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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo out./dez. 2013
DIÁLOGO
De António a Mia, surge um escritor: entrevista com Mia Couto1,2
Entre Portugal e Moçambique: uma família conta histórias
RBP Mia, você poderia nos contar a história de seu nome?
MC É um nome inventado que acabou por ser meu nome de verdade. Meus pais eram emigrantes do norte de Portugal que chegaram a Moçambique no começo dos anos de cinquenta. Seus três filhos nasceram em Moçambique. Segundo eles, quando tinha dois ou três anos, eu vivia entre os gatos. Há fotos que me mostram dormindo e comendo com os gatos. Os gatos não eram nossos; gatos nunca são nossos, são deles mesmos. Em certo ponto, eu teria dito que não queria me chamar António - que é meu nome de batismo -, mas sim Mia. Eles aceitaram, como se fosse algo tão sério quanto um ato notarial. Hoje, na escola, no emprego, os amigos, a família, todos me chamam de Mia. Não tenho outro nome. Isso já denota que meus pais aceitavam que cada um quisesse criar sua própria história.
Eu surgi como escritor ali. Minha família era nuclear, constituída por pai, mãe e três filhos. Como meu irmão mais novo nasceu bem mais tarde, passei a infância só com o outro irmão. Eu fui muito marcado pelo fato de não ter avós, tios e primos. Tinha uma inveja danada dos meninos que, na escola, falavam das famílias alargadas. Até porque a família africana é uma família sem fim. Meus pais contavam histórias que traziam até nós o lugar de onde haviam emigrado e criavam personagens. Era quase teatral. Contar histórias era um momento sagrado. Era a nossa oração, principalmente durante as refeições. O fascínio de poder nos recriar por meio de histórias nasceu assim. Sou escritor por causa disso.
RBP Você afirmou ser escritor por não ter outras aptidões. Afirmou também que escrever é, às vezes, uma limitação. O que quis dizer com isso?
MC Acho que me expliquei mal por causa do sotaque... O fato de escrever não é o resultado de uma habilidade; é o resultado de outras inabilidades. Não estou qualificado para viver de outro modo. Costumo sempre voltar à infância para explicar o escritor que sou hoje. Em minha casa, meus irmãos eram elogiados e celebrados como pessoas capazes. Eles faziam coisas: iam às compras, levavam recados, ajudavam em casa. Eu era considerado como aquele que partia, que perdia, que estragava; aquele a quem não se davam tarefas.
Esse lugar - o de certa incapacidade - era o lugar do silêncio; era o meu lugar. Eu não tinha jeito para fazer, quase não tinha jeito para viver, pois era muito tímido e ficava no meu canto. Retomo isso em um dos meus livros, Antes de nascer o mundo, que originalmente se chama Jesusalém, no qual há o personagem de um menino que habita no silêncio - como se o silêncio fosse um modo de dizer coisas que não encontram expressão na palavra.
RBP De que modo nasce o escritor a partir da "contação" de histórias em casa? Os dois processos, contar histórias e escrever, são diferentes.
MC Eu continuo no lugar da oralidade; o que me apaixona é reinventar. O que me seduzia não era a história. Nem sequer recordo as histórias que meus pais contavam. Mas recordo a paixão que depositavam na contação, e o encantamento que isso produzia em mim e em meus irmãos. Não sei datar o momento em que comecei a escrever. Comecei com a poesia. Meu pai também era poeta. Em minha casa, declamava-se. Não era a casa de um poeta, mas sim uma casa que vivia em estado de poesia. Meu pai fazia uma espécie de fronteira entre o que era importante para ele e o que era importante para minha mãe, que era uma pessoa muito prática. Ela rezava para que mais nenhum filho nascesse poeta. Ela queria homens que ajudassem em casa e meu pai era incapaz disso. Quando ele nos convocava, era para coisas de outra ordem de importância, como ver um flamingo passar. Ele nunca nos deu ordens nem aplicou castigos. Foi um pai extraordinário, deste ponto de vista. Pois nos ensinou a partir de um lugar situado entre a presença e a ausência. Tinha um modo leve e sutil de ser pai.
