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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.4 São Paulo 2010
ARTIGOS
Simbolismo e construção: o analista como porta-voz da cultura
Simbolismo y construcción: el analista como portavoz de la cultura
Symbolism and construction: The analyst as a spokesman of culture
Daniel Delouya1
RESUMO
A atenção aos desafios da escuta na clínica e a constante preocupação que ela desperta, juntou-se, ocasionalmente, com uma discussão acerca do lugar do simbolismo na interpretação dos sonhos e na clínica psicanalítica como um todo. Relação e reflexão que esboçaram uma linha contínua entre o simbolismo e as construções em análise. Linha que desemboca, curiosamente, nos parâmetros da escuta psicanalítica, suas variantes e o modo pelo qual o analista se "encarrega" dos mesmos. O trabalho parte da oposição do simbolismo ao método inaugural da psicanálise, sua posterior acomodação nela e a maneira pela qual acaba conduzindo para construções em análise. Ambos, simbolismo e construções, enlaçam-se nos eixos constitutivos da vida psíquica, assim como nos da escuta psicanalítica. A articulação segue entremeada por ilustração de momentos clínicos de diferentes experiências da escuta, possibilitando aprofundar a reflexão sobre os alicerces desta e sua relação com as demandas e as estruturas clínicas.
Palavras-chave: simbolismo; construção; protofantasias; porta-voz; escuta.
RESUMEN
La atención a los desafíos de la escucha en la clínica y la preocupación constante que despierta, se unió, de manera ocasional, con una discusión sobre el lugar de simbolismo en la interpretación del sueño y de la clínica psicoanalítica como un todo. Relación y reflexión que indican una línea sólida entre el simbolismo y la construcción en el análisis. Línea que conduce, de manera interesante, a los parámetros de la escucha psicoanalítica, sus variantes y la forma en que el analista está "a cargo" de ellos. Partimos de la oposición entre el método psicoanalítico y el simbolismo, su posterior adaptación a este y la forma en que lo conduce a las construcciones en el análisis. Tanto el simbolismo como las construcciones, enlazan los ejes constitutivos de la vida psíquica, así como de la escucha psicoanalítica. A continuación se ilustran diferentes momentos clínicos de diferentes experiencias de la escucha, permitiendo la reflexión sobre los fundamentos de la misma y su relación con las demandas y las estructuras clínicas.
Palabras clave: simbolismo; construcción; proto-fantasías; portavoz; escucha.
ABSTRACT
The attention to the challenges of listening within the psychoanalytical setting, and the constant concerns it involves, was joined occasionally with a discussion about the place of symbolism in dream interpretation and in the psychoanalytic clinic as a whole. This reflection enabled us to trace a solid line between symbolism and construction in psychoanalytical work. A connection which, curiously, led us to the parameters of psychoanalytic listening, its variants and the way the analyst becomes "in charge" of these. The study takes as it's starting point the opposition of symbolism towards the initial methods of psychoanalysis, its subsequent accommodation in these, and how it finally points the way to constructions in analysis. Both symbolism and constructions determine the constituent axes of psychic life, as well as those of psychoanalytic listening. Clinical situations are used to illustrate some of the points of our reflection on the foundations of clinical listening and its variations according to clinical demands and structures.
Keywords: symbolism; construction; primal-fantasies; spokesman; listening.
O simbolismo e o método
Os termos de símbolo, simbólico, simbolismo e simbolização comparecem frequentemente na literatura e na discussão psicanalíticas. A realidade psíquica é indissociável do símbolo e do simbólico, uma vez que se erguem em função da ausência: o que seria o símbolo senão o elemento que se cria à distância sobre o hiato da falta, em um descentramento?! Na bela definição de André Green (1993), o psiquismo é uma relação entre dois corpos em que um está ausente. Não obstante, os conceitos do símbolo e do simbólico, assim como os do simbolismo e da simbolização, são articulados dentro da psicanálise, nas diversas obras e discussões, em sistemas singulares de sentido e significação. Os símbolos, na concepção clássica, compõem uma reserva de referências pré-fixadas da interpretação. Ora, o simbolismo como chave interpretativa – por meio da qual o leigo compreende toda a psicanálise ("isto significa aquilo…") – é justamente o que foi contestado no livro inaugural, A interpretação dos sonhos. No capítulo II, sobre o método, Freud afirma: "... a técnica que passo a descrever impõe a tarefa da interpretação ao próprio sonhador" (p. 130), na atenção imparcial (associação livre) que ele presta às cenas que nele emergem. Somente esta meta, que foca elementos singulares (em oposição a uma simbolização de acordo com parâmetros gerais, fixos), permite, na neurose, dissolver o sintoma ou, na psicopatologia cotidiana, resolver o seu análogo, o sonho. Neste processo, os substantivos auflösung e lösung, das respectivas descobertas (da cena em jogo) e resolução-dissolução (do sintomasonho) têm a mesma raiz (lösung). Já em 1892, Freud concebe o sintoma como símbolo mnêmico – símbolo de um vivido singular. Portanto, o simbolismo como chave, a partir de referências gerais e fixas, se colocava, naquele momento, na contramão do trabalho psicanalítico.
Uma aparente reviravolta ocorre na segunda e na terceira edições do livro (1909 e 1911) quando ele insere o simbolismo no tema das fontes dos sonhos, e da vida psíquica, incluindo-o no capítulo V, na sessão de sonhos típicos. Freud se posiciona, então, em relação à influente obra do dissidente W. Stekel (1911/2003), A linguagem dos sonhos. Com isso situa o simbolismo no cerne da vida psíquica, e o tema migra, em 1914, para o importantíssimo sexto capítulo, "O trabalho do sonho", em que passa a constituir um setor da fábrica dos sonhos. Porém, logo a seguir, em 1917, na décima conferência, o simbolismo é deslocado, novamente, para constituir um capítulo a parte, independente do trabalho do sonho.
