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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo set./dez. 2016
EM PAUTA
Barulho. Silêncio. Trabalhando com os ecos da pulsão de morte
Noise. Silence. Working with death drive echoes
Ruido. Silencio. El trabajo con los ecos de la pulsión de muerte
Marion Minerbo
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
RESUMO
Tomando dois casos clínicos como eixo condutor, discute-se a relação necessária entre processos de adoecimento psíquico e estratégias terapêuticas. O primeiro caso se caracteriza por um psiquismo tomado pelo barulho do embate ininterrupto com seu objeto interno/externo; o segundo, pelo silêncio de um mundo interno desertificado. A compreensão dos respectivos processos de adoecimento determina duas estratégias terapêuticas distintas: desativação do binômio angústia-defesa no primeiro caso e revitalização psíquica no segundo.
Palavras-chave: processo de adoecimento; estratégias terapêuticas; desativação; revitalização.
ABSTRACT
By building this paper upon two clinical vignettes, the author discusses the necessary relationship between the psychopathological processes and therapeutic strategies. The first case is characterized by a psyche that is taken by the noise of an uninterrupted collision with its internal/external object. The other case is characterized by the silence of an inner world that becomes desert. Understanding these cases and their respective psychopathological processes defines two different therapeutic strategies: deactivation of the anxiety-defense binomial (i.e., anxietydefense mechanisms) in the first case, and psychic revitalization in the second case.
Keywords: psychopathological processes; therapeutic strategies; deactivation; revitalization.
RESUMEN
Tomando dos casos como eje conductor, la autora analiza la relación necesaria entre los procesos psicopatológicos y la especificidad de las estrategias terapéuticas. El primer caso se caracteriza por una psique tomada por el ruido de la lucha ininterrumpida con su objeto interno/ externo; el segundo, por el silencio de un mundo interno desertificado. La comprensión de los procesos psicopatológicos determina las estrategias terapéuticas necesarias: la desactivación del binomio angustia-defensa en el primer caso, y la revitalización psíquica en el segundo.
Palabras clave: procesos psicopatológicos; estrategias terapéuticas; desactivación; revitalización.
Introdução
Este texto tem como objetivo discutir a relação necessária entre os processos de adoecimento psíquico e as estratégias terapêuticas. Dois casos clínicos serão apresentados: um se caracteriza por um psiquismo tomado pelo barulho do embate ininterrupto com seu objeto interno/externo; o outro, pelo silêncio de um mundo interno desertificado. Ambos serão entendidos como ecos da pulsão de morte. Como veremos, a compreensão dos respectivos processos de adoecimento determina as estratégias terapêuticas mais produtivas em cada caso.
Em seu texto “Variedades clínicas da transferência” (1955/1988), Winnicott deixa claro que não faz sentido trabalhar com o sofrimento narcísico, no qual o eu ainda não está suficientemente constituído, da mesma forma que trabalhamos com o sofrimento neurótico. Plenamente de acordo com essa constatação clínica, Roussillon (2001) se preocupou em justificá-la com base em uma compreensão metapsicoló-gica. Para isso, ele mostra como os pressupostos sobre o funcionamento psíquico implícitos no que ele chama de primeira metapsicologia - que surgiu com a clínica da neurose e vai até a virada de 1920 - são diferentes dos da segunda metapsicologia. É nesse contexto que ele diferencia, do ponto de vista das estratégias terapêuticas, a condução do trabalho de simbolização primária, obrigatório nos quadros do que ele denomina sofrimento narcísico-identitário, daquela que propicia a simbolização secundária, quando o sofrimento é predominantemente neurótico (Roussillon, 1999). Não pretendo entrar nesse tema, que mereceria um artigo à parte, exceto para dizer que a grande diferença é a forma de presença do analista.
Em linhas gerais, diante do sofrimento neurótico, tendemos a trabalhar de modo mais reservado (Figueiredo, 2008), oferecendo com nossa presença discreta a sustentação transferencial para que boa parte da elaboração seja realizada pelo próprio paciente. Essa posição só faz sentido em função da organização psíquica desses pacientes: a estrutura enquadrante interna está bem instalada e é capaz de abrigar as representações (Green, 2010); o duplo limite (entre sujeito e objeto, e entre as instâncias psíquicas) está relativamente bem constituído, e a rede de representações também. Por tudo isso, podemos contar com sua capacidade de associação livre e de simbolização. Nessas condições, a reserva do analista não só é possível como é necessária, e pode ser usada pelo paciente de forma produtiva. Ou seja, ele tem todas as condições para, com a ajuda discreta e a sustentação do analista, encarregar-se do trabalho de simbolização secundária.
Quando estamos diante do sofrimento não neurótico (ou narcísico-identitário), sabemos que a estrutura enquadrante interna apresenta falhas. A função simbolizante é precária. Angústias primitivas invadem e desorganizam o psiquismo. A relação com o objeto é de dependência absoluta. A rede de representações está esburacada. Predomina a lógica da sobrevivência e do desespero, que caracteriza a clínica da pulsão de morte. Em termos de estratégia terapêutica, a prioridade é a progressiva instalação da função simbolizante. Para retomar a distinção feita por Roussillon, o analista trabalha no registro da simbolização primária, o que lhe exige um modo de presença mais implicado (Figueiredo, 2008). Isso significa que ele precisará intervir no campo transferencial-contratransferencial enquanto sujeito: participar com seu próprio psiquismo não apenas na construção do sentido das experiências, mas também no processo de instalação da função simbolizante.
