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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009

 

TEMÁTICOS

 

Ecos de uma língua longínqua. Escrito para um encontro sobre multilinguismo na análise1

 

Ecos de una lengua lejana. Escrito para un encuentro sobre el multilingüismo en el análisis

 

Echoes of a faraway language. Article for a meeting about multilingualism in analysis

 

 

Luís Carlos Menezes,2 São Paulo

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O autor reporta a emergência de um fragmento significativo da própria análise, ocorrida muito tempo depois do seu término, por ocasião da preparação de um texto para participar em um encontro científico com outros analistas, numa língua estrangeira, a língua em que fizera sua análise. Faz considerações sobre o multilinguismo e o inconsciente na transferência, ressaltando “o assassinato” de que é portadora a fala na análise, como condição da instauração da ausência ou do negativo, considerado fecundo e indispensável para o processo analítico.

Palavras-chave: Multilinguismo; Transferência; Assassinato.


Resumen

El autor se reporta a la emergencia de un fragmento significativo de su propio análisis, ocurrido mucho tiempo después del término de este, ocasionalmente en la preparación de un texto para participar en un encuentro científico con otros analistas, en una lengua extranjera, la lengua en que había hecho su análisis. Hace consideraciones sobre el multilingüismo y el inconsciente en la transferencia, resaltando “el asesinato” del que es portador el hablar en el análisis, como condición de la instauración de la ausencia o del negadivo, considerando fecundo e indispensable para el proceso analítico.

Palabras clave: Multilingüismo; Transferencia; Asesinato.


Abstract

The author reports the emergence of a significant fragment of the analysis itself, occurred long after its end, which occurred a long time after the end of it in preparation of a paper to participate in a scientific meeting with other analylists, in a foreign language, the language in which the analysis was conducted. He discusses multilingualism and the unconscious in the transference, highlighting the “murder” which the speech brings to the analysis as a condition of the establishment of the absence or the negative, considered fertile and essencial to the analytical process.

Keywords: Multilingualism; Transference; Murder.


 

 

Banda de assassinos, nós? Eu me lembro quando fui incluído nisso, estranhamente e de forma incontornável. A língua, sim, não era a minha língua da infância, a materna ou paterna, eram apenas palavras sublinhadas em sonho – que língua é mais estrangeira que a língua dos sonhos, sobretudo com o que se pode fazer com ela em uma sessão de análise?

No caso eram palavras em negrito como a fórmula da trimetilamina, que se tornou famosa para nós, desde o sonho de Irma. Embora não fosse bem assim, mas as palavras ditas no sonho eram nitidamente mais acentuadas do que as outras palavras da frase. Não era eu quem as dizia, era o meu analista dirigindo-se a mim. A frase, hoje esquecida, começava com o pronome da segunda pessoa do singular: tu, seguida pelo verbo ser em perfeita concordância… em francês – Tu es.

Essas duas palavras, dois fonemas, é que eram pronunciados de uma forma tão marcada, destacando-se da frase. Quando contei o meu sonho em sessão, em toda inocência – era ele que o dizia e, além disto, não era em minha língua – não deixei de dizer que estavam tão destacados da frase. Eu não esperava que, com a ajuda do contexto da sessão – sempre o contexto, além de tudo, transferencial – eu teria que ouvir, agora não mais em sonho, mas na sessão, Tuer.

Tomada de consciência súbita precipitada pela palavra que me era desta maneira reenviada. Eu passava de repente de uma enunciação com o verbo ser, direcionada para a afirmação que se seguiria (o que é que ela vai dizer ainda do que pensa de mim?) a um outro verbo, que me levou a ficar calado: eu fazia parte de agora em diante da banda de assassinos, eu o digo agora, no momento em que se passou eu me calei tomado pela evidência à qual eu acabava de ser reduzido ou promovido.

Palavra plena, como em Lacan, embora o meu analista não fosse filiado a Lacan e as sessões não fossem de tempo variável, mas me ocorre só agora, dezenas de anos depois, de falar sobre esse episódio. Ainda que saibamos que o inconsciente não sabe contar os anos.

E, de vítima lamurienta e testemunha direta de uma morte acontecida demasiado cedo, a de um pai, eu me tornara de repente, carrasco. Sob o poder desta palavra pronunciada em eco por meu analista, eu tinha tornado-me capaz de matar (tuer)3 “em presença” – de vítima passei a agente do meu poder de ser ativamente agressivo na ação.

É verdade que já tinham se passado uns tantos anos desde o início da análise e a minha queixa – reivindicação e desculpa sob o argumento do fato objetivo – já tinham conseguido se tornar dor e ódio. A minha queixa já fora bastante chorada nos primeiros anos da análise, mágoa e lágrimas até então mantidas no silêncio e na inexistência.

