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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.3 São Paulo jul./set. 2015

 

RESENHAS

 

O declínio da interpretação: experiência e intervenção em psicanálise

 

 

Paulo Luis Rosa Sousa

Membro da Associação Psicanalítica Argentina e da Sociedade Científica Sigmund Freud, Pelotas

Correspondência

 

 

Autor: Roberto B. Graña
Editora: Juruá, Curitiba, 2014, 177p.
Resenhado por Paulo Luis Rosa Sousa

 

 

O declínio da interpretação: experiência e intervenção em psicanálise trata de um tema candente e provocativo, ao estilo de Roberto B. Graña.

O moto princeps da psicanálise em declínio: aquilo que nos caracterizou neste século (e ganhou a cultura com o "Freud explica") rola montanha abaixo? Roberto Graña fala da nova psicanálise ou simplesmente desconstrói o que nos resta? O subtítulo "experiência e intervenção" dá-nos o foco atual da coisa freudiana?

As palavras de Graña merecem e produzem reflexões inquietantes. As aberturas dos livros são fundamentais. Neste, o autor se mostra grato a Donaldo Schüler, por estar "ao alcance da mão", e a Nietzsche, por dar ênfase a que este mundo de Deus encerra "infinitas interpretações", fazendo-nos tomar distância da "ridícula modéstia" de que só o que pensamos é o que vale.

Assim acompanhado, Graña parte. Vejo o autor, pelo conjunto de sua dúzia de livros e por este em particular, como o mais transdisciplinar psicanalista nacional, o que não é pouco, pois faz a psicanálise conversar com os vizinhos filósofos, e os resultados vão aparecendo e tornando-nos contemporâneos. Claro, os analistas desde sempre falam, mas sua fala vem mudando, por sorte, ao longo do tempo. Nos primeiros passos, fomos (aparentemente) puro Deutung; éramos decifradores de sonhos e íamos deixando para depois as relações de afeto, amor-ódio, tecidas junto com o paciente.

Não deixe de ler as quatro páginas de apresentação da obra, pois nelas o autor nos oferece um trailer através de um poético sobrevoo, desde Platão e Aristóteles até o sismo de Nietzsche, do qual Freud nunca se livrou e que nunca digeriu, seja como homem de ideias, seja como homem que também atraía olhares de Lou Andreas-Salomé.

O livro é para ser sorvido - e relido, como apreciava o Borges - em pequenos goles, à beira do fogo: somente assim se apreciará o caleidoscópio e o hipertexto. Numa só palavra, Graña, como músico que é, toca em sintonia com a contra-her-menêutica, abrindo liberdades a si mesmo e ao paciente, que só assim serão, ambos, livres do absolutismo das mútuas "manobras de significação". É um intento aberto de expor-se a si e ao outro ante os perigos de perceber-se confortável no leito - divã - de Procusto (saudosa memória de Mannoni).

Alguns goles. A página 61 é imperdível; ela traz uma síntese da obra, em que fica marcada a mudança de metáfora da psicanálise de hoje: não é mais vigente a "escavação arqueológica", que acreditava na ilusão de chegar a um referente sob os escombros da repressão; a metáfora atual é cósmica, a partir de Lacan:

no centro de toda subjetividade há um buraco [negro], e que o máximo que poderemos fazer ao longo de uma longa análise é caminhar por suas margens ou circular por suas bordas... [é] o escândalo do hermeneuta clássico [...] o psicanalista contemporâneo [vai num] tatear errante, que assume logo a forma de um tatear perscrutante (apoiado em assinalamentos, indagações [revalorização da curiosidade], realçamentos, esboços, tracejos, rabiscos, clarificações, interjeições [terapia do "hum, hum"], e que eventualmente enseja uma celebração (Ah!... ou: Sim!... ou: Aí está!) [...] as qualidades distintivas da intervenção psicanalítica na contemporaneidade serão o minimalismo, a brevidade, a simpleza [itálicos nossos].

Graña me lembra o jesuíta Baltasar Gra-cián (século xvii): "Lo bueno, si breve, dos veces bueno", em sua Arte da prudência. O psicanalista tornou-se mais prudente. E esse direcionamento à leveza me lembra também o primeiro Freud, aquele que esmeradamente buscava algo a dizer a suas histéricas que não as ofendesse nem as seduzisse, um Freud que era "todo ouvidos".

