de Sade, vamos ter que parar um pouco e pensar na arquitetura gótica”. E daí emendou uns tantos meses de ligações extraordinárias até chegar a Sade. Não preciso dizer que, ao chegar, tínhamos uma inteligência para perceber Sade que nenhum de nós poderia pressupor. Cláudio não deixou nada escrito. Sua obra foi oral. Hoje um grupo de alunos se empenha em tornar disponíveis seus ensinamentos.
Perdoem-me a digressão. Mas foi assim que me senti quando li a entrevista: na presença de um professor.
E já estou eu me desdobrando em elogios, tal como o fiz outras tantas vezes que estive diante de um professor: quanta elegância no modo com que passeia de um tema a outro, quanta clareza na maneira com que vai introduzindo novos conceitos, como se já soubéssemos deles, e com que nos propõe relações que esclarecem nosso pertencimento ao mundo.
Admirável a maneira com que concebe a diferença entre representação e equivalências. Ao usar essa distinção para pensar a diferença entre “arte” e “outra arte”, o professor Fajardo nos faz pensar num homem em constante processo de criação do si-mesmo e do outro. Aponta-nos os riscos de tomarmos a representação como elemento último constitutivo do mundo das coisas, e nos lembra que no mundo dos homens nem tudo é representação. As considerações de Fajardo sobre a arte contemporânea trazem aproximações significativas ao que chamamos de homem contemporâneo, neste jogo de espelhos que ele nos ensina a usar. Quantos de nós já não tentamos dizer sobre a clínica dos borderlines o que nos diz o professor Fajardo, com tanta simplicidade sobre a arte contemporânea:
Acho que a arte contemporânea não me diz nada, nem você precisa dizer nada a ela; tem de conviver com ela numa relação de fisicalidade, como uma relação de amor. Essa, a meu ver, é a grande transformação em que a arte deixou de ser arte, porque passou a ser alguma coisa que tem esse sistema de equivalências, que é uma relação, e, se eu não tiver consciência de que estou numa relação, não vou ter nada. Definitivamente, não vou ter nada.
Ele nos mostra a necessidade do trabalho radical com a alteridade, no qual a arte contemporânea parece ter esse atributo da experiência de construção do sujeito no contato com a obra. A obra lança o sujeito para si mesmo, à difereça dos trabalhos que exigem uma atenção, uma observação do que ali está representado. Não se trata de compreender, mas de fazer a experiência da obra. E nesse aspecto Carlos Fajardo é taxativo: a fisicalidade da presença é essencial.
A arte contemporânea não é representação de coisa alguma e por isso não oferece chave de compreensão do mundo. Não trata de significar o mundo, mas de se abrir e de oferecer como uma experiência, física, suja, banal, capaz de ser repetida e remontada.
Acho que a arte contemporânea trata de equivalências. […] Você faz ou não parte dela. É muito difícil, dentro de uma instalação, você ter um juízo crítico se tem tudo a ver com ela, certo? Então, o juízo crítico fica aí em estado de suspensão, por ter um sistema muito forte e poderoso de equivalências de relações. […] A arte da instalação diz o seguinte: “Sua presença é obrigatória, senão ela não acontece. Não dá mais para ficar lá no museu”.
No recente congresso da fepal em Santiago, propus algo parecido no comentário que fiz ao trabalho de Roosevelt Cassorla sobre o enactment.
Aceitar o enactment como analisante da situação analítica implica a renúncia ao controle do tempo e da possibilidade de conhecimento do fundamento das coisas, isto é, de uma estrita separação do sujeito e do objeto, da possibilidade de um “sujeito” conhecer um “objeto”. Significa que sujeito, objeto e a possibilidade de sua relação se constituem mutuamente, sem que se possa aceitar a preexistência de um sobre o outro. Por isso, podemos dizer que o conceito de unidade é o resultado do processo de constituição do si-mesmo. A possibilidade de representação do “um” só vem depois de o “três” estar representado, ou, dito de um modo provocativo, o “um” só vem depois do “três”, isto é, da soma do um e do dois e da diferença entre um e outro. Representar o “um” tem como pré-condição, para sua vigência, a identidade e a diferença.
