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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.3 São Paulo set. 2014

 

INTERFACE

 

Caetano Veloso: corpo, roupa e música desafiando a ditadura militar no Brasil

 

Caetano Veloso: body, clothing, and music challenging the military dictatorship in Brazil

 

Caetano Veloso: cuerpo, ropa y música desafiando la dictadura militar en Brasil

 

 

Maria do Carmo Teixeira Rainho

Pesquisadora do Arquivo Nacional. Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

Correspondência

 

 


RESUMO

O texto aborda o papel de roupas, acessórios, cabelos e posturas corporais na construção da imagem de Caetano Veloso no período de 1967 a 1972. Nossa hipótese é que estes aspectos foram tão importantes quanto a sua música na conformação de sua identidade como artista, sendo responsáveis também por sua prisão e exílio entre 1969 e 1972. As fontes utilizadas são fotografias do jornal Correio da Manhã e documentos produzidos pelos órgãos de segurança e informação do regime militar.

Palavras-chave: Caetano Veloso; indumentária; Brasil; anos 1960; ditadura militar.


ABSTRACT

The article examines the role of clothes, accessories, hair styles and body postures in the construction of Caetano Veloso's image between 1967 and 1972. Our hypothesis is that these aspects were as important as his music in the formation of his identity as an artist, being accountable, as well, for his arrest, in 1968, and later exile in London, between 1969 and 1972. The paper's sources are photographs from the Rio de Janeiro newspaper Correio da Manhã and documents produced by security and information bodies of the military regime.

Keywords: Caetano Veloso; attire; Brazil; 1960s; military dictatorship.


RESUMEN

En este trabajo se aborda el papel de la ropa, los accesorios, el cabello y las posturas corporales en la construcción de la imagen de Caetano Veloso en el periodo comprendido entre 1967 y 1972. Nuestra hipotesis es que estos aspectos fueron tan importantes como su música en la formación de su identidad como artista, siendo responsables además por su detención y el exilio entre 1969 y 1972. Las fuentes del artículo son las fotografías del periódico Correio da Manhã y los documentos producidos por los órganos de seguridad y de la información en el régimen militar.

Palabras clave: Caetano Veloso; indumentaria; Brasil; años 1960; dictadura militar.


 

 

Nascido em 1942, Caetano Veloso, um dos mais criativos e longevos artistas brasileiros, começou sua carreira musical em 1965, em pleno regime militar. Suas músicas logo se revelaram crônicas sofisticadas da situação política do Brasil, dos comportamentos libertários, da atmosfera cultural e das mudanças de sociabilidade que afetavam os vários cantos do mundo. Letras criativas e arranjos refinados, que incluíam guitarras elétricas, incorporando a cultura norte-americana, mas que revelavam igualmente a influência da bossa nova e de outros ritmos da canção tradicional brasileira.

Essa faceta experimental do cantor ficou evidenciada, aos poucos, também em sua indumentária, nos cabelos longos, no corpo magro em ampla exposição, que transgrediam padrões de sexualidade e gênero. Usando roupas coloridas e estampadas, figurinos produzidos com materiais exóticos, casando-se em trajes inusuais, ele fez do corpo uma mídia poderosa para suas ideias.

Mas, a despeito da potência das vestimentas usadas pelo artista, das suas posturas corporais e de suas performances no palco e fora deles, é possível perceber algumas lacunas nas análises sobre a sua trajetória. Seja nos textos dedicados à história da música brasileira nos anos 1960-1970, seja naqueles especificamente devotados à obra do cantor nesse período, ou ainda nos trabalhos que se propõem a abordar as roupas dos músicos associados à Tropicália ou a abordar a própria Tropicália, a dimensão política das vestimentas aparece subsumida ou matizada, como um aspecto de menor importância. Sobretudo quando se trata de examinar as motivações para a perseguição empreendida pelo regime militar ao cantor, aquilo que é denominado de “revolução comportamental” aparece como um aspecto não explicativo, ou não suficientemente forte para tal ato. Por outro lado, o campo dos estudos da indumentária tem se dedicado prioritariamente a investigar os pontos de contato entre o figurino dos artistas e a moda em vigor no período, em especial, a estética hippie ou a chamada antimoda, bem como as relações entre seus figurinos e as artes plásticas, representadas, por exemplo, na utilização por Caetano do Parangolé de Hélio Oiticica.