O outro analista, alguns anos antes desta análise – eu ainda era estudante, tinha tido razão quando me dissera que precisava enterrar o meu pai, observação que ouvira de uma maneira divertida e simpática, dizendo para mim mesmo, com condescendência, que eram “coisas de analistas” porque aquilo não fazia o menor sentido aos meus ouvidos. Esse bom senhor, bastante competente, tentava fazer algo terapêutico comigo. Ele falava a minha língua materna, tinha percebido que eu tinha um luto a fazer, cujas marcas estavam recalcadas e o comunicou para mim em minha língua. Nenhum efeito, naturalmente, já que não se pode matar in absentia, não se pode abolir o recalcamento com a linguagem denotativa mesmo quando o que está sendo significado é psicologicamente correto. Não há maneira de se poupar do necessário tempo regressivo (tópico, formal e temporal) da transferência e de desenrolar da fala na análise; entregue a ele mesmo, como sabemos, ela nos conduz a tensões pulsionais, a representações e a afetos, ao trabalho do sonho, postos em ato, relançados, pela situação analítica.

E o inconsciente, como as crianças, parece interessar-se por tudo de uma maneira, digamos, natural – a oposição entre o estrangeiro e o familiar tem mais a ver com o Eu e suas necessidades de reasseguramento: as crianças observam os mínimos detalhes das pessoas, das coisas, das situações e não têm o menor escrúpulo em interrogar, falar, brincar com elas diretamente, do modo como se apresentam. Se a avó nascida na Alemanha fala português com um forte acento, recorrendo regularmente a palavras da língua alemã, é porque ela é assim: a noção explicativa, “nascida na Alemanha”, não é sequer formulada pois é totalmente dispensável. O que conta é que ela está agradavelmente enamorada – sem excesso – da criança e do adolescente seu neto, e enamorada sobretudo da vida, de suas viagens e de seus casamentos. O que conta é que é bom e interessante passar horas conversando com ela, esta mulher que não é depressiva. Em vez de “mas” em português, ela dizia um som que ele entendia como hava, mas que devia sem dúvida ser aber, depois de uma olhada, agora bem longe, no dicionário.

Tu es/tuer não é português, nem alemão, mas francês. N enhum problema para o inconsciente: ele se diverte em brincar também com essas sonoridades linguajeiras, porque não, já que é o que está ali. Ao fazê-lo, brinca com as palavras e, sem o saber, brinca com um material que se não é explosivo é, pelo menos, ultrassensível, pois brinca com as pulsões, com as cordas da alma, com nossas possibilidades de ser que podem ir num sentido – o do sintoma neurótico, no masoquismo covarde e reivindicativo da vitimisação – ou, num outro, nos abrindo para uma certa soltura de capacidades afirmativas e criativas na vida, o que faz uma grande diferença. É pelo efeito deste jogo – pelo trabalho do sonho, pelo processo primário – com as palavras à disposição, qualquer que seja a língua de onde provenham, que se produzem efeitos de insight, fortemente mobilizadores, como o deste exemplo clínico.

Com certeza, a língua estrangeira pode muito bem estar, por outro lado, a serviço da resistência ou mesmo, em outros casos, funcionar durante um longo período como paraexcitação, para que as coisas possam se dizer e se elaborar de maneira atenuada e, portanto, suportáveis e passíveis de elaboração, como no caso relatado pelo colega aqui presente, em seu trabalho (Tesone, 2006). Mas acredito que isto diz respeito mais à economia do Eu.

Bastaria, a propósito, lembrar da experiência de poder pronunciar com toda a tranquilidade uma palavra que, acabamos de saber, tem um sentido muito grosseiro em uma língua estrangeira, para termos a medida do valor que o uso desta pode fornecer ao recalcamento: a representação de palavra, na nova língua, permanece, por um bom tempo, totalmente dissociada da representação de coisa, a palavra de sua carne psíquica.

Para terminar a minha pequena história, retomei a minha análise com um outro analista, tendo feito um percurso de formação semelhante ao meu, mas com a mesma língua materna que eu. Como sempre, anos já tinham passado, eu estava residindo no Brasil e os tempos de análise na França tinham ficado para trás. N as primeiras sessões fui tentando ocupá-lo, propondo, mais ou menos mergulhado no que dizia, o prato requentado do luto do pai. Ele não esperou muito, cortando esse desenrolar com uma pergunta boba, formulada de uma maneira simpática: “Menezes, o que é um luto?”. Eu não ia me pôr a fazer ali uma dissertação sobre “Luto e ,elancolia”! Ele tinha desativado de saída este convite resistencial meu, fraca tentativa de relançar o velho e há muito tempo ultrapassado sintoma. Ora, já fazia muito tempo que eu me sabia fazendo parte de banda de assassinos.

Chute na trave, pois, para este início de partida. E o inconsciente, este infantil irresponsável, podia se pôr de novo a brincar com as palavras das línguas e das coisas que o agradassem; eu tinha evidentemente meios para me defender, mas ele poderia também dar de novo os seus golpes nos momentos que lhe fossem favoráveis, a escuta do analista ajudando, para fazer de mim outra coisa do que eu pretendia ser… Essas ocasiões, naturalmente, não deixaram de acontecer nos anos que se seguiram.

