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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo abr./jun. 2013
ARTIGOS TEMÁTICOS: O PENSAMENTO CLÍNICO E O CONTEMPORÂNEO
A linguagem e a potência da metáfora no trabalho de interpretação e de construção na análise
Language and the potency of the metaphor in the processes of interpretation and construction in analysis
El lenguaje y la fuerza de la metáfora en el trabajo de interpretación y construcción en el análisis
Luís Carlos Menezes
Psicanalista, membro efetivo com função didática na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
RESUMO
O autor destaca a função da linguagem de tornar possível nomear, discriminar os imponderáveis e fortuitos que, no dia a dia de uma análise, carregam e dão corpo, circunstancialmente, ao enigmático da transferência. Para além da interpretação, sustenta a ideia de que o ficcional da construção, como metáfora, contém uma verdade fundamental para a análise e para o analisando, operando não por sugestão, e sim pelo efeito de resgate de um vivido arcaico inacessível. Um fragmento clínico ilustra esta argumentação.
Palavras-chave: interpretação; construção; verdade na análise; sugestão.
ABSTRACT
The author highlights the function of language in enabling the naming and discrimination of the imponderable and fortuitous which, in the day to day of analysis, carry and give shape, circumstantially, to that which is enigmatic in transference. Beyond interpretation, he upholds the idea that the fictional element of construction, as a metaphor, holds a fundamental truth to analysis and to the analysand, operating not by suggestion, but through the retrieval of an inaccessible archaic experience. A clinical fragment illustrates this argument.
Keywords: interpretation; construction; truth in analysis; suggestion.
RESUMEN
El autor destaca la función del lenguaje de hacer posible nombrar, discriminar los imponderables y los fortuitos que en el día a día de un análisis cargan y dan cuerpo, circunstancialmente, a lo enigmático de la transferencia. Para además de la interpretación, sostiene la idea de que lo ficticio de la construcción, como metáfora, contiene una verdad fundamental para el análisis y para el analizado, operando no por sugestión, sino por el efecto de rescate de un arcaico vivo inaccesible. Un fragmento clínico ilustra esta argumentación.
Palabras-clave: interpretación; construcción; verdad en el análisis; sugestión.
Falas, gestos, acontecimentos em si banais (um atraso do analista, algum lapso deste, mudança de consultório etc) podem ter, em uma análise, como sabemos, uma repercussão inesperada, desencadeando no paciente reações desproporcionais, às vezes ruidosas, em geral mais contidas e discretas. Tais movimentos do analista adquirem imediatamente algum sentido para o paciente, sendo interpretados, consciente ou inconscientemente, como expressão das disposições do analista em relação ao analisando, como atos intencionais e dirigidos, voltados para ele, a exemplo do sonho, em cujo centro encontra-se sempre a pessoa do sonhador. O paciente constrói, assim, versões imaginárias sobre as "motivações" do analista, baseadas na projeção dos próprios impasses, aliada, por vezes, a uma fina percepção do funcionamento psíquico deste na análise.
Em contrapartida, nada que venha do paciente ou de si mesmo em uma sessão será considerado pela atenção flutuante e disponível do analista como destituído a priori de significação: um molho de chaves esquecido sobre o divã; uma expressão diferente na fisionomia ou na postura do paciente; alguma impressão ou ideia, mesmo fugaz, que lhe ocorra ao encontrá-lo. Tais percepções podem, de fato, reemergir como um elo significativo em meio às associações do analista (e do analisando) no decorrer da sessão.
Uma análise está permeada, tanto de um lado como de outro, por manifestações verbais e não verbais prenhes de significação. Ela se passa no interior desta rede significante, em condições materiais e, sobretudo, psíquicas, que favorecem uma sensibilidade aumentada, exarcebada, à significação.