Diferentemente dessas abordagens, o propósito aqui é investigar o lugar de roupas, acessórios, cabelos e posturas corporais na construção da imagem do cantor no período compreendido entre 1967 e 1972. Nossa hipótese é que esses aspectos foram tão importantes quanto a música produzida por ele para conformar sua identidade como artista, sendo responsáveis também por sua detenção, em 1968, e exílio em Londres, de 1969 a 1972. Provocando a ordem vigente - sobretudo alguns dos valores defendidos pelo regime militar - e confrontando papéis e estereótipos associados aos gêneros, Caetano notabilizou-se por um modo muito particular, por vezes ambíguo, de ser e estar no mundo. Desagradava tanto aos militares e simpatizantes da ditadura implantada no Brasil em 1964 quanto a uma parte dos estudantes e militantes de esquerda, pelos quais era visto como alienado ou, num termo de época, “vendido” aos valores norte-americanos. Ao mesmo tempo, deixava dúvidas quanto a suas opções sexuais.

Na trilha de Monneyron, entendemos o vestuário não como um elemento secundário, acessório, mas como algo fundador, que ilumina comportamentos individuais e coletivos e que, muitas vezes, subverte as estruturas sociais, constituindo uma via de acesso às rupturas e revoluções que abalam as sociedades em diferentes tempos e lugares (2010, p. 13). Quanto à moda, é uma primorosa metáfora do contemporâneo: pode conformar desejos e inquietações, expectativas e tensões; tanto dá a ver evasão quanto a quebra de certezas e paradigmas. Isso não significa dizer que a moda é expressão do espírito do tempo, do Zeitgeist. Uma abordagem que estabelece vínculos entre formas, cores e modelagens das roupas e uma determinada época sempre se mostrará reducionista, esvaziando a força criativa das vestimentas. Esta é proporcional à capacidade dos agentes da moda de perceber o desejo que os sujeitos coletivos têm de romper com o passado, ou mesmo com o presente, ao utilizar uma determinada peça: a potência da moda se revela muito mais como antecipação.

Agamben acredita que a moda é um bom exemplo do que chamamos “contemporaneidade”, “ao introduzir no tempo uma descontinuidade peculiar, que o divide segundo a sua atualidade ou inatualidade” (Agamben, 2010, p. 26). Essa disrupção é dada a ver muito intensamente na segunda metade dos anos 1960, sobretudo nas roupas femininas, mas não apenas nelas.

Ao longo de boa parte do século XX, a masculinidade se afirmava pela ausência: o homem era uma espécie de sujeito oculto da moda. Conforme Jennifer Craik, a retórica da moda masculina se apoiava num conjunto de negações que incluíam as seguintes proposições: não existe moda masculina; os homens se vestem pelo corte das roupas e pelo conforto, mais do que em função do estilo; são as mulheres que vestem os homens e compram suas roupas; os homens que se vestem elegantemente são excêntricos; os homens não reparam nas roupas e não se interessam por elas; a maioria deles não mergulhou na busca contínua das mudanças sazonais (1994, p. 176). Em meados dos anos 1960, apelos à sobriedade e críticas ao que era considerado excessivamente brilhante ou colorido ainda eram comuns. Elegância se traduzia por uma quase invisibilidade no que tocava aos homens: prova disso são os parcos exemplos de figuração masculina nas fotografias de moda produzidas até aquele período.1

De todo modo, ao longo dos anos 1960, sexo e gênero tornam-se categorias mais complexas: a geração do pós-guerra questiona modelos de comportamento; há uma quebra na hegemonia masculina no mundo do trabalho e nas universidades; mulheres ocupam diferentes papéis na esfera pública. Novas interações de gêneros, pautadas por uma maior simetria, ganham formas nas escolhas vestimentares dos homens, que começam a evidenciar uma independência em relação aos rigorosos padrões impostos até então. Liberados para incorporar códigos de vestimentas plurais, agregam aos atributos de respeitabilidade e autoridade deles exigidos elementos frívolos e sedutores.

Para o processo de mutação da moda masculina e ampla difusão destes novos padrões vestimentares será fundamental a influência de cantores e artistas de cinema, especialmente os primeiros - os músicos se tornam, nos anos 1960, a grande referência em termos de moda. É certo que as roupas adotadas por eles atendem a interesses variados, incluindo, naturalmente, a veiculação de um determinado perfil: funcionam como figurinos mesmo quando usadas fora dos palcos e das telas. Quanto à moda, a indústria de confecção tratará de “limpar” as roupas dos seus elementos mais extravagantes, de maneira a propor um guarda-roupa radicalmente distinto daquele em voga até então.

