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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.49 no.2 São Paulo abr./jun. 2015
PONTOS DE VISTA
Nightmares in literature
Pesadillas en la literatura
Walnice Nogueira Galvão
Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)
RESUMO
Uma reflexão sobre a relevância do pesadelo em literatura deve levar em conta o ofício dos sonhadores, tão em vista na Antiguidade. Em nossos tempos, o domínio literário do pesadelo foi descoberta do Romantismo, o qual, reagindo contra a Revolução Industrial e seus valores, apela para o predomínio do irracional. O primado da razão, típico da época das Luzes, vai ser contestado pelos românticos, que põem em xeque o equilíbrio, as proporções e a simetria do Neoclassicismo. Em troca, vão privilegiar o impulso, o informe, o desequilibrado, o assimétrico. O sonho e o pesadelo como mananciais da arte serão postos acima de tudo. Daí derivam as simpatias pelo satanismo, pelo oculto e pelas perquirições do lado negro da alma. Grandes escritores figuram entre aqueles que assim procederam.
Palavras-chave: pesadelo; sonho; razão; Romantismo; arte.
ABSTRACT
A reflection on the importance of the nightmare in literature should consider the profession of dreamer, which was very common in Ancient Times. In our time, the literary domain of nightmares was discovered from Romanticism, which turned to the irrational supremacy as a reaction against the Industrial Revolution. The primacy of reason, which was typical in the Age of Enlightenment, was contested by romantic writers, who questioned the neoclassic balance, proportions and symmetry. In return, they privileged the impulse, lack of shape, imbalance, asymmetry. Dream and nightmare were prioritized as the sources of art. A sympathy for Satanism, occultism, and searching for the dark side of the soul was originated therefrom. There are great writers among those who adopted the new aesthetics.
Keywords: dream; nightmare; reason; Romanticism; art.
RESUMEN
Para evaluar la relevancia de la pesadilla en la literatura es necesario tener en cuenta la importancia del oficio de soñador, muy en boga en la Antigüedad. En nuestra época, el dominio literario de la pesadilla fue un descubrimiento del Romanticismo, el cual, en reacción a la Revolución Industrial y sus valores, apela para el predominio de lo irracional. El primado de la razón, típico de la época del Iluminismo, será contestado por los románticos, que ponen en jaque al equilibrio, a las proporciones y a la simetría del Neoclasicismo. A cambio, van a privilegiar el impulso, el informe, lo desequilibrado, lo asimétrico. El sueño y la pesadilla como manantiales serán puestos por encima de todo. De donde derivan las simpatías por el satanismo, por lo oculto y por las peregrinaciones del lado negro del alma. Grandes escritores están entre los que se adhirieron a este nuevo movimiento.
Palabras clave: pesadilla; sueño; razón; Romanticismo; arte.
El sueño de la razón produce monstruos.
(Goya)
I
Recuando na literatura ocidental nao mais que 2.500 anos, deparamos com um ilustre registro da vida onírica. E dos mais conhecidos e citados, desde que Freud, helenista aplicado e apaixonado por literatura, deu-lhe a honra de transformá-lo em brasao universal. Pois, como ninguém ignora, foi Sófocles, em Édipo Rei, quem fez Jocasta observar que nao é raro os homens terem sonhos em que profanam o leito da mãe. Sonhos? Pesadelos? Haverá uma resposta?
Os sonhadores oficiais tinham amplo prestígio na Antiguidade e cada rei tinha o seu. Até hoje falamos em "vacas magras": a expressão, ainda corrente, vem da saga bíblica de José, ou José do Egito, que era o sonhador do faraó. Preferido do pai, já dava mostras de sua vocação desde criança, pois foi sonhando que despertou a ira de seus irmãos, num caso claro de sibling rivalry.
No duplo sonho que acarretou seu fim nas mãos da fratria, onze molhos de trigo inclinavam-se perante o décimo segundo molho, assim como o sol, a lua e onze estrelas inclinavam-se perante a décima segunda estrela. A interpretação rezava que, num caso, a alusão era aos onze irmãos e ele, enquanto no segundo caso, além dos onze irmãos, também apareciam o pai e a mãe. Ora, a parentela tinha boas razões para se indignar.