Convidado a falar, em um clima de reserva e de receptividade, o analisando é levado a fazer relatos, a evocar fatos - ora banais, circunstanciais, ora referidos a situações e acontecimentos penosos, comoventes, de sua vida -, bem como a tratar de suas aspirações e de suas impossibilidades. Mas o próprio da terapia psicanalítica, do método analítico, reside na suposição, por parte do analista, de que há algo permeando este fluxo narrativo articulado, intencional, do analisando, algo a que chamamos de transferência, como inconsciente em ato. Por isto, o analista, ao abster-se de responder no plano do que lhe é imediatamente significado, torna possível em sua escuta uma virtual desarticulação ou dessignificação da fala, abrindo-a para novas significações, eventualmente mais densas. É assim que entendo o fundamento do trabalho interpretativo do analista. Ele precisa poder sustentar, ainda que de maneira intermitente, a convicção desse "inconsciente em ato" na análise, para deixar surgir em sua escuta metáforas portadoras do que apreendem na intimidade das palavras-afetos--imagens, memórias intemporais, fragmentárias, inacessíveis, que constituem os movimentos transferenciais. Sabemos que, por vezes, em um certo período de uma análise - e isto de maneira mais aguda em determinados pacientes, que se apresentam então como "casos difíceis" -, formações desse inconsciente transferencial desaparecem, deixando o analista sem chão, destituído momentaneamente de sua capacidade de escuta e, portanto, de interpretação, o que é extremamente penoso para o conforto narcísico do analista.
Ainda que o trabalho de significação, de dessignificação e de ressignificação, próprio à análise, inclua manifestações significantes não verbais, este é totalmente dependente das potencialidades da linguagem verbal. Refiro-me ao poder de discriminação e de referenciação somente possível por meio de palavras e de enunciados verbais, e também à possibilidade de desmontagem, de reorganização e de nomeação dos cenários das fantasias graças à propriedade de transporte e de transformação, isto é, de metaforização, da linguagem. A linguagem é, pois, o que permite, no processo analítico, subtrair-nos à captura pela imagem nos enredos a que nos convida o analisando, graças à aptidão de fazer imagem pela palavra. Em uma análise, não bastam vivências afetivas, mesmo "autênticas", mas é necessário que certa inteligibilidade se produza pela linguagem, em metáforas, que são ora simples imagens, próximas de uma produção poética, ora modelos em que se explicita a arquitetura da fantasia de que o sujeito seria refém (Menezes, 2001).
A linguagem que interessa ao psicanalista é a que pode abrir-se sobre a memória intemporal das transferências ou, ainda, a que é passível de abertura aos processos primários do que Freud chama de representações de coisa; Piera Aulaigner, de primário e de pic-tograma (o originário) (Aulaigner, 1975); e Guy Rosolato de significantes de demarcação (não verbais) (Rosolato, 1978). J.-B. Pontalis se inscreve na mesma linha ao afirmar que "a linguagem só é realmente linguagem, uma operação ativa, se carregar nela o que não é ela mesma" (Pontalis, 1988, p. 29). Trata-se da linguagem concebida como relação de desconhecido (Rosolato, 1978), de maneira que o vórtice é também umbigo. Lembro que esta imagem foi usada por Freud para dizer que o sonho não se reduz a um condensado de significações interpretáveis, fazendo parte dele um núcleo irredutível ao sentido.
Estas considerações não pretendem, evidentemente, recobrir o campo de uma teoria do processo analítico, mas indicar uma linha de horizonte para situar o trabalho de interpretação na análise, tema que desenvolvo mais extensamente e ilustro com os desdobramentos de um caso clínico em outro texto (Menezes, 2003). Vou agora deter-me um pouco mais na questão da construção em sua relação com o inacessível, o "arcaico" ou o "primitivo".
Em "Construções em análise", Freud faz a conhecida comparação entre a construção nos trabalhos do analista e do arqueólogo, ambos em busca da reconstituição de um passado pré-histórico - comparação que cessa, no entanto, quando se trata dos objetivos de um e de outro, pois "para a arqueologia, a reconstrução é a finalidade e o fim do esforço, enquanto para a análise a construção é somente um trabalho preliminar" (Freud, 1937/2009, p. 272). E também porque - e é isto que me interessa mais aqui -, ao contrário do que possa ter acontecido com o objeto de busca do arqueólogo, é "duvidoso que uma formação psíquica qualquer possa verdadeiramente sofrer uma destruição total", "o essencial é inteiramente conservado" e "subsiste ainda de alguma maneira e em algum lugar, mas soterrado, inacessível ao indivíduo". Isto porque, na análise, "a transferência traz à tona", pelas "repetições", "reações das primeiras idades da infância" (pp. 271-272).
Ora, a psicanálise, desde sua invenção, décadas antes, fora entendida como um processo que visa a tornar acessível um inacessível, o "lugar" deste sendo o inconsciente, de maneira que não poderíamos entender o interesse ou a novidade destas afirmações, a esta altura da obra de Freud, se não fosse o contexto em que foram formuladas. Trata-se neste trabalho, com efeito, de saber se uma psicanálise leva apenas a criar invencionices, invenções, ou se é capaz de chegar a coisas verdadeiras da vida psíquica do paciente, que ele possa reconhecer como tal.