Em decorrência dessas ideias, entende-se que o analista tenha que trabalhar de modo diferente com a transferência neurótica e a não neurótica. Com este texto, pretendo acrescentar um elemento a esse debate, mostrando a relação necessária entre as estratégias terapêuticas e a psicopatologia no seio da própria clínica da pulsão de morte. Pretendo discriminar duas formas claramente distintas de presença implicada do analista - ambas a serviço do processo de simbolização primária e da instalação da função simbolizante - em seu trabalho com as organizações não neuróticas.
Para introduzir essa ideia, retomo uma intuição poderosa de Freud em Além do princípio do prazer (1920/2010). Apesar de ser um texto especulativo, ele tem uma intuição clínica notável na medida em que oscila - eventualmente sem se dar conta -entre duas manifestações distintas da pulsão de morte: a destrutividade e a tendência ao zero de excitação. Naturalmente, ambas estão relacionadas ao trauma precoce. No entanto, as estratégias defensivas colocadas em movimento pelo protossujeito para lidar com a dor/angústia acabaram por determinar formas clínicas opostas: alguns lutam por sua sobrevivência tornando-se violentos; outros, ao contrário, “lutam” desistindo de lutar, tornando-se quase inexistentes.
Tenho em mente duas pacientes: Marcia, há anos engalfinhada com o marido numa luta de vida ou morte, e Paula, que de certa forma já está “psiquicamente morta” - desconectou-se de si mesma a ponto de não conseguir afirmar nada de próprio e verdadeiro. Na primeira, predomina o barulho psíquico ensurdecedor produzido pela onipresença do ódio em relação ao objeto interno/externo. Na outra, o silêncio igualmente ensurdecedor do zero de excitação: a paz do cemitério. Os processos de adoecimento são diferentes em cada caso. Como veremos, as estratégias terapêuticas também.
Barulho
Durante uma primeira longa fase da análise, Marcia trazia mil situações cotidianas em que ficava profundamente irritada com o marido. Qualquer coisa que ele dissesse ou fizesse a irritava. Por exemplo, entrar em casa e deixar sua mala de trabalho na sala, em vez de colocá-la no escritório. Levou tempo para que o caráter defensivo da irritação pudesse aparecer e a angústia da criança-nela pudesse ser acessada por trás daquele afeto.
Por que ficava irritada com a mala na sala? Inicialmente, atribuía ao gesto um sentido convencional: "Ele não liga para mim." Aos poucos, foi ficando claro que, do ponto de vista dela, esse gesto era uma afirmação do poder e da superioridade dele, como se esfregasse na cara dela a assimetria da relação conjugal, assimetria que, aos olhos dela, se devia ao fato de que ele se sentiria superior por ser um empresário bem-sucedido e por sustentar a casa - embora reconhecesse que ele jamais havia sequer sugerido algo nessa linha. Por fim, a face ameaçadora desse poder, ou dessa assimetria, também acabou aparecendo: o marido era vivido como uma “entidade” acima do bem e do mal. A mala na sala significava que ele podia tudo e ela nada, a não ser se submeter, já que "dependia dele para tudo" - embora isso não correspondesse, de forma alguma, à realidade, como ela mesma reconhecia.
Obviamente, o marido é um representante do objeto primário com quem a criança-em-Marcia continua misturada e confundida. Esse objeto ainda é vivido como detentor dos poderes de vida e morte sobre ela. Desde que se lembra por gente, um terrível barulho de fundo acompanha sua existência: "Você não é o suficiente para mim, não é quem eu esperava, não é quem eu desejava." Essa é a voz aterrorizante do objeto interno que não silencia nunca, que a desorganiza psiquicamente e com a qual se debate sem trégua. O espectro ameaçador do desinvestimento/abandono por parte dele torna a angústia de morte onipresente. Como um espinho no pé, como um sapato apertado, fere a pele psíquica tão fina. Mas há muito tempo não sente mais nem a dor nem o terror ligados a essa ameaça. Temos ecos longínquos disso apenas pela irritação, que também é onipresente.
Esbocei aqui, em poucas palavras, minha apreensão de seu universo subjetivo. Mas era evidente que ela não fazia contato algum consigo mesma. Essas experiências eram vividas, produziam efeitos concretos em sua vida, mas não estavam simbolizadas. Ao contrário, o que aparecia no cotidiano era o ódio com o qual ela massacrava o marido. Sem escuta analítica, seria impossível suspeitar do grau de dependência, fragilidade e dor escondido por trás de tamanha agressividade. Ele, com certeza, não estava em posição que lhe permitisse isso.
Por suas características pessoais, o marido era a encarnação perfeita de uma mãe incapaz de empatizar com a “ranhetice” da criança, de interpretá-la como expressão de algum tipo de sofrimento, de fazer um gesto de acolhimento ou de tentar “traduzir” em palavras o que se está tentando dizer por meio de um comportamento - embora de um jeito tão torto. Essa figura interna/externa (mãe/marido) fazia justamente o oposto: acusava-a de ser exagerada, chata e rancorosa. Essa resposta não empática e acusatória amplificava a angústia, no lugar de contê-la e transformá-la. E então o desespero da criança-em-Marcia aumentava, porque se confirmava a certeza de “não ser o esperado”, “não ser o desejado”, o que a deixava ainda mais irritada...