No cômputo geral, só José e Benjamin eram filhos da segunda esposa, a muito amada Raquel, pela qual o pai esperara sete anos. O sogro, o difícil Labão, o obrigara a casar primeiro com a mais velha: não tinha cabimento a filha mais nova casar-se antes da mais velha. Bem o sabemos, pois a questão é o estopim de muitos contos de fada.
Além de figurar entre os mitos fundadores da Bíblia, esse específico incidente é o objeto de um dos mais belos sonetos de Camões: "Sete anos de pastor Jacó servia / Labão, pai de Raquel, serrana bela / Mas não servia ao pai, servia a ela / Que a ela por soldada pretendia".
O sonho duplo com molhos de trigo e estrelas veio coroar todo o favoritismo demonstrado pelo pai, incluindo a oferta do famoso "manto multicor", que tanto ciúme despertou, bem como a empáfia a que não se furtava o rapaz. Os irmãos então decidiram que bastava: venderam-no a uma caravana que passava e disseram ao pai que ele morrera, devorado por uma fera. Como prova, levaram o manto devidamente pintalgado de sangue animal.
Vendido como escravo no Egito, José escapou das garras da mulher de Putifar, mas foi lançado ao cárcere, onde veio a interpretar sonhos de prisioneiros e foi por isso recomendado ao faraó. Em pouco tempo, alçara-se ao primeiro posto civil do reino, o de intendente, e foi decifrando sonhos que prestou os mais altos serviços.
Acontece que o faraó teve um pesadelo. No primeiro episódio, sete vacas magras surgiam em seguida a sete vacas gordas e as devoravam. No segundo, sete espigas definhadas nasciam no talo de trigo e devoravam sete belas espigas. O faraó se assustou, com razão, pois um pesadelo como esse só podia acarretar grande angústia, e ainda mais se concebido por um governante, que era guardião do bem-estar de seu povo.
José foi certeiro: avizinhavam-se sete anos de fartura (as vacas gordas, as belas espigas), seguidos por sete anos de penúria (as vacas magras, as espigas definhadas). Sob as ordens do faraó, o intendente tomou medidas para acumular reservas de mantimentos, abarrotando os celeiros de trigo com o excedente dos anos de fartura, que seriam úteis nos anos de penúria. E úteis não só para o Egito, para outros países também.
Foi assim que a fratria de José veio parar ante o extraviado, agora adulto e irreconhecível, para comprar trigo, pois a fome grassava igualmente entre eles.
Após tergiversações e peripécias, os laços de sangue falaram mais alto. José dá-se a conhecer, cobre os parentes de mantimentos e presentes, e manda buscar o pai, transferindo-se afinal toda a comunidade para o Egito.
Mas o próprio José já era filho de outro sonhador, Jacó, a quem devemos muitas coisas, inclusive o belo lance da "escada de Jacó". Quando jovem, passara a noite ao relento, pousando a cabeça sobre uma pedra. E sonhou que a pedra era a entrada para o reino dos céus, de modo que uma escada se elevava a partir dela, miríades de anjos subindo e descendo. Ao acordar, deu o nome de Betel ("casa de Deus") ao lugar, erigiu a pedra em coluna, fez uma libação e a ungiu com óleo, fazendo a promessa de que ali futuramente haveria um altar e um templo.
A saga foi belamente ficcionalizada na tetralogia José e seus irmãos, de Thomas Mann, em que quatro romances dão conta de um dos mais notáveis mitos da Bíblia (As histórias de Jacó, O jovem José, José no Egito, José, o Provedor).
Nesses tempos, e em toda a Antiguidade, ainda era comum que se sonhasse abertamente e que os sonhos servissem de diretrizes para a vida, ou para a ação. Muitas vezes, era esse o ponto de partida dos profetas, que de fato, como seu nome indica, viam o futuro e falavam desse futuro. Quase sempre a visão profética, embora literariamente belíssima, é um pesadelo, povoada por catástrofes e bestas do apocalipse. Análogos no teor de pesadelo, e sem iguais na pintura universal, são os horrores pintados nas telas de Bosch e Bruegel. Conforme o quadrante do planeta, esses visionários tiveram diferentes nomes: houve profetas, e sibilas, e pítias, e sempre os oráculos.