As duas coisas, nos diz Freud, pois há invenções que têm força de verdade, e estas são essenciais quando a análise se depara com marcas psíquicas tão pouco constituídas, tão remotas, que não conseguem encontrar sua verdade senão em uma invenção nutrida por uma memória próxima dos processos primários, e tecida no interior da análise. Disto quero dar o testemunho de um fragmento de minha clínica e, a seguir, fazer mais alguns comentários metapsicológicos. Mas não quero continuar sem destacar a aposta clínica forte de Freud ao afirmar que não há destruição total das marcas germinativas da vida psíquica, de qualquer natureza ou de qualquer tempo que sejam - não do essencial. E de que essencial se trataria? Por enquanto, deixo a questão em aberto, apenas dizendo que a entendo como referida a algo de essencial para o analisando, para seu ser, como algo de que não pode prescindir e com que precisa acertar contas para poder prosseguir.
Nos primeiros tempos da análise de uma jovem mulher, eram frequentes sessões em que silêncios prolongados eram entrecortados por palavras soltas que designavam animais ou coisas monstruosas: "um porco com cabeça de mula", "corpo de lagarto, bico de papagaio", "um girino, cabeça, com braços" etc, e expressões como "que horror", "noite negra" - palavras que, designando coisas estranhas, inquietantes, estavam fechadas sobre si mesmas, exprimindo apenas a sideração traumática da paciente. Alternavam-se sequências em que aparecia uma fala articulada, com encadeamentos muito imaginativos, singularmente poéticos, por vezes, incluindo o relato de sonhos que, na verdade, eram pesadelos. Nestes, o horror de que falei, apenas indicado por palavras isoladas, tomava a forma de sequências aterrorizantes, bem mais expressivas, tanto pelo conteúdo como pelo afeto. As próprias sessões tendiam a transcorrer em um clima onírico, de transe, cujo conteúdo era o nojo e a intensa repulsa que sentia por si mesma e por sua origem. Uma visão monstruosa e repugnante da mãe era constantemente evocada.
Depois de uma sessão bastante sofrida, em que estava assombrada pela visão de uma "coisa preta, cabeluda, enorme" ela chega sorridente, dando a impressão de estar mais alegre. Devo ter tido a expectativa de uma sessão mais tranquila, mais leve. Não é o que acontece. Eu solicito a ela que fale depois de termos ficado algum tempo em silêncio. Chorando, diz que está em uma ilha de tristeza, que se sente por um fio e que está atravessando uma tormenta desde que deitou. De fato, fala baixo, como alguém muito assustado: "A mãe está olhando... Eu embaixo da terra." Pergunto-lhe: "Eu embaixo da terra, como?". Ela: "Não estou embaixo da terra. É como a Virgem..." - e faz um gesto mostrando para baixo do divã. Pergunto-lhe: "Quem é a Virgem?". Ela: "Minha mãe... Tem algo que vai do estômago até o nariz... O holocausto é aí... Esta coisa morta, horrível... Não consigo me separar dela... Me dói por aqui..." - e mostra o tórax, os ombros e as costas. Digo-lhe: "É a parte mais difícil... neste parto?...". Ela parece se recompor, dizendo: "Será que ela sofreu tanto como estou sofrendo agora? Que coisa horrível!"
Entendo que, nesta sequência, a interpretação com função de construção - "é a parte mais difícil neste parto" - levou-nos a constituir uma representação (via metáfora) - um parto - que deu sentido e coerência a uma vivência confusional em que sensações dolorosas do corpo e falas fragmentadas estavam dispersas.
Embora esta imagem tenha me ocorrido no instante em que falei, não penso que se trate de uma imagem qualquer. Lembranças pré-conscientes de minha escuta anterior contribuíram, sem dúvida, para a sua formação e o desenrolar da análise, não só pela recorrência de imagens semelhantes como pelo "clima transferencial oniroide" em que transcorriam as sessões, em que falas minhas e dela pareciam se interpenetrar, indiferenciadas, apontando para a insistência repetitiva de uma representação inarticulada desta ordem. Penso que o que se atualiza, de um modo quase alucinatório, na forma de odores, de líquidos barrentos e de sensações de contato com a carne viva, rutilante, é a imagem de uma sensualidade absorvente que horroriza por seu arcaísmo.