O fracasso do objeto em cuidar da angústia põe em movimento um círculo vicioso: quando a agressividade da criança é mal interpretada pelo objeto, este reage necessariamente com graus variáveis de hostilidade, o que pode ser vivido como ameaça à integridade somatopsíquica, amplificando a angústia. Defensivamente, ela se desconecta da experiência traumática, tornando-se violenta para se defender do objeto que coloca sua existência em perigo. Ou seja, a criança-em-Marcia adoece por ativação excessiva das defesas, o que acaba prejudicando suas capacidades de trabalho psíquico (Figueiredo, 2016). O sofrimento daí decorrente se manifesta na forma de conflitos mais ou menos barulhentos, agitação, ódio e violência, o que sinaliza a luta ativa do eu por sua sobrevivência.
Esse caso ilustra exemplarmente os adoecimentos por ativação, em contraste com os adoecimentos por passivação (Figueiredo, 2016), como veremos em detalhes mais adiante. Nestes últimos, a capacidade de defesa do psiquismo se esgotou, e a sobrevivência se dá às custas da extinção de áreas do psiquismo. Essa extinção ou necrose de tecido psíquico bem como as áreas do psiquismo que não chegaram a nascer (Roussillon, 2010) acabam interrompendo precocemente a capacidade de realizar o necessário trabalho psíquico. Aqui, em vez de angústia, cabe falar em agonia, que é a entrega passiva à morte. Em vez de agitação e barulho, temos silêncio, desobjetalização, tendência ao zero de excitação: o sujeito se faz de morto para sobreviver. Esse é o processo de adoecimento que veremos com o caso de Paula.
Retorno a Marcia para insistir no fato de que a ativação contínua das angústias e defesas leva o processo ao paroxismo, prejudicando sua capacidade de realizar trabalho psíquico. Muitas das cenas de violência doméstica descritas podem ser entendidas como efeito do curto-circuito da capacidade de pensar. Mas o ódio tinha também a função de “neutralizar” a angústia de morte, contanto que fosse acionado o tempo todo e cada vez mais. Por isso os dois se engalfinhavam há anos e a relação estava cristalizada no modo da irritação recíproca.
Retomo o eixo condutor deste texto, a saber, a relação necessária entre as várias modalidades de sofrimento psíquico, os respectivos processos de adoecimento e as estratégias terapêuticas mais produtivas em cada caso. Ao reconhecer adoecimentos por ativação e por passivação, Figueiredo (2016) estabelece as bases metapsicológicas para delinear duas grandes estratégias terapêuticas: (1) quando o adoecimento se dá por ativação excessiva do binômio angústia-defesa, a estratégia necessária para restabelecer a capacidade de trabalho psíquico é o que ele chamou de desativação - é o que veremos agora em detalhe com o caso de Marcia; (2) quando o adoecimento se dá por passivação, quer dizer, pela desistência e pela entrega a uma forma de não existência, de morte em vida, a estratégia necessária é o que ele chamou de revitalização - veremos adiante como isso foi realizado na análise de Paula.
Com Marcia, precisei encontrar caminhos para a desativação do binômio angústia-defesa, o que me exigia uma posição mais implicada no campo transferencial-contratransferencial. Mas que tipo de implicação favorece essa desativação? Diferenciando-se do objeto primário, o analista precisará “cuidar da angústia” (Figueiredo, 2016) para que ela não se torne excessiva. Temos que nos aproximar com cautela dessa expressão. Naturalmente, a empatia que permite reconhecer os afetos em jogo é fundamental. É importante dizer algo como: “Se você entende que deixar a mala na sala é uma maneira de esfregar na sua cara a superioridade dele, eu entendo que você fique com ódio.”
Por outro lado, também é fundamental ser capaz de conter e transformar a angústia. Ser continente não significa ser “afetivo” nem dar razão ao paciente, mas dar inteligibilidade à violência (defensiva) da criança-nela, que para o senso comum parece desproporcional. Além disso, será necessário transformar a angústia, o que depende da possibilidade de criar sentido para as experiências. Será necessário imaginar onde, como e por que aquela experiência está sendo vivida pela criança-no-paciente como ameaça à sua integridade somatopsíquica. Por exemplo, dizendo algo como: “Você fica apavorada quando ele reclama da sua chatice porque, para você, isso já é a antessala do abandono.”
Esses dois tempos - continência e transformação - produzem o que Roussillon (2011) denomina de apaziguamento simbolizante, expressão que me agrada porque enfatiza a dimensão simbolizante da atividade de cuidar/apaziguar/conter a angústia. Tudo isso faz parte do que Figueiredo (2016) chamou de estratégias de desativação.
Durante muito tempo, o material clínico de Marcia tinha o mesmo jeitão: relatos das brigas com o marido. Como vimos, a violência indica que ela está se debatendo e lutando para salvar sua vida. O material não tem características oníricas, e sim a fixidez e a repetição do sonho de angústia - são verdadeiros pesadelos cotidianos. Essas características indicam que o processo de simbolização primária foi interrompido pelo trauma precoce e precisa ser retomado na transferência.