Entre Portugal e Moçambique: viver na fronteira
RBP Você disse que não lembra as histórias que seus pais contavam, mas que havia uma tradição familiar que ficou em Portugal. Parece que essa tradição foi, de algum modo, resgatada, mesmo que não tenha sido por meio da memória claramente evocada.
MC Minha origem é muito marcada; minha casa era muito pequena e ao mesmo tempo quase infinita, pois era habitada por essas outras vozes. O Portugal que meus pais traziam por via de histórias - com essa coisa muito portuguesa da saudade - acendeu um país mágico dentro de mim. Pensava que fosse o país da realidade que eu criara: cheio de luz, meio tropical, imenso, com paisagens da savana. Era assim que Portugal chegava a mim por meio do encantamento de meus pais. Quando fui a Portugal, já adulto, me senti sufocado porque era muito pequeno. O norte de Portugal tem zonas graníticas muito escuras, agrestes.
Mas havia outra coisa: eu vivia na fronteira. Na minha cidade, nunca foi possível expulsar a África para além do outro lado da rua. Do outro lado da rua estava a África. Vivíamos numa cidade caótica, que tinha sido um pântano e foi ocupada à medida que secava. A África estava ali e também tinha histórias fascinantes com enorme poder de sedução. Os contadores de história do outro lado eram meu outro pé. Eu me repartia entre esses dois mundos.
RBP Você cresceu entre dois mundos: entre o relato fantástico de Portugal e a vivência com a África da qual não fazia totalmente parte. De que modo isso aparece na sua literatura?
MC Era como se estivesse nessa condição de despertença. Não pertencia a nenhum dos dois lugares. Quando escutava as histórias africanas na rua, faltava-me o sentimento do sagrado: meus mortos não estavam ali; portanto, não podia ter crença total naquilo, por mais belo que achasse. E também não pertencia ao outro mundo, que só me chegava por meio das vozes. Esse sentimento de despertença pesava e me fazia pensar: "Quem sou eu?".
Quando comecei a escrever e a perceber que era nisso que eu iria me resolver, achei ótimo não pertencer a lugar nenhum. Podia ter asas porque não tinha raízes. Tinha que inventar minha pátria no processo da escrita, da reinvenção da infância. A infância foi um lugar mágico para mim; fui muito feliz nesse período. Isso é quase uma condenação, porque acho que preciso sempre voltar para lá. Permaneço nessa espécie de busca - que hoje encaro sem drama - que é ter uma identidade que é, na verdade, uma miragem; minhas identidades são múltiplas, são várias. Acho que me aceito bem desse modo. Mas não foi sempre assim. Houve um momento em que achava que precisava ter uma identidade: sou filho de portugueses? Serei eternamente filho de portugueses? Sou filho da África? Sou mestiço? Agora já nem quero que isso tenha solução. Não é um problema.
As vozes de tantos eus: escrita e publicação
RBP Como é o processo de escrita para você? Como encontra as palavras certas para transformar o pensamento em escrita?
MC Quando uma leitura me encanta, a página me puxa para fora do livro; é como se de repente eu escutasse vozes. O processo da escrita também é assim. Sou habitado por vozes. Escuto-as e anoto-as. Tenho papéis anotados de modo caótico. Em Moçambique, a oralidade é dominante; as pessoas não escrevem, não vivem no universo da escrita. O primeiro momento da escrita é um registro. Quero que essa anotação seja simplesmente uma anotação, de modo que, em um segundo momento, quando for trabalhar diretamente a palavra, ela já não seja mais rígida e possa ser várias coisas.
RBP E como nasce o livro?
MC O segundo momento é fundamental. A anotação tem quase sempre forma poética. É algo que me suscitou encantamento numa pessoa, numa situação, numa fala. Estar cansado e ter sono é ótimo. É, às vezes, a melhor maneira de produzir. É como se desaparecesse um filtro e eu passasse a colher coisas que não fazem parte da norma.
Quando leio as anotações no caderno, é como se fizesse uma triagem: isso vai ser um poema, isso vai ser um conto, isso vai ser um romance... Não sei como faço isso. É um momento essencial, como se tivesse arrumado as coisas em gavetas diferentes e já soubesse como vou tratá-las em seguida.