Essa reforma faz suspeitar de uma tentativa de acomodar o simbolismo, este em relação ao qual a clínica psicanalítica se constituiu por oposição. Seria um passo para trás, um desvio do próprio e inovador caminho do fundador? (acusação frequente a Freud por ter recuado da teoria da sedução, introduzido as protofantasias e a pulsão de morte, e pelo modo de conceber a feminilidade, entre outros). Vale examinar os detalhes desta guinada, já que o simbolismo de Freud pouco tem a ver com a apropriação de uma chave: nenhum analista carrega ou se utiliza de manual de símbolos, assim como jamais se empenha em estudá-los como tais, como ocorre entre alguns jungianos e homeopatas. Uma casa no sonho nem sempre simboliza o corpo, e tampouco pontiagudos objetos referem-se ao falo, assim como os movimentos de subir e descer não indicam, obrigatoriamente, a respectiva excitação e gozo sexuais etc. Freud se nega a absorver todo o ato interpretativo para dentro dos clássicos modos de decifração e tradução, a despeito desta sua inédita acolhida do simbolismo. Do que se trata, então, quando, na interpretação, lança-se mão do simbolismo? A resposta de Freud é inequívoca: o simbolismo remete a representações que o paciente não é capaz de alcançar nem pela associação livre e tampouco pelo desbloqueio desta por meio da atenção que o analista dirige ao seu silêncio, ato, palavras, lapsos e atos falhos. Os símbolos reportam-se a cenas, podendo ser apontadas, implicadas ou explicitadas nas intervenções do analista, que se torna com isto mensageiro de significados simbólicos, embora, frequentemente, sem sabê-lo. Ele se distingue de outros caçadores de símbolos no modo de evocação dessas cenas: ao serem recrutadas do acervo cultural, elas se disponibilizam à sua mente pela via regressiva da situação analítica, tornando-se, de uma só vez, encontradas e criadas; são análogas às imagens virtuais criadas no microscópio ou no telescópio [em função da disposição das lentes, em analogia ao particular arranjo "entre neurônios", onde, segundo Freud (1900), se cria a cena psíquica] e descobertas pelo observador.
Uma paciente relata no período inicial de sua análise que tem tido sonhos com a cena recorrente de se encontrar em casarões de estranhos onde se engaja, aflita, na limpeza e na remoção de lixo. Na véspera sonhou que, ao varrer o chão, aproxima-se da porta da entrada, avistando, lá fora, seu falecido pai que se dirige a ela em tom irônico, e de zombaria: "limpando, né?" Como se dizendo, penso eu, "pode limpar que vou sujar novamente". Ela foi bolinada pelo pai desde tenra idade. A casa como símbolo do próprio corpo vem, imediatamente, à minha mente, conferindo um sentido ao campo da transferência: neste início de sua análise ela mal conseguia falar, havendo certo esforço para concluir as frases. Uma tensão angustiante, de um temor misturado a uma excitação, permeava o nosso ambiente. Após dias, uma lembrança irrompe em seu tenso silêncio: a vivência nítida de estranheza na escola, junto às crianças (como se estivesse "suja") após o pai tê-la tirado de madrugada do quarto no qual dormia com as irmãs, para se consolar da morte do seu pai (o avô da paciente), ocorrida na véspera. Embora eu nunca lhe houvesse explicitado o elo entre casa e corpo, ele constituiu o fio condutor do trabalho da análise nesta via regressiva da transferência. Os sonhos de casarões nos acompanharam por alguns anos, transformando-se em imóveis próprios, inicialmente com espaços vazios, limpos, mas visitados pelos raios de sol e adquirindo compartimentos, móveis em que ela passa a encontrar e ordenar suas posses e receber estrangeiros....
Simbolismo e construção
Os dois aspectos levantados sobre o símbolo – como representação que surge na análise pela via regressiva (como criação e encontro) e tendo o analista como seu único porta-voz – o coloca em estreito parentesco com as construções em análise. Introduzidas em 1937 na técnica analítica (embora já mencionadas em 1919), sua característica é de serem geradas no analista pela via regressiva da transferência. As construções vêm se destacando hoje na psicanálise. Incluí-las no grupo das interpretações simbólicas poderia clarear o eixo específico de suas urgências clínicas atuais. As construções recolocam as associações do paciente em marcha (Freud, 1937); ao serem ofertadas pelo analista, servem de complemento, facilitando ao paciente retomar o curso das associações. Essas se enlaçam aos elementos simbolizados (nas construções feitas pelo analista) por serem ambos criados e encontrados na análise, constituindo, a meu ver, aquilo que Winnicott (1971) denomina de objetos culturais.
A incursão pela série de representações simbólicas, descrita no cap. VI de A interpretação dos sonhos, revela que simbolizam o corpo, a sexualidade, a castração, o nascimento e a morte. Ou seja, o simbolismo lida com o infantil e o seu universo sexual de investimentos nas suas duas e interligadas dimensões: a narcísica e a do desejo no contexto edípico. Na conferência X, de 1917, Freud atribui a origem do simbolismo ao modo animista de pensar da atividade perversa polimorfa infantil em que o mundo imanta-se das formas, figuras e movimentos do corpo. Os símbolos se criam pela identificação, deslocamento e transferência do corpo sexual infantil sobre o mundo, segundo a concepção ferencziana de introjeção (1909), como se essa linguagem, do simbolismo, se estruturasse como um inconsciente. O simbolismo permeia não só os sonhos, mas também os nossos mitos e idiomas, entre outros motivos culturais. Surge, então, a seguinte pergunta: por que a consciência de um símbolo não é acessível diretamente ao sonhador, mas necessita do analista para alcançá-la?