Cuidar da angústia significa, inicialmente, dizer a ela que eu sou sensível ao fato de que ela convive desde sempre com um espinho no pé; que percebo que o local sangra continuamente e que, em vez de cicatrizar ou de criar um calo, a ferida só aumenta. Como não se dá conta de nada disso, eu preciso me encarregar de lhe contar que sente um desconforto, mas que não faz a menor ideia do que seja nem de onde vem, e que talvez sua irritação tenha a ver com esse desconforto. Em vez de se ver apenas como “exagerada, chata e rancorosa” (“não sou o esperado”), começa a se perceber também como alguém que sofre, o que já é um esboço de sentido. Quando eu lhe conto o que imagino que ela sente, pode se reconhecer nas minhas palavras, e a conexão entre ela e ela mesma começa a se (re)estabelecer.
Note-se que não estou apenas favorecendo, ou aguardando, a emergência de associações, em uma postura mais reservada. Os pesadelos cotidianos indicam a impossibilidade de representar (o traumático interrompeu o processo de representação!), e portanto de associar livremente. Minha postura é mais ativa na medida em que compartilho com ela a imagem do espinho no pé, que é uma produção do meu psiquismo, e dou meu testemunho a respeito de uma dor que se desconhece enquanto dor. Estou diretamente implicada na oferta de “material psíquico” - representações - que ela possa começar a usar.
Cuidar da angústia para a desativação das defesas pode exigir ainda mais do analista implicado. Roussillon fala em ir “em busca do traumatismo perdido” (2006, p. 218). Não basta dar o meu testemunho de que há um espinho no pé. É preciso também tentar “sonhar” por ela de que espinho se trata. Em termos freudianos, estamos no terreno das construções em análise. A partir do material, o analista sonha/constrói, fazendo uso de sua imaginação clínica, a cena (traumática) do passado, que, correspondendo ou não a uma verdade histórica, contém verdade emocional suficiente para produzir um efeito de convicção e relançar o processo associativo. O analista procura oferecer material psíquico que ela possa usar para “cerzir” os buracos de simbolização.
Em algum momento, consegui me identificar com a criança-nela e imaginar a cena da mala como uma cena de abuso de poder. Para a criança-nela, a mala largada na sala é a “prova” de que o marido/entidade/objeto primário pode tudo. Do alto de sua importância, ele certamente não se interessa pela criatura insignificante que ela é. Sequer é capaz de enxergar suas necessidades, muito menos o estado de turbulência e desorganização psíquica em que ela é arremessada ao ver a mala na sala. Na cena que eu imagino, em vez de reconhecer sua participação na turbulência criada, e abusando de seu poder, o objeto primário decreta que a criança é chata e exagerada. A repetição de cenas desse tipo acaba por se inscrever “na carne” como uma identificação: “Não sou o esperado.”
É importante esclarecer que não estou afirmando que o marido abusa dela, mas que o termo "abuso" faz sentido do ponto de vista da experiência da criança. Se houvesse ali um terceiro, o suposto abuso poderia ter sido significado por ele como absoluta falta de empatia, o que teria relativizado o sentido imposto pelo objeto primário, vivido pela criança como absoluto (“chata e exagerada”). É por isso que a estratégia de desativação da angústia passa também pela construção, na transferência, do lugar e da função do terceiro, que sistematicamente não estava presente na cena. A construção desse lugar supõe que eu intervenha exercendo a função do terceiro. Então eu lhe digo: “Talvez você se torne chata quando sente que ele pode tudo e você, nada.”
O trágico nisso tudo é que, com a ativação progressiva do ciclo angústia/defesa, a criança-nela se tornava realmente insuportável. Em seus outros relacionamentos, Marcia é uma pessoa encantadora e engraçada; estuda, trabalha, cuida dos filhos. Naturalmente, gasta uma energia enorme para viver, porque faz tudo isso apesar do barulho do embate com seu objeto interno, que não cessa nunca.
Em algum momento, Marcia se deu conta de que até torcia para que o marido fizesse “algo errado” que justificasse seu ódio. Ao mesmo tempo, não aguentava mais brigar. E foi isso que nos colocou na pista de que precisava do ódio contra o marido como um viciado precisa de sua dose diária de droga. Para que necessitava desse ódio que tanto mal lhe fazia? Outra associação importante foi que, ao contrário de sua amiga, que chorava praticamente em todas as sessões de análise, Marcia não chorava nunca. Foi então que ela se deu conta de que simplesmente não sabia o que era ficar triste. Podia imaginar o que seria ficar em "estado catatônico" (entenda-se: melancólico), mas a tristeza lhe era inconcebível. Fomos reconhecendo que o ódio lhe dava uma “força” que a protegia de “ficar catatônica”.
Depois de três anos de trabalho, um primeiro objeto empático aparece em sua paisagem emocional. Ao comentar com o chefe sobre uma situação difícil pela qual passou quando morava em outro país, ela o escuta dizer: "Eu também morei fora do Brasil. Entendo perfeitamente o que você está dizendo." Essa frase foi uma revelação, um divisor de águas. Não se lembrava, ao longo de 40 anos de vida, de jamais ter escutado isso de alguém! Naturalmente, há três anos eu lhe dizia coisas nessa linha. Mas só quando ela é capaz de reconhecer esse novo objeto na figura do chefe podemos ter certeza de que a relação, nascida no campo transferencial, foi de fato internalizada. Ela começa a baixar a guarda, dando continuidade ao processo de desativação das defesas.