Ao naturalizar o interesse masculino pela moda, os artistas colaboraram para tornar aceitável que os homens investissem dinheiro e tempo em roupas e na aparência. Mas havia limites para esse interesse. É nesse sentido que as escolhas vestimentares de Caetano Veloso chamam a atenção: elas esgarçam as fronteiras de gênero; promovem quebras em paradigmas que associam determinados tecidos, modelagens, cores e cortes a homens e mulheres; ultrapassam os limites do que se convencionou chamar então de “unissex”.2

As balizas cronológicas escolhidas justificam-se pelo fato de que, em nosso entendimento, a participação do cantor no Festival de Música da Record de 1967, quando apresentou a canção “Alegria, alegria”, foi um marco fundador da política do corpo que o distinguiría. O ano de 1972, por sua vez, corresponde à volta de Caetano ao país, após o exílio em Londres. Seu retorno, cercado de curiosidade por parte de fãs, da imprensa e do governo - que monitorou o artista enquanto este se encontrava fora do país -, deixava claro que ele havia aprofundado a ambiguidade que o caracterizava. Desembarcou de cabelos longos, uma jardineira sem nada por baixo, expondo braços e parte do tronco. Portava ainda um casaco branco, de pelo, com características femininas.

As fontes privilegiadas para essa reflexão são variadas e, em sua maioria, integram o acervo do Arquivo Nacional. Destacamos, em primeiro lugar, o conjunto de oitenta fotografias produzidas pelo jornal carioca Correio da Manhã no período em questão, que registram cenas de show, ensaios, participação do artista em programas de televisão e festivais de música, além de imagens do seu retorno ao Brasil, entre outros temas. Somam-se a elas documentos produzidos pelos órgãos de segurança e informação do regime militar, que, desde 2005, vêm sendo recolhidos pela instituição e evidenciam como a postura, as atitudes e as roupas do cantor faziam dele um alvo do governo brasileiro. Além desses documentos, consultamos matérias de jornais e revistas, sobretudo aquelas com foco em suas roupas e comportamento, e ainda a obra Verdade tropical (1997/2008b), escrita por Caetano - um relato biográfico daqueles anos.

Nosso ponto de partida é o conjunto de fotos de Caetano Veloso.3 Misturadas em uma pasta com o nome do artista, compõem uma espécie de mosaico aleatório, mas, à medida que são postas em ordem cronológica, permitem perceber os modos como ele foi conformando sua imagem pública: de jovem discretamente vestido, aparência frágil e tímida, recém-chegado ao Rio de Janeiro, em 1967 (fig. 1), a um homem ainda jovem, de longos cabelos encaracolados e um corpo magro em ampla exposição após a volta ao país (fig. 2). Entre um momento e outro, roupas coloridas, algumas de inspiração indiana, seguindo a voga hippie, camisetas bordadas, em tamanhos diminutos, com a barriga à mostra, figurinos em materiais como vinil e plástico, além dos colares de ossos. E ainda: coletes, pantalonas de cós baixo, pés descalços ou em tamancos, sungas muito pequenas, chegando, por fim, ao uso de batom no show Transa, em 1972.

Para ir além dessa primeira descrição, da superfície das imagens, ou mesmo de uma perspectiva restrita à história da indumentária no período, acreditamos que dois conceitos são fundamentais: o de agência e o de performance. Na trilha de Alfred Gell (1998), tomaremos as fotografias como um sistema de ação, numa perspectiva mais antropológica do que semiótica, para examinar a capacidade de geração de efeitos das imagens. Com isso, é possível designar não propriamente o que motiva a ação num determinado sentido, mas o contexto e a forma como a ação é executada e o que dela advém. Conectado à ideia de agência está o conceito de performance, ou, como preferem alguns autores, de atos performativos. Segundo Erving Goffman (1979, 2009), a performance é uma metáfora para o comportamento social, e se definiria como toda e qualquer atividade realizada por um participante, numa determinada situação, que serve para influenciar, de algum modo, os outros participantes. Esses conceitos possibilitam examinar a imagem fotográfica como um enunciado que informa e conforma certa visão de mundo, sobretudo como mediação, algo que se realiza nas e pelas relações sociais entre diferentes agentes.