RBP O sonho faz parte do seu processo criativo?
MC Minha família, de manhã, faz uma exibição que é, para mim, traumática. Todos contam seus sonhos, e eu não tenho nenhum para contar. Nunca lembro sonho nenhum. Fico com muita raiva, penso que estão falseando e recriando os sonhos, pois preciso desqualificar aquilo de algum modo... Eu tenho insônia, sou um escritor noturno. Quase tudo o que fiz foi nessa incapacidade de dormir, que me faz acordar às três horas da manhã e não dormir mais. É quando as coisas acontecem e me instigam e seduzem a ponto de me fazer levantar e escrever. Esse estado de semivigília é o melhor momento. Eu o prolongo o mais possível. Ao acordar também faço essa transição como se fosse uma coisa mastigada, lenta. Esse momento é muito produtivo.
RBP Como você vê o processo da escrita quanto ao ritmo, musicalidade, sonoridade?
MC Não sei explicar isso. Acho que sou um poeta que conta histórias. Algumas poesias minhas só acontecem ao serem traduzidas para a prosa. Eu faço as duas coisas: invento, mas depois preciso traduzir. Quando se faz um romance, não é possível escrevê-lo em poesia, mas a linguagem pode ser poética. É isso que eu quero. É como se estivesse sempre na posição daquele que escuta. Estou sempre ouvindo. Mantenho-me na vigilância, pois quero estar mais do lado da oralidade do que da escrita. É como se eu autorizasse que vozes me ocupem e me contem uma história. Nunca tenho um plano, sequer sei como será o capítulo seguinte. Quero me dissolver, quero não existir. Talvez eu esteja romantizando esse processo dentro da minha cabeça; talvez não ocorra desse modo, mas não importa; não quero saber muito sobre isso. Mas preciso que os personagens, as vozes, me seduzam. Preciso estar em completa paixão. É por isso que quando chega o segundo momento - aquele do conteúdo das gavetas - eu sei qual é o poder de sedução de cada anotação. Se for algo que já está quase feito, já sei que é um poema. Como um gato, segundo Neruda: já está tudo ali. Não há nada a acrescentar: o gato não quer ser nada além de gato. Mas se for um cão - que está sempre na aflição de querer ser outra coisa, outro bicho - terei de trabalhar naquilo.
RBP Como você chegou a escrever para crianças?
MC Por mero acaso. Tenho dúvidas sobre isso. Não sei se escrevemos para crianças, não sei se é assim que devemos formular as coisas. Reluto em pensar que as crianças precisem receber a mensagem simplificada, como se lhes faltasse alguma coisa para sentir e entender uma história. Além disso, eu mesmo me converto numa criança quando escrevo. É o meu lugar da infância. Gosto que seja assim. Como se o mundo ainda tivesse esse encanto, fosse ainda uma criança; como se a linguagem estivesse nascendo e eu pudesse trabalhá-la como barro. Por isso, não sei quando estou escrevendo para crianças. O destinatário da escrita não é visível para mim. Fico tão ocupado com o jogo de vozes que me preocupo mais em saber quem está dentro de mim do que quem está do outro lado.
RBP Você diz que escreve para você, mas suas obras são muito lidas e traduzidas. Como é a experiência de perceber a repercussão que a sua escrita tem sobre o outro?
MC O que me interessa são os vários outros que existem em mim, a assembleia de pessoas que está dentro de mim. Quero dar voz a ela. Às vezes penso o que teria deixado de ser se tivesse sido médico ou jornalista. A vida foi generosa quanto à possibilidade de eu ser plural, em deixar que muitos eus me ocupassem.
A marca do outro: outras literaturas
RBP Você mencionou suas leituras e até mesmo leituras na nossa "língua brasileira". Poderia falar um pouco sobre isso?