O entrelaçamento de fatores singulares e gerais na vida e no trabalho psíquico vislumbra- se muito cedo em Freud: na carta a Fliess, de 21/9/1897, ele afirma que o sintoma neurótico não constitui apenas o símbolo da vivência infantil desencadeada pelo adulto perverso (carente), mas que tal "lembrança", traumática (e que adoece!), é consequência de simbolização, de estruturação fantasmática em um molde, um símbolo geral – imerso na cultura – da sedução. Revisão que demora a chegar ao público porque ele se debate em como conciliar dois universos distintos: de um lado, a descoberta, de 1892 a 1896, da origem da vida psíquica na sedução pelo adulto – este é a caput nili, a cabeça do rio Nilo onde, no mito do Oriente Médio, se origina a vida – que impõe desvio da ordem vital (das necessidades da criança) para a geração da cena do corpo sexual, psíquico; de outro, o esquema pré-formado presente na fantasia. A associação livre implica os efeitos da sedução infantil, já que em cada experiência, e na análise, uma exigência de realização, despertada (entre os corpos) pela conjunção do aporte sensório com as demandas internas, ocupa e acorda trilhas mnêmicas, frutos da história, dos desdobramentos dos primeiros precipitados da figuração (darstellbarkeit) da sedução originária, aquela que se teceu entre os corpos e suas tensões, instaurando cenas. A análise retoma, regressivamente, as rotas mnêmicas, reavivando-as e sofisticando-as, ao destrinchar e ao reordenar, respectivamente, as condensações e os deslocamentos nas quais se plasma a cena do sonho e do "material" psíquico da vida e da análise. No entanto, as associações do paciente jamais alcançam – como lembrança ou insight – cenas antigas, criadas em estados indiferenciados (onde a noção de si – e, portanto, da fala – sequer se esboçou), senão os seus desdobramentos em estágios posteriores da espiral do crescimento. Ocorre que o paciente insere o analista na apreensão de moldes primários da dissimetria adulto/criança e seus dramas e roteiros: não só da trama da sedução, mas de outros esquemas nela imbricados, como os da cena primária e o da castração, além de outro esquema especial: o retorno ao ventre materno, o nirvana. O último abole, curiosamente, a lógica descentrada dos primeiros esquemas, constituindo a finalidade desses: anula/alivia narcisicamente, a tensão dissimétrica, simbolizadora, que dirige o bebê para a cultura. Uma lógica, interior aos três esquemas, que rege as respectivas coordenadas das origens e da constituição do sexual (na sedução), da diferença entre as gerações (pela cena primária) e da alteridade (castração) – as três submetidas à aspiração narcísica de se aquietar no estado de nirvana.
As protofantasias permeiam a cultura e engendram, na história, o patrimônio de símbolos. Projeto e acervo que, através do adulto, como mensageiro e empreendedor dos mesmos, submetem duplamente o sujeito: ambos o determinam, antecipando-o, seja pela herança, capacitando-o para a cultura – como se evidencia na sua entrega passiva ao adulto ou na sua "identificação direta, sem investimento, aos pais" (Freud, 1921/1985 e 1923/1991b), implícitas à dissimetria da cena primária e a da sedução –, seja porque essas coordenadas simbólicas, e seus símbolos consagrados, constituem o meio humano no qual o bebê adentra. Em segundo lugar, porque esse esquema e seu acervo impelem o sujeito para uma trajetória em meio a qual se apropria dos mesmos concomitantemente à aquisição da noção de si. Tal consciência, que é sempre evanescente, é, no entanto, inaugurada em certo estágio, traçando a condição de futuras condições de subjetivação. O bebê, afirma Freud em 1905, enxerga em certo momento o objeto como um todo, isto é, no instante em que "o objeto se perde": o seio ao qual se endereçava até então é percebido, pela primeira vez, como pertencente a um corpo, ao outro. "Neste instante, a pulsão se torna autoerótica" (p. 88), como se os "bens" adquiridos outrora, no estágio de indiferenciação (de "fusão") com o objeto, se tornassem próprios concomitantemente à percepção de estar separado, ao perder o objeto e reconhecê-lo como tal. Tal encontro com o objeto – isto é, com sua incontornável perda –, é inicialmente negado. Porém, o objeto poderá ser reencontrado após uma longa jornada: desde a trama edípica, despertada pelo referido vislumbre inédito do objeto, já que acarreta a percepção do outro do objeto; seguindo na dissolução desta trama ao desembocar na ameaça de castração, e durante seu acabamento no intenso trabalho negativo [recalque, inibição dos fins (dos investimentos da pulsão), sublimação e, sobretudo, a identificação] do período da latência.