Os professores não vivem de inventar moda. Eles são capazes de acompanhar seu tempo, sem perdão ou ressentimentos. Vejam quanta concisão na resposta de Fajardo sobre a Escola Brasil: “A Escola Brasil teve uma duração de cerca de quatro anos, com cerca de quinhentos alunos. Terminou por várias razões, e uma delas é que as coisas começam e acabam e ela acabou”. E certamente ela permanece porque acabou. Isso está ligado à sua capacidade de acompanhar a história, de não ter um tom nostálgico, o que ele mostra com uma análise do que está acontecendo por dentro das artes, por dentro do mundo, trazendo-nos as sutilezas que se retraem ao primeiro olhar.
Silvana Rea,2 em artigo publicado na ide, refere-se à fisicalidade necessária para a apreensão da arte contemporânea e ao trabalho radical com a alteridade do outro na obra de Carlos Fajardo. Ela nos diz:
Portanto, se, por um lado, a quebra da estrutura narrativa e representacional inclui o espaço como obra, o que remete o espectador à solidão, por outro, a linguagem inicial da pintura transforma-se em exterioridade, em escultura. E é assim que a obra de Fajardo se instaura como objeto construtivo da realidade e se oferec e à leitura em experiência de alteridade violentamente constituída. O sentimento de que o outro se apresenta de maneira abrupta e desconcertante quebra a ilusão de fusão necessária à conquista gradativa da relação dual. Atônito pela ruptura provocada pelo impacto da presença do trabalho, cabe ao leitor recuperar-se enquanto sujeito por conta própria.
Na direção do que Silvana Rea descreve como “o leitor recuperar-se enquanto sujeito por conta própria”, Carlos Fajardo nos conta uma história acerca de uma exposição que fez no sesc Belenzinho, em São Paulo:
Eu conversava com um amigo arquiteto que estava com seus dois filhinhos, um menino e uma menina, de 4 ou 5 anos. Ela estava ao lado do pai e olhou para o espelho que estava embaixo. Sabe o que fez o irmão? Segurou-a e disse: “Cuidado, você pode cair!” Ou seja, cair para o infinito, para baixo, que era cair para o céu, para o outro lado. Que maravilha!
Ali, naquele momento, as crianças criaram uma obra que não havia sido pensada pelo autor por intermédio da experiência que fizeram com o que percebiam exposto. As crianças, impactadas de forma abrupta e desconcertante pela instalação, constroem uma realidade a partir da qual aprendem a se relacionar com a obra e consigo mesmas, por conta própria. Carlos Fajardo assim se refere ao acontecimento:
Mas quem criou esse mundo não fui eu, foi a criança. Lembrem-se de que ela era participante, fez um construtivo lá. Aquele mundo do qual ela falou não foi o que eu pensei, foi o que ela construiu. Não tinha a menor idéia de que eu pudesse perceber aquilo como abismo, foi ela que me ensinou isso.
Esta é mais uma das características do professor. Do professor e artista plástico Carlos Fajardo. Ele sabe que amar é dar o que não se tem. Ele aceita que sua obra e sua palavra não se esgotam nas intenções que o inSPIraram, mas que elas o ultrapassam e se dão ao outro numa gama de possibilidades que ele não determina nem controla.
Endereço para correspondência
Miguel Calmon du Pin e Almeida
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro - SBPRJ
Rua Carlos Góis, 375/310 - Leblon
22440-040 Rio de Janeiro - RJ -Brasil
Tel.: +55 21 2249-1314
E-mail: mcalmon.trp@terra.com.br
Recebido em 10.9.2008
Aceito em 21.10.2008
1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ.
2 Artigo publicado na revista IDE, vol. 29, n. 42, p. 84, 2006.