MC Comecei lendo o que todos leem. Emilio Salgari, por exemplo, com as aventuras de Sandokan, e a assim chamada literatura juvenil. Mas essas histórias não me apaixonaram. Nossa casa era forrada de livros, mas meu pai nunca teve a atitude normativa de indicar o que devia ser lido. A primeira leitura que me apaixonou, a ponto de me fazer perguntar: "O que é que existe dentro de um livro?", foi um livro de Juan Ramón Jimenez, Platero e eu, que conta a história de um burrinho. Depois vieram os poemas. Eu ficava intrigado com o fato de que meu pai passasse horas sobre os livros e até me tornasse seu cúmplice: não éramos ricos e minha mãe não queria mais livros em casa. Mas ele, todas as semanas, chegava com livros novos, passava-me os livros, e eu os escondia embaixo da camisa. Eu fazia o contrabando dos livros em casa, e isso era fascinante para mim. Eu adorava os livros até pela cumplicidade que me permitiam ter com meu pai.
Quanto à literatura brasileira, lembro até hoje da emoção que senti ao ler "O vestido", de Carlos Drummond de Andrade. É o relato de um vestido que está pendurado e cuja história a mãe conta às filhas. Está entre o poema e o conto. Drummond é muito bom nisso. Os brasileiros foram marcantes. Solucionaram um problema nosso: como dizer as coisas em português de Portugal? Não havia solução para isso. O Brasil resolveu esse problema dizendo: fizemos outra cultura - marcando a semelhança com um sinal de diferença na língua portuguesa que nos unia - e encontramos um modo de ser diferenciado, autônomo. Isso foi muito inspirador.
Estar escritor e outras vozes
RBP Você estudou biologia. Como decidiu ser escritor, se é que isso se decide?
MC Tem razão, não se decide. Não decidi isso. Até hoje, quando dizem que sou escritor, preciso pensar. Vivi nesse meio em que meu pai era poeta e jornalista, e convivi com seus amigos escritores, poetas, jornalistas, que, por razões políticas, ficaram sem emprego e dormiam na nossa casa. Durante algum tempo pensei que fosse uma coisa automática: nos tornávamos adultos e escritores ao mesmo tempo. Acho que para definir a condição de escritor o verbo melhor não é "ser", mas "estar".
Não se trata de uma essência. O escritor está enquanto tem certa relação com os outros, certo olhar sobre o mundo. Quando me apresento, digo que sou biólogo. Trabalho como biólogo. Sou um homem sério também (risos). Exerço a profissão em tempo integral. Mas não dou muita confiança à biologia. O trabalho como biólogo me ocupa, mas a biologia não me ocupa como olhar único, como certeza. Não tenho crença nisso. É só uma das várias janelas com que quero olhar o mundo.
RBP O que você faz na biologia?
MC Faço estudos de impacto ambiental. Trabalho numa empresa privada. Em Moçambique nenhum projeto pode ser autorizado se não tiver licença ambiental. Faço trabalho de campo; sou ecologista. As plantas e animais são expressão de uma rede humana, uma rede de relações sociais. Ao se olhar para uma árvore, é impossível pensar que aquilo é só uma entidade biológica. A árvore é uma casa, um lugar sagrado, tem vários usos. É essa parte que me apaixona na biologia: ela conta histórias e nos devolve nossa própria história.
RBP Você estudou medicina para ser psiquiatra, mas desistiu do curso. Como foi isso? MC Confesso que tinha paixão pela psicanálise. Nos anos setenta, os movimentos da antipsiquiatria me fascinavam. Todo esse universo me fascinava. Queria ser psiquiatra. Quando saí de minha pequena cidade para ir à universidade na capital, antes de começar o curso de medicina, comecei a visitar os hospitais psiquiátricos. Foi a pior - ou a melhor -coisa. Eram prisões; eram tudo o que eu pensava que não fossem. Havia um psiquiatra que gostava muito de mim por eu ser um menino apaixonado por aquilo tudo. Ele me disse uma coisa curiosa: "Você nunca será psiquiatra, pois para isso é preciso ser como o violino Stradivarius: sensível, mas forte. E você é só sensível". Acho que ele me salvou... Por esse conjunto de acidentes que é a nossa vida, fui conduzido para algo que combina melhor comigo. Hoje, a biologia me permite um tempo de convívio. Já fui jornalista, e no jornalismo há o ardil de viver no tempo real e trabalhar em cima dos acontecimentos. Mas agora tenho algo que não é sequer uma profissão; é uma paixão. Gosto muito do que faço. É uma sorte.