Como sabemos, são as áreas de não separação sujeito-objeto que produzem o engalfinhamento com os representantes atuais do objeto, indicando a atividade de um núcleo psicótico. Decorridos cinco anos de análise, parece-me que a estratégia de desativação acabou tornando possível essa separação. Recolhidas todas as projeções, não é exagero dizer que ela está enxergando o próprio marido pela primeira vez. Ela mesma percebe essa diferença.
A mesma mala volta, agora em um contexto completamente diferente. Ela havia dito que ele precisava trocar sua mala de trabalho, que está bastante surrada, mas ele não fez nada a respeito. Antes, essa atitude seria o suficiente para ela pular de ódio no pescoço dele, e isso por dois motivos: em função da não separação sujeito-objeto, a “culpa” pelo marido andar com aquela mala era vivida como se fosse dela, e o fato de ele não fazer nada a respeito era a prova de que ele não dava importância ao que ela dizia.
Hoje, é muito claro que ela não tem nada a ver com a mala que o marido usa para trabalhar. O estado daquele objeto não diz nada sobre ela, apenas sobre o dono. Por exemplo, que ele é "meio autista" - provavelmente, nem reparou no estado da mala e por isso não faz nada a respeito. Muito aliviada, diz que a vida ficou muito mais leve agora que não gasta tempo e energia com essas brigas. Ao mesmo tempo, a tristeza de perceber onde e como desperdiçou sua vida, bem como a solidão em que viveu todos esses anos, veio com tudo. "Antes eu não chorava nunca. Agora choro o tempo todo" Contudo, fica muito surpresa ao constatar que tudo isso a deixa mais forte, e não “catatônica”, como sempre imaginou.
Silêncio
Bela mulher de uns 30 e poucos anos, Paula namora um empresário de quem foi secretária. Na entrevista, fico sabendo que foi sozinha passar o Natal na Disney. Estranho a ausência de vínculos, e mais ainda a escolha do lugar. Comenta que adora as sensações da montanha-russa. Só depois isso fez sentido para mim: sensações fortes lhe proporcionam a experiência fugaz de estar viva. Mais tarde, venho a saber que na adolescência era adepta de esportes radicais, ou seja, a busca de sensações fortes já era um modo de vida.
Casou-se com o empresário. Tem uma vida confortável. Mas agora vive atormentada pela ideia de que não trabalha. Não tem o que responder quando, nas festas, lhe perguntam o que faz. Gostaria de poder dizer que é empresária ou arquiteta. Com a rede social e profissional do marido, teria muitas opções. Seria muito fácil abraçar uma das causas sociais que ele apoia. O problema é que ela não consegue se entusiasmar por nada. Não há ninguém-nela capaz de ter uma ideia, formular um desejo ou investir alguma coisa no mundo. Depois de algum tempo de análise, já percebe vagamente que é esse o problema.
Adorava quando era secretária. Pergunto-lhe do que gostava. Ela responde que gostava de ter um lugar para ir, horário para cumprir, uma função e tarefas, que executava de forma eficiente. Entendo que esse trabalho era perfeito para ela em vários níveis. Funcionava como um enquadre que lhe dava uma sustentação firme no tempo e no espaço. Não era necessário ter criatividade, apenas eficiência. Como nunca faltavam tarefas, estava engajada em um modo de vida operatório que a protegia do tédio e do vazio que sente agora.
A incapacidade de investir alguma coisa poderia ser confundida com um estado melancólico, mas esse vazio é o resultado da mais absoluta falta de criatividade psíquica. Não sabe o que fazer consigo mesma nem com o seu tempo. Certa tarde, decidiu arrumar armários. Conseguiu ocupar-se durante cinco horas. Pelo menos, durante esse tempo, não ficou se atormentando com a ideia de que precisava encontrar um trabalho. Uso a palavra vazio para descrever o sofrimento ligado ao silêncio ensurdecedor de seu mundo interno.
É terrível não conseguir se sentir uma pessoa como os outros, mas um simulacro de pessoa - e, para ela, trabalhar é ser como os outros. Tento formular algo nessa linha, mas percebo que é prematuro, pois ela se agarra a uma justificativa convencional: "Não quero ser apenas uma dona de casa." (Lembro-me da explicação igualmente convencional que Marcia dava ao fato de se irritar com o marido: "Ele não liga para mim.") Acaba encontrando um caminho para “ser como todo mundo”: engravida. Quando lhe perguntarem o que faz, poderá responder: “Sou mãe. Cuido do meu filho.” É uma atuação, mais uma maneira de tentar se construir de fora para dentro. Preocupa-me perceber que não consegue sonhar o seu bebê. O marido parece mais entusiasmado do que ela.
A escuta analítica e, principalmente, a contratransferência me permitiram ir construindo uma compreensão de seu sofrimento. Como no caso de Marcia, há um espinho no pé. Só que aqui é a ausência e o vazio que funcionam como uma presença dolorosa, e não a onipresença do marido-entidade. Ao contrário de Marcia, que pelo menos se irrita com ele - o que mostra algum eco, ainda que longínquo, da dor do espinho -, Paula encontrou uma solução muito mais radical: amputou a parte de si que poderia sentir dor. Ela não sente nada.