Concebemos a construção em análise como reforma à obra originária do objeto. O objeto de origem empreende a construção onde necessidades e pulsões do bebê, reveladas pelo objeto – pela falta que ele faz –, submetem-se à atenção do adulto que, situado em via regressiva (flutuante, sonhante), oferece figuras, formas, sentidos e significados segundo moldes e matrizes simbólicas do plano edípico da história, traçada pelos esquemas das protofantasias. O movimento centrífugo disparado por estímulos do interior do corpo e sensoriais, empurrando o bebê em direção ao mundo em busca de realização, se engaja não só em via eferente, deslocando-se e desencadeando a série de permutações, onde signo e símbolo formam-se pela troca e equivalência, conforme o uso de Klein (1930/1975) da introjeção de Ferenczi. Mas a simbolização se deve, também, ao movimento complementar no sentido contrário, isto é, centrípeto, de retorno sobre si, que introjeta criando linguagem, no corpo, por se guiar pelos sentidos, formas e figuras propostas pelo objeto.2 Essas são impregnadas, porém, do regime edípico universal da cultura. O precioso na criação desta rede simbólica viva é abrigar produtos – símbolos transitórios e evanescentes da experiência criada entre os corpos – situando-se no tempo e no espaço do regime intermediário, virtual e não concreto. Embora sejam conduzidos por um mestre (a cultura) são gerados sob a égide do trabalho do sonho – pela pressão de uma realização e pelo ímpeto de se substituir metonímica e metaforicamente. Não obstante, adquirem outro desdobramento na série simbólica, porque deixam, após desvanecer, a herança de marcas mnêmicas, retomadas na experiência que se sucede. São esses seres na sua constante geração e em seu brincar, que se apresentam posteriormente na associação livre do paciente. Nessa metáfora do brincar é necessário garantir um playground e uma "vigilância" sobre tais "crianças" da alma. Uma reserva do recalcado, disponível ao uso, precisa de nome e endereço (para "saber" a quem "elas" pertencem), isto é, de um eu investido pelo qual se estabelece a circunscrição viva de um dentro em relação ao fora.3 Refiro-me à constituição do terreno narcísico com que Freud inaugura a segunda tópica. Um guardião e provedor, indistinto no começo (para o bebê), cumpre essa missão. Com o vislumbre de estar separado que inicialmente se evidencia pela ameaça da perda de amor, são as identificações primeiras, previamente iniciadas (tanto do adulto com o bebê e deste com o adulto), que se colocam à prova, permitindo uma consolidação de uma referência subjetiva que se encarrega deste pano de fundo narcísico. O eu é constituído pelo investimento do outro, do adulto. Sem isso não há como permitir, mais tarde, o jogo livre das representações, a "soltura das crianças". Para investir o outro como outro é preciso ter sido (o eu) cuidado, investido (Freud, 1914). É a condição do tipo de escolha de objeto por apoio (anlehnungs, que foi traduzido, em português, como escolha anaclítica ou vinculação sustentada), em oposição ao tipo de escolha narcísica do objeto que abriga em seu bojo uma reivindicação de revisão de falhas nos investimentos do objeto de origem.
Após tais considerações gostaria de voltar à questão inicial: por que a construção em análise e a interpretação simbólica são introduzidas no analista, não podendo ser alcançadas pelo paciente? Porque remontam às provisões narcísicas do objeto (parágrafo anterior) que condicionam o alcance da noção de si concomitantemente à da separação do objeto. Os autores pós-freudianos e a literatura psicanalítica atual focam as dimensões fenomenológicas dessas funções. A construção em análise e os símbolos-mãe, aos quais o analista dá voz, advêm como reparos à obra originária do objeto. O que denomino como noção de si, e de estar separado, encontra-se na psicanálise inglesa no âmbito da noção do ser e de sua continuidade. Neste plano fenomenológico, o ser, como presença e continuidade, deve sua construção à provisão das respectivas funções de continência (Bion) e de holding (Winnicott) pelo objeto. Já o nosso plano arquitetônico refere-se à submissão da desordem corporal do bebê ao universo psíquico do adulto, em que o projeto edípico rege, com suas coordenadas (protofantasias) e seus materiais (símbolos culturais), a condução da construção da nascente vida psíquica. As imagens psicológicas das funções narcissisantes do objeto – continência e holding –, obtém, aqui, nos seus termos paralelos, arquitetônicos e executivos (submeter e conduzir) do plano edípico, uma especificidade da matéria psíquica gerada neste ser e sua continuidade: o seu caráter social, intersubjetivo (Freud, 1921). O que destaco é a "mãe mensageira da castração" (Freud, 1916), que visa, em seus cuidados, despachar o bebê para outro universo: social, do terceiro. O narcisismo como fundamento se instaura pelo Édipo dos pais; assim, o mais primitivo, aquilo que é edificante na função construtiva do objeto, se deve à trama edípica.4 É notável que as funções de continência e de holding, originalmente cunhadas para o manejo de quadros clínicos graves, da psicose, foram articuladas, na elaboração teórica da constituição subjetiva, como dependentes da viva configuração da estrutura edípica no adulto: por exemplo, Bion condicionou a rêverie da mãe (sua provisão da função alfa), na sua capacidade de levar em conta o terceiro ("amar o pai") e/ou o seu equivalente, enxergar o bebê como ser separado dela. Winnicott afirma que o bebê só se separa da mãe para poder enxergar e "usar o objeto", se a mãe for dotada de uma disposição inconsciente em poder apontar para um "pai", isto é, para um objeto total, inteiro, situado fora dela – o 'pai' ocupa a função de sinalizar, para o bebê, o caminho de saída ao mundo.5
Falhas na construção de origem e sua reconstrução