O escritor e o leitor
RBP Como é para você, menino tímido e biólogo, ser famoso como escritor?
MC Não quero ser famoso. Não nego que ser reconhecido publicamente me agrade. Mas não é esse lado da fama que me interessa; não quero ter fãs. O momento dos autógrafos é uma violência. Quero que aquele que está à minha frente surja como pessoa, que algo possa emergir da figura que está ali. Isso implica tempo. Senão, é uma relação sem pessoas.
RBP à parte a fama, gostaríamos de saber o que você acha da repercussão da sua obra nos outros, do fato de perceber que ela faz sentido para o outro.
MC Não sei resolver isso dentro de mim. Há pessoas que me dizem coisas gravíssimas. Havia uma senhora que ia sempre, de luto, aos meus lançamentos. Um dia se apresentou toda colorida e disse: "Saí do luto por sua causa. Antes queria me suicidar; minha vida tinha acabado". Minha primeira reação é dizer: "Você não está falando com a pessoa certa. Foi outra pessoa que escreveu esse livro". Gosto de fazer notar isso, pois o leitor faz uma projeção e me faz sentir que estou usurpando o lugar de alguém, porque a pessoa a que se referem não existe - ela apenas foi projetada pelo leitor. O leitor constrói uma história, constrói a voz de quem conta a história, e eu preciso esclarecer que quem está ali naquele momento não é a pessoa que escreveu.
RBP Como você vê hoje a ideia da literatura como lugar do reencantamento em um mundo que se torna cada vez mais concreto?
MC O anseio que a literatura tem de encantar o mundo - conscientemente ou não, todos os escritores atribuem-se essa missão - já não basta. Quero me desdobrar em outras vozes. É por isso que, embora seja muito circunspecto, aceito falar, vou a muitas escolas e quero ter uma participação que esteja além da literatura. Gostaria de encontrar um modo de despertar a vontade de encantar o mundo. Quando uma criança fala sobre o vento, sobre a nuvem ou sobre o rio, a explicação que ela tem para essas coisas é certamente mágica, própria do seu pensamento de criança. Mas aquilo logo é corrigido, porque "é preciso que a criança saiba o que é o vento". Adota-se um único discurso: o discurso científico. Mas é muito estéril, é feio. E, assim, a possibilidade de a criança construir sua própria narrativa já está morta.
Moçambique em trauma: a guerra civil
RBP Você contou sua infância entre o mundo da poesia, da imaginação, e o mundo concreto. Você foi marcado também pelas questões concretas da violência e das guerras de Moçambique. De que modo isso se metabolizou na escrita?
MC Moçambique é um país muito pobre e você se confronta com a miséria. Isso dói muito. Tivemos uma guerra cruel e bárbara que foi, para nós, uma espécie de cerco. Eu precisava respirar. Vou lançar um livro de contos que escrevi durante a guerra, em 1990. O romance Terra sonâmbula é quase uma reflexão sobre a própria guerra. Achei que nunca conseguiria fazer isso. Parecia impossível falar sobre o que estava acontecendo enquanto acontecia, pois era tudo tão intenso que nos esgotava. Pensava que só escreveria um livro sobre a guerra depois que ela acabasse. Mas não foi assim. Aquele foi o único livro que me doeu escrever. Eu era visitado pela lembrança de pessoas, de amigos que morreram. Isso não tinha solução senão através da história. Eu precisava converter aquilo em histórias. Precisava Accionar o peso das ausências. Por meio de Terra sonâmbula fiz uma catarse, tentei me salvar da morte que me cercava.
RBP É um livro doloroso de ler?