 

Post-scriptum

De lugar nenhum, de tempo nenhum, surge em movimento o fragmento minúsculo de um acontecimento que então se forma, flagrado, ao surgir de algum ponto distante em que algo, ao ter acontecido numa análise – descobrimos – não mais parou de acontecer. O que são algumas décadas para a vida onírica do agir inconsciente? N ote-se que já os destinatários do escrito em que brotou não eram quaisquer: estavam na mesma localização geográfica, no mesmo ambiente cultural, falando pois a mesma língua na qual, na época, transcorrera a análise. E o escrito se fazia, tanto tempo depois, na mesma língua.

O acontecimento que se forma no escrito é o de um assassinato, de um assassino em todo caso; inaugurado – o escrito – pela expressão “banda de assassinos” e que condensa bem o olhar com que Freud vê “a besta selvagem” sob cada humano, falando não como profeta a pregar uma moral, já que ele se inclui entre esses (Freud, 1929/1978, p. 64-65). Nem poderia ser diferente, ele que, em meio às agruras da morte do velho pai, na análise que começara – quando ainda não havia psicanálise, encontrou em si mesmo a ferocidade parricida. Assassinato do pai que tomou para ele a forma de um mito, de uma história extraordinária sobre as origens da estranha aventura em que uma das espécies do reino animal, catalogada como Homo Sapiens, teria sido desde então transmutada – a inocência perdida – em ser de cultura e de história, de culpa e de projetos, exuberante para além do concebível tanto para o bem como para o mal, assim como em sua camuflagem, noções, bem e mal, que tomaram corpo com ele, para modelá-lo e para torturá-lo.

Outras décadas se passaram e a morte já perto, o velho homem é ainda trabalhado pelo “acontecimento” que não para de acontecer. Inventa outra história, agora a do assassinato de um profeta por membros de tribos nômades primitivas, acontecimento soterrado pelos séculos que, no entanto, pressiona e impõe a criação de complexas versões difratadas para dar conta do crime na forma de crenças morais e religiosas, com visões muito elaboradas sobre a vida, o mundo e os homens, as artes e os costumes; é o que, para ele, encontra-se em constante trabalho dentro da cultura judaica. E, no interior dessa cultura, o assassinato do profeta volta à tona, tantos e tantos séculos passados, na forma do que se constitui como mais um crime contra um personagem divino, crime que relança a inventividade imóvel das formas religiosas até nossos dias (Freud, 1939/1986).

Fédida se preocupou com o que chamou de esquecimento do assassinato na psicanálise, pois sem considerar a necessária destruição violenta do ídolo cuja massa obtura o surgimento de lugares do figurável, do pensável (Fédida, 1995, p. 36) o processo analítico poderia, assim o entendo, ficar reduzido a um esforço para alcançar resultados benéficos, a uma forma de praticar cuidados terapêuticos catalogáveis, numa versão positivada de procedimentos feitos para fazer bem. Ao evitar a violência do assassinato que atravessa o desafio transferencial de cada análise, garantindo o trabalho do negativo e a instauração da ausência, esta pode não acontecer, a não ser como forma das sustentações sugestivas de qualquer relação interpessoal. Exemplo disto no escrito acima, seria a primeira experiência relatada.

Pontalis (1997), insiste no mesmo sentido, na necessária instauração da doce e suave melancolia de que é portadora a linguagem, ela que precisa estar de luto, ela que “é nossa grande, nossa permanente enlutada”, pois tendo o poder de tornar presente, este poder fugaz testemunha a perda de onde ela vem (p. 27). Se no início era o verbo, teríamos que saber que no início deste está o assassinato com devoração, mas mudo: este é que faz falar o primeiro poeta épico com palavras que dão forma ao crime ancestral, palavras com o poder de tocar o coração de quem as ouve. O verbo é o que inaugura, mas “no início estava o ato”: é com estas palavras do Fausto de Goethe que termina o mito freudiano de “Totem e tabu” (Freud, 1913/1993, p. 318). Esta perspectiva desencoraja positivar a psicanálise e a linguagem na forma de tecnologias de tratamento da mente, sejam elas “atuais” ou “contemporâneas”.

 

Referências

Fédida, P. (1995). L’oubli du meurtre dans la psychanalyse. In Le site de l´étranger. Paris: PUF, p. 17-51.

Freud, S. (1978). Malaise dans la civilization. Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1929)

_____ (1986). L’homme Moïse et la religion monothéiste. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1939)

_____ (1993). Totem et tabou. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1913)

Tesone, J. E. (2006). Da língua da mãe à língua materna ou como construir a língua. Revista Brasileira de Psicanálise, 40, 2, p. 124-143.

 

 

Endereço para correspondência
Luís Carlos Menezes [Sociedade Brasileira de Psicánalise de São Paulo SBPSP]
Rua Deputado Lacerda Franco, 300/134 – Pinheiros
05418-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3030-9382
E-mail: menezes@sbpsp.org.br

Recebido em 24.2.2009
Aceito em 25.3.2009

 

 

1 67º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, Paris, 17-20 de maio de 2006.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP com função didática e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
3 Tuer, com pequena nuança de pronúncia, pode ser tanto o infinitivo do verbo “matar” como substantivo, designando um “assassino”.

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