 

Antagonismo/Ambiguidade/Experimentação

Examinar as roupas de Caetano Veloso sem o cotejo com outras séries fotográficas e outras fontes, em diferentes suportes, retiraria de sua indumentária a força que desejamos destacar. Por isso a importância de agregar, à análise das imagens do cantor, fotografias de músicos contemporâneos a ele. O primeiro choque provocado pelo artista, num registro que merece atenção e marca a emergência do Tropicalismo, é aquele já mencionado, no Festival da Record de 1967 (fig. 3). Estreando em festivais de música como cantor, ele surge em um terno xadrez, com paletó de tweed e camisa de gola rulê laranja. Aos nossos olhos hoje, parece uma roupa banal, longe do estardalhaço que seu uso provocou. No entanto, abandonando uma perspectiva anacrônica e buscando os relatos da época - até mesmo do próprio cantor -, entende-se o porquê do estranhamento. O que estava em jogo não era apenas o código de vestimenta daqueles festivais de música, que obrigava os artistas a usar smoking ou ternos escuros; mais do que isso, tratava-se de um homem abusando das cores, acompanhado de um grupo de rapazes cabeludos,4 cantando uma música na contramão do que a maioria do público estava acostumada a ouvir.5 A foto escolhida por nós traz um componente adicional: a presença dos músicos da orquestra da rede de tevê que promovia o festival, com seus rostos sérios ante a performance do artista de braços abertos e sorriso franco. Naquele momento, demarcavam-se fronteiras musicais, políticas, comportamentais, com Caetano apresentando-se como antagonista de músicos de sua geração, como Chico Buarque e Edu Lobo, os quais, a despeito das letras engajadas e temas visivelmente políticos, que ganhavam força com os arranjos propostos - caso de “Ponteio” e “Roda viva” -, exibiam-se como senhores.6

Após a sua aparição no Festival, Caetano vai investindo mais e mais na construção de uma imagem baseada na forte diferenciação visual em relação a outros músicos - com exceção, em alguns aspectos, de Gilberto Gil -, apostando em aspectos como ambiguidade e experimentação. Em jornais como o Correio da Manhã ou na revista Veja, notas e matérias comentavam seus trajes: “o camisolão branco de listas azuis” vestido pelo artista numa estreia teatral; a “camisola psicodélica” que ele usaria para assistir a um show da cantora Nara Leão; os ternos de panamá branco e sapatos bicolores, escolha associada a uma série de shows realizados para a empresa Rhodia em 1968; ou, ainda, a calça preta de veludo e a camisa vermelha de peitilho bordado com flores e pedacinhos de espelho, em um almoço na casa da irmã, a cantora Maria Bethânia. Em seu casamento, em novembro de 1967, logo após o Festival da Record, Caetano usou terno e a camisa de gola rulê laranja, com uma grande flor amarela na mão; sua noiva, um vestido curto cor-de-rosa, com capuz da mesma cor.

Isso nos leva a um aspecto interessante e bastante explorado pela imprensa da época, que diz respeito a uma ambiguidade sexual evidenciada pelo cantor. Ainda jovem, Caetano casou-se com Dedé Gadelha, com quem permaneceu por mais de dez anos e teve um filho. De qualquer modo, em suas performances, o artista não se furtava a deitar-se no chão - ato que, conforme Goffman (1977), evidencia uma posição de inferioridade ou de fragilidade, habitualmente associada às mulheres -, executar danças erotizadas e provocativas - levando a censura a proibi-las em seu programa de tevê, em 1968 -, e abusar de figurinos que deixavam o corpo em exposição.

Nesses atos performativos, Caetano Veloso subverte as construções das diferenças sexuais e as classificações sociais associadas ao que é masculino e ao que é feminino, mostrando que essas classificações estão o tempo todo em devir. Além de promover a desnaturalização da categoria gênero, o artista evidencia que a categoria tem dimensões temporais e coletivas, nos lembrando a necessidade de historicizá-la, visto que a realidade do gênero é criada mediante performances sociais contínuas. Para Goffman, a publicidade, por exemplo, trabalha a todo o tempo com uma hiper-ritualização de gênero; ela explora o repertório de exibições, o idioma ritual de que todos nós tomamos parte nas situações sociais, com um mesmo objetivo: tornar visível uma ação vislumbrada. No geral, os publicitários não fazem mais do que convencionalizar nossas convenções, estilizar o que já existe, fazer um uso frívolo de imagens descontextualizadas (1977, p. 50).