MC Acho que sim. Nunca consegui ler. Mas de modo geral não leio o que escrevo. Quero que aqueles personagens me deixem, desgrudem de mim; senão, não posso começar um livro novo. Adio sempre o final de um livro. É um momento difícil, pois os personagens habitaram em mim de modo intenso e obsessivo. Durmo com eles, como com eles, vivem intensamente dentro de mim. Como afastá-los depois? Como matá-los simbolicamente? O editor precisa ser categórico: "Acabou. Entregue o livro".
RBP Para nós, psicanalistas, também há uma grande diferença entre falar sobre o trauma e simbolizá-lo: é quase uma função poética dentro da clínica. É semelhante ao que você diz: você escreve a guerra e não sobre ela. Talvez só o jornalista escreva sobre a guerra.
MC Do ponto de vista literário nunca se escreve sobre algo. A guerra me revelou que tudo aquilo que parece nascer com ela já está dentro de nós. Ela apenas autoriza ou destapa alguma coisa. Isso é o mais assustador, porque, depois que a guerra termina, nunca mais voltamos a ser os mesmos. A pacificação interior não é possível para quem, como nós, viveu algo tão intenso; há sempre alguém próximo que foi morto de modo bárbaro. Embora todas as guerras pretendam a mesma coisa - a desumanização profunda do outro -, talvez algumas tenham uma justificativa ou uma racionalidade. Mas, no caso de Moçambique, não eram os soldados que morriam; eram os civis. E morriam sem saber por que, pois era uma guerra de terror. Pelos resultados que isso produziu, a nação inteira precisaria deitar-se no divã e falar sobre si.
RBP Havia em Moçambique uma forte questão religiosa. A impressão de quem acompanhou os fatos na época era de que a guerra brotara de repente. Como foi isso?
MC Segundo o discurso oficial, a frelimo - Frente de Libertação de Moçambique, que fez nascer o país em 1975 - tinha práticas marxistas. Era um país socialista encravado entre outros - como a África do Sul, onde havia o apartheid, e a Rodésia (atual Zimbábue), de minoria branca - que encaravam aquela experiência com muita hostilidade. A guerra começou com uma agressão militar externa. Mas a frelimo cometeu muitos erros, principalmente quanto à questão religiosa profunda. Sinto-me à vontade para dizer isso, pois fazia parte da Frente de Libertação. Em Moçambique existe também uma religião mais antiga, de culto aos antepassados, mais africana, que foi muito ferida e ofendida pela gestão da frelimo, que era comunista, racionalista, positivista e achava que no mundo da modernidade - o grande anseio era ser moderno - não havia lugar para isso. Quando a agressão externa entrou no país, encontrou esse terreno e recebeu uma adesão enorme. Foi uma guerra religiosa, o que explica a violência que se manifestou.
O mais curioso é que, já em 1994, depois das eleições - o acordo de paz foi em 1992 -, parecia que não havia acontecido nada. Houve uma amnésia total, como se todos houvessem optado silenciosamente por esquecer. Não foi consciente, mas decidiu-se esquecer.
RBP Ou não falar.
MC Sim, talvez não falar. Havia a percepção de que as tensões que deram origem à guerra ainda estavam lá. Moçambique foi muito criticado por não ter criado uma Comissão da Verdade, como fez a África do Sul, para apurar os crimes cometidos. Mas talvez tenha havido certa sabedoria nisso. Foi como se percebessem que a via da culpabilização reacen-deria o conflito. As pessoas queriam tanto a paz que a teriam aceitado a qualquer preço. E o preço pode ter sido esse falso esquecimento.
RBP Gostaríamos de agradecer por sua enorme generosidade em nos conceder esta entrevista, hoje, em meio a tantos compromissos. Um privilégio para nós e nossos leitores! Muito obrigada.
1 Escritor moçambicano, biólogo e jornalista. Autor de mais de trinta livros em verso e prosa. Vencedor do Prêmio Camões de Literatura.
2 Entrevista realizada no dia 23 de agosto de 2013, no auditório da Livraria Martins Fontes, sp. Participaram: Alice Paes de Barros Arruda, Ana Maria Brias da Silveira, Bernardo Tanis, Marina Kon Bilenky, Patricia Bohrer Pereira Leite, Raya Angel Zonana, Silvana Rea e Thais Blucher.