Mesmo na Idade Média ainda temos notícia dos pesadelos atribuídos a súcubos e íncubos, assombrações sexuais demoníacas que se intrometiam no leito dos incautos. Ou então como o de Macbeth, segundo Shakespeare. Em meio às alucinações causadas pela culpa decorrente dos homicídios que cometera ao juncar de cadáveres a trilha de sua ascensão ao trono da Escócia, Macbeth consulta as bruxas. Pelo veredicto delas, nada tinha a temer, porque só seria derrotado quando a floresta de Birnan marchasse rumo a seu castelo de Dunsinane. Macbeth tranquilizou-se, pois onde já se viu uma floresta marchar? Pois marchou e o castigou. O oráculo era, como cabe a um oráculo, enigmático, apesar de premonitório: as hostes vingadoras camuflaram-se com galhos arrancados às árvores e avançaram, pegando-o desprevenido. Esse foi o fim de Macbeth, que decifrava mal pesadelos e oráculos.
Nas savanas e desertos africanos ou nas florestas brasileiras, o xamã ou pajé sonha. Sonha para resolver problemas que afetam a comunidade, para obter orientação proveniente dos espíritos e dos antepassados, e assim por diante.
Mas nossa sociedade industrial avançada perdeu o contato com o sonho e com o pesadelo; ao que parece, só a arte ainda mantém essa virtualidade.
II
Na trajetória da literatura, dá para perceber o momento em que, como num poço ou numa artéria, foi perfurado esse veio precioso, de onde jorraria tanta arte. Foi no Romantismo, o movimento da sensibilidade que começa nos fins do Setecentos e domina todo o Oitocentos, introduzindo uma estética inédita. Ponto crucial da novidade é seu nexo com a Revolução Industrial, em reação ao industrialismo, à máquina e ao materialismo.
Uma série de derivações vai acarretar a rejeição dos cânones do Neoclassicismo - de equilíbrio, comedimento e proporções simétricas -, inclusive das Luzes e seu elogio da razão, trazendo à tona a valorização do irracional.
Credita-se ao Romantismo a invenção dos sentimentos e a perquirição dos estados d'alma: seu tema central é o amor. Por sua vez, a invenção dos sentimentos trouxe em seu bojo o apreço pela natureza enquanto projeção do coração humano. Rousseau, enaltecendo a promenade e a aura do viandante solitário, alça-se como precursor da ecologia. Mas, afora o amor, a noite também seria um dos principais temas românticos; os poetas a cantaram como propícia à alma, acolhedora, nutriz do sonho e do devaneio (Béguin, 1991), porque suspendia o primado da razão. Nenhum poeta escapa de ter feito poemas sobre a noite; e Chopin, músico romântico, comporá os famosos Noturnos para piano. Amor, noite, portanto sonho, mas também pesadelo - e, espreitando ao fim de tudo, a morte.
Nota-se o predomínio da poesia, gênero por excelência do Romantismo. Em meio a uma contestação generalizada, perde vigência até o tamanho do verso escandido anterior, especialmente o decassílabo, típico do Neoclassicismo. Segundo a nova estética, o verso deve corresponder ao impulso lírico, ao estado de ânimo: por isso se alonga, podendo atingir 14 ou 16 sílabas, ou mesmo ultrapassá-las.
Quanto às pessoas dos poetas, a tuberculose e a vida breve espreitam esses adoradores da morte. Mário de Andrade fala dos "cacoetes históricos que organizaram o destino do homem romântico", no ensaio que vai buscar seu título num poema de Casimiro de Abreu, "Amor e medo" (N.D.).
Certos tópicos são reiterativos, como a metáfora do rapaz morto, tanto quanto a mulher anjo/criança/virgem/fada e seu oposto, a mulher fatal, sumariando a timidez ante o feminino. Tais poetas, com raras exceções como Castro Alves e Victor Hugo, cantam o amor impossível, irrealizável.
Dados biográficos ajudam a esclarecer a questão. Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu morreram aos 21 anos, Castro Alves aos 24, Junqueira Freire aos 27, Fagundes Varela aos 36, destacando-se entre eles um verdadeiro ancião, Gonçalves Dias, que faleceu na provecta idade de 41 anos.