Goffman nota que, nas fotografias publicitárias, os personagens são dispostos segundo uma microconfiguração espacial, de modo que suas posições quanto ao espaço sejam o índice de suas posições sociais relativas. As regularidades estão nos “pequenos comportamentos” que estabelecem papéis, funções e posições nas atividades profissionais e domésticas, no lazer e na aprendizagem. Nessas imagens, conforme o autor, as representações de masculinidade e feminilidade se encontrariam naturalizadas, cabendo à mulher um lugar de subordinação: ao reproduzir relações de gênero, que são também relações de poder, as fotografias publicitárias acabam, então, por reiterar, pela repetição, as desigualdades de gênero (1977, p. 50).

Em mais uma fotografia selecionada por nós, temos o artista em uma vestimenta que, conforme a imprensa, foi o elemento detonador das vaias recebidas por Caetano no Festival da Record de 1968, em São Paulo (fig. 4). Sua indumentária - calça preta, camisa e jaqueta brancas, tudo em vinil, com o acompanhamento de grandes colares em materiais diversos, incluindo dentes -, aliada à música “É proibido proibir”, foi como um tapa na cara do conservadorismo. O jornalista Paulo Francis faz um comentário que não apenas se aplica ao que ele denomina de “provinciana São Paulo” mas que, em nosso entendimento, se refere mais amplamente às forças conservadoras que governavam então o país: “as camadas médias não se sentem à vontade com os hippies, são atingidas em suas noções essenciais de comportamento. [...] Os espectadores xingaram-no pelo seu traje e jeito, porque se sentiram basicamente ameaçados por eles”.7 Ao incluir em sua apresentação a performance de um jovem norte-americano, vestindo um camisolão branco e dando gritos, Caetano deixou evidente que o conservadorismo unia a esquerda e a direita no Brasil. Como aponta Luís Carlos Maciel, a juventude que vaiou Caetano e chamou-o de homossexual, levando-o a, posteriormente, abandonar o evento, se sentiu atingida pessoalmente.8

Nas páginas dos jornais e revistas, destacava-se a ousadia do cantor, que não se furtava a se vestir seguindo a estética hippie, incorporando elementos orientais e também a psicodelia, a variedade de cores e materiais. Conforme a Veja, artistas como Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gal Costa e Wanderléa faziam a felicidade das butiques de vanguarda: “Sua influência na juventude é inegável e suas roupas de palco, loucas e extravagantes, acabam invadindo os lares mais pacatos e tradicionais”.9 O que diferenciava Caetano dos músicos mencionados na matéria é que, além de se vestir de modo pouco convencional, de quebrar padrões associados a gênero e sexualidade - e, aos olhos da ditadura, constituir um perigo para a juventude -, ele era também um artista engajado, que participava de passeatas contra a censura, de eventos promovidos por organizações de trabalhadores e protestava contra as prisões de estudantes e intelectuais.

Nesse sentido, soa ingênuo que alguns autores afirmem que a prisão e o exílio do artista não teriam um “motivo aparente, além de uma certa rebeldia comportamental” (Sukman, 2011, p. 103). O episódio que antecedeu a prisão de Caetano, um show na boate Sucata, no Rio de Janeiro, no qual o artista se atirava no chão, usava figurinos em vinil e deixava em exposição uma obra do artista Hélio Oiticica com os dizeres Seja marginal, seja herói”, foi subestimado à época quanto a ser um detonador dos episódios subsequentes, o que talvez faça sentido - afinal, ali apenas se reafirmavam posturas e performances. Nada de novo, portanto, com exceção da obra de Oiticica, que aprofundava o desejo do artista de provocar a ordem estabelecida. Em nosso entendimento, o episódio foi um elemento condensador da postura do artista, uma espécie de síntese da sua obra, de seu engajamento, que ia muito além do sentido político-partidário, como afirma Augusto de Campos.10 Seja como for, a partir dali o destino de Caetano e de sua obra estavam selados.