Nossa exposição acerca da construção parece extrapolar a descrição do conceito freudiano. Ademais, não distinguimos, suficientemente, o simbolismo da construção. Em "Construções em análise" (1937/2002), Freud limita o conceito ao trabalho do analista; ele propõe substituir o nome de interpretação pelo de construção, porém, logo se verifica que a última pertence a um grupo especial de interpretações. A interpretação como esclarecimento em analogia ao exame de objetos arqueológicos e sua função ("isso é…, significa…") participa da reconstrução do passado, permitindo aceder ao vivido da lembrança, por via de associação livre, insight e levantamento do recalque, postos em marcha pelo dispositivo analítico que mobiliza a transferência, e a repetição inerente a ela. Eis a interpretação como ligação-reconstrução, imergindo o sujeito nas suas lembranças. Por outro lado, existem as interpretações que não promovem a lembrança, e não poderiam fazê-lo, pois pertencem a uma época, diz Freud, anterior à fala, em que não havia um sujeito distinto como tal. Numa linguagem comum, pode-se dizer, com Winnicott, que não havia alguém para viver aquilo lá; o bebê passou por algo, sentiu (Bion), mas não atravessou, não viveu: não se deu conta, ali, de algo seu. Ao propor uma construção, o paciente é levado para uma espécie de convicção, porém, não de um re-conhecimento, como na lembrança em que se abre o universo afetivo, mas de outra ordem, que se situa muito mais no nível de ação pré-subjetiva, aquela oriunda da alucinação e do devaneio (descrito por Freud como "divórcio" da realidade, porque a percepção não se abole) e que associa com a distorção do trabalho (do sonho) efetuado, no delírio e nas alucinações psicóticas, sobre uma verdade histórica do sujeito. A revolução na ideia da construção reside justamente nisto, porque nela o analista está engajado não mais como auxiliar do paciente para desatar, dissolver (lösen), os nós que embaralharam a associação livre em direção a insights e lembranças, mas como agente de "uma nova ação psíquica" (Freud, 1914/1991c) por meio da qual se adquire a noção de um si, propriedade; eu diria de subjetivação, se essa palavra não fosse gasta em demasia hoje. Se Freud aponta para um material que pede subjetivação, ele se refere a uma função em que a matéria-prima dos estímulos – cuja natureza é aspirar à realização (é, inerentemente, alucinatória) – precisa prover esquemas de sentido, formas e figuras do humano. Esse papel, narcísico, que torna o alucinatório recalcável, permeável ao après-coup (J. André, 2009), é condicionado pela encarnação, no adulto, de coordenadas (protofantasias) do plano de Édipo.6 E Freud, no final do ensaio de 1937, nota que a construção implica recorrer a tais esquemas. No plano subjetivo, a construção se faz pela figuração no analista, nascida do encontro e derivada dessas coordenadas.7 Figuras e hipóteses que o casal Botella concebeu de "trabalho como duplo" (1995/2005). Esse retoma a função narcísica, da ação psíquica especular e reflexiva do adulto à qual Freud se refere no "Projeto...", que consiste em remeter o bebê para suas "imagens de movimento", para que ele as alcance como "notícias de si" (Freud, 1895/1995).8
Um paciente, há anos em análise comigo, narra um episódio da véspera: foi visitar uma amiga e, no caminho, é assaltado por uma fome que se impõe como ameaça de urgência repentina e incontrolável de comer algo. Situação que já viveu na sessão, informa-me pela primeira vez, e que o levou a suspeitar de uma hipoglicemia. Ao narrar-me essa vivência, em um clima peculiar, fico tomado por uma imagem inédita de solidão, de agonia por estar só em um ambiente descoberto, "furado", sem retaguarda. E que logo apreendi (construí) como a experiência do bebê desacompanhado pela presença de uma mãe alheia. Tudo isso compareceu em mim, em uma só vez, como experiência primitiva, em que um representante psíquico da pulsação de fome parece se desnudar da contribuição do objeto: ela pouco abriga vorstellungtriebrepresentaz, ou seja, fica carente de vestígios da presença do objeto, de representações vivas dele e com ele, e que por isso esmaece o tempo ao mínimo, dando-lhe a feição de ameaça sob urgência esmagadora. Essa figuração não deixa de se enredar, com o tempo, no campo de sua neurose que, salvo incidentes como esse, se acomodava no quadro de neurose de coerção: em sua vida amorosa se mostrava prestativo, entregue e fiel, ao modo do bom menino e consolador da mãe (ligava-se, costumeiramente, a mulheres feridas em seus recentes relacionamentos), mas após certo período, diante de frustrações menores, nas quais passava a se sentir desconsiderado e desvalorizado, e portanto traído na mútua atenção, caía em decepção e encerrava o namoro, apesar dos esforços da parceira em lhe mostrar seu equívoco e convencê-lo a ficar. Um homem bastante culto, no entanto incerto de sua posição e aceitação junto aos outros, o que o levava a frear seus avanços profissionais e passar a habitar, apesar de não mais tão jovem, as margens de bandos de sua juventude que continuam perpetuando a vida nos modos adolescentes. No contato, a sua notável cordialidade não dissipava o incômodo sentido pelo interlocutor, por mim no caso. Uma "nuvem" pairava sobre a sua reputada boa índole. Sombra na qual logo identificamos o véu que o separa das coisas e dos outros. Um amortecimento torna-se com o tempo visível, assim como sua implícita crença de poder, com isso, proteger – embora sob perigo de apagar – algo que parece estar em busca de refúgio junto à íntima companhia das mulheres. Nesta, nutria a esperança de ter encontrado o solo apropriado para fazer este algo vicejar. A construção acima indica, ao vivo, que este algo abrigava as incitações originárias de uma busca de companhia viva, de linguagem, de acolhida figurativa por parte do objeto. Espera que o engajou em uma vigilância rigorosa sobre a violência do seu desejo e seus precursores nele, freando-os. O período que se segue ao episódio narrado traz ao nosso trabalho vários vestígios dessa sua história e conflitos até então difíceis de terem plena expressão e elaboração.