III
Todavia, o Romantismo tem duas faces. Se uma é jovem, rósea, imersa nos sentimentos e na natureza, vivendo de amor, solar em suma, a outra é noturna, noir ou dark (Bachelard, 1998; Levin, 1958; Praz, 1996). Esta outra face manifesta-se forçosamente nos mais recalcitrantes à Revolução Industrial. Encaravam com apreensão o predomínio da indústria e da máquina sobre as pessoas, do capital sobre o trabalho, acarretando a uniformização da vida, a automatização, a linha de montagem. A tudo isso vinha acrescentar-se a degradação crescente que assolava homens, tecido urbano e paisagem.
Rebeldes, não conformistas, intransigentes, estes poetas, levando adiante suas propostas, avançariam por vias proibidas como o satanismo, o esoterismo, o sobrenatural, o sadismo. Sua mais notável invenção é a figura do Poeta Maldito.
Dentro dessa linha - que cultiva o pesadelo, que mostra desdém pelas convenções morais e sociais, que louva o Diabo, que tem atração pela morte como meta final, que brinca com as ideias de putrefação e decomposição -, ainda outras figurações se seguiriam. É o Romantismo que cria a mulher fatal, vendo no feminino um ser maléfico que seduz os homens para arrastá-los à perdição. Não por acaso é Salomé - aquela que recebeu numa bandeja a cabeça de João Batista, degolado a seu pedido - o ícone feminino da época, tanto na literatura como na música e nas artes plásticas. A fantasmagoria da mulher castradora predomina e se estende a outras comparsas de Salomé, como Judite ou Jael, Medusa ou Górgona, históricas ou não. Ou seja, é sempre o tema romântico do amor, todavia tratado pela negativa, pelo avesso. Mais tarde, na fase final, Barbey d'Aurevilly escreveria As diabólicas, que já se tornou filme duas vezes, dando bem uma ideia de como certo Romantismo encara a mulher.
Daí a um passo está o interesse pela psicologia anormal, pelo crime e pela mentalidade do criminoso. Em outro patamar, criou-se a categoria artística do belo-horrível, que seria posteriormente aplicada ao Barroco, tendo como corolário o decadentismo e a estética das ruínas.
Entretanto, a exacerbação da tendência é inaugural, e logo no início do Romantismo postam-se o Marquês de Sade e o sadismo, com o louvor do mal, da dor e do sofrimento alheios, infligidos ao outro com prazer. É bom lembrar que Sade estava preso na Bastilha quando esta foi tomada em 14 de julho de 1789, data de eclosão da Revolução Francesa.
O culto ao Diabo espalha-se, os poetas conjurando uma projeção de si próprios na figura do Lúcifer bíblico, o anjo que se insurgiu contra Deus, o maior adversário da ordem constituída. Torna-se comum, quase uma moda, que os poetas, inclusive os solares, consagrem sua lira a Satanás. Victor Hugo, solar como poucos, compôs dois longos poemas míticos: Dieu e La fin de Satan. E Mefistófeles é o antagonista supremo do Fausto, de Goethe, apesar de seu autor ser outro romântico solar.
Herói predileto dessa época é Caim, o maldito, o primeiro assassino da história, o fratricida, o pária, o perseguido. Um poeta romântico imbuído de seu papel faria poemas sobre e para Caim, do que não escapariam nem mesmo Victor Hugo e Byron.
São, portanto, dois os protagonistas dominantes do Romantismo noturno: o Diabo e Caim. O terceiro, que seria o Poeta Maldito, é antes uma persona, ou seja, uma máscara que o artista envergava, do que um protagonista. Dentro de um quadro como esse, não é de estranhar o surgimento da convenção do incesto. Byron proclamava uma relação incestuosa com sua meia-irmã Augusta, e Álvares de Azevedo procuraria emulá-lo.
IV
Byron é exemplar. Este grande poeta viveu 36 anos apenas, a cavaleiro da virada de século entre o Setecentos e o Oitocentos. Fez estudos em Cambridge, adquirindo uma educação clássica, em que se impregnou de grego e latim. Mais tarde ganharia a reputação de donjuán, de grande amante: era ateu, adversário da moral tradicional e um tremendo crítico do progresso.