Pesquisando-se os documentos produzidos pelos órgãos de informação e repressão do regime militar acerca de Caetano Veloso, no período entre 1970 e 1978, há algumas chaves para a compreensão dos efeitos causados pela sua produção artística e seus atos performativos: a política do corpo é tão efetiva como qualquer ação política tradicional. Em documento do Serviço Nacional de Informações (SNI), registra-se, no ano de 1968, que o músico “vem atuando em emissoras de rádio e televisão, cantando músicas de protesto, subliminarmente, atacando o regime vigente e exaltando regimes socialistas, mercê de uma bem inteligente campanha promocional”. Em 1971, com o artista exilado em Londres, o mesmo órgão observa que ele promovia uma “propaganda anti-Brasil” nos meios artísticos da Europa. Ao viajar para o Brasil, também em 1971, com autorização do governo, para a festa pelos 50 anos de casamento dos pais, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) registra e divulga através do SNI que o músico havia sido preso em 1969 para “fins de averiguações e interrogatório, com vistas à subversão e o incitamento à desordem”. Fora do país, o artista continuava monitorado: em 1971, o Ministério da Aeronáutica expede documento sobre o programa do show realizado por ele em Londres, no qual há um trecho contrário ao regime militar; também destaca a matéria produzida por uma revista local que faz referência à prisão do artista. Até a gravação do disco Caetano Veloso, em 1971, é monitorada: uma fita cassete, contendo a gravação da faixa “A little more blue”, é alvo de atenção; nela, consta o nome de Libertad Lamarque, uma famosa cantora de tango e atriz argentina que, aos olhos do regime militar, poderia ser uma alusão a Libertar Lamarca.11

A atenção dispensada ao artista pelos órgãos do regime militar não diminui após o seu retorno ao país. O show promovido por Caetano poucos dias após o desembarque no Rio de Janeiro - que marca o lançamento do disco Transa - revela que ele não abdicou da livre exposição do corpo. As fotos do espetáculo são emblemáticas: em uma delas (fig. 5), o artista usa apenas pantalona e uma jaqueta jeans, muito curta, de modelagem tipicamente feminina (vistas em jovens cariocas então), que deixa boa parte do seu tórax e barriga à mostra; em outra (fig. 6), veste uma camiseta com uma flor bordada e usa batom. O figurino da primeira foto causa tanto estranhamento à imprensa quanto a jardineira que ele usou ao desembarcar no país. A segunda imagem reforça a ambiguidade sexual e soma-se à dança que imita/homenageia a cantora Carmem Miranda; naquele mesmo ano, Caetano se tornaria pai pela primeira vez.

Ainda vigiado pelo regime militar, é alvo de documento da Polícia Federal, conforme relata o coronel da Aeronáutica que assiste ao show realizado por ele e Chico Buarque em Salvador, em novembro de 1972. O coronel Juarez conta que “presenciou cenas que feriam a moral das famílias ali presentes, bem como atitudes do Sr. Caetano Veloso que, de certa forma, indispôs [sic] o público contra as autoridades presentes”. Em síntese foram feitas as seguintes observações:

apresentação de Caetano Veloso como um homossexual, pintado de batom e com trejeitos efeminados. [...] apresentação de uma senhora, convidada de Caetano Veloso, que cantou sambas de roda, no qual se fazia referência aos olhos e os artistas presentes colocavam as mãos nos olhos, à boca e idem, as mãos na boca e finalmente dizia no “lelê, lalá” e os artistas colocavam as mãos no sexo.12

No final do show, Caetano Veloso chamou o público para o palco dizendo: “O teatro é do povo”. Ainda conforme o relato do coronel Juarez, dezenas de pessoas subiram ao palco, colocando a estrutura em perigo, e com isso foi necessária a intervenção de bombeiros, os quais foram vaiados após ter Caetano Veloso dito: “É, o teatro não é do povo”.13 Em mais uma ação daquele órgão, Eduardo Henrique de Almeida, inspetor da Polícia Federal, e Maria Helena Guerreiro da Cruz, técnica de censura, foram a outro espetáculo do cantor, advertindo-o que retirasse o canto folclórico da apresentação, no que foram atendidos. No entanto, segundo a informação de Almeida, o cantor manteve os “trejeitos homossexuais”.14

Judith Butler, ao falar dos problemas de gênero, pergunta:

que performance obrigará a reconsiderar o lugar e a estabilidade do masculino e do feminino? E que tipo de performance de gênero representará e revelará o caráter performativo do próprio gênero, de modo a desestabilizar as categorias naturalizadas de identidade e desejo? (Butler, 2010, p. 198)