A condição do "trabalho como duplo", de alucinar, figurar e viver, a solidão do paciente – cuja raiz remonta aos inícios da vida, afetando os troncos, galhos e copa da árvore de sua história –, e poder transmiti-lo em duas frases, é implícita à identificação, própria da dissimetria no esquema das protofantasias, sobretudo da cena primária, que estrutura a diferença da geração. É essa identificação que nos permite cair dentro do vivido e se abrir para ele, através do grito e do encontro do bebê e da criança que fomos, para o adulto de nossa infância, como Freud nos lembra desde 1895 até 1914. O eixo narcísico deste trabalho no analista surge, frequentemente, após longos períodos em que a atenção flutuante fracassa, ao se deparar com rachaduras e bolsões formados no meio do tecido contínuo do encadeamento associativo. No paciente citado, o amortecimento progressivo gerado à medida que ele se aproximava de regiões mais sensíveis de seu desejo, surtiu esse efeito que, em mim, levou ao alheamento, interrompendo minha atenção à sua fala, ou fazendo com que eu me apressasse em fixá-la após perceber, aflito, que o havia perdido no meio do caminho, ficando à mercê do torpor e do amortecimento próprio. A tolerância a esta vivência desagradável dispara, a meu ver, o início do trabalho de figuração no analista, atingindo aí o poder de ferramenta de construção. Essa equivale a uma nova tentativa de agir – como nota J. André (2009) – sobre as primeiras impressões, retomando o trabalho do objeto, para torná-las permeáveis ao recalcamento. A construção, e mesmo a oferta de símbolos, são sempre recrutadas para o serviço de reparo nos eixos e nos elementos da constituição do eu do paciente, atingidos outrora, de uma forma ou de outra, pelas falhas da ação psíquica do objeto originário. O fato de se tratar de "atentados ao eu" não significa, necessariamente, que se adentra o recinto de pacientes-limite, mas o das demandas-limite. Continuo incluindo o citado paciente e outros, com quem atravessei episódios de ordem análoga, entre os neuróticos, assim como, de outro lado, pacientes-limite demonstram, como enfatiza Menezes em seu comentário ao trabalho de J. André, um sofrimento neurótico e um anseio, perigosos de negligenciar, relativos ao desejo. Seja como for, as problemáticas do desejo e as do eu são imbricadas uma na outra, o que tentei distinguir, em meu modelo acima, pela diferença entre, de um lado, o manejo do recalcado e, de outro, a sua construção. É certo que a escuta e seu campo da transferência é que nos insere no tipo de obra em questão, e há um largo espectro para cada uma das referidas classes.
Uma paciente que dificultava minha apreensão do que dizia, obrigando-me a fixar minha atenção em vez de deixá-la fluir, inundou-me por um bom tempo com uma fala ininterrupta que me deixava em estado de alheamento peculiar. Frequentemente, ela parava perto do fim da sessão e perguntava/cobrava explicações sobre o que ela havia relatado, despertando em mim uma angústia atenuada, porém culposa. Enquanto falava, eu vagava alhures, nem sei por onde, até que um corte de entonação em sua fala torrencial destacava as palavras "por outro lado", balançando meu barco para me fazer suspeitar que o mar em que parecia ter sido lançado era, talvez, só um rio, cujas margens enunciadas, de um e outro lado, erguiam a esperança de que eu estava prestes a me localizar. Somava então esforços, catando restos da sua fala que ainda ecoavam em meu ouvido, para a busca ou a confecção de sentidos. Isso se desembocava em racionalizações, sem efeito algum, a não ser o de um mal-estar que se acumulava de uma sessão a outra. Não se tratava de um desinteresse, pois ela me despertava a mais franca simpatia. Numa ocasião recente, transpôs-me em uma cena em que algumas jovens alegres visitavam a casa em que mora e trabalha. Surpresa, ela se indagou por que ficou neste caso, também, esgotada. A visita sequer exigiu algo que pudesse justificar a tensão e o agito que passaram a dominá-la, e nos quais costumava mergulhar após a reação de seu entorno ao modo de ela se adiantar em preparar e cumprir sozinha as tarefas. Ficava, então, prostrada e decepcionada já que, em vez da esperada recompensa em reconhecimento, era repreendida por ter se precipitado a fazer tudo antes de receber o sinal verde dos outros. Uma imagem lorenziana, de um imprinting à mãe, surgiu em mim juntamente com a visualização dela se plugando, em silêncio, ao corpo das jovens visitantes, à semelhança da fixação do radar ao seu objeto. Um estado de estar fisgada ao que se deve o aumento da tensão na paciente até um nível de esgotamento, impedindo-a de relaxar e liberar seu corpo ao gozo de um brincar em meio ao convívio feminino. A imagem abriu-se em mim, iluminando seu modo torrencial de despejar palavras – como a criança que fica falando e falando, seguindo, cegamente, os passos do adulto, sem notar o trajeto empreendido e tampouco o tempo transcorrido, pois se encontra sob uma ameaça de se perder de sua vista. Criança aflita pela possibilidade de se abrir, no adulto, uma fresta que mostrasse um espaço nele desocupado dela (a criança), e, portanto, livre para a entrada de terceiros. Uma carência de origem cuja construção – que, também, aqui, convoca ao trabalho um elemento encarnado na diferença das gerações, impelindo-nos em uma identificação à agonia de uma criança de outrora ante o adulto enlutado – permitiu-lhe um melhor acesso à sua histeria e à sua feminilidade. A construção iniciou com uma relação que eu "vi" – "você ficou esgotada porque plugada…" e que teve nela, também, o efeito de convicção. Essa que propiciou apropriação, associada à construção que seguiu o meu testemunho, e que a levou, após uma pausa de silêncio, ao insight, com dor e choro (raro na paciente), abrindo mais caminho para o manejo do seu conflito neurótico.