Vimos com Marcia que a ativação excessiva das defesas travava a capacidade de realizar trabalho psíquico. Com Paula é diferente: essa incapacidade tem a ver com a falta de tecido psíquico. Ela não se angustia. No lugar desse afeto temos o tédio, o senso de futilidade, a depressão sem tristeza. Essa configuração é típica das patologias do vazio e dos pacientes psicossomáticos. Mesmo o falso self, que é uma tentativa de construir uma vida de fora para dentro, serve para encobrir a morte em vida. Por tudo isso, a estratégia terapêutica tem de ser diferente daquela que usei com Marcia. O trabalho é mais difícil: construir - ou revitalizar - o próprio tecido psíquico que poderia vir a sentir alguma coisa.
Não foi difícil reconhecer o padrão transferencial que se instalou nas sessões. Chega pontualmente, deita-se e cumpre rigorosamente o que entende ser sua tarefa: falar. Mas o que é, para ela, falar? Não é dizer algo significativo, e sim preencher o silêncio. É o que ela faz. Usa palavras que não são do seu vocabulário e discorre sobre temas que não conhece. Não consegue completar as frases. Enfim, é evidente que ela não está realmente ali, naquilo que está me dizendo. Paula é uma moça inteligente, mas não há ninguém ali dentro que realmente tenha alguma opinião sobre alguma coisa. Por trás da personagem sorridente e elegante, construída de fora para dentro graças às roupas e acessórios, não há nada. Ela sofre porque intui vagamente que nada-nela é de verdade.
Essa modalidade de transferência produz em mim a sensação de estar falando com um autômato. Esse campo transferencial me permitiu reconstruir (para mim mesma) a relação entre a criança e um objeto primário que não tinha acesso ao que chamamos de mundo emocional, de tal forma que áreas inteiras do psiquismo de Paula nunca foram vistas, reconhecidas e “ativadas” na relação intersubjetiva.
O funcionamento operatorio do objeto impede certas funções psíquicas de nascerem: as preconcepções inatas permanecem em estado potencial, não nascidas; ou então, as funções psíquicas, ainda incipientes, foram simplesmente desativadas.
Conta que, quando criança, a mãe resolveu que ela e suas três irmãs tinham que aprender a tocar piano. Em sua casa, tudo era por “atacado”. Ao fim do segundo ano, a professora chamou a mãe para dizer que a garota obviamente não gostava de piano. Mas Paula sequer tinha contato com o fato de que não gostava. Tinha que tocar e tocava. Nem ela se queixava, nem a mãe percebia.
Nessa família em que ninguém conversava com ninguém, foi através das letras das músicas que começou a fazer contato com algo além da concretude do cotidiano. Elas forneciam palavras para nomear experiências e sentimentos da adolescente que era. Até que foi obrigada a se desfazer de seus preciosos CDs, porque a mãe entendeu que não eram boa influência para ela. Perguntei se ela sofreu. A resposta foi não. A parte de si que poderia sentir alguma coisa de próprio, de real, de verdadeiro, ou nunca veio à luz, ou então foi desativada.
Como foi dito na introdução, o analista que trabalha com o sofrimento não neurótico se posiciona de forma implicada, quer dizer, faz um uso mais intenso de seu próprio aparelho psíquico. Vimos no caso de Marcia como foi importante eu tentar imaginar a angústia soterrada por camadas e camadas de irritação, bem como a cena de “abuso de poder” por parte de uma figura parental não empática. Aqui, meu trabalho era bem diferente. Eu tinha que acessar algo de verdadeiro e genuíno soterrado por baixo do falso self.
Quando volta de uma viagem, cumpre rigorosamente o que imagina ser sua tarefa: “me entrega” relatórios fidedignos sobre tudo o que viu. Não tenho a menor ideia do que dizer. Nada, absolutamente nada me ocorre. Experimento em mim o terrível vazio produzido por uma fala totalmente operatória. É assustadora a ausência de um comentário mais vivo, mais pessoal. Como já mencionei, imagino que essa tenha sido a experiência da criança que ela foi, diante do psiquismo-autômato da mãe. Mas de vez em quando escapa algo como: "Adorei a loja X." Aqui há verdade!
Agarro a oportunidade: se eu conheço a loja, faço algum comentário sobre ela; se eu não conheço, peço que me descreva o que viu, o que comprou, e então comento alguma coisa que faça sentido para mim. É uma maneira de resgatar e legitimar algo de vivo e próprio, antes que submerja novamente no mar da hiperadaptação ao outro. Trabalhar de forma implicada com essa paciente significa “ir ao encontro de alguma vida ainda pulsante soterrada sob grossas camadas de matéria morta” (Figueiredo, 2016).
"Todas as tardes vejo pela janela uma velhinha assistindo TV." A comunicação se parece com uma manchete de jornal. Depende de mim transformá-la em algo mais vivo. Ela entraria em pânico se eu lhe pedisse associações, pois não há ninguém-nela para associar. Provavelmente me daria uma resposta em falso self. Por isso, cabe a mim fazer o que um autômato não faz: usar minha criatividade psíquica para introduzir alguma espessura emocional no relato. Então eu lhe digo: "Talvez fique entediada vendo TV. Talvez esteja feliz por fazer o que gosta."