No Brasil, em plena ditadura militar, num tempo em que as polaridades se mostravam tão exacerbadas e os meios-tons não eram aceitos, entende-se o incômodo e o estranhamento causados por Caetano Veloso. Assim como as de Chico Buarque, Geraldo Vandré e Edu Lobo, suas canções contrariavam o regime político. Tal qual Roberto e Erasmo Carlos, o artista se vestia com roupas da moda, abusava de cores e estampas, ousava em termos estéticos e visuais. Mas, diferentemente de todos, desafiava a ditadura militar subvertendo igualmente letras, músicas, repertórios de gênero, padrões de comportamento associados ao masculino/feminino. Uma das potências de Caetano Veloso foi - e, pode-se dizer, é ainda hoje - a capacidade de mostrar que estética e política podem ser uma e a mesma coisa.

 

Referências

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Correspondência:
Maria do Carmo Teixeira Rainho
Rua Diamantina, 13/101
22461-050 Rio de Janeiro, RJ
mcrainho@ig.com.br

Recebido em 15.08.2014
Aceito em 25.08.2014

 

 

1 De uma maneira um tanto quanto exagerada, as teóricas feministas Rosalind Coward, Julia Kristeva e Hélène Cixous afirmam que o modo como o patriarcado foi construído está intimamente relacionado a deixar o homem de fora da imagem. Coward argumenta que esse foi um dos artifícios pelos quais os homens conseguiram fugir da atividade de se definir sexualmente e que, apesar da ideologia nos querer fazer acreditar que a sexualidade das mulheres é um enigma, é o corpo dos homens, ou melhor, a sexualidade dos homens, o verdadeiro enigma. Kristeva, na mesma direção, observa que a autorrepresentação masculina é sempre potencialmente algo “a ser temido”. Cixous, por sua vez, insiste em uma espécie de dívida masculina, pois os homens ainda têm muito que dizer sobre a sua sexualidade e tudo para escrever. Para Jobling, o mais preciso seria afirmar que os homens não estiveram inteiramente ausentes das representações, mas que estas colaboraram ativamente para construir o mito de uma masculinidade inquestionável (Jobling, 2006, pp. 143-144).
2 A moda unissex, da qual a calça jeans é exemplar, promove, segundo Basse e Burgelin, “uma ruptura simbólica, uma nova era vestimentar [...] na qual o dimorfismo sexual aparece como uma possibilidade, não como uma restrita obrigação”. Os autores chamam a atenção também para o fato de que, embora tenha sido rapidamente apropriado pelos designers de moda, o estilo unissex aponta para um longo e gradual processo de masculinização da indumentária feminina, e também, em menor medida, para uma certa feminização do vestuário masculino (1987, p. 295).
3 Discordamos aqui de Carlos Basualdo, para quem as fotos da época do Tropicalismo, por mais pitorescas que sejam, não dizem muito. Conforme o autor, a imagem de Caetano no Festival da Record, em 1967, não revela o escândalo desencadeado pouco antes, ao divulgar-se o fato de que o artista interpretaria sua canção acompanhado de uma banda de rock argentina (2007, pp. 11-12). Em nosso entendimento, o trabalho com fotografias exige que se proponha um diálogo efetivo, visando não a responder a perguntas prévias, mas a fazer novas perguntas, estabelecer com as imagens um estranhamento que permita explorar a sua potência.
4 Os Beat Boys, grupo de rock argentino, surpreenderam a plateia, com seus cabelos longos, roupas cor-de-rosa e guitarras elétricas, gerando uma vaia quebrada apenas pela entrada do cantor.
5 “Alegria, alegria” era uma espécie de marcha pop e evidenciava as experiências de jovens urbanos. Cheia de referências a notícias, espetáculos de televisão, letras de músicas e propaganda, possuía uma linguagem fragmentada, misturando metralhadoras, as atrizes Brigitte Bardot e Claudia Cardinale, Coca-Cola, a imprensa alternativa. Como observa Favaretto, a canção apresenta uma das marcas que iriam definir a ação dos tropi-calistas: uma relação entre fruição estética e crítica social (1979, p. 8).