Tinha ideias políticas avançadas. Quando tomou posse de seu assento na Câmara dos Lordes, discursou defendendo os operários que tinham destruído seus teares e sobre os quais pendia a ameaça da pena de morte. Mas não pôde prosseguir em sua carreira parlamentar na Inglaterra, passando a envolver-se em ativismo libertário no exterior. Primeiro na Itália, em aliança com os Carbonários, que se encarniçavam em derrubar o jugo estrangeiro. Ainda não uma nação, a Itália, então sob a soberania em parte austríaca e em parte espanhola, só mais tarde se libertaria e se unificaria no Risorgimento. Depois, na Grécia ocupada pelos turcos, o poeta seria nomeado membro do Comitê Nacionalista da Resistência, posto que ocupou até à morte.
Viveria muitos anos no exílio, no início na Suíça, mas mais tempo na Itália, especialmente em Veneza. Sua viagem precoce ao Oriente (Said, 1990) chamou a atenção para aquela área do mundo, e em particular para as tradições gregas, turcas e árabes, que integraria à sua poesia. Faz parte dessa mística sua famosa travessia do Helesponto a nado, em 3 de maio de 1810. Byron tinha uma visão universalista da militância política. E se a história não tivesse pregado uma peça, é plausível pensar que ele e Che Guevara se entenderíam muito bem.
Publicara os dois primeiros cantos de Childe Harold's pilgrimage em 1812, aos 24 anos. Autobiografia romanceada em versos, traz relatos de suas viagens e comentários a acontecimentos contemporâneos, como o baile havido em Bruxelas às vésperas da Batalha de Waterloo, em que mostra o quanto é afiada sua verve de crítica social. Embora mais tarde acrescentasse outros cantos, o poema afinal ficaria incompleto. Foi um sucesso imediato, e sucesso popular: de março a dezembro, tiraram-se cinco edições e se multiplicaram as traduções. Na época, a alta literatura andava estranhada dos leitores, sendo considerada enfadonha, tediosa: com Byron, o Romantismo caiu imediatamente no gosto do público.
Esse é um daqueles autores que fazem de sua existência uma obra de arte, e que transportam suas interessantíssimas vivências para dentro daquilo que escrevem. Para os artistas de seu tempo, também fez parte dessa mesma vivência ser, além de crítico social, blasfemo e iconoclasta; e, avançando mais ainda, praticar um certo satanismo, manifestar interesse pelo oculto, pelo esoterismo, pela necrofilia, e assim por diante. Com Byron, como com vários outros, inicia-se o culto da supracitada categoria estética típica do Romantismo, o belo-horrível. Já alguém menos atrevido como Casimiro de Abreu prefere o que chamou de "belo doce e meigo", que combina mais com a face solar do Romantismo.
Afora Childe Harold's e o extraordinário Don Juan, poema herói-cômico do mais alto nível, Byron compôs muita poesia, bem como dramas em verso. A notar que em sua obra se destacam trechos do mais refinado lirismo.
V
Para que se veja onde as coisas começam e aonde vão imprevisivelmente chegar, basta lembrar que o famoso romance Frankenstein (1818) foi escrito, se não por inspiração de Byron, pelo menos como um desafio interno de seu cenáculo. A crônica é a seguinte: Byron e outro grande poeta inglês, Shelley, alugaram casas à beira do lago Leman, na Suíça, e lá residiram por um bom tempo, com seus séquitos, em intenso convívio. À maneira romântica, faziam passeios - as famosas promenades que Rousseau preconizava, para devanear em meio à natureza -, convescotes, ceias à luz de velas, elegantes jogos de salão, brincadeiras artísticas e literárias. Uma delas consistiu na aposta de escrever algo sobrenatural, sobre vampiros ou lobisomens. Byron fez uma tentativa, a que não deu continuidade; o Dr. Polidori, seu médico, escreveu O vampiro, que depois frutificaria no Drácula, de Bram Stoker; e a futura esposa de Shelley, Mary Shelley, escreveu Frankenstein (1818), um dos mais reputados e populares romances do gênero, traduzido em inúmeras línguas, reeditado até hoje sem cessar, e que faria uma carreira insigne no cinema e na televisão.