Introduzo alguma matéria-prima psíquica que, de alguma forma, lhe diz respeito. Não apenas tédio e solidão, mas também algo que apenas vislumbra: a alegria de poder estar “de verdade” naquilo que se faz. Paula responde que acha terrível alguém gastar sua vida assim, sem fazer nada. A resposta, que contém uma vibração afetiva, mostra que não só ela conseguiu usar a matéria-prima que lhe ofereci como também acrescentou algo próprio (“É terrível gastar a vida...”). Esse é um exemplo da estratégia de revitalização de tecido psíquico através de uma variante do jogo do rabisco: ela traz a cena da velhinha, eu proponho duas leituras, ela completa com a dela.
"Vi na esquina uma mulher albina. Nunca tinha visto uma pessoa quase transparente." A comunicação se encerra no puro relato do fato. Entendo que a pobreza de vida interior a obrigue a ficar aderida aos estímulos "de fora", com os olhos grudados na cor da pele de uma pessoa que ela vê na rua. Naturalmente, guardo isso para mim. O que eu posso tentar fazer é conferir alguma espessura ao relato "cavando" um espaço interior.
Com Paula, eu não posso tomar o sugestivo significante transparente em seu sentido metafórico. Se eu fizer isso, ela até pode aderir e manejar a metáfora com inteligência, mas será mais uma manifestação em falso self. Aqui, o analista precisa abandonar um modo de escuta quase automático (!) e se conformar: transparente é transparente.
Descartado o uso metafórico, que sentido eu poderia dar a uma fala como essa? Que ela tem um olhar singular sobre o mundo? Que esse olhar provém “do interior” de uma pessoa? Ou então, talvez ela esteja em busca da imagem dela no meu “interior”: como as coisas que ela diz repercutem em mim? Não sei. Mas é fundamental que eu lhe devolva o que poderia haver de vivo e genuíno no que acaba de dizer. Então eu digo: "Tem coisas que estão aí bem debaixo do nariz de todo mundo, mas poucos enxergam. Se você fosse fotógrafa, provavelmente daria uma foto diferente."
Alguma sedução e um firme trabalho de reanimação - recorrendo, sempre que possível, à minha criatividade psíquica - são manejos que fazem parte da estratégia de revitalização. A mãe precisa seduzir a criança para a vida. Assim como uso a velhinha da TV para criar tecido psíquico, uso sua observação sobre a pele quase transparente para lhe contar que ali há um olhar singular de uma pessoa singular. Graças a esse espelhamento, pode se perceber e se reconhecer; firma-se, nesse processo, seu sentimento de existir.
Além do manejo e do espelhamento, é fundamental não deixar que a fala dela caia no vazio. Nesses dois exemplos, não posso ficar em silêncio. Luto contra o vazio que quase me paralisa e intervenho para lhe oferecer uma sustentação - não apenas com minhas palavras, mas com minha própria atividade psíquica. Se no caso de Marcia era fundamental conter e transformar a angústia, aqui, na ausência desse afeto, o que se impõe é oferecer um holding vigoroso. A sustentação de um ambiente psíquico na e pela transferência é fundamental para que se constitua, "de dentro para fora", a experiência de ser e de existir.
Lentamente, as coisas começam a se mexer. Não por acaso, a primeira coisa que começa a investir genuinamente é o corpo. Começou a frequentar uma academia de ginástica, e também o pilates, que lhe proporciona o prazer de sentir a flexibilidade do próprio corpo. Depois dos exercícios, gosta de sentir as dores musculares, pois indicam que seu corpo existe. Para além das roupas que estão a serviço de construir uma personagem, começa a haver um esboço genuíno de ego corporal. Ainda é um prazer puramente sensorial, mas muito diferente da adrenalina da montanha-russa.
O rádio do carro está sempre na estação que toca música clássica, conforme o gosto do marido. Hoje, vindo para a análise, ocorreu-lhe que poderia mudar de estação para ouvir as músicas de que gosta. "Claro que depois eu deixo do jeito que estava." Digo então: "Tem medo que percebam quem você é, do que você gosta; medo que percebam que você é uma pessoa." Não deixar marcas, tornar-se transparente para sobreviver: eis o processo de adoecimento que produziu essa forma tão particular de sofrimento psíquico.
Certa vez, no banho, ficou curtindo a água bem quente em seu corpo. Quando viu, estava chorando. Soluçava. Tive a impressão de que no lugar da angústia branca, da depressão sem tristeza, havia tristeza e angústia verdadeiras por perceber o vazio dramático de sua existência. O tecido psíquico começa a se revitalizar. Como muitas de minhas pacientes, adorou o filme Aquarius. Descreve uma mulher que enfrenta as empreiteiras que querem comprar seu apartamento. Paula fica tocada ao ver como essa mulher luta para preservar a vida - simples, mas plena - que havia construído para si. Esse material sugere que está em trânsito entre a estratégia conhecida, de se fingir de morta para sobreviver, e outra, na qual é possível afirmar algo próprio e lutar pelo direito de existir.
Começa a não querer coisas. De vez em quando, comenta que não foi viajar com o marido para não perder sua rotina, suas sessões, sua ginástica. Conseguiu dizer para uma visita que não mostrava sinais de querer ir embora que sentia muito, mas tinha que sair para um compromisso. Certa noite, disse ao marido que não queria mais ver TV, preferia conversar. Para ela, essas afirmações de algo próprio são grandes conquistas.