6 Conforme Sukman, Edu Lobo admitiu, anos depois da realização do Festival, que Caetano e Gil estavam à frente deles, eram mais modernos, porém concluiu sutilmente: “Na aparência”. Chico, mais irônico, disse que não poderia ser tropicalista na ocasião porque não se sentiria bem usando “roupas de plástico” (2011, p. 93).
7 Correio da Manhã, 20 de setembro de 1968.
8 “As respostas emocionais da burguesia descambam sempre para demonstrações do tipo fascista, dominadas pelo irracionalismo. Foi o que aconteceu: ao artista que questionara, com sua arte, o mundo burguês deles, acusaram quadradamente de 'pederastía'; ao homem que, corajosamente acabara de desmistificá-los com meia dúzia de palavras, chamaram de 'covarde' [.] A jeunesse doré tem medo de Caetano Veloso: é mais fácil dançar irresponsavelmente com um retrato de 'Che' Guevara do que enfrentar-lhe as verdades” (Luís Carlos Maciel, “Caetano e o fascismo de esquerda”, Correio da Manhã, 25 de setembro de 1968). Em parte do discurso proferido no Festival, Caetano, sob vaias, questionou: “Mas essa é a juventude que quer tomar o poder? Vocês não estão entendendo nada. Vocês estão por fora. Se vocês forem em política o que são em estética, pobres de nós” (Veloso, 1968/2008a, p. 158).
9 “Os brasileiros de rosa-shocking”, Veja, 9 de julho de 1968.
10 “[...] em 68, essa mudança comportamental adquiriu um caráter de agressão muito grande para as pessoas que constituem a maioria silenciosa, nem sempre tão silenciosa, não é? Mas o Caetano e o Gil. eles foram além dos hippies, que deixavam crescer os cabelos, porque eles usavam roupas que não eram admitidas para um homem usar. Aquelas coisas todas que eles faziam, tudo aquilo só era extremamente agressivo, extremamente desafiador. Houve uma revolução comportamental. Tanto que eles foram presos e expulsos talvez até mais pelo aspecto comportamental do que pelo aspecto ideológico. Porque no aspecto ideológico, quem realmente tinha ligações com as áreas que pudessem ser consideradas, aos conceitos da época, mais subversivas ou mais contestatórias do ponto de vista político era o Vandré, era o Sérgio Ricardo. E eles - os baianos -[...] atuavam numa pauta mais anárquica que não tinha sintonia com as atividades políticas programadas, encasuladas em partidos”. Entrevista concedida a Santuza Cambraia Naves Ribeiro em 8 de março de 1986 (Ribeiro, 1988, pp. 34-35).
11 Ao falar ao jornal argentino Página 12 sobre os tempos do exílio em Londres, Caetano (2007) lamenta ter perdido a edição inglesa do disco gravado lá, no qual as canções “Maria Bethânia” e “A little more blue” não estavam com os cortes que viriam a sofrer no Brasil. Sobre esta última, observa que a parte censurada era a que recordava os filmes mexicanos de Libertad Lamarque que ele costumava assistir com os amigos em Santo Amaro da Purificação. Era uma evocação da sua infância, mas o nome de Libertad Lamarque incomodou os censores, segundo o cantor, porque Libertad era uma palavra maldita nos tempos da ditadura e, sobretudo, porque um dos líderes da oposição armada se chamava Lamarca. Para o cantor, isso era curioso porque não pensou nele ao escrever a canção. Cf. Arquivo Nacional: Presidência da República, SNI, Agência Central, ace 30941 70; Presidência da República, SNI, Agência Central, ace 40276-71; Presidência da República, SNI, arj, ace 869-71; Ministério da Aeronáutica Vaz 1184 A 0019; Ministério da Aeronáutica Vaz 110.83.
12 Informação do inspetor da Polícia Federal Eduardo Henrique de Almeida. Arquivo Nacional, Presidência da República, SNI, Agência Central Vaz 118 a.20.
13 Idem.
14 Idem. Emanuel Cerqueira Campos, agente da Polícia Federal, também apresenta relatório sobre o show realizado por Caetano Veloso e Chico Buarque no Teatro Castro Alves. Afirma o agente, a respeito do comportamento dos cantores: “cabe-me salientar que Caetano Veloso embora usando de uma afetação um tanto exagerada, muito mais apropriada a uma pessoa do sexo feminino, provocando até algumas vaias do auditório, tendo cantado músicas que ao meu entender nada apresenta [sic] de anormal”. Arquivo Nacional, Presidência da República, SNI, Agência Central VAZ 118 a.20.

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