O poder da interpretação reside aqui nos efeitos de deslocamento, de desideração das possibilidades de pensamento e de fala, produzidos pela introdução de um script neste pesadelo transferencial, de maneira a desfazê-lo paulatinamente através de palavras que abrem para uma história possível. História passada ou futura, pouco importa - uma e outra se situam no mesmo plano, ambas são tempos gramaticais equivalentes na fala que vai então poder articular-se, subtraída à intemporalidade própria dos processos primários.
Por outro lado, não penso que nesta sessão a paciente pudesse estar "revivendo" o parto de seu nascimento, embora ela tenha pensado imediatamente no parto em que nasceu e que fora de fato extremamente difícil. Naquele momento da sessão, identificou-se com a mãe no parto ao mesmo tempo em que se diferenciou dela e, portanto, do analista, já que, no que disse, era ela própria quem estaria vivendo um parto naquele instante: "Será que ela sofreu tanto como estou sofrendo agora?"
O traumatismo que estava vivendo ali não era o do seu parto, mas passou a ser como um parto. Não excluo, no entanto, que nesta vivência, restos mnêmicos arcaicos ligados às dores, aos líquidos, ao sangue, às pressões do parto possam constituir-se em significantes não verbais efetivamente presentes na construção desta fantasia, mas isto fica do lado do inacessível, do desconhecido. De toda maneira, a fantasia à qual a minha fala deu forma, e que foi se precisando a seguir, se compõe dela, da mãe e de uma ação em que ambas estão imbricadas em um parto horroroso, interminável.
A invenção/construção, com força de verdade, corresponde, pois, a uma representação que se constituiu no vivido da sessão pelo poder de uma evocação metafórica - a de um parto -, que se revelou "essencial" para a analisanda nesta análise. Nesta representação, condensam-se o que Guy Rosolato chama de significantes de demarcação, em que se imbricam as primeiras marcas portadoras de sentido, não verbais, com o fundo enigmático de desconhecido sobre o qual se constituem (a "relação de desconhecido"). Parece-me útil poder pensar, com base nestes desenvolvimentos, que o "soterrado" (Marucco, 2007), por precário que seja, contém um potencial significante (algum sentido) capaz de se enriquecer na vivência transferencial, envolvendo analisando e analista, e tomar corpo e nome, tornar-se pensável, pelo poder da metáfora em engendrar representações enraizadas neste "desconhecido soterrado" e, desde aí, abrir-se para uma diversidade ampla de sentidos perlaborativos no desenrolar da análise.
Encontro nesta obra de Rosolato (1978) desdobramentos metapsicológicos que me orientam para o caráter dito essencial das marcas psíquicas que persistem - como enigma; portanto, com sentido -, mesmo se não representadas; que me indicam por que uma representação que se constitui como ficção na análise - a construção -, graças à capacidade de figuração das atualizações transferenciais acolhidas pela linguagem em seu poder de metáfora, pode ter tal força de verdade, de convicção, para o analisando. Deste ponto de vista, mesmo o efeito da construção como ficção operante não tira sua eficácia da sugestão, pois é também resgate de algo único do sujeito, ainda que já não da ordem do recalcado, mas do arcaico como significante de demarcação. E de fato, tanto o texto de Freud como a clínica testemunham um resgate, pela construção, de um desconhecido do sujeito, que nele se encontra mais inacessível que o desconhecido do inconsciente, do recalcado.
Referências
Aulaigner, P. (1975). La violence de l'interprétation. Paris: PUF. [ Links ]
Freud, S. (2009). Constructions dans l'analyse. In S. Freud, Résultats, idées, problèmes (J. Laplanche et al., trads., Vol. 2, pp. 269-281). Paris: puf. (Trabalho original publicado em 1937). [ Links ]
Marucco, N. (2007). Entre el recuerdo y el destino: la repetición. Revista de Psicoanálisis, 29(1),101-122. [ Links ]
Menezes, L. C. (2001). O trabalho da interpretação. In L. C. Menezes, Fundamentos de uma clínica freudiana (pp. 47-54). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Menezes, L. C. (2003). Processo psicanalítico e mudança psíquica. Revista Brasileira de Psicanálise, 37(2/3),409-420. [ Links ]
Pontalis, J.-B. (1988). O amor dos começos (S. Senra, trad.). Rio de Janeiro: Globo. [ Links ]
Rosolato, G. (1978). La relation d'inconnu. Paris: Gallimard. [ Links ]
Correspondência:
Luís Carlos Menezes
Rua Deputado Lacerda Franco, 300 / 134
05418-000 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3030-9382
luismzes@hotmail.com
Recebido em 26.3.2013
Aceito em 16.4.2013