Gostaria de concluir os pequenos fragmentos clínicos que evoquei, para ilustrar as circunstâncias que solicitam do analista a figuração na simbolização e na construção. A urgência da construção em análise parece-me, sempre, conjugada à evidência de um atentado feito à fala do paciente, expressando-se por meio do estancamento, ruptura ou barragem no fluxo da escuta, na atenção flutuante do analista. Entretanto, as modalidades em que se manifesta esta obturação são extremamente variadas. A paciente citada no início do trabalho, quando da solicitação e evocação de um símbolo que serviu nossa escuta desde o início do trabalho com ela, há mais de uma década, disse-me, recentemente, em meio ao encerramento de sua análise e com uma convicção marcante: "Sabe, hoje sei que jamais conseguirei recuperar a fala, de poder falar plenamente ao outro. A conquista foi parcial e não valeria a pena esperar por muito mais do que isto". Não saberia precisar hoje qual foi o período, certamente anos, em que o ar do seu silêncio – que me esforcei em conter e segurar em meio a uma intensidade que emanava dela, exigindo-me paciência, espera atenta pelas imagens, pelos clarões das cenas em jogo – interrompia-se por frases cortadas, dilaceradas, lançando-me, de início, em fantasmas onde "alguém" encostava-a contra a parede e, outras, de assédio e de assalto, em que o agente nem sempre se fundia a mim, embora se confundisse, por instantes, comigo. A intranquilidade mudou de figura com o tempo, porém o ímpeto de colher as frações e as migalhas de suas palavras, justapondoas e, mais tarde, completar os fragmentos de frases que começaram a surgir, juntando-as em parágrafos – toda essa violência à linguagem, à fala, impunha um desafio imensurável para a garantia do fluxo de alguma escuta. Porém, essa só foi resgatada em certos períodos, após construções e reconstruções, ao recorrer de forma espontânea a símbolos do acervo cultural. Um trabalho cuja recompensa se reflete, desta vez, na sua plena fala da declaração acima.
Se na análise, construção e símbolos incidem sobre falhas narcísicas, "atentados ao eu" oriundos da construção originária junto ao objeto, vale dizer que há, contudo, uma diferença entre símbolos e os encarnados esquemas das protofantasias. Na análise, atinge-se a construção pela realização e figuração (teorização), enquanto os símbolos comparecem como conteúdos desta realização. As teorias, as infantis e posteriores, entre as quais as psicanalíticas, como parte da atividade cultural e seus mitos, são derivadas dos esquemas das protofantasias. Popper (1972) assemelhou os seres vivos e sua geração a teorias vivas em constante transformação, criando sistemas abertos ao teste da realidade, a uma seleção. A teoria, em psicanálise, tem um estatuto corporal análogo: as teorias sexuais infantis surgem no início do roteiro edípico, com a percepção de estar separado, quando se começa a tomar nota da existência desses outros do outro almejado. A primeira questão, a existencialista, "de onde vim?, de onde vêm os bebês?" é uma realização da dissimetria dos esquemas das protofantasias, da cena primária e da sedução: "o que vim fazer aqui? O que ele quer de mim? "Che vuoi?"(Lacan). O que eu sou para o adulto?". Indagações devendo-se ao início da elaboração narcísica, tendo a função, concomitantemente, defensiva e constitutiva, decorrente da configuração edípica, e que se dispara no bebê ao se perceber separado. O que o incita, em angústia, a teorizar, gerando hipóteses no movimento regressivo às fixações, de cunho e fins narcísicos, da trajetória da libido: "os bebês nascem da boca, emergem da cloaca", assim como podem tomar o caminho de volta e "ser aspirado nesses buracos, em seu abismo".
Para concluir, e voltando para o eixo da situação analítica, as notas acima apoiam a ideia de que os esquemas do plano edípico constituem os alicerces da escuta psicanalítica, da linguagem, seja pela exigência que nos impõem retomar o projeto da constituição da vida psíquica nas pegadas da construção de certo sujeito, para fins de reparo, seja para o manejo e a administração de seu fluxo. Afirmação que, se passasse pela crítica, realçaria a hipótese de Freud, cuja raiz se encontra desde 1895 (no caso Elizabeth), precisada no texto de 1913, "Totem e tabu" e suplementada em seu Moisés de 1938: a escuta, a linguagem e a vida psíquica têm seus alicerces em um ato que estruturou o humano e lhe deu a história – o assassinato do pai. A estrutura dissimétrica que este ato instaurou sobre a selvageria instintual originária é retomada incessantemente em nosso trabalho, na cura analítica. É o ato, então, que estruturou e ainda estrutura – isto é, possibilita – a linguagem de nossa escuta.