Um dia me anuncia que não quer mais vir à análise três vezes por semana. Eu havia me questionado se esse ritmo não seria excessivo. Em duas ou três ocasiões, eu lhe fiz essa pergunta, e a resposta foi: “Não." Hoje entendo que não havia ninguém-nela para saber se aquilo era, ou não, excessivo - como não houvera ninguém-nela para saber se ela gostava ou não de piano. Como a mãe-autômato, ofereci um enquadre "por atacado", e ela simplesmente aceitou. Confundi a resposta de um sujeito ainda por nascer com a de um sujeito já em contato com seu desejo!
Viu uma exposição de fotos das malas de pessoas que tinham vivido em uma instituição psiquiátrica. Soube que no começo o fotógrafo procurou as fichas médicas para saber quem tinham sido aquelas pessoas. Depois, percebeu que as próprias malas contavam muito mais de sua história do que uma ficha. Esse material indica a possibilidade de abandonar uma abordagem operatória - as fichas médicas - em favor de um olhar atento à singularidade de cada um - as malas. Em vez de precisarem ser apagadas - como fez com a estação de rádio que toca as músicas que aprecia -, tais marcas são valorizadas, ou não estariam sendo expostas na galeria.
Tem um pequeno apartamento cujo aluguel lhe proporciona uma renda. É principalmente lá, na escolha de móveis e objetos, que se sente livre para deixar as marcas de sua singularidade. Não quis alugar para um casal que queria mudar a decoração. Conseguiu alugar para outro, que adorou exatamente como estava, o que a deixou muito feliz. Tanto o fotógrafo quanto o casal que adorou a decoração nos dão notícias do novo objeto que vai sendo construído na transferência: aquele que é capaz de reconhecer - no duplo sentido de enxergar e valorizar -quem ela é “de verdade”.
Esse processo, contudo, não se dá sem resistências. Ela acompanha o marido em uma intensa vida social, na qual ocupa um lugar discreto. Em certo jantar, inesperadamente alguém lhe faz uma pergunta direta: "Paula, em que maternidade vai dar à luz?" Sentiu uma flechada no peito, entrou em pânico e respondeu rapidamente. Nem bem se recupera, nova pergunta direta sobre o bebê. Mesma sensação, mesma resposta rápida. Essa cena mostra a que ponto a “não existência” como defesa se cristalizou e se tornou um modo de vida necessário. É na transferência que a experiência suficiente, mas não excessiva, de ser vista e de existir para o outro pode revitalizar sua vida psíquica sem despertar resistências excessivas.
Finalizando
Retomo a discussão sobre a relação entre processos de adoecimento e estratégias terapêuticas indicando os elementos teóricos que dão sustentação às formas de trabalhar que apresentei. É importante que um analista consiga justificar metapsicologicamente o que faz, principalmente quando uma análise lhe exige intensa implicação, e isso para evitar dois riscos opostos: o de uma clínica alheia à problemática singular do paciente e o de outra alheia aos fundamentos terapêuticos da psicanálise.
Os dois casos apresentados me vieram à mente quando li o texto “Matrizes e modelos de adoecimento psíquico em psicanálise”, de Luís Claudio Figueiredo (2016). A compreensão e nomeação dos processos de adoecimento apresentada pelo autor, bem como a compreensão e nomeação das estratégias terapêuticas correspondentes me ajudaram a pensar de forma mais organizada sobre o trabalho que vinha realizando com as duas pacientes.
O autor faz uma leitura crítica da história do pensamento psicanalítico com o objetivo de reconhecer como a psicanálise pensou os processos de adoecimento psíquico, de Freud até os contemporâneos. O objeto de sua leitura não é a psicopatologia em si - sofrimento neurótico ou não neurótico -, mas como os autores pensaram os processos que resultam em tais formas de sofrimento. Esse autor encontrou na literatura duas grandes matrizes teóricas que permitem entender os processos de adoecimento psíquico.
Nomeou a primeira de matriz freudo-kleiniana. Os autores que trabalham nessa matriz partem do pressuposto de que o psiquismo tem capacidades inesgotáveis para se defender de forma ativa da angústia produzida pelas ameaças à integridade somatopsíquica. A segunda é a matriz ferencziana. Aqui, ao contrário, os autores admitem que as capacidades do psiquismo de se defender do que ameaça sua sobrevivência podem se esgotar. O trauma precoce pode aniquilar as capacidades de defesa de tal forma que as angústias são evitadas por uma extinção de áreas do psiquismo.
Marcia ilustra exemplarmente a matriz freudo-kleiniana; Paula, a matriz ferencziana. Em Marcia, é o excesso de ativação das defesas que trava a capacidade de realizar trabalho psíquico; em Paula, a falta de tecido psíquico vivo produz o mesmo resultado. A compreensão dos respectivos processos de adoecimento determina e, ao mesmo tempo, dá um embasamento teórico às estratégias terapêuticas utilizadas: desativação do binômio angústia-defesa no primeiro caso, revitalização no segundo.
Espero ter conseguido não apenas ilustrar, mas também justificar as duas modalidades de implicação do analista que trabalha com os ecos da pulsão de morte.
Referências
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Recebido em 26.9.2016
Aceito em 10.10.2016