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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo jul./set. 2012

 

RESENHAS

 

Lacan com Winnicott: espelhamento e subjetivação

 

 

Maria Célia Detoni

Psicóloga, mestre em educação, autora de Artesania clínica (Detoni, 2009)

Correspondência

 

 

Autor: Roberto B. Graña
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2011, 170p.
Resenhado por: Maria Célia Detoni

Os olhos são a porta do engano

Na letra de Roberto Graña em Lacan com Winnicott não é a primeira vez que a literatura serve como outredade. Já em A carne e a escrita, vemos a literatura como uma máquina de expressão ser re-confeccionada no espaço potencial da leitura psicanalítica. O autor desde já avisava ao leitor que o "exercício da psicanálise e da literatura é mais que tudo e, além de tudo, poiesis, criação, co-criação" (2005, p. 65). Atravessando a rostidade do autor Graciliano Ramos e corporificando um outramento de seus personagens e/ou até mesmo seus leitores, Graña nos conduz ao interjogo existencial no qual todos podem habitar com suas vidas e, ainda mais, vai acessando com maestria o trabalho clínico pela via da narrativa de todas as existências possíveis que se engendram quando o humano transcende o acidente e se faz ser.

Esta introdução tem o objetivo de situar o possível leitor, que encontrará no mais novo livro de Graña a marca de um estilo - no que se pode dizer dos efeitos deleuzianos da construção do estilo na vida de alguém -, em seus estudos marcados pela rigorosa pesquisa e a exigente escrita mescladas com uma ousada curiosidade, que move o autor por caminhos de uma epistemologia, que como dizia Bachelard, "procura o risco" (1971, p. 136).

Lacan com Winnicott na verdade revela um particular esforço e generosidade do autor de transmitir seu protagonismo intelectual no momento histórico dos 30 anos da morte de um dos mestres protagonistas - Lacan - do debate que, com certeza enriquece a psicanálise atual. O livro é uma bússola de estudo e reflexão que encontra, entre dois grandes autores contemporâneos da psicanálise, um diálogo a ser feito. Porém, não um diálogo à moda de um converse, mas como diz Deleuze, uma conversa, ou seja, falar na sua própria língua como estrangeiro, inventar problemas. É uma conversa de risco a que se apresenta nos seis capítulos recheados por três espelhos diferentes - o filme de Jafar Panahi, e dois contos, um de Machado de Assis e outro de Guimarães Rosa -, onde encontraremos a tradição psicanalítica apresentada com algo que lhe é inaugural, a multiplicidade como pensamento. Portanto, uma escrita capaz de colocar em intercessão diferentes espelhos, ou melhor dizendo, espelhamentos constituindo no livro capítulos ao mesmo tempo bem costurados e independentes para o fruir do leitor.

A intrínseca relação entre filosofia e psicanálise transversaliza toda a escrita de Roberto, fazendo de seu livro uma epistemologia enunciativa de uma impossível dissociação entre pensamento e afecção. A filosofia, com sua invenção de conceitos e questões, e a psicanálise, com suas fundamentais premissas sobre a constituição do ser, são parceiras inseparáveis desde a própria metafísica da alma.

Não há no livro um julgamento das teorias com atribuição de valor, mas uma genealogia do pensamento dos dois autores e suas mais ricas tradições de cultura e formação filosófica, como podemos apreciar em diferentes passagens onde Graña encontra entre Winnicott e Lacan seus fundamentos. Um Lacan menos estruturalista do que estamos acostumados a ver nos textos psicanalíticos e um Winnicott filosófico encontram pontos de diálogo "nas noções de espelhamento, identificação, intersubjetividade, conhecimento paranoico, corpo despedaçado e agressividade" (p.55). Porém não são as concordâncias o maior fruto do livro, mas o percorrer do pensamento através das obras, fazendo questões novas que encantam o leitor, como na seguinte passagem:

Se o espelho de Lacan corre o risco de enfatizar excessivamente uma perspectiva cognitiva ou desiderativa, onde o amor, que não é o mesmo que conhecimento nem o mesmo que desejo, parece estar fora de questão, o espelho de Winnicott sofre a vertigem de uma formulação romântica onde a indiferença e o ódio não são compreendidos no gradiente das respostas especulares. Ora, a mãe que ama vitalmente seu filho é tão espelho ou tão pouco espelho quanto a que odeia ativamente seu filho ou a que lhe é indiferente. Não existe a menor possibilidade humana de apreensão pura (p.35).

Espelho, espelhamento, porque não há espelho que não seja muitos, nem espelho que reúna o significante puro de uma lógica linguística. "O espelho, são muitos, captando-lhe as feições" (p.71), dirá Guimarães Rosa (1972) no conto escolhido por Graña para servir de intercessor aos mestres da psicanálise, pois, continua Rosa, "os olhos, por enquanto, são a porta do engano" (p.72). Há algo mais para ser visto do que a imagem refletida: o olhar, a rostidade que será buscada em Deleuze quando o livro que apresentamos faz uma intertextualidade com o pós-estruturalismo francês.

Um livro para servir-se, para ser inventado a cada leitura, como convida o próprio autor, através de um fio condutor entre Lacan e Winnicott: o sentido do olhar e do cuidado "através do qual o Outro nos introduz num universo de significações propriamente humanas" (p.18).

 

Referências

Bachelard, G. (1971). A epistemología. Rio de Janeiro: Edições 70.         [ Links ]

Detoni, M. C. (2009). Artesanía clínica. Porto Alegre: Marca Visual.         [ Links ]

Graña, Roberto B. (2005). A carne e a escrita. Um estudo psicanalítico sobre a criação literária. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Rosa, J. G. (1972). Primeiras histórias. Rio de Janeiro: José Olympio.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Maria Célia Detoni
Rua Felipe Camarão 664/402
90035-140 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3312-6980; 51 9117-6800
mcdetoni@gmail.com

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