Referências
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Daniel Delouya
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Capote Valente, 439, cj. 104
05409-001 São Paulo, SP
e-mail: danieldelouya@gmail.com
[Recebido em 7.5.2010, aceito em 18.6.2010]
1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 Estamos nos utilizando do conceito de introjeção de Ferenczi, concebido inicialmente na clínica, onde o movimento regressivo na análise é defensivo ante o conflito – o paciente recorrendo aos modos de satisfação perverso-polimorfo, de introjeção – no qual o autor identifica, mais tarde (1913), o momentum simbolizador, realizando-se nesse vaivém metonímico-metafórico descrito acima. Essa concepção, porém, está inteiramente embutida no terceiro capítulo de "Totem e tabu" (1913) quando Freud trata do sistema anímico dos primitivos e na infância. Não só Klein adotou, e de forma bem restrita, o conceito ferencziano, mas tanto na concepção winnicottiana e na sua moderna versão greeniana é possível encontrarmos seus impressionantes ganhos. Refirome, em Winnicott, ao movimento espontâneo do bebê que, na busca de imagens de si, para se tornar psique, um ser, ele as obtém por meio do holding (noção – hoje muito propalada – que foi, no começo, designada de respaldo, contrapartida, oposição) do objeto. Em Green, a objetalização se engendra de forma análoga, quando moções pulsionais (triebregung) tornam-se experiência, objetos psíquicos, por uma conjunção semelhante de respaldo por parte do objeto. Esclareço, em função das proveitosas críticas dos nossos colegas, Schaffa S. e Meyer A., que o duplo movimento (centrífugo & centrípeto) em Ferenczi e seus herdeiros (Winnicott e Green) não traz algo de positivo do mundo, do outro, sobre os quais se lança (como entende Klein), mas se utiliza dos mesmos como um negativo, um suporte em oposição (Winnicott), para se criar, para se objetalizar (Green).
3 O conceito do duplo limite (Green, 1982), evocado espontaneamente no leitor atual, é uma reformulação desta teoria do narcisismo de Freud a partir do estímulo oriundo da teoria dos limites embutida na concepção de Bion da função e dos elementos alfa e a barreira do contato criada a partir dos mesmos.
4 A ligação entre o projeto edípico que norteia o trabalho inconsciente no adulto (nos cuidados que presta à sua cria) – matizado pela tensão dissimétrica dos esquemas da sedução, da cena primária e da castração, todas almejando a sua própria abolição no nirvana –, e a natureza intersubjetiva da vida psíquica enfatizada por várias correntes, fica, geralmente, subentendida, raramente explicitada. No seu livro recente sobre o cuidado (As diversas faces de cuidar. Novos ensaios de psicanálise contemporânea, São Paulo, Escuta, 2009, 232p.), Luís Cláudio Figueiredo privilegia o plano fenomenológico. O cuidado é entendido como provisão da capacitação para a intersubjetividade. A subjetividade implica a construção pela intersubjetividade, uma instauração de um intrapsíquico com origem, ordem e funções intersubjetivas. O objeto originário veicula concomitantemente as seguintes dimensões intersubjetivas: a) trans-subjetiva, instaurada por aquilo que Winnicott denomina de identificação primária (do adulto com o bebê), uma espécie de terraplanagem (para um vir a ser e a dar sentidos), que, ao se imbricar na demanda do bebê pela "fusão" (em função de sua exasperação em anular a noção da falta e da separação) dota o último de estrutura enquadrante (Green), palco subjetivo que, posteriormente, servirá de meio de endereçamento aos objetos; b) traumática que seduz, incita, interpela e reclama, puxando o bebê "para fora" em direção ao mundo; c) interpessoal que reflete, reconhece e testemunha o bebê e seus movimentos. Essas dimensões intersubjetivas desembocam numa outra, a intrapsíquica que compreende as três acima, criando o universo subjetivo a partir deste trabalho do objeto, entendido como cuidado. Não é difícil enxergar nessas dimensões as operações das coordenadas edípicas das protofantasias.
5 Cf. Cap. XII de Bion (1962) Learning from experience, e Winnicott (1969b) "The use of an object in the context of Moses and Monoteism", in Psychoanalytic Explorations (1989).
6 Encarnar aqui tem o significado de tornar seu, como na reiterada e famosa frase de Goethe: "aquilo que herdaste... tornai-o seu", pois só assim pode se colocar a serviço do recém-chegado à cultura.
7 O que reforça o elo da construção com o símbolo que, segundo Freud, é passível de ser convocado quando falha a associação livre. O símbolo repara um falhar, versagt (Conf. X) – verbo que significa o não funcionamento (por exemplo, o motor pifa, falha), demandando reparo. O que coloca a necessidade da intervenção do analista, oferecendo um símbolo que se situa nessa ordem da construção (devo ao L.C Menezes o esclarecimento sobre o verbo e substantivo que Freud utiliza na Conf. X).
8 A figuração no analista, como construção, permite ao paciente, portanto, lançar mão do que se cria na dimensão alucinatória pelo afã realizador da pulsão, e que configura um real – um plano pré-subjetivo –, para disponibilizá-lo a uma matriz psíquica (imaginária e simbólica, conforme a generosa sugestão de L.C. Figueiredo), representativa e recalcável. Na tradução de Strachey da darstellbarkeit (figurabilidade ou presentificação, que se refere à realização alucinatória dos estímulos no trabalho do sonho), como condição de representação, encontramos em tal condição o convite para o objeto (adulto/analista), para que ele ajude a instaurar uma fixação, em forma de traço de percepção (Wz) que se junte, eventualmente, em "conceito mnêmico" (Ub), verdadeiro recalcado (Cf. carta a Fliess de 6/12/1896 e Cap. VII de 1900).