Tivemos nossos byronianos, e o principal deles, aqui mesmo em São Paulo, foi Álvares de Azevedo, o qual, à boa moda do tempo, morreu aos 21 anos ("Se eu morresse amanhã viria ao menos/Fechar meus olhos minha triste irmã..."). Excelente poeta, também tentou criar para si a reputação de incestuoso. É ele um dos principais objetos do já citado "Amor e medo" de Mário de Andrade, em que o ensaísta sustenta que o fato de tantos apresentarem o "cacoete histórico" da morte precoce mostra receio da sexualidade madura. Para Mário, apesar das orgias e bacanais que descreveu, provavelmente Álvares de Azevedo era muito inexperiente, se não mesmo virgem. Em sua lira, a mulher aparece cindida em duas, que são, em resumo, a santa e a prostituta. Um grande poeta, tão admirado por Mário de Andrade quanto por Antonio Candido.
É impossível falar da face noturna do Romantismo sem incluir o fôlego novo que, bem depois de ter caducado, adquiriu no cinema e na televisão. Pois tudo isso que povoa o audiovisual - vampiros, Frankensteins, monstros, magos, bruxas e bruxos - é invenção da literatura romântica, numa linhagem que se chamou "O Gótico". Dados recentes, mas certamente incompletos, recenseiam 156 filmes de vampiro, 120 curtas-metragens, 20 telenovelas, 19 séries de tv e 600 histórias em quadrinhos.
A fonte reside no terror atávico que os vivos têm dos mortos, manifestando-se na criação de fantasmas, avantesmas, assombrações, almas penadas: os mortos-vivos se tornariam um grande filão cinematográfico. Essa é a origem da maior parte dos rituais e cultos que têm por objetivo impedir que os mortos "voltem": em francês, alma do outro mundo é revenant, ou aquele que volta. Em português, dizemos "alma penada", ou seja, aquela que, por castigo, cumpre pena de vagar pelo mundo dos vivos em vez de ficar bem quietinha no mundo dos mortos. Neste campo, impõe-se uma distinção tripla, a permitir que as inúmeras variedades possam ser agrupadas em três arquétipos principais.
O primeiro é o de Drácula, aquele que não morre, alimentando-se de sangue e infectando os outros: cabem aqui os vampiros em geral.
O segundo é o de Frankenstein, agenciado por mão humana. Este morto-vivo é construído com pedaços de corpos desmembrados. Seria assim um precursor dos transplantes de órgãos, que hoje em dia geram histórias de terror na vida real; ou, mais recentemente, da plastificação de cadáveres para exposições de arte.
O terceiro é o de O médico e o monstro, ou da dupla personalidade. Trata-se de uma variante da multimilenar sibling rivalry de tantos mitos - como o de José e seus irmãos, supracitado, ou o de Caim e Abel -, focalizando gêmeos ou irmãos inimigos, um bom e outro mau.
Todos os três estão às voltas com a ciência, e seus protagonistas (ou antagonistas) são invariavelmente cientistas, com título de doutor. Em Drácula é o Dr. Van Helsing; em Frankenstein, ele próprio é o doutor que dá seu nome ao monstro que gerou; e no terceiro o Dr. Jekyll é médico e vítima da ciência.
Nessas crias da imaginação podemos ver avatares do "complexo de Prometeu", ou a punição que pende sobre os homens pelo roubo do fogo aos deuses. Esta é uma das respostas possíveis à Revolução Industrial, com sua valorização da ciência e da tecnologia, estratégicas para a liberação e transformação da energia da natureza. Paira o risco de que fuja ao controle, dando margem a engenhos nunca vistos, assombrando e aterrorizando os seres humanos - a que já aludiam parábolas como a do aprendiz de feiticeiro ou a do gênio da lâmpada de Aladim. O processo assim desencadeado na vida real levaria a uma invenção que veio apequenar qualquer delírio catastrófico romântico, a fissão do átomo, então ainda nos arcanos do futuro.
VI
O pesadelo literário conhece seu mais alto ponto na poesia de Baudelaire, aquele que em vida e obra foi o Poeta Maldito, da deformação e da perversão. Baudelaire é um dos maiores poetas do mundo, tão importante na segunda geração romântica quanto Victor Hugo e Byron na primeira; e, para muitos críticos, ainda mais importante.