Outro gole. Sobre o final, página 171: Graña evoca os trípticos de Francis Bacon, destacando o desmembramento e a dilaceração dos corpos que o pintor produz, e o impacto que isso nos causa ao entrarmos em contato com a inversão do interno-externo dessas carnes, o que, no entender de Graña, e eu concordo, é o mais nítido grafismo do que Freud apontou no seu Compêndio, aquilo que ele disse ser a "segunda hipótese fundamental da psicanálise": o corporal como o verdadeiramente psíquico, uma outra forma de seguir falando do inconsciente.

Um último. Graña esboça ao longo do texto, creio, seu novo livro por nascer: a psicanálise segundo Sándor Ferenczi. Mostra-nos, ao correr de muitas páginas, a originalidade ainda pouco conhecida desse enfant terrible, recriminado em vida por Freud, seu analista.

Para finalizar, em atenção aos colegas que necessitam saber o que vai em cada capítulo, acrescento que os oito capítulos que constituem o livro apresentam-se divididos em duas partes. Os quatro primeiros apresentam o que eu diria que é a "tese" - a queda da interpretação Deutung -, e os restantes mostram o Graña "em ação" - sua atitude específica, quase confessional -, em sua "oficina", trabalhando na experiência literária e suas consequências, ou sendo indisciplinado ao desler Freud e o que este disse no obituário de Ferenczi, ou expondo sua atividade crítica, portanto autocrítica, de forma livre, fazendo-me recordar o amigo Horst Kachele: "Estás muito velho para não dizer o que pensas".

Dizendo Graña o que pensa, seus dois primeiros estudos falam da experiência clínica tanto com crianças quanto com adultos, assinalando, com reforço documental, a maneira como se chegou a uma saturação interpretativa, a uma interpretância. A partir daí, inicia o autor o processo desconstrutivo, com intensa intervenção filosófica, para, nos dois capítulos seguintes, apresentar sua formulação pessoal sobre a crise atual e o declínio da interpretação, marcando assim a direção do livro. No capítulo "A crise da interpretação: da decifração ao desdobramento" (para mim o mais suculento), Graña parte da filosofia de Schleiermacher, uma espécie de pai da atual hermenêutica, para mostrar que esta disciplina expandiu-se do interesse apenas por textos antigos, para abranger, modernamente, a todo e qualquer escritor e sua obra. Daqui, Graña avança sobre outro material, agora de Wilhelm Dilthey, com a clássica distinção entre as ciências naturais e as humanas e as implicações epistemológicas que disso decorrem (final do século XIX). Entendo que o modelo crítico de Graña nesta obra é bem próximo à forma como Dilthey a exerceu, sintetizada, com humor, assim: "pelas veias do sujeito cognoscente que construíram Locke, Hume e Kant não corre sangue efetivo, mas o tênue suco da razão, como mera atividade mental" (p. 74). Nosso autor diz que a análise é uma aliança conveniente (creio que eu diria um sine qua non) entre objetivos de terapia e investigação e que, para tanto, o analista precisa estar numa "atitude fenomenológica", ou seja, manter-se especialmente clínico. Se escapar deste lugar, cairá na interpretância.

Depois de assinalar Heidegger, Sartre e Deleuze como "os três mais importantes filósofos do século XX", com seus matizes supostamente antifreudianos, Graña mostra como tais autores foram um decisivo estímulo a que a psicanálise contemporânea "superasse a representação, o edipianismo, o significacionismo e a interpretância" (p. 88), colocando-nos, assim, no pórtico de uma nova perspectiva em psicanálise. Este capítulo sobre nossa crise da interpretação avança, passando pela originalidade pouco reconhecida de Ferenczi e sua precoce avaliação crítica do pensar freudiano, coisa rara entre aqueles companheiros, para desaguar no mar winnicottiano, enfatizando, gauchescamente, que não tratemos de domar o acontecimento com as belas rédeas da interpretação.

Nos quatro capítulos finais, o autor se nos mostra trabalhando criticamente, de braços dados com seu quadrilátero privilegiado no momento: Freud, Winnicott, Lacan e Ferenczi. Assim, chega-se ao final deste livro com uma salutar - e inquietante - sensação do insofismável, do inefável que é o acontecimento, dentro e fora da psicanálise, guardando Graña uma característica essencial para o psicanalista de hoje, e de sempre, que é a de manter acesa a todo custo a noção de sua docta ignorantia, como dizia Nicolau de Cusa, para, se possível, não atropelar o paciente.

Obra da maturidade, a documentação farta, a bibliografia extensa e, sobretudo, uma visão original para a psicanálise de hoje. Não dá pra não ler, como um jornal imperdível de nosso país.

 

 

Correspondência:
Paulo Luis Rosa Sousa

Rua Princesa Isabel, 280/805
96015-590 Pelotas, RS
Tel: 53 8151-8274

prosasousa@gmail.com

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