Nos domínios do pesadelo incluem-se ainda Edgar Allan Poe; os romancistas góticos ingleses, que desenvolveram o gênero mais do que todos; o alemão Hoffmann, dos contos, que os antecedeu. Nessa linhagem soturna e sombria, sobressai a preocupação dos românticos com a morte. Nota-se a deleitação, o embelezamento, a idealização da morte e da putrefação: a imaginação vê no corpo vivo e belo o futuro cadáver. Não é à toa que Baudelaire se transforma no profeta de Poe, a quem traduz e divulga na França.
Após escasso reconhecimento em seu tempo e em seu país, a reviravolta na recepção da obra de Poe deu-se mediante essa descoberta quase póstuma. Poeta Maldito avant la lettre, além de criar horrores, também se recomendava pela dipsomania, enquanto elogiava o ópio em seus textos.
Os românticos, como ninguém ignora, lançaram a moda dos tóxicos, por acreditarem que desencadeavam a inspiração e facultavam o transe, propiciando sonhos e pesadelos, que aliás não temiam. Poeta que se prezasse tomava ópio, como Coleridge, e descrevia suas viagens para os leitores. Popularidade não faltou às Confissões de um comedor de ópio, de Thomas de Quincey, divulgadas por Baudelaire, que as traduziu e adaptou, acrescentando-lhes um estudo de próprio punho e dando ao conjunto o título de Les paradis artificiels. O próprio Baudelaire era usuário, e bem mais tarde Cocteau igualmente. Para Rimbaud e Verlaine, assim como para Poe, as bebidas espirituosas é que preenchiam essa função. Os artistas passariam a tomar absinto, o qual, acusado de causar cegueira e loucura, encontra-se até hoje banido da França. Nos anos 1930, Walter Benjamin não resistiu a provar o haxixe e a escrever sobre a experiência, em "Haxixe em Marselha". E a Beat Generation de Kerouac, Ginzberg e Ferlinghetti fez do uso de várias drogas um programa e uma estética - vide O almoço nu, de William Burroughs. Não fica alheio Aldous Huxley, autor de As portas da percepção, em que tematiza a ingestão de ácido lisérgico.
Foi assim que um visionário anotador de alucinações - indisfarçáveis visitações pessoais -, acicatado pelo demônio da intemperança e sujeito a crises de delirium tremens, acabou por se tornar epítome do Poeta Maldito. Veio pronto em obra e vida, a qual, atribulada, provou-se autodestrutiva como poucas. Seria curta, não ultrapassando os 41 anos, que coincidiram com a primeira metade do Oitocentos.
Após um século de psicanálise, não mais passam por tão inocentes os devaneios sulfurosos de Poe, a quem a princesa Marie Bonaparte, discípula dileta de Freud - que lhe salvou a vida ao comprar da Gestapo seu visto de saída por uma pequena fortuna, no último minuto, em 1938 -, consagrou todo um livro, intitulado Edgar Allan Poe, uma biografia. Aliando dados da vida a dados da obra, Nabokov insinuou em Lolita a pecha da perversão, alçando Poe a precursor em pedofilia, para não falar em incesto. A começar por Virginia Clemms, esposa e prima, contando 14 anos (só dois a mais que Lolita) quando se uniu ao marido de 27, que cedo a veria morrer de tuberculose. Em "Annabel Lee", que dá a rima para "In a kingdom by the sea" - território imaginário onde se situa o poema -, os amantes são crianças ("I was a child and she was a child"). As pistas levantadas por Nabokov dão-lhe parentesco com Lewis Carroll e sua atração por menininhas. Mas outras pistas sugerem impotência e bloqueios sexuais, entre demais amenidades.
Seu paladino para a descoberta europeia foi Baudelaire, ao passar para o francês as Histórias extraordinárias, propondo uma versão em prosa de "O corvo", tomando-o como objeto de estudos críticos. O poema teve o privilégio de ser traduzido por Machado de Assis e por Mallarmé, em meio a Les poëmes d'Edgar Poe, para os quais, à guisa de prefácio, compôs um soneto apologético, "Le tombeau d'Edgar Poe". Valéry preferiu a prosa de especulação cosmológica de Eureka e incorporou elementos da estética.
Esses poetas identificaram-se com o Poe doutrinador da poesia pura e da arte pela arte - ideais do Parnasianismo e do Simbolismo -, bem como com o defensor da concepção do poeta enquanto criador voluntário no comando de seu estro. Neste caso, seu texto mais influente seria "A filosofia da composição", em que relata minuciosamente como escreveu "O corvo". É bem verdade que há estudiosos e artistas de língua inglesa mais reticentes quanto à qualidade de sua poesia, mas que ainda assim o louvam pela musicalidade do verso e pela força das imagens, mergulhadas em atmosfera etérea e evanescente. De todo modo, a voga francesa foi tal que alguns deles houveram por bem acautelar os leitores de que Edgar Allan Poe e Edgarpo não são a mesma pessoa. Mas alguns dos maiores críticos deram-lhe a atenção que merece, entre eles Spitzer, Walter Benjamin, Bachelard, Harry Levin.
VII
O Poe inigualável, senhor do reino do mórbido, é aquele da prosa dos contos, que exploram toda a gama dos pesadelos de uma imaginação desenfreada.
Há canibalismo. Há que optar entre cair num poço sem fundo e ser retalhado por um pêndulo afiado que se acerca. Há a morte pela peste, assim como a incineração em vida. Há cataclismos e catástrofes pairando no horizonte. Há o encontro de um navio fantasma, juncado de cadáveres em putrefação. Ou o azar de esbarrar num manicômio adepto de uma terapia copiada do linchamento sulista norte-americano, que cobre as vítimas de alcatrão e plumas. Há o pesadelo de ser enterrado ou emparedado vivo. Nesse universo macabro, um dos segredos sadomasoquistas de Poe é dar forma aos mais recônditos pavores arcaicos, de crianças e adultos.
Entretanto, também há os prazeres - e que prazeres - que o mestre da "viagem maravilhosa" oferece. Que criança não gostaria de ser pirata? E qual delas não sonhou decifrar um mapa desenhado a tinta invisível, chave para um tesouro enterrado, protegido por esqueletos e caveiras? Entre tantos sustos vicários, conta-se ainda o de ser arrebatado por sorvedouros e vórtices. Ou aportar na Lua de balão. Ou então enfrentar a alvura fantasmal da Antártida. Ou despencar no maelstrom e retornar são e salvo, embora o cabelo tenha encanecido no trajeto.
Dentre as fantasmagorias oitocentistas, nada escapa à prosa oracular de Poe, cheia de presságios e premonições: a hipnose, a telepatia, o magnetismo, a cata-lepsia, o sonambulismo, os espectros, as almas penadas, os avantesmas, a transmigração dos espíritos, as assombrações mais diversificadas. Em suma, as incursões pelo sobrenatural ou pelos estados crepusculares entre a vigília e o sono. Potenciados pela ansiedade e a angústia, sucedem-se taras, incestos, maldições hereditárias, reminiscências atávicas, desdobramento do eu, mutilações, tortura, sevicias, crime: crime perfeito porque gratuito, no entanto confessado devido a uma sinistra (masoquista?) compulsão pelo castigo. Um rol bastante completo dos pesadelos da humanidade.
Como se não bastasse, há mais um Poe, inventor da ficção policial e criador de Dupin, o primeiro detetive literário. São três os contos precursores: "Os crimes da rua Morgue", com sua sequência "O mistério de Marie Rogêt", e "A carta roubada". A ênfase que Dupin reserva à pura dedução intelectual torna-o ancestral imediato de Sherlock Holmes. Lacan teve a honra de relançar Poe, ao dedicar nos Écrits todo um estudo a "A carta roubada", com base na versão baudelairiana, no qual analisa a eficácia simbólica do objeto da narrativa.
Em suma, nestes delineamentos fica claro que em literatura não falta a deleitação do pesadelo, sobretudo desde o Romantismo. E que o pesadelo pode enriquecer o prazer da leitura.
Referências
Andrade, M. de. (N.D.). Amor e medo. In M. de Andrade, Aspectos da literatura brasileira (pp. 199-229). São Paulo: Martins. [ Links ]
Bachelard, G. (1998). A água e os sonhos (A. de P. Danesi, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Béguin, A. (1991). L'âme romantique et le rêve. Paris: José Corti. [ Links ]
Levin, H. (1958). The power of darkness. New York: Penguin. [ Links ]
Praz, M. (1996). La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica. Roma: Sansoni. [ Links ]
Said, E.W. (1990). Orientalismo (T.R. Bueno, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
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Recebido em 21.05.2015
Aceito em 04.06.2015